ACESSO À JUSTIÇA EM MATÉRIAS AMBIENTAIS: O SISTEMA LEGAL E A PRÁTICA JUDICIÁRIA Resumo dos dados fundamentais do estudo encomendado pela Comissão Europeia em oitos Estados-Membros Isabel Carinhas de Andrade Gonçalo Cavalheiro Euronatura – Centro para o Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentado Rua Ramalho Ortigão, 33 cv 1070-228 Lisboa www.euronatura.pt Documento de trabalho ACESSO À JUSTIÇA EM MATÉRIAS AMBIENTAIS: O SISTEMA LEGAL E A PRÁTICA JUDICIÁRIA1 Resumo dos dados fundamentais do estudo encomendado pela Comissão Europeia em oitos Estados-Membros NOTA PRÉVIA ................................................................................................................ 3 I – QUADRO JURÍDICO-LEGAL .................................................................................. 6 1 – Principais características do Direito do Ambiente no ordenamento português ......... 6 2 – Disciplina constitucional relativa ao direito do ambiente e ao acesso à justiça........... 7 3 – Quadro legislativo.................................................................................................... 8 3.1 – Legitimidade processual .......................................................................................... 8 3.2 – Formas possíveis de acção popular (administrativa, civil e penal)................................... 11 3.2.1. – Acção Popular Administrativa ............................................................. 11 3.2.2 – Acção Popular Civil............................................................................... 12 3.2.3 – Acção Popular Penal ............................................................................. 14 3.3 – Poderes especiais do tribunal .................................................................................. 14 3.4 - Patrocínio judiciário .............................................................................................. 15 3.5 - Custas judiciais.................................................................................................... 16 3.6 - Publicidade da decisão ........................................................................................... 16 3.7 - Procedimentos administrativos ................................................................................. 16 3.8 – Processos de contra-ordenação ................................................................................. 17 II – RESULTADOS EMPÍRICOS.................................................................................. 18 1 – Metodologia usada ................................................................................................. 18 2 – Apresentação dos resultados (totais e parciais) ....................................................... 19 3 – Principais conclusões retiradas ............................................................................... 22 III – RESULTADOS GLOBAIS DO ESTUDO ............................................................ 23 1 – Conclusões e recomendações formuladas à Comissão Europeia............................. 23 2 – Proposta de directiva apresentada pela Comissão Europeia.................................... 24 Este projecto conta co m o apoio, à data, do Instituto do Ambiente (MCOTA) e com a parceria da Ordem dos Advogados e do Ministério da Justiça 1 Documento de trabalho 2 NOTA PRÉVIA A participação pública e o acesso à justiça em matérias ambientais tem ocupado ultimamente a agenda da União Europeia. A Estratégia de Implementação de 1996, o 6º Programa de Acção em Matéria de Ambiente e o Livro Branco sobre Governança Europeia referem esta questão. Para além disso, a Comunidade Europeia ratificou a Convenção de Aarhus de 25 de Junho de 1998, “sobre o acesso à informação, a participação do público no processo de decisão e o acesso à justiça em matérias ambientais”, que obriga as Partes a implementar e efectivar os direitos de informaçãoparticipação-litigação dos indivíduos e das associações de defesa do ambiente. A União Europeia adoptou já directivas comunitárias que implementam os dois primeiros pilares da Convenção de Aarhus – o acesso à informação e a participação do público nos processos de tomada de decisão2 – não dispondo, contudo, até à data de qualquer regulamentação relativa ao acesso à justiça em matérias ambientais. No sentido de colmatar esta lacuna e com o objectivo de melhorar o conhecimento de base necessário à implementação da Convenção de Aarhus, a Comissão Europeia encomendou um estudo que fornecesse um diagnóstico geral do desenvolvimento da questão nos últimos anos e a situação actual em termos de acesso à justiça em matérias ambientais por parte de organizações não governamentais e cidadãos. O estudo, que decorreu entre Novembro de 2002 e Maio de 2003, englobou um conjunto de Estados Membros (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, França, Países Baixos, Portugal, Itália e Reino Unido), tendo como coordenadores o Centre D’Études du Droit de l’Environement (CEDRE), em Bruxelas, e o Oeko-Institut e.V., na Alemanha. A EURONATURA – Centro para o Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentado foi o parceiro português neste projecto. De acordo com a metodologia adoptada, foram analisados processos judiciais e também procedimentos administrativos, desde que perante órgãos administrativos imparciais, como é, no caso português, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Essencial foi que se tratasse de processos iniciados com vista à defesa de um interesse difuso ou geral na protecção do ambiente, o que levou à exclusão de todos os casos em que estivessem em causa interesses individuais. O estudo repartiu-se assim em duas partes: I – descrição do quadro jurídico e apuramento do número e resultado dos processos judiciais apresentados por organizações não governamentais de ambiente e grupos de cidadãos relativos a questões ambientais nos últimos 8 anos [1995-2002]– informação que foi sistematizada em relatórios nacionais; II – escolha e análise de exemplos representativos de procedimentos de modo a avaliar até que ponto o acesso à justiça por parte de grupos de cidadãos em matérias ambientais influenciou a qualidade da decisão final sob aspectos ecológicos, económicos e democráticos – o que se traduziu num estudo de um caso Directiva 2003/4/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro de 2003, relativa ao acesso do público às informações sobre ambiente e que revoga a Directiva 90/313/CEE do Conselho; Directiva 2003/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Maio de 2003, que estabelece a participação do público na elaboração de certos planos e programas relativos ao ambiente e que altera, no que diz respeito à participação do público e ao acesso à justiça, as Directivas 85/337/CEE e 96/61/CE do Conselho 2 Documento de trabalho 3 por país. No caso português, analisou-se em maior detalhe o caso das “Andorinhas de Nisa.” A informação fornecida pelos vários parceiros nacionais foi condensada num relatório final, o qual, além de analisar as diferenças e semelhanças existentes entre os vários Estados-Membros incluídos no estudo, apresenta ainda recomendações à Comissão Europeia relativamente à acção comunitária para implementação da Convenção de Aarhus no que respeita ao acesso à justiça em matérias ambientais. Em 24 de Outubro de 2003 a Comissão Europeia apresentou um pacote de propostas legislativas, o qual inclui uma proposta de directiva sobre acesso à justiça em matérias ambientais3, uma proposta de regulamento relativo à aplicação das disposições da Convenção de Aarhus ao nível das instituições e organismos comunitários4 e uma proposta de decisão para aprovação da Convenção de Aarhus5. A maioria das recomendações formuladas em resultado do estudo acima referido mereceram acolhimento nestas propostas legislativas. Outras questões necessitam de maior estudo e debate. Além desta ser uma discussão que se avizinha como muito participada, poderá ser ainda uma oportunidade para Portugal se apresentar como modelo, uma vez que, segundo as conclusões a que o nosso estudo chegou, Portugal é dos países que oferece condições para um exercício mais amplo do direito de acesso aos tribunais em matérias ambientais. Contudo, e paradoxalmente, a prática judiciária aponta para uma das mais baixas taxas de litigação de entre os vários Estados Membros que participaram no mesmo estudo. Esta é, portanto, também altura de aprofundar a reflexão sobre as virtudes e obstáculos do nosso sistema de acesso à justiça e de procurar formas de tornar o mesmo mais eficiente e assim garantir uma efectiva tutela do ambiente. A EURONATURA considerou assim importante utilizar o capital de informação acumulado e aprofundar o conhecimento dos problemas diagnosticados de modo a contribuir para inverter essa situação, dinamizando os diversos agentes envolvidos: cidadãos, organizações não governamentais do ambiente, advogados, magistrados, investigadores/académicos, administração pública. Nesse sentido, o acesso à justiça continuará a ser objecto de trabalho da Euronatura, agora num novo projecto a nível nacional6. O presente documento pretende resumir o essencial do estudo elaborado para a Comissão Europeia7. Não se trata de uma simples tradução, nem pretende tratar exaustivamente todas as matérias, mas essencialmente fornecer um ponto de partida e uma base para Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao acesso à justiça no domínio do ambiente – COM(2003)624 final 4 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à aplicação das disposições da Convenção de Århus sobre o acesso à informação, a participação do público na tomada de decisões e o acesso à justiça no domínio do ambiente às instituições e organismos comunitários – COM(2003)622 final 5 Proposta de Decisão do Conselho relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia, da Convenção sobre Acesso à Informação, Participação do Público no Processo de Tomada de Decisão e Acesso à Justiça em Matéria de Ambiente – COM(2003)625 final 6 Este projecto conta co m o apoio, à data, do Instituto do Ambiente (MCOTA) e com a parceria da Ordem dos Advogados e do Ministério da Justiça 7 O texto integral dos relatórios nacionais e do relatório final está disponível no website da Comissão Europeia em http://europa.eu.int/comm/environment/aarhus/index.htm 3 Documento de trabalho 4 reflexão e aprofundamento para a continuação da investigação. Futuramente, o plano de trabalho já delineado inclui a elaboração de um Guia sobre Acesso à Justiça, acções de sensibilização e uma conferência final sobre o tema com o objectivo de formulação de propostas concretas para o aperfeiçoamento das condições de acesso à justiça em matérias ambientais no nosso país. Documento de trabalho 5 I – QUADRO JURÍDICO-LEGAL 1 – Principais características do Direito do Ambiente no ordenamento português O Direito do Ambiente é um sector do Direito relativamente novo no ordenamento jurídico português, tendo sido impulsionado, essencialmente, por via da legislação comunitária (grande parte das normas ambientais decorrem da transposição de directivas comunitárias). Além da sua “juventude”, caracteriza-se ainda pela transversalidade: as disposições que protegem o ambiente atravessam os vários ramos do direito – administrativo, civil, penal, tributário, etc. Será contudo seguro afirmar que uma parte significativa do Direito do Ambiente recai no âmbito do Direito Administrativo, uma vez que são vários os diplomas que impõem ao Estado deveres e tarefas no sentido da protecção do ambiente. As respostas do ordenamento jurídico às violações das normas ambientais variam consoante o ramo do direito em que as mesmas se enquadrem e o agente infractor. Se, por exemplo, o Estado agir em violação de uma norma (de direito administrativo) que lhe exige a protecção de um qualquer bem ou valor ambiental, essa conduta ou os seus efeitos poderão ser anulados por um tribunal administrativo. A maioria das normas do Direito do Ambiente que disciplinam actividades susceptíveis de provocar impactes ambientais prevêem a aplicação de sanções administrativas no caso de serem violadas pelos particulares que sejam destinatários das mesmas. As infracções (contra-ordenações) são, numa primeira fase, apreciadas por uma autoridade administrativa, a qual poderá, caso considere que ficou provada a prática da contra-ordenação, aplicar uma coima (sanção pecuniária) ao infractor. Esta decisão é passível de recurso judicial, ou seja, de controlo pelos tribunais. A actuação de particulares pode ainda ofender o direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado de um qualquer cidadão, gerando aí responsabilidade civil dos infractores. Nesse caso serão os tribunais civis os competentes para determinar a forma possível de reparação (cessação da actividade, indemnização ou reconstituição natural da situação anterior ao dano). O Estado também poderá ser responsável civilmente, sempre que provoque um dano ambiental a um particular fora do âmbito da actividade administrativa de prossecução e satisfação das necessidades colectivas, ou seja, sempre que não esteja a agir dotado de autoridade pública. Esta última distinção ficou bem ilustrada no estudo de caso realizado. O Estado, enquanto proprietário do edifício do tribunal de Nisa, decidiu retirar das paredes deste todos os ninhos de andorinha aí existentes e colocar no seu lugar espigões que impedissem, de futuro, a nidificação de mais aves. A remoção dos ninhos e a colocação dos espigões foi contestada pelo FAPAS (Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens) perante o tribunal judicial (jurisdição cível), por se tratar de uma violação das normas que protegem as aves selvagens praticada pelo Estado, como o poderia ter sido por qualquer proprietário de qualquer edifício. Já quando o Estado adjudicou as obras de limpeza a uma determinada empresa, essa decisão (um acto administrativo) foi objecto de uma outra impugnação (pelo Ministério Público, após denúncia do FAPAS) perante os tribunais administrativos. Ao verificar que a mesma questão estava a ser apreciada pelos tribunais cíveis, o tribunal administrativo decidiu declarar a inutilidade da lide (mas não a incompetência) e extinguir a instância, decisão que foi, contudo, objecto de recurso. Documento de trabalho 6 Algumas condutas violadoras de bens ambientais, por serem consideradas mais graves, são tipificadas como crimes, sendo portanto passíveis da aplicação de pena de prisão ou multa pelos tribunais criminais. 2 – Disciplina constitucional relativa ao direito do ambiente e ao acesso à justiça A Constituição da República Portuguesa define a protecção do ambiente numa dupla vertente: como uma tarefa do Estado e como um direito fundamental de todos. Inserido no capítulo dos direitos e deveres sociais, o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, tal como estabelecido no artigo 66º, implica ainda para os cidadãos o dever de o defender. Como uma garantia básica de todos os Estados de Direito Democráticos e por forma a garantir a protecção efectiva dos direitos fundamentais, a Constituição, no seu artigo 20º, assegura ainda a todos os cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, proibindo a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos. O artigo 268º reafirma o princípio da tutela jurisdicional efectiva, enquanto garantia dos administrados face à actuação da Administração Pública. Quando está em causa a protecção, não de direitos ou interesses individuais, mas de bens colectivos ou difusos pertencentes a uma colectividade ou grupo de indivíduos, e por isso insusceptíveis de apropriação individual, como é o caso dos bens ambientais (ex. a qualidade do ar) o princípio geral da tutela jurisdicional necessita de ser ajustado, no sentido de se identificar quem pode reivindicar a sua protecção e em que termos. A resposta a essa questão é dada, de forma bastante generosa, pelo artigo 52º da Constituição que consagra o direito de acção popular, permitindo a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o acesso aos tribunais para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural. A partir da leitura deste dispositivo constitucional é possível, desde logo, retirar as principais linhas definidoras da acção popular: a) legitimidade – todos os indivíduos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa; b) interesses protegidos - saúde pública, direitos dos consumidores, qualidade de vida, ambiente, património cultural, bens do Estado, autarquias locais e regiões autónomas, etc. – interesses difusos, colectivos e homogéneos; c) finalidade – preventiva, correctiva, repressiva, supletiva e indemnizatória. A norma referente ao direito de acção popular está inserida no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias de participação política, o que significa que, nos termos do artigo 18º da Constituição, se trata de um preceito directamente aplicável e vinculativo para entidades públicas e privadas. A redacção do artigo 52º é, contudo, genérica, remetendo expressamente para a lei a definição dos termos de exercício do direito de acção popular. Apesar de algumas referências legislativas pontuais que entretanto surgiram, só em 1995, com a aprovação da Documento de trabalho 7 Lei de Acção Popular (Lei n.º 83/95 de 31-08) se definiram regras procedimentais que tornaram possível, na prática, o exercício deste direito. 3 – Quadro legislativo A regulamentação legislativa das formas de acesso à justiça em matérias ambientais por parte de cidadãos e ONGAs é feita de forma algo fragmentária por diversos diplomas, sendo os principais: - Lei de Acção Popular ou LAP (Lei n.º 83/95 de 31-08, relativa ao direito de participação procedimental e de acção popular) – não regula exaustivamente a acção popular, limitando-se a introduzir excepções e especialidades face às regras gerais de direito processual administrativo, civil e penal e aos tipos de acção que estas estabelecem, para proteger um objecto próprio (os interesses colectivos e difusos); - Lei das Organizações Não Governamentais de Ambiente/ONGA (Lei n.º 35/98 de 19-07) – reafirma, na linha da Constituição e da LAP, a legitimidade destas organizações para intervir e iniciar tanto em procedimentos administrativos como acções judiciais para a protecção do ambiente. Vai depois mais longe do que a Lei de Acção Popular e concede às ONGA isenção de custas pela intervenção em acções judiciais em que esteja em causa a protecção do ambiente; - Lei de Acesso aos Documentos Administrativos ou LADA (Lei n.º 65/93 de 26-08, alterada pelas Leis n.º 8/95 de 29-03 e 94/99 de 16-07) – estabelece um procedimento administrativo específico para salvaguarda do direito de acesso à informação. Partindo destes diplomas legislativos, será feita de seguida a descrição das condições e formas possíveis de recurso à via judicial por parte de cidadãos e ONGAs, como forma de obter uma tutela de bens ambientais. 3.1 – Legitimidade processual Têm legitimidade para recorrer a tribunal e requerer a tutela de bens e valores ambientais, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda: a) quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos (individualmente ou em grupo)8, b) associações e fundações para a defesa dos interesses em causa, desde que preencham os seguintes requisitos (que, no fundo, correspondem aos requisitos para que uma associação seja considerada ONGA)9: a. possuírem personalidade jurídica, b. incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate (tem de haver correspondência com fins e âmbito de actuação) c. não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais artigo 52º da Constituição, 2º da LAP e 26º-A do Código de Processo Civil artigo 52º da Constituição, artigos 2º e 3º da LAP, artigo 26º-A do Código de Processo Civil e artigos 2º e 10º da Lei das ONGA 8 9 Documento de trabalho 8 c) as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição10. Parece claro não existir qualquer controlo de representatividade no que respeita tanto aos cidadãos como às ONGA, ou seja, quem propõe a acção não tem de demonstrar ser representativo de um determinado número mínimo de pessoas. Dúvidas já existem, por omissão da lei e inexistência de jurisprudência significativa, sobre outros pontos, como por exemplo: 1. a eventual necessidade do nexo geográfico entre o autor da acção e a questão a ser nela discutida, sempre que esteja em causa um dano ambiental localizado (por exemplo a contaminação de solos numa área restrita) – as ONGA locais e regionais, por força da definição estatutária dos interesses que visam proteger, terão necessariamente a sua legitimidade restringida à defesa de interesses locais e regionais referentes ao seu âmbito geográfico, havendo quem defenda uma solução similar para o caso de acções intentadas por cidadãos11; 2. a possibilidade de cidadãos estrangeiros proporem uma acção judicial para tutela do ambiente – a LAP refere-se a “cidadãos”, enquanto a Constituição utiliza uma expressão mais abrangente (“todos”) e reconhece já expressamente outros direitos de participação política a cidadãos comunitários. No âmbito da Lei de Acção Popular, o Ministério Público tem o seu papel limitado ao controlo da legalidade e à representação do Estado, de ausentes, menores e demais incapazes e outras pessoas colectivas públicas quando autorizado por lei12. No âmbito da fiscalização da legalidade e para evitar conluios entre as partes, o MP pode substituir-se ao autor em caso de desistência da lide, transacção ou comportamento lesivo dos interesses em causa Existem, contudo, outros preceitos legais que permitem ao Ministério Público agir em juízo para defesa de interesses difusos como o ambiente e, com esse objectivo, propor acções judiciais13. De resto, estudos anteriores revelam que tem sido relativamente significativo o número de acções propostas pelo Ministério Público, sendo ainda, muitas vezes, opção das próprias ONGA ou de indivíduos apresentar uma queixa junto do MP para que este actue, em vez de proporem eles próprios uma acção judicial, eventualmente confiantes na melhor preparação técnica destes magistrados. Uma legitimidade tão ampla implica um regime especial de representação processual. A LAP determina que quem propõe a acção (o autor) “representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão”14, o que significa que, em regra, a decisão final do tribunal (o caso julgado) tem eficácia geral, ou seja, vincula e obriga todos os demais titulares do mesmo interesse, prejudicando a possibilidade de vir a ser proposta nova acção com o mesmo pedido e fundamento. artigo 2º da LAP e 26º-A do Código de Processo Civil vd. “Acção Popular – Novo Paradigma”, Carlos Adérito Teixeira 12 artigo 16º da LAP 13 artigo 26º-A do Código de Processo Civil e artigo 45º da Lei de Bases do Ambiente 14 artigo 14º da LAP 10 11 Documento de trabalho 9 Recebida a petição inicial são citados (por anúncio(s) tornado(s) público(s) através de qualquer meio de comunicação social ou editalmente) os titulares dos interesses em causa na acção de que se trate, e não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo juiz, e se o pretenderem, passarem a intervir no processo a título principal, aceitando-o na fase em que se encontrar, ou declararem simplesmente se aceitam ou não ser representados pelo autor. O silêncio vale como aceitação da representação, mas o direito de auto-exclusão pode ainda ser exercido até mais tarde (até ao termo da produção de prova ou fase equivalente), sempre por declaração expressa nos autos. A possibilidade de recusa de representação ou de auto-exclusão da eficácia geral do caso julgado, não faz muito sentido para os casos de protecção do ambiente, em que a decisão do tribunal vai recair sobre um bem único (o interesse difuso). Apesar de existir uma pluralidade de titulares do interesse, este é uno e portanto passível de uma única regulação. Situação diferente é a dos interesses individuais homogéneos, ou seja, situações em que existe uma pluralidade de indivíduos, cada um titular do seu direito individual, sendo que todos estes têm conteúdo semelhante e uma fonte comum (por exemplo os contratos de adesão, na área do consumo). Por serem semelhantes, estes direitos podem ser apreciados conjuntamente numa acção popular, mas sendo juridicamente distintos, também poderão ser regulados separadamente e por isso se abre a oportunidade de o respectivo titular se auto-excluir (e eventualmente propor uma acção individual para o seu caso concreto). Já numa acção relativa, por exemplo, a descargas poluentes se o tribunal decide que a actividade foi realizada ilegalmente e tem de cessar, essa decisão é necessariamente válida para todos, não podendo mais tarde vir a ser decidido de outra forma para outro interessado que não tenha participado na primeira acção. Já, por outro lado, a possibilidade de intervenção posterior (após a propositura da acção e dentro do prazo fixado pelo juiz) poderá revelar-se bastante útil em acções para a protecção do ambiente, sendo uma oportunidade para conjugar esforços, adicionar novos argumentos e, eventualmente, cumular um novo pedido, desde que conexo com o primeiro e assim alargar o âmbito da discussão. Esta possibilidade aparentemente não tem sido porém usada. No sentido de evitar que uma falta de diligência do autor, ou um eventual conluio deste com o réu prejudique todos os interessados que não intervieram na acção mas que se consideram legalmente representados, a lei determina que a decisão final não será aplicável àqueles que não intervieram na acção nos seguintes casos: A. quando acção seja considerada improcedente por falta de provas (o autor não cumpriu o seu ónus de provar os factos alegados), B. quando o juiz decida de forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto (nomeadamente quando o tribunal chegue à conclusão que o autor está a usar a acção popular como forma de servir interesses próprios ocultos e não o interesse difuso alegado), Nos casos acima descritos, em que a decisão final tem uma eficácia apenas entre as partes do processo, qualquer outro titular do mesmo interesse, que não tenha participado na acção, pode vir a iniciar um outro processo judicial exactamente com o mesmo fim. Documento de trabalho 10 3.2 – Formas possíveis de acção popular (administrativa, civil e penal) Com algumas especialidades pontuais (como as acima apontadas e outras que abaixo se descreverão) derivadas da situação excepcional de legitimidade do autor popular, a acção popular pode revestir qualquer das formas processuais previstas na lei processual administrativa, civil e penal15. 3.2.1. – Acção Popular Administrativa Como já se referiu, sempre que esteja em causa uma actuação da Administração Pública no âmbito do seu ius imperii lesiva do Ambiente, a tutela jurisdicional dos bens ambientais violados compete aos tribunais administrativos e à respectiva jurisdição. Em comparação por exemplo com as possibilidades de actuação no âmbito da jurisdição civil, o contencioso administrativo era, tradicionalmente, apontado como bastante rígido e complexo, assente nas formas clássicas de actuação administrativa (o acto, o contrato e a norma administrativa), o que deixava sem protecção uma série de situações em que a ofensa não cabia nesses parâmetros formais, sendo muito limitado o escopo de pedidos admissíveis em tribunal. Com a entrada em vigor, a 1 de Janeiro de 2004, das novas regras do contencioso administrativo16, passou a existir uma maior diversidade de meios processuais e pedidos que podem ser apresentados perante os tribunais administrativos. Reafirmando o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o artigo 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos estabelece que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos. Como novidade face ao quadro legal anterior surge, por exemplo, a possibilidade de obter a condenação da Administração à abstenção de comportamentos e, em especial, à abstenção da emissão de actos administrativos, quando exista a ameaça de uma lesão futura, ou a condenação da Administração à prática de actos administrativos legalmente devidos ou à prática dos actos e operações necessários ao restabelecimento de situações jurídicas subjectivas. Também a organização dos tribunais administrativos foi simplificada. Os tribunais administrativos de círculo funcionam em regra como tribunais de 1ª instância, sendo o Tribunal Administrativo Central e ao Supremo Tribunal Administrativo (STA) essencialmente tribunais de recurso (respectivamente 2ª e última instância), salvo os processos relativos aos órgãos de soberania, reservados em 1ª instância ao STA.. De notar ainda, pelo seu simbolismo (pois não é uma regra nova face à LAP), a consagração expressa no Código de Processo nos Tribunais Administrativos17 da legitimidade de qualquer pessoa, bem como associações e fundações dos interesses em causa para propor e intervir nos processos principais e cautelares destinados à defesa de interesses como o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território ou a qualidade de vida. artigo 12º LAP o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos, aprovado pela L n.º 13/2002 de 19-02, e o novo Código de Processo dos Tribunais Administrativos, aprovado pela L n.º 15/2002 de 22-02, ambos alterados pela Lei n.º 4-A/2003 de 19-02 17 artigo 9º na parte geral do Código, para o qual remetem as várias regras relativas à legitimidade activa para cada tipo de acção, na parte especial. 15 16 Documento de trabalho 11 Essencial em muitas situações em que uma actuação da Administração é lesiva do ambiente, é conseguir perante os tribunais uma regulação provisória, nomeadamente uma ordem de suspensão imediata da actividade, no sentido de acautelar o efeito útil da decisão a que se possa chegar no final do processo judicial, já que muitas vezes os danos se revelam irreparáveis. Além dos procedimentos cautelares previstos na lei processual geral, a Lei de Bases do Ambiente consagra a figura dos “embargos administrativos”, determinando, no seu artigo 42º, que “aqueles que se julguem ofendidos nos seus direitos a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado poderão requerer que seja mandada suspender imediatamente a actividade causadora do dano”. Esta providência cautelar pode ser pedida perante os tribunais administrativos sempre que a actividade causadora do dano seja realizada por entidades pertencentes à Administração Pública. A LBA não define regras processuais quanto à tramitação do pedido de embargos, o que provocou larga controvérsia na doutrina e jurisprudência. Ainda antes da reforma do contencioso administrativo, alguns autores18 vieram defender que será aplicável neste caso o regime previsto no Código de Processo Civil para o embargo de obra nova (artigos 412º a 420º). Outra questão largamente debatida nos tribunais administrativos tem sido a da (in)aplicabilidade do procedimento cautelar para a suspensão da eficácia do acto administrativo na dependência do recurso contencioso de anulação (designação utilizada pela lei anterior para a impugnação de actos administrativos), uma vez que o artigo 18º da LAP prevê que o juiz, numa acção popular, pode conferir eficácia suspensiva a um recurso, ainda que a lei não preveja esse efeito. Alguma jurisprudência tem entendido que o pedido de suspensão de eficácia teria assim de ser formulado com base nesta norma, tendo o juiz total discricionariedade para o apreciar, sem dependência dos formalismos da lei processual administrativa. Esta posição não é consensual, havendo tribunais que consideram esta norma da LAP é aplicável não no âmbito das providências cautelares, mas dos recursos no sentido literal do termo (revisão de uma decisão de um tribunal inferior). 3.2.2 – Acção Popular Civil Quando a lesão ou ameaça ao ambiente seja provocada por uma actividade de um particular, ou pelo Estado desde que actuando desprovido de poderes de autoridade (no âmbito da sua gestão privada), é possível recorrer a qualquer das formas de acção previstas no Código de Processo Civil, propondo, perante um tribunal cível a acção que seja adequada a fazer reconhecer em juízo o direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, a prevenir ou reparar a violação do mesmo e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção. O direito processual civil é bastante flexível, definindo apenas espécies de acções de acordo com o seu fim, permitindo, em qualquer delas, uma grande variedade de pedidos. Assim, a defesa do ambiente pode ser efectivada através da apresentação de pedidos como: (a) a declaração da existência do direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado; (b) a condenação na realização de determinada prestação ou na proibição de uma actividade, com base no perigo de lesão do direito ao ambiente sadio; (c) a declaração da responsabilidade civil por danos ao ambiente. Vasco Pereira da Silva, “Os denominados embargos administrativos em matéria de ambiente”, Revista Jurídica de Urbanismo e Ambiente, separata dos n.º 5/6, Junho/Dezembro 1996 18 Documento de trabalho 12 No que respeita às acções de responsabilidade civil por danos ambientais, é de referir que tanto a Lei de Bases do Ambiente19 como a própria Lei de Acção Popular20 expressamente prevêem a responsabilidade subjectiva (com base na culpa/negligência) e também a responsabilidade objectiva (por actividade perigosa e independentemente de culpa). Determina a LAP que, nos casos de responsabilidade civil subjectiva, a indemnização tem de ser pedida para todos os titulares do interesse difuso. Se os titulares são indeterminados, ela é pedida globalmente (não tendo de indicar um montante exacto e preciso), se, pelo contrário, houver titulares identificados, todos eles devem ser apresentados como tal. A indemnização é fixada globalmente, cabendo, posteriormente a cada um dos interessados/lesados requerer21 que lhe seja atribuída a sua parte de acordo com os danos sofridos. O direito à indemnização prescreve no prazo de 3 anos a contar do trânsito em julgado da sentença que o tiver reconhecido. Os montantes não reclamados são entregues ao Ministério da Justiça que os escriturará em conta especial e o afectará ao pagamento de procuradoria e ao apoio no acesso ao direito e tribunais por titulares de acção popular. Mais uma vez trata-se de um regime processual aplicável no caso de haver interesses individuais homogéneos (situação em que cada indivíduo sofre um dano próprio e individualizável, tendo portanto direito à correspondente indemnização), não se adequando a danos ambientais não quantificáveis individualmente, onde só faz sentido uma destinação colectiva da indemnização. Haverá que preencher esta lacuna da lei e determinar qual deve ser essa destinação, eventualmente equacionando a afectação destes valores a um fundo especial para conservação da natureza. No que toca à responsabilidade objectiva há uma quase total inexistência de regras substantivas (não é definido o conceito de “actividade objectivamente perigosa”, que serve de base ao dever de indemnizar), bem como processuais (estabelece-se a obrigação de contratação de um seguro de responsabilidade civil para o exercício de actividades que envolvam um risco anormal para os interesses difusos protegidos pela LAP, remetendo-se a definição dos seus termos para uma regulamentação posterior, ainda inexistente). Haverá provavelmente que aguardar pela aprovação e transposição da directiva comunitária sobre responsabilidade por danos ambientais para poder encontrar mais acções (e condenações) nos tribunais portugueses por responsabilidade civil ambiental. No âmbito da acção popular civil é ainda possível recorrer a providências cautelares para obter uma decisão provisória que acautele o direito que se visa tutelar na acção judicial. O Código de Processo Civil prevê procedimentos cautelares especificados, adequados a determinadas situações tipo, permitindo, fora desses casos, a formulação do pedido de providências não especificadas que melhor se adequem à situação. Remete-se aqui para o que já foi dito acima sobre os embargos administrativos, aplicáveis no âmbito da acção popular civil (perante tribunais cíveis) sempre que a actividade lesiva do ambiente seja causada por um particular. artigoS 40º n.º 4 e 41º da LBA artigos 22º e 23º da LAP 21 através do incidente de liquidação prévio à acção executiva (art. 805º a 809º CPC) 19 20 Documento de trabalho 13 3.2.3 – Acção Popular Penal Os crimes ambientais estão tipificados no Código Penal (danos contra a natureza22, poluição23 e poluição com perigo comum24), existindo ainda incriminações em diplomas avulsos, nomeadamente na regulamentação da caça. Sendo provada a prática de um crime será aplicável uma pena de prisão ou de multa. As pessoas colectivas, como por exemplo, as empresas, não são responsáveis criminalmente, apenas o podendo ser os indivíduos que agem em seu nome, desde que quanto a eles se demonstrem preenchidos todos os requisitos do tipo penal (ilicitude, dolo, culpa e punibilidade). Os cidadãos e as ONGA podem intervir num processo crime de diversas formas25: a. Apresentando uma denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público (este organismo tem o dever de abrir um inquérito para averiguar se existem indícios da prática do respectivo crime), b. Constituindo-se assistentes no processo, o que lhes permite: i. Intervir em várias fases do processo oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias, ii. Deduzir acusação e requerer abertura de instrução, iii. Interpor recurso das decisões que os afectem. A LAP não prevê expressamente a possibilidade de apresentar pedido de indemnização civil no âmbito do processo penal quando se trata de uma acção popular. Alguns tribunais já têm, contudo, recusado apreciar tais pedidos apresentados por ONGA ou cidadãos, recorrendo a uma norma do Código de Processo Penal26 que permite ao tribunal remeter oficiosamente as partes para tribunais civis quando as questões suscitadas forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal. 3.3 – Poderes especiais do tribunal Tendo em atenção o carácter supra-individual dos interesses em causa, e no sentido de assegurar o princípio da igualdade substancial das partes (muitas vezes posto em causa quando o réu é o Estado ou uma grande empresa), bem como para evitar representações abusivas, a Lei de Acção Popular confere um papel bastante activo ao juiz neste tipo de processos judiciais. Logo após a recepção da petição inicial, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o juiz tenha por justificadas ou que o Ministério Público ou Autor solicitem, pode o juiz indeferir liminarmente o pedido caso entenda que é manifestamente improvável a respectiva procedência27. artigo 278º do Código Penal artigo 279º do Código Penal 24 artigo 279º do Código Penal 25 artigo 25º da LAP e artigos 68º, 69º e 70º do Código de Processo Penal 26 artigo 82º n.º 3 do Código de Processo Penal 27 artigo 13º da LAP 22 23 Documento de trabalho 14 No momento de proferir a decisão final, o tribunal pode ainda decidir pela improcedência do pedido fundado em motivações próprias do caso concreto (por exemplo a utilização abusiva da acção popular pelo autor para obter benefícios próprios), excluindo assim a vinculatividade erga omnes do caso julgado28, o que salvaguarda os verdadeiros titulares do interesse em causa. Ainda que limitado às questões fundamentais definidas pelas partes, o juiz tem iniciativa própria em matéria de recolha de provas, sem estar vinculado à iniciativa das partes (ao contrário do que acontece nas regras gerais de processo civil)29. Finalmente, outra excepção às regras processuais gerais é a, já referida, possibilidade do juiz conferir eficácia suspensiva a um recurso, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, ainda que a lei não preveja esse efeito para o recurso30. Como se anotou acima, alguns tribunais têm entendido que se trata aqui de conferir eficácia suspensiva no momento de apresentação do pedido de anulação de acto administrativo (designado pela lei processual administrativa anterior como “recurso contencioso de anulação”), enquanto que outras decisões defendem que a aplicabilidade desta norma ao recursos proprio sensu, ou seja, aos pedidos de revisão de uma sentença apresentados perante um tribunal superior. 3.4 - Patrocínio judiciário Nos processos da competência dos tribunais administrativos a constituição de advogado é sempre obrigatória31. Já na jurisdição civil, o patrocínio por advogado só é obrigatório32 nas causas em que seja admissível recurso, ou em função da matéria ou em função do valor da causa (ou seja, quando este ultrapasse o valor da alçada do tribunal de que se recorre 33). As acções sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 34, tornando-se, consequentemente, obrigatória a presença de um advogado. Os assistentes em processo penal são sempre representados por advogado35. A parte vencida numa acção está, em princípio, obrigada a reembolsar a outra parte das quantias devidas a título de procuradoria, uma quantia que deveria cobrir os encargos com o patrocínio judiciário. A LAP expressamente determina que o juiz deve arbitrar o montante da procuradoria de acordo com a complexidade e o valor da causa36. No entanto, na ausência de critérios subjectivos a jurisprudência tem sido muito restritiva, não permitindo muitas vezes o reembolso de valores que minimamente correspondam às despesas com advogados e outras. artigo 19º n.º 1 da LAP artigo 17º da LAP 30 artigo 18º da LAP 31 artigo 11º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos 32 artigo 32º do Código de Processo Civil 33 a alçada do tribunal de primeira instância é de (euro) 3 740,98 e a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 14 963,94 34 artigo 312º do Código de Processo Civil 35 artigo 70º do Código de Processo Penal 36 artigo 21º da LAP 28 29 Documento de trabalho 15 Em princípio, seria possível recorrer ao regime do apoio judiciário, na modalidade da nomeação e/ou dispensa de honorários ao patrono. A Lei n.º 30-E/2000 de 20-12, que define o regime de acesso ao direito e aos tribunais, com o objectivo de cumprir a exigência constitucional de garantir que a justiça não seja denegada por insuficiência de meios económicos, no seu artigo 9º remete para regulamentação posterior a definição dos esquemas destinados à tutela de interesses difusos e dos direitos só indirecta ou reflexamente lesados ou ameaçados de lesão. Esta regulamentação continua sem existir, levantando a questão de uma possível inconstitucionalidade por omissão. 3.5 - Custas judiciais Motivos económicos não devem ser um obstáculo ao acesso ao direito e, nomeadamente, à utilização da acção popular. A Lei n.º 35/98 de 18-07 isenta as ONGA do pagamento de preparos, custas e imposto do selo devidos pela sua intervenção nos processos que intentem para a protecção do ambiente. O novo Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 324/2003 de 27 de Dezembro e que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2004, passou a consagrar também a isenção de custas para qualquer “cidadão, associação ou fundação que seja parte activa em processos destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, nos termos do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa, salvo em caso de manifesta improcedência do pedido” (artigo 2º n.º 1 d) do Código das Custas). Ficam assim cobertos todos os casos de acção popular e ressalvam-se, simultaneamente, os casos de utilização abusiva deste meio processual. 3.6 - Publicidade da decisão Uma vez que o objecto de uma acção popular diz respeito e interessa a uma generalidade de indivíduos, as decisões judiciais aí proferidas são publicadas, a expensas da parte vencida, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados no seu conhecimento, à escolha do juiz da causa, que poderá determinar que a publicação se faça por extracto dos seus aspectos essenciais, quando a sua extensão desaconselhar a publicação por inteiro37. 3.7 - Procedimentos administrativos A Lei n.º 65/93 de 26 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos da Administração [LADA]) consagra o princípio da Administração aberta, concedendo a todos o direito à informação mediante o acesso, consulta e reprodução dos documentos administrativos não nominativos que têm origem ou são detidos por órgãos do Estado e das Regiões Autónomas que exerçam funções administrativas, órgãos dos institutos públicos e das associações públicas e órgãos das autarquias locais, suas associações e federações e outras entidades no exercício de poderes de autoridade. Possuindo um âmbito material mais vasto, o diploma abrange o acesso à informação ambiental, transpondo a directiva n.º 90/313/CEE de 17 de Junho. 37 artigo 19 da LAP Documento de trabalho 16 Nos casos em que a Administração recuse o acesso aos documentos solicitados, a LADA prevê a possibilidade de apresentação de uma queixa perante a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), uma entidade pública independente que funciona junto da Assembleia da República. A CADA pronuncia-se sobre a queixa apresentada num prazo de 30 dias, emitindo um relatório de apreciação da situação que deverá ser tido em conta, embora sem valor vinculativo, pelo órgão administrativo reclamado para a tomada de uma decisão final, em segunda leitura. Se persistir a recusa no acesso ao documento resta o recurso à via judicial, perante os tribunais administrativos, como descrito acima (3.2.1). O procedimento perante a CADA não envolve qualquer custo. 3.8 – Processos de contra-ordenação Apesar de os processos contra-ordenacionais representarem, porventura, a forma de repressão mais frequente contra violações de normas ambientais, a possibilidade de intervenção de cidadãos e ONGAs nos mesmos é muito limitada. Apenas podem apresentar, junto da autoridade administrativa competente, uma denúncia da prática de uma contra-ordenação38, não podendo intervir como parte no processo que a partir daí se iniciará (nem na fase administrativa nem na eventual fase de impugnação judicial). As ONGA podem acompanhar o processo de contra-ordenação, quando o requeiram, apresentando memoriais, pareceres técnicos, sugestões de exames ou outras diligências de provas até que o processo esteja pronto para decisão final, mas não podem recorrer judicialmente da decisão administrativa que aplique (ou não) uma coima, nem constituir-se como assistentes39. Dada o limitado alcance da intervenção de cidadãos e ONGA nestes processos, e a quase impossibilidade prática de a detectar, o levantamento de dados que a seguir se apresenta, não abrangeu processos de contra-ordenação. 38 39 artigo 54º do Decreto Lei n.º 433/82 de 27-10 (Regime Geral das Contra-ordenações) artigo 10º d) Lei das ONGA Documento de trabalho 17 II – RESULTADOS EMPÍRICOS 1 – Metodologia usada O objectivo do estudo encomendado pela Comissão Europeia era o de fazer um levantamento, o mais exaustivo possível das acções judiciais intentadas por cidadãos e ONGA entre 1995 e 2003. Face à inexistência de dados estatísticos e sistematizados especificamente em função dos critérios do nosso estudo, foram consultadas as bases de dados jurisprudenciais existentes na internet e colectâneas de jurisprudência. Foram já anteriormente realizadas algumas recolhas jurisprudenciais em matéria de ambiente, nem sempre focalizadas na acção popular, mas todas com um âmbito temporal diferente (com datas anteriores a 1995). No sentido de colmatar esta escassez de informação, foi enviado, com a colaboração do Conselho Superior de Magistratura, um questionário a todos os tribunais, judiciais e administrativos. Questionário semelhante foi distribuído a várias ONGA, directamente e através da Confederação das Associações de Defesa do Ambiente, bem como às cinco Direcções Regionais de Ambiente e Ordenamento do Território, como potenciais partes envolvidas neste tipo de processos judiciais. Apesar de ter sido alcançado um universo bastante vasto, o número de respostas obtidas ficou bastante aquém. Do total de 239 tribunais judiciais existentes no país, apenas 39 juízos responderam, a maior parte deles pertencentes a pequenas comarcas do interior do país, dando conta de apenas 8 acções judiciais. Dos 7 tribunais administrativos existentes e directamente contactados, foram recebidas 5 respostas, sendo que algumas foram parciais ou, no caso dos Tribunais Administrativos de Círculo de Lisboa e Coimbra, não foi sequer possível fornecer os dados solicitados por falta de meios humanos e logísticos. Os questionários permitiram identificar 33 processos judiciais perante a jurisdição administrativa. Nenhuma das DRAOT conseguiu responder ao questionário. Apesar de confirmarem a existência de acções populares intentadas contra si, a sistematização dos respectivos arquivos não permitiu a identificação da informação. A resposta das ONGA foi também reduzida. Foram contactadas todas as ONGA de âmbito nacional e regional, constantes da listagem do antigo IPAMB (12 e 17, respectivamente), bem como algumas ONGA sem âmbito atribuído. Apenas 7 responderam, dando conta de 30 acções. A eventual falta de precisão dos números obtidos foi, no entanto, compensada através de entrevistas conduzidas com alguns agentes relevantes (advogados, académicos e membros de ONGAs), as quais permitiram uma perspectiva qualitativa do modo como se tem processado, nos últimos anos, o acesso aos tribunais em matéria de ambiente, tendo confirmado e validado os indícios apontados pelos números obtidos. Documento de trabalho 18 2 – Apresentação dos resultados (totais e parciais) Os dados mais completos a que foi possível ter acesso respeitam aos procedimentos administrativos perante a CADA. No período de 1995 a 2002 o volume anual de queixas perante esta Comissão foi aumentando progressivamente. Do total de pareceres emitidos relativamente ao acesso à informação em matéria ambiental, a esmagadora maioria foi favorável ao acesso requerido. Decidindo em segunda leitura (após a intervenção da CADA), a Administração concedeu o acesso aos documentos solicitados em 45 situações e manteve a recusa em 13 (não existe informação quanto aos restantes 22 pedidos). Procedimentos perante a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos em matérias ambientais Total de procedimentos Queixa apresentada por: - ONGAs - Cidadãos Parecer da CADA: - Favorável ao acesso - Desfavorável ao acesso Decisão da Administração em segunda leitura: - Permitiu o acesso - Recusou o accesso - Não informou a CADA 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 Total 1 5 4 12 9 20 20 14 85 1 0 1 4 3 1 6 6 4 5 8 12 8 12 4 10 35 50 0 1 4 1 2 2 11 1 9 0 19 1 20 0 12 2 77 8 0 0 1 4 0 1 2 0 2 5 2 5 3 3 3 15 1 4 12 6 2 4 1 9 45 13 27 Estes dados indiciam um crescente aumento da consciencialização do público relativamente ao direito de acesso à informação, ideia de resto reforçada por um também grande número de processos judiciais de intimação para consulta de documentos, como se verá adiante. Apesar de desprovida de força vinculativa, é ainda de registar a eficácia persuasiva da intervenção da CADA, que na grande maioria das situações conhecidas conseguiu inverter a posição da Administração. Em termos de processos judiciais propostos por cidadãos e ONGA no período de 1995 a 2002, foi apurado um total de 101 acções, distribuídas da seguinte forma: ONGAs Cidadãos TOTAL DE ACÇÕES Administrativa 41 20 61 Civil 15 14 29 Penal 6 5 11 TOTAL DE ACÇÕES 62 39 101 Autor Jurisdição Tendo em conta que se trata de um lapso temporal de 8 anos, os números são bastantes baixos, o que de imediato permite retirar uma das principais conclusões do relatório Documento de trabalho 19 nacional que foi apresentado: apesar de amplamente permitido na lei, o direito de acção popular tem sido escassamente utilizado em Portugal. Houve concerteza mais acções propostas por cidadãos e ONGA. O FAPAS (Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens), por exemplo, deu a informação de ter apresentado mais de uma centena de pedidos de intimação para consulta de documentos, sem contudo conseguir identificar os processos, razão pela qual não foram contabilizados. Outros processos, apesar de conhecida a sua existência pelo grande impacto que tiveram nos media, também não foram listados, por falta de dados, como, por exemplo, vários pedidos contra as touradas de morte que anualmente se realizam. No entanto, a percepção de todos os agentes relevantes entrevistados foi no sentido da validação da conclusão acima apresentada. Uma análise mais detalhada dos resultados parciais permite retirar outras conclusões interessantes e perceber melhor os eventuais obstáculos a um maior acesso aos tribunais. O maior volume de processos judiciais perante os tribunais administrativos (cerca de 60% do total das acções identificadas) evidencia talvez que a actividade da Administração Pública constitui uma frequente ameaça ao ambiente, ou pelo menos a mais combatida. Contudo, o sucesso obtido com estes processos é bastante reduzido, principalmente tendo em conta que, de entre os processos identificados, a grande maioria das acções ganhas dizem respeito a pedidos de acesso a documentos administrativos, não se traduzindo por isso numa protecção directa do ambiente. É ainda significativo o número de acções que improcedem por motivos formais, o que se justificará pela complexidade e formalismo do contencioso administrativo. Acções judiciais perante os tribunais administrativos TOTAL DE ACÇÕES Acções procedentes Cidadãos 20 ONGAs 41 Acções improcedentes Ações pendentes Por motivos substanciais Por motivos formais 7 3 7 3 19* 5 12 5 * 17 das acções ganhas por ONGASs dizem respeito a pedidos de acesso a documentos administrativos Em termos de mecanismos processuais utilizados é ainda interessante assinalar que, à parte do pedido de intimação para consulta de documentos (foram identificados 22 pedidos e, de acordo com as entrevistas realizadas este número é extremamente inferior ao volume real deste tipo de pedidos), o contencioso administrativo esteve ainda muito centrado na anulação do acto administrativo (19 acções identificadas), geralmente precedido do pedido de suspensão da eficácia do acto (em nove situações). Talvez a reforma do contencioso administrativo conduza a uma maior diversidade no tipo de litigação. Documento de trabalho 20 As acções judiciais administrativas listadas dizem essencialmente respeito a questões no âmbito do direito do urbanismo e ordenamento do território, protecção da natureza (áreas protegidas), água e, em menor escala, resíduos. O menor número de acções identificadas nos tribunais cíveis é compensado por uma maior taxa de decisões que analisam a substância dos pedidos e que concedem um provimento total ou parcial do pedido garantindo uma protecção efectiva do ambiente. Parece haver uma maior receptividade dos tribunais civis aos novos princípios do Direito do Ambiente40 e, eventualmente, um maior equilíbrio entre as partes (o réu já não é o Estado com a sua auctoritas, embora por vezes seja uma empresa com considerável poder económico). Ainda assim, as dificuldades de interpretação das regras de competência e de distinção entre a jurisdição civil e administrativa foram responsáveis pelas decisões de não provimento por motivos formais assinaladas no quadro abaixo. Acções judiciais perante os tribunais cíveis TOTAL DE ACÇÕES Acções Acções parcialmente procedentes procedentes Acções improcedentes Por motivos Por motivos formais substanciais Acções pendentes Cidadãos 14* 1 1 2 3 3 ONGAs 15* 5 2 2 0 5 Por falta de informação disponível, não foi possível apurar o resultado de 5 acções cíveis (uma delas proposta por ONGA e 4 por cidadãos), e tão pouco o autor e resultado de um outro processo * Os pedidos apresentados nos tribunais cíveis, nas acções identificadas, respeitam essencialmente a actividades de particulares lesivas da natureza (áreas ou espécies protegidas – 14 acções), ou causadoras de poluição atmosférica (4 acções) ou de resíduos (4 acções). O genérico direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado também surge muitas vezes invocado (7 acções). A protecção do ambiente em acções cíveis surge ainda muitas vezes como um reflexo, ou uma consequência indirecta da defesa de interesses individuais (ex. a propriedade) essencialmente no âmbito das relações de vizinhança, situações que não se enquadram no escopo do nosso estudo e por isso não foram listadas. Quanto aos processos judiciais por crimes ambientais, apenas em 11 situações foi possível determinar em concreto a existência de um impulso processual (denúncia ou queixa) ou outra intervenção por parte de ONGAs ou cidadãos. Cinco destes processos terminaram com o arquivamento determinado pelo Ministério Público após o inquérito. Em alguns destes casos esteve em causa o preenchimento do conceito de poluição “em medida inadmissível” contido na norma penal do crime de poluição, a qual deixa alguma margem de discricionariedade ao aplicador. Talvez pelas lacunas legais ainda existentes, são quase inexistentes as acções de responsabilidade (subjectiva e objectiva) por danos ambientais em qualquer das jurisdições. As decisões do Tribunal da Relação de Évora e do Supremo Tribunal de Justiça analisadas a propósito do estudo de caso fazem, inclusivamente, uma extensa análise e reflexão acerca dos princípios basilares do Direito do Ambiente, ultrapassando a mera resolução da questão sub judice 40 Documento de trabalho 21 3 – Principais conclusões retiradas A publicação da Lei de Acção Popular em 1995 constitui um progresso considerável em termos da criação de condições de acesso à justiça em matérias ambientais por parte de cidadãos e ONGAs. Em execução do imperativo constitucional a LAP permite um amplo acesso aos tribunais, com a possibilidade de utilização de todos os mecanismos processuais disponíveis no nosso ordenamento. Portugal é, deste modo, um dos países europeus com um sistema mais progressivo e aberto em termos de meios colocados à disposição dos cidadãos e ONGAs para protecção do ambiente. Comparando os dados obtidos pelo presente estudo com os resultados apresentados por um outro estudo referente ao período de aproximadamente 5 anos, imediatamente anterior a 1995, de imediato se verifica o efeito potenciador da Lei de Acção Popular. José Manuel Pureza em “Tribunais, Natureza e Sociedade: O Direito do Ambiente em Portugal”41 identificou 24 processos judiciais cíveis (20 deles propostos por cidadãos), 20 processos crime (todos iniciados por iniciativa do Ministério Público) e 16 acções em tribunais administrativos (5 propostos por cidadãos, 1 por uma ONGA e os restantes pelo Ministério Público). Este estudo abrangeu tanto casos onde estava em causa apenas a protecção de um interesse difuso, como também de interesses privados e individuais. No entanto, a insignificância dos valores obtidos face aos números totais das estatísticas da justiça em Portugal42, por um lado, e o facto de, apesar de ser o único com a acção popular, o nosso país ser dos que apresentou uma mais baixa taxa de litigação de entre os oito participantes no estudo, por outro, são indícios fortes da persistência de alguns obstáculos a uma maior e mais eficaz utilização dos tribunais para tutela de bens ambientais. O estudo realizado permitiu identificar os seguintes factores condicionantes: (a) lacunas na regulamentação da acção popular, nomeadamente no que respeita à responsabilidade por danos ambientais ou aos embargos administrativos (apenas são enunciados na lei, mas não concretamente regulamentados); (b) rigidez do contencioso administrativo e pouca permeabilidade dos tribunais administrativos aos novos valores do Direito do Ambiente; (c) falta de meios, financeiros e humanos, por parte das ONGAs, ainda muito baseadas em trabalho voluntário; (d) falta de conhecimento generalizado por parte dos cidadãos quanto aos meios de actuação judicial à sua disposição; (e) descrença generalizada no sistema judicial (que leva a preferir outros meios de actuação, nomeadamente, junto das instâncias comunitárias). A reforma do contencioso administrativo traz algumas esperanças quanto à inversão da situação acima referida em (b) que tanto tem dificultado uma eficaz protecção do ambiente em face da actuação do Estado. Requer, no entanto, que seja desenvolvido um grande esforço de formação de todos os operadores judiciários para que a adaptação às novas regras seja fácil e rápida. “Tribunais, Natureza e Sociedade: O Direito do Ambiente em Portugal”, Pureza, José Manuel; Frade, Catarina; Dias, Cristina Silva, Centro de Estudos Sociais, Lisboa, 1997 www.diramb.gov.pt/data/basedoc/TXT_D_8826_1_0001.htm 42 No período de 1995 a 2001 deram entrada 4.789.702 acções nos tribunais judiciais de 1ª instância e 399.776 processos nos tribunais administrativos e fiscais, conforme dados publicados pelo Ministério da Justiça em www.gplp.mj.pt/estatisticas/ 41 Documento de trabalho 22 Nota deve também ser deixada no que se refere ao crescimento e fortalecimento progressivo do movimento associativo, bem como à iniciativa de constituição da CIDAMB – Associação para a Cidadania Ambiental, expressamente vocacionada para facilitar a utilização dos mecanismos à disposição do cidadão para protecção do ambiente, nomeadamente a acção popular. Finalmente, deve ainda ser assinalado que, apesar do baixo número de processos e do sucesso limitado através dos mesmos obtido, a utilização destes mecanismos tem contribuído para uma mudança de mentalidades e um despertar de atenções nos tribunais e nas autoridades públicas, produzindo assim um efeito positivo na protecção do ambiente a longo prazo. III – RESULTADOS GLOBAIS DO ESTUDO 1 – Conclusões e recomendações formuladas à Comissão Europeia A análise dos resultados apresentados pelos oito países participantes no estudo sobre as condições de exercício do direito de acesso aos tribunais por ONGAs e cidadãos em matérias ambientais permitiu retirar as seguintes conclusões globais, que a seguir se enumeram sumariamente: i. As acções propostas por ONGAs desempenham um papel cada vez mais significativo no direito ambiental, mas são de número ainda muito reduzido em comparação com o volume total de processos judiciais; ii. São propostas acções judiciais em todos os sectores do direito do ambiente, com maior incidência nas questões da conservação da natureza, urbanismo e ordenamento do território; iii. A taxa de sucesso dos processos intentados por ONGAs é alta; iv. As acções propostas para protecção de um interesse geral, como o ambiente, têm efeitos positivos na aplicação e implementação das normas de direito do ambiente e na consciencialização do público relativamente aos seus direitos de participação; v. As condições sob as quais as ONGAs podem propor acções judiciais para protecção do interesse geral no ambiente diferem bastante nos vários EstadosMembros abrangidos pelo estudo; vi. Existem limitações significativas no acesso das ONGAs aos mecanismos judiciais para tutela do ambiente, não só no que respeita aos requisitos legais (nomeadamente na definição da legitimidade), mas também em termos dos custos que uma acção judicial implica (custas judiciais, honorários de advogados e de peritos); vii. As diferenças na admissibilidade da intervenção de ONGAs e no número de acções efectivamente propostas provocará, em consequência, diferenças na implementação do direito comunitário do ambiente. Com base nestas conclusões, foram formuladas as seguintes recomendações à Comissão Europeia: 1) O direito comunitário e nacional do ambiente deve cumprir os imperativos da Convenção de Aarhus; Documento de trabalho 23 2) Devem ser tomadas medidas adicionais a nível comunitário (uma vez que a directiva 2003/35/CE apenas regula o acesso à justiça no âmbito do direito de participação previsto nas directivas sobre a avaliação de impacto ambiental e a prevenção e controlo integrados da poluição); 3) O quadro legal comunitário deve ser reforçado através de uma nova directiva, no sentido de garantir o acesso aos tribunais sempre que haja uma violação do direito ambiental, independentemente dessa violação ocorrer no âmbito de um procedimento administrativo (como o procedimento de avaliação de impacto ambiental ou relativo à prevenção e controlo integrados da poluição); 4) A nova directiva deve permitir o acesso aos tribunais civis; 5) As ONGAs devem ser admitidas a intervir em processos criminais; 6) Os requisitos relativos à legitimidade processual na jurisdição administrativa devem ser menos rígidos; 7) Requisitos adicionais que sejam introduzidos pelos Estados-Membros para limitar o acesso aos tribunais não devem poder tornar impossível a propositura de acções por ONGAs; 8) Restrições territoriais ou períodos de existência mínimos das associações não devem ser admitidos como critérios para a definição da legitimidade das ONGAs; 9) Não deve ser previsto um procedimento obrigatório de reconhecimento das ONGAs por parte dos Estados-Membros; 10) A nova directiva não deve impor a introdução de novos requisitos em EstadosMembros onde eles não existam; 11) A nova directiva deve garantir o direito a processos de controlo judicial de actos e decisões, não só do ponto de vista procedimental como substantivo; 12) A nova directiva deve clarificar as condições de funcionamento dos procedimentos cautelares; 13) Os custos dos processos para defesa de um interesse geral devem ser reduzidos. 2 – Proposta de directiva apresentada pela Comissão Europeia Em 24 de Outubro de 2003 a Comissão Europeia apresentou uma proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao acesso á justiça no domínio do ambiente43, justificando-a com um duplo objectivo: contribuir para a aplicação da Convenção de Aarhus e colmatar algumas deficiências no controlo da aplicação do direito do ambiente. A proposta tem por âmbito de aplicação o direito comunitário do ambiente, ou seja, legislação comunitária e legislação adoptada para transpor legislação comunitária, cujo objectivo (não necessariamente exclusivo) seja a protecção ou a melhoria do ambiente, incluindo a saúde humana e a protecção ou a utilização racional de recursos naturais. Permite-se, porém, que os Estados-Membros incluam na definição de direito do ambiente, como objecto dos processos ambientais aqui regulados, normas de origem exclusivamente nacional. Invocando o princípio da subsidariedade, a proposta de directiva limita-se a introduzir um quadro geral de acesso à justiça no domínio do ambiente, convidando os Estados43 COM(2003)624 final - http://europa.eu.int/eur-lex/pt/com/pdf/2003/com2003_0624pt01.pdf Documento de trabalho 24 Membros a elaborarem pormenores desse quadro. Apenas a impugnação de actos e omissões de autoridades administrativas surge mais pormenorizadamente regulamentada na proposta apresentada. Já no que respeita à impugnação judicial de actos e omissões de privados que infrinjam o direito do ambiente, a proposta de directiva não faz mais do que estabelecer como objectivo a possibilidade de os membros do público acederem a tais processos, deixando total liberdade aos Estados Membros na definição dos critérios de acesso. Os processos criminais foram excluídos do âmbito da proposta, sendo esta de resto uma área em que a intervenção comunitária tem sido muito limitada por se tratar de uma matéria do 3º pilar. A proposta de directiva exige que os Estados-Membros assegurem a existência de procedimentos administrativos (perante uma autoridade administrativa), para revisão da legalidade de actos e omissões administrativas (pedido de reexame interno) bem como do direito de instaurar um processo ambiental perante um tribunal, caso a autoridade pública não tenha tomado uma decisão sobre o pedido de reexame interno dentro de determinados prazos limite fixados na proposta ou se o autor do pedido considerar que a decisão é insuficiente para assegurar o cumprimento do direito do ambiente. A possibilidade de apresentação de medidas cautelares não deve, de acordo com a proposta, ser condicionada ao cumprimento do procedimento de reexame interno. Exige-se ainda que os processos ambientais, tal como regulamentados pelos EstadosMembros, sejam adequados e eficazes, objectivos, equitativos, rápidos e não proibitivamente onerosos. O conceito de legitimidade processual é definido na proposta de directiva segundo dois tipos de critérios. No que respeita aos membros do público exige-se que os mesmos possuam interesse suficiente ou invoquem a infracção de um direito se a legislação processual administrativa o requerer como condição prévia. O que seja interesse suficiente ou infracção de um direito é deixado à discricionariedade dos Estados-Membros, limitada pelo objectivo de garantir um amplo acesso à justiça. A proposta de directiva introduz um novo conceito de “entidade habilitada”, definido como “qualquer associação, organização ou grupo cujo objectivo consista na protecção do ambiente e que seja reconhecido nos termos do procedimento previsto no artigo 9.º” (artigo 2º n.º 1 c) da proposta), o qual já provocou alguma contestação por parte de ONGAs por potenciar a introdução de restrições à legitimidade processual destas associações contra o espírito da Convenção de Aarhus. Com efeito, nos termos da proposta, as “entidades habilitadas” ficam dispensadas dos requisitos exigidos para os membros do público desde que o objecto da acção se integre especificamente nas actividades estatutárias da entidade e o recurso se insira na área geográfica específica das actividades dessa mesma entidade. Por outro lado, permite que entre os critérios de reconhecimento das entidades habilitadas, a fixar pelos Estados Membros, se inclua um período mínimo de existência dessas associações, que pode ir até 3 anos. Prevê ainda o estabelecimento pelos Estados Membros de procedimentos específicos para reconhecimento das entidades habilitadas, seja num regime caso a caso ou mediante um adiantamento de reconhecimento. Documento de trabalho 25 As primeiras reacções a esta proposta vindas do Parlamento Europeu e do meio das ONGAs, embora apoiando a iniciativa de finalmente implementar o último pilar da Convenção de Aarhus, demonstram algumas reservas e dúvidas quanto ao facto de a proposta não deixar claro que estabelece apenas requisitos mínimos de acesso à justiça, sem prejuízo de sistemas que já admitam um acesso mais amplo. O primeiro projecto de relatório da Comissão do Meio Ambiente, da Saúde Pública e da Política do Consumidor44 do Parlamento Europeu propõe algumas alterações na redacção da proposta da Comissão no sentido de a aproximar mais do espírito e da letra da Convenção de Aarhus, preconizando assim um mais amplo acesso à justiça. A principal alteração diz respeito à eliminação do conceito de “entidade habilitada”, por se entender que se trata de uma forma, não admitida pela Convenção, de limitar a legitimidade processual das ONGAs. A relatora, Inger Schörling, propõe ainda que a directiva se aplique, indiferentemente e de igual modo, a processos das jurisdições administrativa, civil e criminal, bem como que se clarifique que os processos de reexame interno (procedimentos administrativos) são um instrumento complementar de acesso aos processos ambientais e não uma condição prévia e necessária do recurso à via judicial, pois tal poderia trazer atrasos desnecessários e prejudiciais. Tratando-se de uma matéria sujeita ao procedimento de co-decisão, a proposta da Comissão será submetida a duas leituras do Parlamento Europeu e do Conselho, no que se adivinha um processo moroso. Projecto de relatório apresentado em 13-01-2004 (2003/0246(COD)). Texto integral em: http://www.europarl.eu.int/meetdocs/committees/envi/20040209/518936pt.pdf 44 Documento de trabalho 26