1
Universidade Estadual de Feira de Santana
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
LUIZ ALBERTO DA SILVA LIMA
Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em
Feira de Santana 1930-1948.
Feira de Santana
2010
2
Universidade Estadual de Feira de Santana
Programa de Pós-Graduação em História
Mestrado em História
Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em
Feira de Santana 1930-1948.
Luiz Alberto da Silva Lima
Orientadora: Profª. Drª. Márcia Maria da Silva Barreiros Leite
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História/Mestrado em História da Universidade Estadual
de Feira de Santana como requisito parcial para a obtenção
do grau de mestre em História
Feira de Santana
2010
3
Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado
L698m
Lima, Luiz Alberto da Silva
Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira
de Santana (1930-1948). / Luiz Alberto da Silva Lima. – Feira de
Santana, 2010.
166f.
Orientadora: Márcia Maria da Silva Barreiros Leite
Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História.
Universidade Estadual de Feira de Santana, 2010.
1.História das mulheres – Bahia. 2.Mulheres –Violência – Feira de
Santana. 3.Sociabilidades. 4.Gênero.
I.Leite, Márcia Maria da Silva
Barreiros. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Título.
CDU: 396 (814.22)
4
TERMO DE APROVAÇÃO
LUIZ ALBERTO DA SILVA LIMA
Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em
Feira de Santana 1930 -1948.
Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em História, Universidade Estadual de Feira de Santana, pela seguinte
banca examinadora:
Márcia Maria da Silva Barreiros Leite – orientadora_______________________
Doutora em História Social pela PUC-SP
Universidade Estadual de Feira de Santana
Cecília Conceição Moreira Soares___________________________________
Doutora em Antropologia pela UFPE
Universidade Católica do Salvador
Andréa Rocha Rodrigues ___________________________________________
Doutora em História pela UFBA
Universidade Estadual de Feira de Santana
Feira de Santana, 27 de julho de 2010.
5
A todas as mulheres pelas quais me apaixonei...
6
AGRADECIMENTOS
Com certeza faltariam palavras para que eu pudesse agradecer as tantas
pessoas que ajudaram a realizar este trabalho. Muitas delas leram e opinaram
sobre o texto, auxiliaram na catalogação das fontes e outras que ainda que não
contribuíssem academicamente, fizeram com que este percurso fosse mais
prazeroso.
Dessa forma, agradeço a minha orientadora a professora doutora Márcia
Barreiros, pelo grandioso incentivo e pelas leituras minuciosas em todos os
meus textos, sempre indicando caminhos, porém, sem nunca interferir na
minha liberdade de produção. Desejo que este trabalho esteja à altura de sua
dedicação e orientação, você que é para mim um exemplo de pesquisadora,
historiadora e amiga.
Às professoras Ione Sousa e Acácia Batista, pela leitura do texto e pelo
interesse nesta pesquisa, indicando-me leituras que foram bastante úteis.
À professora Lina Maria Brandão Aras, pelo incentivo e graciosidade,
ajudando-me enormemente na análise metodológica das fontes.
Aos meus professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em
História da UEFS, Charles Sant‟Ana, Rinaldo Leite e Celeste Pacheco que
leram meu trabalho e contribuíram com o seu desenvolvimento.
Aos amigos da turma de Mestrado: Rosana, Edcarla, Emanoel, Fabiana, Jorge,
Célio e as Jaquelines. De fato, tive o prazer de dividir os prazeres e as
pressões de escrever uma dissertação ao lado de colegas que estiveram
sempre dispostos a contribuir com o melhor desenvolvimento do meu trabalho.
À professora Maria Aparecida Prazeres Sanches pelas longas conversas sobre
o trabalho e pelo interesse nesta pesquisa, que com toda certeza tem muito
dela, sem contar pela bibliografia que me disponibilizou.
7
Aos professores e professoras da graduação na UEFS, Alberto Heráclito,
Adriana Dantas, Elizete Silva e Wilson Paulo (in memorian), sempre me
estimularam a pesquisa e acreditaram neste trabalho.
Aos amigos e amigas historiadores, Silvia Karla, Kléber Simões, muito
queridos, Marcelo Santana, que me cedeu com muita poética o título dessa
dissertação, Luana Dantas, Aline Aguiar, Carol Silva e Fabiane Sant‟Ana,
amigos para toda vida e colegas de profissão. A vocês todo meu carinho e
amizade.
Aos meus familiares pelo apoio, estímulo e credibilidade. Em especial às
mulheres da minha casa: Dolores, Josefa, Joelma, Andréia, Carmem, Selma,
Norma, Rita, Dó, mulheres trabalhadoras e que mereciam ter suas histórias
contadas. Com certeza, vocês foram inspiração para que eu buscasse estudar
as mulheres.
Um agradecimento todo especial a Olinda, André e Jonson, sempre presentes,
referências de amizade, afetividade e compreensão. Vocês tornam tudo em
minha vida mais fácil.
Aos amigos, Eric Ferreira, Leandro Oliveira, Joubert Ferreira e Maria Lima
(Maroca), pelo apoio e por ter possibilitado que o caminho árduo e laborioso da
dissertação tornasse-se mais leve.
Aos funcionários e bolsistas do CEDOC/UEFS – Centro de Pesquisa e
Documentação - sempre educados e receptivos, permitiram a digitalização dos
processos, o que facilitou o andamento da pesquisa. De igual maneira, o
Museu Casa do Sertão, que devido à digitalização dos jornais e seu fácil
acesso, adiantou enormemente a pesquisa.
À FAPESB – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia, onde
encontrei apoio financeiro para a execução desta pesquisa, cujo resultado
apresento nesta dissertação.
8
RESUMO
Este estudo propõe a discutir o cotidiano feminino nas camadas populares em
Feira e Santana nas décadas de 1930 a 1948. Analisa as relações de
sociabilidades e as práticas de violência, enfocando as relações sexo-afetiva
entre os populares, trazendo à baila as resistências repressões e
empoderamentos femininos. As fontes utilizadas foram os Processos Criminais
de Lesões Corporais, Homicídios, Defloramento, Estupros e Infanticídio, além
do cruzamento com outras fontes como o Jornal Folha do Norte, dados do
Censo do IBGE, Código de Posturas Municipais, Código Penal, Manuais
Jurídicos e outros. A partir da análise da documentação foi possível
estabelecer o perfil social dos sujeitos envolvidos nos crimes, apreendidos por
uma leitura metodológica amparada no conceito de gênero, observando o
cotidiano e as falas populares, assim como a interlocução com os agentes
jurídicos, que são os manipuladores técnicos dos processos. Os conflitos
evidenciados trazem à baila as lutas de representação e as territorialidades
exercidas por estes sujeitos, além de apresentarem os valores sociais e
códigos morais presentes na sociedade feirense, ligados especialmente ao
conceito de honra, que se manifesta diferencialmente para cada sexo.
Palavras-chaves: Mulheres, violência, sociabilidades, Feira de Santana.
9
ABSTRACT
This work aims to discuss the female everyday on Feira de Santana‟s folks from
1930 to 1948. It analyses the social relationship and violence practices,
focusing the sex-affective relationship among people, highlighting the
resistances, repressions and female empowerment. It was used as resource the
body injuries crimes, homicides, deflowering, rapes and child killing, as well as
the crossing with others resources like Folha do Norte Newspaper and datas
from IBGE, Municipal Codes Behavior, Penal Code, Law Manual and others.
After analyzing these documents it was possible to establish the social profile of
people involved in these crimes, understood by a methodological interpretation,
based on the concept of gender, observing the everyday and folk tales, as well
as the interlocution with the legal agents, that are the sues technical
manipulator. The conflicts showed highlight the representation fights and the
notion of territory exerted by them and shows the social values and moral codes
on Feira‟s society linked specially to the concept of honor that it‟s manifested
differently by each sex.
Key words – Women; violence; everyday; Feira de Santana
10
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS
CEDOC
Centro de pesquisa e Documentação
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
BSMRG
Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvão
CENEF
Centro de Estudos Feirenses – Museu casa do Sertão
UEFS
Universidade Estadual de Feira de Santana
11
LISTA DE TABELA
Tabela 1 – Quanto ao sexo dos agressores(as)
65
Tabela 2 – Quanto ao sexo das vítimas
65
Tabela 3 – Relação agressores(as)/vítimas
66
Tabela 4 – Local de ocorrência dos crimes
66
Tabela 5 – Instrumentos empregados nos crimes
66
Tabela 6 – Profissão/ocupação dos agressores(as)
67
Tabela 7 – Profissão/ocupação das vítimas
67
Tabela 8 – Da autoria das queixas
113
Tabela 9 – Cor/idade/estado civil dos réus
114
Tabela 10 - Cor/idade/estado civil das vítimas
115
Tabela 11 – Profissão/ocupação dos réus
117
Tabela 12 – Profissão/ocupação das vítimas
117
Tabela 13 – Relação do réu com a vítima
118
Tabela 14 – Quanto à sentença
119
Tabela 15 – Grau de Instrução das vítimas
120
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: INCLUINDO EXCLUÍDOS (AS)
13
CAPITULO 1 - “GENTE INFECTA” NA “FEIRA CULTA E ADIANTADA”
26
1.1.
Feira de Santana: cidade culta e adiantada?
28
1.2.
Mulheres da rua
36
1.3.
Mundanas da Rua do Meio
46
1.4.
A casa da mãe Joana!
53
1.5.
Os “chivarís” da Rua do Meio
57
CAPITULO 2 - BRIGANDO, AMANDO E MORRENDO
62
2.1. Em defesa da Honra
68
2.2. Mulheres que matam!
75
2.3. Em briga de marido e mulher não se mete a colher!
85
2.4. Filha ingrata
93
2.5. Mãe desnaturada!
98
2.6. Mulheres que brigam
100
CAPITULO 3 - DOS CRIMES DO AMOR
104
3.1. Os envolvidos
114
3.2. As histórias
123
3.3. Afinal, quem desvirginou a vitima?
131
3.4. O perigo mora em casa!
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS: GRITOS EM MEIO AO SILÊNCIO
151
FONTES
153
REFERÊNCIAS
156
ANEXOS
161
13
INTRODUÇÃO
INCLUINDO EXCLUÍDOS (AS)
Certa vez estava assistindo uma palestra na qual o palestrante afirmou:
“se quisermos conhecer as histórias dos homens e mulheres pobres, devemos
ir às delegacias”. Motivado por aquela frase que povoou meus pensamentos e
aguçou meu ímpeto curioso, decidi procurar por esses sujeitos ainda anônimos
na história e conhecê-los. Mulheres como Doralice, Zefinha, Alexandrina,
Amanda, Ana, Pequena, Nininha, etc., surgiram-me através de páginas
amareladas e envelhecidas dos Processos Criminais arquivados no Centro de
Pesquisa e Documentação – CEDOC – na Universidade Estadual de Feira de
Santana e do jornal Folha do Norte, principal veiculo de informação semanal
feirense em meados do século XX. As histórias dessas mulheres em nada se
assemelhavam às condições de seus processos, envelhecidos, empoeirados,
tendo como companhia diária os ácaros e fungos que tanto mal causam a nós
historiadores de arquivo. Pois bem, mesmo em páginas desgastadas, encontrei
histórias repletas de vida, intocadas, mas que gritavam em som estonteante
aos meus ouvidos como gritos em meio a silêncio, afinal, elas estavam ocultas,
mas sempre estiveram lá.
Há algum tempo que a historiografia despertou para novos objetos e
temas, com isso possibilitou historicizar espaços e sujeitos que por longo
período estiveram à margem da escrita da história. No que concerne ao estudo
da História das Mulheres e, principalmente, a uma história das relações entre
os sexos e das práticas culturais, este campo da historiografia foi bastante
alargado, valorizando a perspectiva identitária atenta às subjetividades e
particularidades
dos
sujeitos.
Para
Márcia
Barreiros,
as
vertentes
historiográficas que estudam as práticas culturais têm contribuído muito para a
14
crítica das representações e das ideologias de uma determinada sociedade. O
campo da cultura se vê articulado às investigações acerca das relações entre
os gêneros na história desde a década de 1980.1
O uso da categoria gênero é significativo para um maior aprofundamento
dos estudos relacionados às práticas culturais, possibilitando responder
questões ligadas ao cotidiano, ao privado, uma vez que este conceito contribui
para tirar as mulheres da invisibilidade e questionar os lugares sociais
significados pelo sexo. A leitura metodológica das fontes a partir da categoria
de análise gênero coloca-nos um conjunto de questões e reflexões críticas.
Maria Izilda Matos afirma que a discussão de gênero possibilita a
desconstrução das universalidades do discurso historiográfico e faz emergir
uma história das diferenças e da valorização do relacional2. O trabalho da
historiadora americana Joan Scott, neste sentido, foi fundamental para a
teorização deste conceito aplicado a História e aos Estudos Culturais. Para a
autora:
Gênero é, de fato um aspecto geral da organização social . E
pode ser encontrado em muitos lugares, já que os significados da
diferença sexual são invocados e disputados como parte de muitos
tipos de lutas pelo poder. O saber social e cultural a respeito da
diferença sexual é, portanto, produzido no decorrer da maior parte
3
dos eventos e processos estudados como história.
Para a historiadora Raquel Soihet, o estudo sobre as mulheres pobres
tem importância pela visibilidade que ela proporciona para a compreensão do
cotidiano e para emergência de imagens cristalizadas que demonstram as
mulheres e o feminino como algo homogêneo. A autora, pioneira no estudo
sobre condição feminina e relações de violência, estudou as mulheres pobres
no Rio de Janeiro entre os séculos XIX e XX. Segundo Soihet “a violência
1
LEITE, Márcia Maria da Silva Barreiros. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e
escritas femininas na Bahia (1870-1920), Salvador, Quarteto, 2005, p. 27.
2
MATOS, Maria Izilda de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª edição,
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2001. p. 15.
3
SCOTT, Joan.. “Prefácio A Gender And Politcs Of History”. In: Cadernos Pagu:
desarcordos e diferenças. Campinas (3) 1994, p 20.
15
sobre os segmentos populares tem sido uma presença constante na sociedade
brasileira, apesar desta ser sistematicamente negada a nível ideológico, em
termos do mito da índole pacífica do brasileiro, fruto de uma suave mistura de
raças que teria dado lugar a uma sociedade harmônica”4.
Os trabalhos sobre violência de gênero apoiados na égide do
patriarcado5, tendem a reafirmar uma postura rígida sobre a vulnerabilidade
feminina e, por sua vez, tornam o tema homogêneo. Segundo Helieth Saffioti o
conceito de patriarcado exprime as formas de opressão social as quais as
mulheres são submetidas. Para a autora a dinâmica do patriarcado funciona
como uma máquina que opera sem cessar e pode ser acionada até mesmo
sem a presença masculina.6 Concordamos com a autora em parte, mas
buscamos evidenciar a violência como uma prática sócio-histórica, tendo,
portanto que ser relativizada, o que nos leva a criticar essa postura de
vitimização do feminino.
Neste ponto, procuramos nos apropriar dos conceitos de Violência
Simbólica e Dominação Masculina do sociólogo Pierre Bourdieu, considerando
que o termo patriarcado, define de maneira homogênea uma opressão global,
onde todas as mulheres já nasceriam inseridas numa dinâmica excludente.
Com isso, deixa de observar os micro-poderes nas relações sócio-culturais,
4
SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem
urbana 1890-1920, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989. p. 8. Ainda sobre essa
discussão acerca da harmonia racial brasileira ver: FREYRE, Gilberto. Casa grande &
Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de
Janeiro: Jose Olympio, 1950.
5
O conceito de patriarcado pauta na lógica do poder direcionado pelo masculino. Isto define as
representações sociais encaradas para cada sexo, no qual, pensado numa relação dicotômica,
vê-se o masculino como representante da dinâmica de dominação. Pierre Bourdieu avança
nessa discussão ao trabalhar a questão da dominação masculina como um mecanismo sóciohistórico e que apresenta-se de formas diferenciadas, rompendo com uma visão sexista da
sociedade. Para conhecer sobre patriarcado ver: SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na
Sociedade de Classes: mito e realidade. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1979; FREYRE,
Gilberto. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de
economia patriarcal. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1950; BOURDIEU, Pierre. A dominação
masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
6
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência, São Paulo, Editora Perseu
Abramo, 2004.
16
que não dicotomizam opressor X oprimido.
Para Bourdieu, a violência
simbólica se afirma quando aqueles que a sofrem contribuem para sua eficácia;
ela só submete na medida em que são predispostas por uma aprendizagem
anterior para reconhecê-la.7 A partir dessa noção, os estudos sobre as relações
de violência entre os sexos podem ser compreendidos como constituintes das
interações culturais. Dessa forma, as agressões físicas, morais, psicológicas
são enfocadas como simbólicas e podem ser analisadas a partir das
experiências sócio-culturais. Assim, rompe-se com a dicotomia sexista que
opõe homem agressor x mulher agredida. Permitindo a análise do cotidiano
das mulheres pobres e das relações de violências de gênero. Assim não se
pensa a mulher vitimizada, numa concepção do poder patriarcal, mas
possibilita a desconstrução das imagens e significados dos papéis sócio
historicamente construídos.
As contribuições das teorias pós-estruturalistas são de grande
relevância, principalmente as do filósofo Michel Foucault, que em suas
análises, propõe a diluição do poder em diversas esferas e dimensões das
relações sociais, compreendendo e apresentando os discursos como
produtores de saberes e, por sua vez, lócus de poder. Nesta lógica discursiva
de produção de saberes se definem, na sociedade a sensibilidade e a
fragilidade, ligados ao ser mulher, enquanto, por outro lado, se institui a
dominação, a virilidade e a violência como características representativas do
ser homem.
Nosso posicionamento pela História Social visa trazer à baila as histórias
de vidas de “pessoas comuns” em suas interações cotidianas como nos
apresentou E. P. Thompson, em uma “história vista de baixo”. Essa postura
historiográfica possibilita a visibilidade e a audição dos grupos marginais, ao
evidenciar uma história sem heróis ou grandes fatos. Essa abordagem se
constitui, sobretudo, pela aproximação entre a História e a Antropologia,
principalmente, pela influência dos estudos do antropólogo Clifford Geertz e
7
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
17
sua concepção interpretativa da cultura. Essa noção de cultura rompeu com a
dicotomia Cultura x Barbárie, onde a cultura passou a ser percebida como um
conjunto de crenças, valores, costumes e ações de determinados grupos em
suas especificidades, sendo assim, a cultura passa a ser compreendida como
um texto a ser lido sócio-historicamente.8 Edward Thompson vinculou o
conceito de Cultura ao de Experiência, no qual, considera relevante toda ação
desencadeada na vivência dos sujeitos sociais. Segundo Thompson o conceito
de experiência permite analisar os homens e as mulheres em sociedade, como
sujeitos que experimentam suas situações entre as necessidades e interesses,
tratando-os segundo a consciência e a cultura.9
Partindo desses pressupostos, nosso sujeito de pesquisa, as mulheres
pobres em Feira de Santana em seu cotidiano e práticas de sobrevivência e
violência, apresentam aspectos relevantes na compreensão da cultura dos
populares. Segundo Charles Santana, “é nas relações inscritas na dinâmica da
cotidianidade que se apreende o processo em que os indivíduos adquirem o
estatuto de sujeito históricos”10.
Na busca por evidenciar esse cotidiano de mulheres pobres e suas
relações sócio-culturais e econômicas é que compreendemos a história de
Feira de Santana, que nas décadas de 1930 – 1948, vivenciava um contexto
particular de modernização e urbanização através de discursos e ações que
afirmam esta ordem.
O pensamento predominante nos grandes centros
urbanos nos primeiros anos do século XX era a lógica da Modernização e
Civilização, que estavam em consonância com os princípios políticos advindos
com a República11. As cidades, dessa forma, foram espaços físicos e
discursivos em que se estabeleceu o conflito da modernidade, com as
questões ligadas aos costumes e ao cotidiano.
8
9
Ver GEERTZ, Clifoord. A Interpretação das culturas. LTC editora, Rio de Janeiro, 1989.
THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria ou o planetário de erros: uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de janeiro, Zahar Editores, 1981, p.182.
10
SANTANA, Charles D‟Almeida. Fartura e Ventura camponesa: trabalho, cotidiano e
migrações. Bahia: 1950-1980. São Paulo, Annablume: 1998, p. 20.
11
CARVALHO, J. Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
18
Neste estudo, não pensaremos a cidade apenas como um cenário para
a ação dos sujeitos evidenciados, mas, a cidade aparece-nos como um lócus
discursivo, por sua vez, permeado por relações de poderes que não se
configurarão apenas na remodelagem urbana, mas também a partir das
mudanças dos costumes e modos de viver a urbes.
Segundo Rinaldo Leite, se o projeto modernizador inicialmente
direcionou suas vistas para os problemas relacionados às estruturas urbanas e
para a qualidade das habitações, não tardou em se preocupar com os hábitos
da população, assumindo uma dimensão social. Este projeto implicou em
„ações simultâneas em três planos: o do espaço público, o do espaço privado e
o do modo de vida.”12 Leite ainda argumenta que somente quando a cidade
assumiu a posição de campo privilegiado das operações políticas e
econômicas é que emerge o aparecimento da “questão urbana”, que se
caracterizou pela proliferação de discursos que apontavam para um conjunto
de problemas relacionados ao espaço urbano e sua população, tendo como
solução àquilo que convencionou chamar de modernização.13
Para Marshall Berman o conceito de moderno e modernidade avança no
sentido de estabelecer transformações a nível estrutural e mental em dada
sociedade. Para o autor,
“ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete
autotransformação e transformação das coisas em redor, mas ao
mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos tudo o que sabemos
14
tudo o que somos.”
Com isso, o que se apreende pela análise do Jornal Folha do Norte
numa seriação dos anos de 1930 - 1948, é que Feira de Santana, vivenciou um
contexto de modernização nas décadas evidenciadas, marcado por constante
perseguição às práticas de vida e experiências dos populares, dentre estes, as
12
LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se – Ideais de civilização e cenas
de anti- civilidade em um contexto de modernização urbana em Salvador – 1912-1916.
(Dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1996. P.11.
13
14
Op cit. p. 8 – 9.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p.15.
19
mulheres “decahidas”15. É importante destacarmos que os processos de
modernização diferem-se a partir de questões regionais e particularizadas.
Essa modernização implantada na cidade pautou-se entre outras
questões no controle dos comportamentos e modo de vida dos indivíduos,
estabelecendo um olhar particularizado para as mulheres populares que viviam
nas áreas centrais ou que transitavam pelas principais vias da urbe. Assim,
evidenciou-se a perseguição a dita “gente de vida airada”, tencionando as
relações de territorialização e des-re-torritorialização16 desses sujeitos.
Indicadores dessa modernidade, os anúncios do jornal Folha do Norte
destacavam os “melhoramentos da Feira” como a eletrificação e iluminação da
urbe, as construções dos palacetes públicos, a ornamentação das vias
públicas, a construção das malhas rodoviárias, entre outros beneficiamentos
estruturais, que estarão diretamente relacionados à exigência de novos
padrões de sociabilidade e re-significação de costumes. O periódico, também
denunciava as práticas das mulheres marginais que habitavam o centro da
urbe, exigindo providências políticas e sanitárias. Neste ponto é elucidativo
destacar a política higienizadora que foi implementada na cidade, reafirmando
que a Feira tornava-se uma cidade “adiantada” e “progressista”17.
O contexto do processo de modernização que foi divulgado nos meios
de comunicação, esbarrava na paisagem e nos modos de vida dos sujeitos em
Feira de Santana, que até a década de 1950, viviam em sua maioria na Zona
Rural e eram analfabetos18, dado que é comprovado pela documentação
judicial, haja vista, a maioria das ocorrências de crimes de caráter sexo-
15
Os termos como “decahidas”, horizontais, mundanas, eram a maneira como os jornais e os
procesos criminais referiam-se às mulheres que praticavam a prostituição ou tinham uma
postura desviantes aos modelos de comportamento feminino exigidos para a época.
16
Ver: RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade
feminina em São Paulo. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; SOUZA, Eric Ferreira.
Errância dos Desejos: territórios e sujeitos marginais no centro da cidade de Salvador.
(Dissertação de Mestrado), Salvador, PPGNEIM/UFBA, 2008.
17
Fragmentos retirados do Jornal Folha do Norte nos anos de 1925 a 1948
ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário personalístico, histórico, geográfico e
institucional de Feira de Santana. Feira de Santana: Edição do autor, 2002; POPPINO,
Rollie. Feira de Santana. Feira de Santana:Itapuã, 1968.
18
20
afetivo19, terem ocorrido nos distritos e povoados do Município de Feira de
Santana.
A escolha do Jornal Folha do Norte e dos Processos Criminais de
Lesões Corporais, Homicídios, Defloramentos, Estupros e Infanticídios, está
diretamente relacionada ao tema central da pesquisa, pois, esta documentação
nos apresenta com riqueza de detalhes o cotidiano das mulheres pobres, em
Feira de Santana, de meados do século XX, configurando-se pegadas na trilha
que nos leva aos espaços ocultos das nossas protagonistas, estando elas, na
zona rural ou na cidade.
Os Processos Criminais acima evidenciados, constituem-se numa fonte
privilegiada para a apreensão de discursos e interpretações; por meio dessa
documentação é possível reconstruir (re)significando as falas dos envolvidos, o
cotidiano e os valores dos populares, a relação com o discurso normativo dos
códigos penais.20 Segundo Resende: “encerrando uma multiplicidade de
discursos, o processo criminal afasta-se de seu objetivo original – estabelecer a
verdade – e transforma-se numa invenção, numa construção da verdade de
acordo com um conjunto de normas sociais”21.
O Processo Crime é dividido em duas fases, primeiramente se faz a
ocorrência na delegacia em que se instaura o inquérito, onde depõem os
acusados ou acusadas, as vitimas, as testemunhas e os advogados quando
alguma das partes o constituem. Temos ainda como agentes do Processo os
policiais, o escrivão/ã e o delegado que elabora o relatório e o encaminha para
19
Ver: ASSIS, Nancy Rita Sento Sé. Questões de vida e de morte na Bahia Republicana:
valores e comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas. Salvador:
UFBA, dissertação de Mestrado, 1997; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das
Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação
de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994; SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e
Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador 1900-1950.
(dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1998.
20
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001.
21
RESENDE, Edna Maria. Entre a solidariedade e a violência: valores, comportamentos e
a lei em São João Del-Rei, 1840-1860. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG;
Fapemig; Barbacena:UNIPAC, 2008. P. 23.
21
o Juíz. A segunda fase do Processo Crime é iniciada com a denúncia do
Promotor Público, onde começa o sumário de culpa do denunciado,
convocando novamente os envolvidos e as testemunhas arroladas. Nesta
segunda fase as versões ganham um tom mais dramático, pois, busca-se
influenciar o Juiz para a sentença, buscando ou a pronuncia ou impronuncia do
denunciado. Nessa instância, a jurisprudência procura formular e estabelecer
uma “verdade” para os fatos evocando padrões hegemônicos de conduta e
moralidade estabelecidos pelo processo de normatização dos comportamentos.
No caso dos processos que utilizo, esses valores são elencados a partir de
parâmetros elitistas, ainda que estejam retratando o cotidiano e as práticas
populares. Segundo o que Foucault afirmou em sua obra:
a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é
prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros,
que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus
membros mas uma categoria social encarregada da ordem que
22
sanciona outra.
E continua:
a linguagem da lei se constitue no discurso de uma classe a
outra que não tem nem as mesmas idéias nem as mesmas palavras,
sendo que a própia forma do tribunal pertence a uma ideologia da
23
justiça que é a da burguesia.
Michel Foucault localiza a produção dos saberes e dos discursos
jurídicos, analisando criticamente a constituição das verdades e a implantação
da norma social, que estabelece os desvios, afirmando o que é permitido e o
que é “patológico”. Desta maneira, os Processos funcionam como lócus
discursivo no qual se constroem padrões de veracidade, seguindo uma
dinâmica e compreensão do saber institucional e dos valores significados a
partir da noção de normalidade social.
22
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – nascimento da prisão. Petropolis, Ed. Vozes, 1977, p.
243.
23
Op. Cit. P. 243.
22
Mas
se
os
processos
são
construídos
sócio-historicamente
e
representam uma postura excludente, como poderemos saber o que realmente
aconteceu? Como nos diz Sidney Chalhoub “O fundamental em cada história
abordada não é descobrir „o que realmente se passou‟ (...), e sim tentar
compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os
diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso”.24
Dessa forma, a fala dos atores e atrizes dos processos estão imbuídas
de subjetividades e intenções particulares, o que não inviabiliza de forma
alguma sua utilização como fonte histórica. Temos que atentar para as
particularidades e as sensibilidades que decorrem dos fatos que se busca
constituir como uma verdade em contextos localizados. Estas verdades
reafirmam posicionamentos dominantes de normas e condutas sociais.
segundo Marisa Corrêa:
No momento em que os atos se transformam em autos, os
fatos em versões, o concreto perde toda sua importância e o debate
se dá entre os atores juridicos, cada um deles usando a parte do „real‟
que melhor reforce o seu ponto de vista. Neste sentido, é o „real‟ que
é processado, moido, até que se possa extrair dele um esquema
elementar sobre o qual se construirá um modelo de culpa e um
25
modelo de inocência.
Através da leitura e análise dos Processos Criminais o cotidiano popular
pôde ser apreendido e analisado. É bom destacarmos que os fatos nos
processos nos chegam através de interlocutores, pois, são os manipuladores
técnicos26 que norteiam as perguntas, direcionam as falas e as escrevem. No
entanto, mesmo na condição não cômoda, os populares tem nos processos um
meio de exporem suas opiniões, reproduzirem e re-significarem seus valores,
apresentarem seu cotidiano e, principalmente, tentarem defender-se.
24
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 40.
25
CORRÊA, Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 40.
26
Op. Cit.
23
Com isso, implica que os autos estão imbuídos de julgamento de valores
e subjetividade de quem os produziu, neste caso, os escrivãos, delegados,
advogados, juízes e promotores. Dessa forma, aparecem os conflitos, as
contradições e as solidariedades construídas através das experiências
daqueles sujeitos em seu meio social. Para Rachel Soihet os processos
criminais constituem-se num material privilegiado para uma aproximação com o
cotidiano de homens e mulheres dos segmentos populares, especificamente,
com vista a perscrutar as suas contradições de gênero, já que a existência
desses
sujeitos
caracteriza-se
pela
invisibilidade,
sendo
parcamente
representados em outra documentação.27
Entre os processos arquivados no CEDOC/UEFS, selecionamos 88
Processos- Criminais de delitos de Lesões Corporais (27), Homicídios (07),
Infanticídio (01), defloramento e estupro (53). A quantidade dos processos é
suplantada pela riqueza dos detalhes e pelas possibilidades de estudar as
histórias de vida dos envolvidos relacionando-as com o contexto sociocultural
e histórico. A partir dos Processos, visamos apreender a cartografia espacial e
social dos sujeitos, descrevendo territorialidades, moradias, profissões, idade,
cor, instrumentos, entre outros. Esses dados ajudam a estabelecer um perfil
social dos indivíduos envolvidos nos atos criminosos.
Entre os jornais que circularam no período em análise, utilizamos como
fonte o Jornal Folha do Norte, que constitui uma importante fonte. Os jornais
são os meios divulgadores de uma ordem “civilizadora” e modernizadora para
Feira de Santana, pois, usavam sua eloqüência e suas páginas para imprimir
na população um imaginário de progresso, através dos melhoramentos
urbanos e das adequações nos costumes e comportamentos, exemplificando
ao leitor o que era permitido ou proibitivo a uma sociedade que buscava
estabelecer-se como pólo desenvolvimentista. Desta maneira, o trabalho com
os periódicos se configura como uma forma de compreender as dinâmicas
sociais no que diz respeito à percepção da cidade e dos discursos, uma vez
27
SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem
urbana 1890-1920, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 270.
24
que estes mecanismos de mídia tornam visíveis os fatos que denunciam ou
louvam os acontecimentos que imprimem para a cidade de Feira de Santana
simbologias da cidade culta, progressista e moderna.
O uso dos jornais como fonte tem se tornado muito comum entre os
historiadores. Maria Aparecida Sanches afirma que “o jornal enquanto fonte de
pesquisa para história, muito tem contribuído para o estudo de diversos
segmentos sociais, mas em particular, tem-se mostrado valioso e muitas vezes
imprescindível, quando se trata dos grupos que por seu caráter subordinado e
marginalizado não deixaram quase nada escrito”28.
Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro analisamos as
representações do processo de Modernização em Feira de Santana, elegendo
as fontes jornalísticas como registro privilegiado, onde buscar-se-á perceber a
cidade através dos discursos políticos que estavam em consonância com
aspectos definidores da modernidade: higienismo, sanitarismo, urbanismo,
eletrificação, vigilância e segurança, além de congregar valores normatizantes
da Polícia dos Costumes. Neste capitulo, buscamos evidenciar as mulheres
pobres em relação aos espaços públicos da rua, tendo como referência as
zonas de meretrício e as sociabilidades estabelecidas pela territorialização
desses sujeitos. Ainda inferimos sobre a ocorrência dos crimes e delitos
praticados na zona de mulheres, tendo como mola propulsora de interação e
conflito a feira livre semanal, o que é comprovado pela incidência de delitos nas
segundas-feiras, dia da realização da referida feira. Este capítulo objetiva
ambientar os leitores na cidade de Feira de Santana nas décadas de 1930 a
1948.
No segundo capitulo discutiremos as relações de violência sexo-afetiva e
sócio-espacial entre as mulheres das camadas populares. Utilizamos os
processos criminais de Lesões Corporais, Homicídios e Infanticídios, para
28
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e
relações de trabalho doméstico. Salvador 1900-1950. (dissertação de Mestrado) Salvador,
UFBA, 1998, p 13.
25
estabelecermos parâmetros de análise sobre o comportamento e o cotidiano
dessas mulheres nas suas tramas sociais e culturais..
No terceiro capitulo enfatizamos os crimes sexuais, utilizando os
processos criminais de estupros e defloramento, na compreensão da dinâmica
popular dos significados e experiências relacionados aos valores ligados á
moralidade, a honra, ao casamento e a virgindade entre os populares em Feira
de Santana, tentando compreender os parâmetros acerca da economia sexoafetiva, evidenciando as normatizações e ditames que configuravam as
feminilidades e masculinidades referentes aos exercícios sexuais estabelecidos
para cada sexo, tomando como desencadeador os discursos moralista e
médico-legal sobre o corpo e o comportamento dos sujeitos.
Os três capítulos que compõem esta dissertação são em partes,
independentes, isso por conta dos usos específicos das fontes em cada
capítulo deste estudo. No entanto, apesar das diferenças temáticas e
tipificações documentais, os capítulos convergem e interligam-se pela
transversalidade da violência de gênero nas relações sexo-afetiva no cotidiano
popular.
26
Capitulo I
“Gente infecta” na Feira “culta
e adiantada”
27
Buscamos neste capítulo analisar a documentação produzida pela
imprensa local e pelas instâncias jurídicas, utilizando-a numa perspectiva
teórico-metodológica a partir da História Social, visando compreender o espaço
urbano de Feira de Santana e a relação entre as mulheres pobres e este
espaço na construção das territorialidades e dos discursos, localizando-os
como meio de perceber a produção dos saberes sobre os populares. A opção
pela documentação e pelas relações de violência é uma postura metodológica,
uma vez que, esses sujeitos não produziram uma cultura letrada, sendo, desta
maneira, através dos processos Criminais e Jornais, a única forma de
apreensão do cotidiano popular, retratado nos momentos violência, quando
ganham visibilidade, entre as instâncias produtoras de discursos. Buscamos
evidenciar uma esfera das mulheres ainda pouco explorada pela historiografia
feirense, as mulheres pobres em situações de violência e as prostitutas, que
nas décadas de 1930 e 1948 eram identificadas como mundanas, decahidas e
horizontais. Essas serão nossas protagonistas deste primeiro capítulo,
mulheres que habitam os casas em cômodos da Rua do Meio29 e da Rua de
Cima30, dos becos da Esteira, do Bom e Barato, Castanha, freqüentando os
cabarés e bares, promovendo risadarias que destoavam no centro da cidade
como um grito por territorialidade31.
Este trabalho tem a intenção de apontar perspectivas para a
compreensão do estudo sobre a violência entre os populares e as mulheres,
evidenciada pela pesquisa documental. Ele objetiva ainda a possibilidade de
novas leituras e interpretações das fontes que sirvam para compor uma
historiografia das mulheres feirense.
29
Nome da atual Rua Sales Barbosa..
Nome da atual Rua Marechal Deodoro
31
Essa cartografia marginal era situada no centro da cidade de Feira de Santana, enviesando
as principais vias da urbe, que eram habitadas pelas famílias abastadas que residiam
principalmente na Av. Senhor dos Paços, Praça Fróes da Mota, Visconde Rio Branco, Praça da
matriz e Conselheiro Franco.
30
28
Feira de Santana: cidade culta e adiantada?
O advento da República e a concepção de modernidade que se
estabeleceu no início de século XX no Brasil estamparam nos principais
centros e, também, no interior, um modelo de “Civilização e Progresso”32. Com
isso, se impôs às cidades um ordenamento modernizador através de
elementos que a lhe dão forma, tais como: eletricidade, sanitarismo, higiene,
vigilância, educação, etc. Assim, tais inferências no cotidiano citadino atingem
diretamente os comportamentos dos sujeitos sociais, uma vez que a
modernidade gesta e reivindica novas condutas, hábitos e socializações.
Assim, a cidade não é apenas pensada como um cenário no qual se desenrola
a vida urbana, mas a cidade é pensada com um campo discursivo no qual os
sujeitos estão interagindo com o espaço, estabelecendo sociabilidade e
conflitos na construção das territorialidades.
Numa leitura discursiva sobre a cidade, a percebemos como um texto a
ser lido, esse texto é produzido pelos seus habitantes e construídos a partir da
alteridade e da inter-relação espaço/território/individuo. Como Roland Barthes
afirmou “a cidade é uma linguagem, a cidade fala a seus habitantes”33 Essa
linguagem cidade/individuo está diretamente relacionada a formação da
territorialidade e as suas múltiplas facetas de des-re-territorialização. Dessa
forma, a modernidade pensada a partir da transformação urbana como
implementação de uma nova ordem, implica em mudar ou reorganizar o texto,
sendo assim, é necessário de igual maneira ensinar a compreendê-lo e lê-lo
integralmente. E nessa perspectiva que os meios de comunicação impressos
atuaram em Feira de Santana, propagando esse novo texto, que apesar da sua
32
Rinaldo Leite afirma que o projeto modernizador das cidades não ficou restrito aos grandes
centros, deslocando-se para o interior, onde apresentou feições diferenciadas da capital por
apropriar-se de características regionais e localizadas. Ver: LEITE, Rinaldo César Nascimento.
E a Bahia Civiliza-se – Ideais de civilização e cenas de anti- civilidade em um contexto de
modernização urbana em Salvador – 1912-1916. ( Dissertação de Mestrado) Salvador,
UFBA, 1996.
33
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo:Martins Fontes, 2001.
29
literalidade do jornal, representava uma lógica ainda maior que era a de
construir uma opinião pública sobre a modernização da cidade e suas
implicâncias.
Assim, a questão urbana e o processo de modernização das cidades,
que a principio estiveram mais diretamente ligados aos melhoramentos
estruturais e as questões de saúde pública, estenderam-se ao controle dos
costumes e comportamentos, pois, as mudanças urbanísticas e higiênicas
requeriam um novo modo de viver na cidade. Com isso, a reestruturação
urbana caminhou paralelamente em dois sentidos seja nas questões sociais,
seja nas questões urbanísticas e estruturais34.
Para a construção de uma nova cidade, era necessário o rompimento
com o antigo, isso implicava em negar e negativizar os aspectos que
parecessem socialmente atrasados, ou seja, a dinâmica era realizar as
transformações necessárias para configurar a Feira de Santana, uma paisagem
de cidade “culta e adiantada”. Nessa gestação de modernidade os indivíduos e
seus comportamentos estavam entre as transformações requisitadas, não
bastava demolir e construir paredes, era necessário educar e higienizar o
morador ou moradora da nova casa e transeuntes dessa nova rua.
Nesse debate sobre Modernização e Questão Urbana, um elemento
fundamental nessa relação será o espaço das ruas da cidade, pois, este tornase o veículo de diálogo entre os moradores e os discursos moralistas e
higiênicos. Assim, as ruas, deixam de ser o contraponto entre o público e o
privado e passa a ser parte integrante do conjunto social. Higienizava-se as
ruas e moralizava-se a população. Segundo Kléber Simões: A transformação
da visão da cidade e do ambiente urbano durante o período republicano
encontrava-se, com os processos históricos que culminavam na resignificação
da rua que deveria preparar-se em termos estéticos e higiênicos para receber o
34
Ver: LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se – Ideais de civilização e
cenas de anti- civilidade em um contexto de modernização urbana em Salvador – 19121916. ( Dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1996.
30
cidadão brasileiro que nascera com o novo regime35. Com a política de
melhoramentos a rua é recriada e passa a integrar os espaços a serem
higienizados, disciplinados e normatizados, extrapolando os domínios entre a
casa e o passeio. Se a política de melhoramentos gestava um novo sujeito,
então, a rua, assim como a cidade, deveria ser uma síntese da modernidade.
Dessa forma, é necessário preparar essa rua para que novos sujeitos
transitem, apresentando novos comportamentos convergentes com a ordem
disciplinar.36
Logo, por ser o campo das trocas econômicas, simbólicas e culturais, o
espaço da rua ganha cada vez mais importância na congregação destes
conflitos e sociabilidades gerados pela modernidade, uma vez que, este lócus,
se constitui num palco licencioso para práticas “marginais”. Dessa forma, a
cidade é demarcada por territórios que são constantemente reelaborados e reterritorializados37. Opõem-se assim as ruas higiênicas e, por sua vez, limpas,
arborizadas, iluminadas, que servem para socialização de uma elite e seu
contraponto, as ruas sujas, pouco iluminadas, perigosas e barrulhentas.
Em Feira de Santana de meados do século XX, encontramos essa
dicotomia urbana, no olhar sobre a cartografia central da Urbe. De um lado
encontramos as avenidas Senhor dos Passos, Conselheiro Franco e Visconde
do Rio Branco, habitadas pela elite local. Paralelo a estas, porém opostas,
temos as ruas Sales Barbosa, Marechal Deodoro, Rua do Fogo, habitadas por
decaídas, pobres e marginais, onde localizavam-se os cabarés que promoviam
os bas fonds.
35
SIMOES, Kleber José Fonseca. Os homens da princesa:modernidade e identidade
masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador/ UFBA, (dissertação de Mestrado),
2007. P.41.
36
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo,
Companhia das Letras, 1996; SIMOES, Kleber José Fonseca. Os homens da
princesa:modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador/
UFBA, (dissertação de Mestrado), 2007; SOUSA, Ione Celeste de. Garotas tricolores, deusas
fardadas: as normalista em Feira de Santana, 1925 a 1945. São Paulo: EDUC, 2001
37
SOUZA, Eric Ferreira. Errância dos Desejos: territórios e sujeitos marginais no centro
da cidade de Salvador. (Dissertação de Mestrado), Salvador, PPGNEIM/UFBA, 2008.
31
O Jornal Folha do Norte38, era o veiculo de comunicação impresso de maior
circulação na cidade nas décadas estudadas, sendo este veículo o maior
propagador dos ideais mordenizadores, lançando criticas, sugestões e elogios
às ações de “melhoramentos da Feira” realizados pelos poderes públicos.
Logicamente, os editoriais do periódico seguiam as conveniências do contexto
político. Este veículo de informação e comunicação buscava estabelecer uma
representação sobre a cidade e seus moradores, sempre em consonância com
as idéias e projeções das elites na configuração da nova cidade 39. Assim, o
Jornal funcionava como um órgão fiscalizador, pronto a acionar a polícia dos
costumes40 no combate as práticas de anti-civilidade, seja na estrutura urbana
ou, principalmente, no cotidiano e comportamento social. Aqui está a mola
propulsora das perseguições aos populares do centro da cidade, no caso em
evidência, as mulheres da rua de cima. Diversos noticiários traziam esses
espaços marginais e seus sujeitos, caracterizados como impróprios ao centro
de uma cidade “culta e adiantada”41, como em chamadas como estas, que
diziam: “A policia precisa fazer uma limpa na 79”42, “O Becco da Esteira
novamente em foco policial43, “Impõe-se a visitação da polícia à mal afamada
travessa conhecida por Bêcco da Esteira, para a qual parece ter afluído ali o
bas-fond”44.
O jornal Folha do Norte teve de fato esse papel de sinalizador para o
progresso e os melhoramentos, como também assumiu uma vigilância sobre as
práticas e costumes que depusessem contra os “foros de cidade culta e
38
Os Jornais utilizados nesta pesquisa estão arquivados na Biblioteca Setorial Monsenhor
Renato de Andrade Galvão no Centro de Estudos Feirenses/Museu Casa do Sertão/UEFS.
Utilizamos uma seqüência serial dos anos de 1930 a 1948.
39
OLIVEIRA, Clóvis F. Ramaiana M. De empório a Princesa do Sertão: Utopias
civilizadoras em Feira de Santana (1893 – 1937). (Dissertação de Mestrado), UFBA,
Salvador. 2000.
40
Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e
cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA,
1994.
41
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 27 de janeiro de 1940.
42
BSMRG – CENEF - Jornal Folha do Norte - 09 de março de 1935
43
BSMRG – CENEF - Jornal Folha do Norte - 14 de abril de 1935
44
BSMRG – CENEF - Jornal Folha do Norte - 23 de março de 1935
32
adiantada”45 como se esperava de uma cidade que despontava como a maior
do Interior da Bahia.
Dessa forma este veículo vai, “chamar a attenção da
fiscalização municipal para aquilo o de que se recente a cidade, julgamos, é
dever imprescindível que nos cabe, tanto mais quanto sempre foi o nosso
programma a defesa dos interesses collectivos”46
O processo de crescimento urbano foi tomado como um aparato
discursivo, habilmente utilizado pelos grupos políticos locais e pelas elites no
sentido de modelar e imprimir uma nova cidade. Nas décadas de 1920 a 1940,
muitas mudanças serão empreendidas no sentido visibilizar essa modernidade,
tais como: construção do Paço Municipal (1921 a 1926)47, Construção das
Estradas de Rodagem, como a Bahia – Feira (1928)48, Rio- Bahia (1933)49
Jacobina-Feira (1932), Rede Elétrica (1920), Implantação da Escola Normal
(1925)50,
Serviço
telefônico
(1931).51
Ione
Souza
apresenta
esse
desenvolvimento urbanístico e social como um dos fatores preponderantes
para implantação da escola Normal em Feira de Santana, um marco no
processo de mudança de comportamentos e mentalidades, uma vez que
propunha “trazer luz ao sertão”, educando as moças e rapazes, gerando com
isso um novo sujeito social.
Quando a Escola Normal foi instalada em Feira de Santana, a
cidade ostentava o título de maior cidade do interior da Bahia. Os
políticos locais tinham consciência dessa condição e a utilizavam nos
projetos de crescimento da cidade tanto que conseguiram aí sua
localização quando por lei, não seria indicada, por distar apenas cem
quilômetros da capital e ser intuito da reforma de 1925 criar escolas
no sertão, nos lugares longínquos, visando formar professoras(es)
locais.
Feira venceu e um dos argumentos foi seu progresso
urbano(!), que permitia melhores condições às normalistas que, na
boca do sertão, fossem fazer estudos na Escola Normal. Impôs seu
45
Frase proferida pelo Delegado Durval Tavares Carneiro no processo de Gabina Amélia –
CEDOC/UEFS Doc 807, Cx. 48, Est. 02, ano 1948. Utilizamos esta frase, pois, apresenta o
cruzamento das fontes, assim como explicita que este debate permeava outras instancias da
sociedade, não apenas os veículos de comunicação.
46
BSMRG – CENEF - Folha do Norte - 30 de novembro1929.
47
BSMRG – CENEF - Folha do Norte – 16 de junho de 1933.
48
C.f. ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário personalístico, histórico, geográfico e
institucional de Feira de Santana. Feira de Santana: Edição do autor, 2002.
49
C.f. ALMEIDA, Op. Cit., 2002
50
C.f. SOUSA, Op. Cit., 2001.
51
C.f. ALMEIDA, Op. Cit., 2002
33
poderio com a representação de ser a boca do sertão, sua princesa,
como foi cognominada por Ruy Barbosa, na visita de 1919, durante a
campanha civilista: portanto, merecedora do progresso que era, e que
traria a Escola Normal, além de outras conquistas urbanas das quais
52
se orgulhava.
Os melhoramentos na cidade de Feira de Santana convergiam para o
projeto modernizador republicano. No contexto, o centro da cidade era
remodelado, com a abertura e alargamento de ruas, demolições de casarões e
casebres, criação de uma ordem pública e política, instituição de códigos de
posturas,
policiamento
dos
costumes,
enfim
estabelecendo
uma
re-
territorialização do centro da cidade. Tudo isso viabilizaria os parâmetros entre
a cidade moderna e os empecilhos para o “progresso” da Feira de Santana.
Neste ponto, a crítica aos populares é o foco na exorcização do atraso da
cidade e comparação aos grandes centros urbanos. Entre essas críticas,
encontramos a perseguição aos “bas-fond’s”, como também a negação aos
valores ruralistas e tradicionais53.
Neste ponto, o semanário de notícias não poupou esforços no sentido de
depreciar o cotidiano dos populares e seus costumes. As ações e atividades
cotidianas ligadas às sociabilidades e sobrevivências dos populares foram alvo
de críticas e ações políticas direcionadas. Dessa forma, com o processo de
embelezamento e progresso da cidade, não havia espaço para essas pessoas
transitassem. Em matéria do dia 27 de janeiro de 1940, o Jornal Folha do Norte
noticia a desocupação de uma área no centro da cidade através de algumas
demolições. Esta área era ocupada por populares, os quais terão seu cotidiano
apresentado
de
maneira
estigmatizada,
demonstrando
a
noção
de
periculosidade que estes representavam para a higiene e para a moral pública.
A permanência daqueles sujeitos nos espaços centrais da cidade depunha
52
SOUSA, Ione Celeste de. Garotas tricolores, deusas fardadas: as normalista em Feira
de Santana, 1925 a 1945. São Paulo: EDUC, 2001, P. 97.
53
OLIVEIRA, Clóvis F. Ramaiana M. De empório a Princesa do Sertão: Utopias
civilizadoras em Feira de Santana (1893 – 1937). (Dissertação de Mestrado), UFBA,
Salvador. 2000; SIMOES, Kleber José Fonseca. Os homens da princesa:modernidade e
identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador/ UFBA, (dissertação de
Mestrado), 2007.
34
contra os avanços e empreendimentos progressitas. O título da matéria,
bastante sugestivo, casebres que merecem desappacer, mostra de que forma
o Jornal apresenta a política urbanística como uma necessidade de se
expurgar da cidade os males sociais.
O oxigênio vitalisante do urbanismo remodelado vetusto
prédio da rua Cons. Franco, derreio também casebres que afeitavam
a ruela transversal que liga a grande artéria citadina à praça
Bernadino Bahia e serviam de quitanda e officina de ferreiro, aos
fundos do Quartel do Tiro de Guerra 332.
Foi providêncial essa desapparição e oxalá a engenharia
municipal e a Saúde Pública conjuguem esforços no sentido de virem
a ser demolidos outros antros de gente de vida airada infectos e
inficcionantes, pocilgas já em ruínas, como são, por exemplo, os
immundos cochicholos da rua Riachuelo, que não dispõem de um
palmo dos mesmos, para serventia dos que ocupam.
Ali faz-se despejo de excretos e águas servidas de toda
espécie em pleno leito da travessa que também atravancam com
vasilhames de cosinha, mêsas desconjuntadas, catres intanguidos de
parasitas, bacias e gamelas em que lavam roupas ao ar livre,
transformando em coradouro o passivo que os defronta.
Ainda há mais: o glossário de termos indecorosos ali em uso
constitue verdadeiro attentado à moral pública. Por tudo isso,
merecem desapparecer taes casebres tão prejudiciaes no centro de
54
uma cidade adiantada e culta como é a Feira.
A reestruturação estética do centro da cidade, na qual implicava
alterações no cotidiano e nos costumes dos sujeitos que compunham este
território, implicava, por sua vez, na incisiva expulsão de populares dos
espaços centrais da urbe feirense. A maior preocupação dos órgãos políticos
que exerciam esse controle sobre a população era a questão do
embelezamento e higienização das estruturas e dos costumes. Essa questão
levava ao desprestígio de determinados espaços, assim como a ridicularização
dos comportamentos que não estivessem à égide da modernidade. Mesmo
antecedendo a temporalidade evidenciada nesta pesquisa, a matéria do Folha
do Norte publicada em 31 de janeiro de 1920, como o título de Justo Apelo,
serve para demonstrar que esse debate em torno dos populares e a
modernização da cidade, já ganhava fôlego desde os primeiros anos do século
XX. Na referente matéria, o articulista direciona seu discurso no sentido de
apresentar todo o empenho empreendido pela elite, com o objetivo de imprimir
54
BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 27 de janeiro de 1940.
35
na cidade de Feira de Santana uma feição de cidade bela e higiênica, mas, em
contrapartida os comportamentos dos populares e seu modus vivendi,
representavam uma verdadeira afronta aos foros de civilidade, por isso mesmo,
a necessidade do controle disciplinar e a policia dos costumes55. Contudo, isso
não implica dizer que tais medidas gerissem melhorias efetivas na qualidade de
vida desses sujeitos. O objetivo era expurgar o mal das áreas centrais, sendo
conseqüência direta o crescimento das periferias e a territorialização de novas
áreas marginalizadas
Mais bonita e bela vae, dia a dia, material e socialmente a
Feira evoluindo aos olhos dos viajantes e visitantes.
E, de facto, é para se louvar e encarecer a patriótica
dedicação e palpitante iniciativa, particular ou geral dos seus
habitantes, quer procedente de cada um delles, em destaque da sua
progressista e adiantada corporação municipal.
Todos, ao que se vê, na medida de suas forças, mais uns,
menos outros, cooperam se empenham, se esforçam para ajudar e
engrandecer a feirense cidade central.
De alguns annos para cá, a evolução material vai rápida, aos
sonhados e almejados desideratos da moderna esthetica, da
civilização contemporânea.
Entretanto, há uma lacuna que se destaca aos olhos dos que
a visitam, aos olhos de todo o mundo.
Uma velharia que clama ser abolida; um descuido, que urge
ser reparado; uma esquisitice, uma feia caricatura que obriga a ser
extinta.
Dos Olhos d‟Água à entrada da Feira, até a estrada de ferrovia central, vê-se fácil e claramente uma longa série de triste casinhas
e casebres, um kilometro mais ou menos de extensão, cujos fundos
com casinhas e fogões imundos de fuligem com quintaes antihygienicos,lixosos, com paredes e cercas sujas e muito mal
construídas, que dão e despejam para a linha férrea à vista de todos
os passageiros que, no trem vêm a remodelada e formosa cidade.
Ora, a vista dos repetidos elogios que por toda parte se fazem
à culta, esthetica, à moralíssima cidade bahiana, que impressão se
não há de sentir, logo ao penetrar na entrada, quando, pelo contrario
deverá de ser a prelibação da sua grandiosidade, o ponto inicial da
56
sua beleza física e do seu ponto artístico, da sua architectonica?
55
56
Ver essa discussão em ASSIS, 1996; CHALHOUB, 2001; FERREIRA FILHO, 1994; FAUSTO, 2001.
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 31 de janeiro de 1920.
36
Não só de alargar de ruas e demolir casarões a “ordem civilizadora” em Feira
de Santana estendeu seus ares de modernidade. Os comportamentos dos
sujeitos sociais que habitavam o centro dessa cidade em transformação
também foram alvo do alastramento dos discursos e práticas que buscavam
configurar à Feira de Santana um representação de cidade moderna.
Mulheres na rua
Na configuração da modernidade do espaço central da cidade, os
agentes
dessa
modernização
estabeleceram,
a
partir
de
parâmetros
amparados em valores higienistas, sanitários e moralizantes, uma reterritorialização do espaço citadino. Nessa dinâmica de re-territorialização
emergem-se conflitos, resistências e negociações, estabelecidos a partir da
interação dos sujeitos históricos envolvidos no processo. De um lado, os
agentes políticos armados com ideais importados de modernização que
direcionava a legislação municipal e a atuação dos aparelhos jurídicos, assim
como, a segurança pública, do outro, estavam os sujeitos populares enlaçados
nas tipificações unilaterais que as configuravam como decaídas, mundanas,
horizontais e airadas. Essas mulheres foram trazidas à baila, retiradas de sua
invisibilidade histórica concernente a sua condição social e de gênero, a partir
dos seus conflitos de adequação a uma moral pública. Assim, essas mulheres
aparecem corporificadas através das experiências do cotidiano, expostas pelo
Semanário Folha do Norte. Segundo Maria Izilda Matos, as reflexões sobre as
singularidades do cotidiano no processo de urbanização, não deve se limitar
aos lugares mais visíveis, é importante compreender o espaço não como algo
fixo, imutável ou como um simples palco da história, mas sim, como um
elemento constitutivo da trama histórica, de seus fluxos e de sua dinâmica em
permanente ação, interação, transformação e reconstrução57.
57
MATOS, Maria Izilda Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, São
Paulo, EDUSC, 2002. P. 37.
37
Desta forma, as “decaídas” são vistas e interlocutadas em meio aos
seus movimentos e práticas do cotidiano, corporificando em si uma relação
entre espaço/território/individuo. As “decaídas” e “mundanas” rompem assim a
invisibilidade de sua condição sócio-histórica ao transitarem nas ruas e becos,
incomodando dessa forma a “ordem civilizadora” que vigenciava.
Essas
mulheres e seus pares estabeleciam várias maneiras de socialização
entrelaçadas em redes horizontais, que permeavam sua sobrevivência, seus
prazeres e saberes. Sendo assim, a tipificação dessas mulheres como sujeitos
marginais, estender-se-á aos seus territórios de ocupação que se configurarão
como territórios marginais, pela prática das arruaças, bebedeiras e prostituição.
Segundo Eric Ferreira Souza,
através da constituição de redes de sociabilidades marginais que, ao
estabelecerem condições liminares de existência, asseguram não
apenas a sobrevivência individual ou grupal de determinados sujeitos,
mas, a presença de alteridades, que rompem ou colocam à prova,
cotidianamente, os discursos, as intervenções e os olhares
homogeneizantes e naturalizadores lançados sobre as minorias que,
ao longo da história, numericamente, muitas vezes foram as
58
maiorias.
O processo de luta de territorialização das “decaídas” e seus pares é um
confronto direto com a nossa política de modernização da cidade. Essa
dinâmica no centro da cidade foi o espaço privilegiado como o campo confronto
da polícia dos costumes e das vivências populares. A interferência policial no
cotidiano dessas mulheres e dos seus territórios, demonstravam a inclinação
legal de controle dos costumes. Assim, no dia 04 de fevereiro de 1933 “As
decahidas Filippa de Telles Cerqueira e Maria de São Pedro Crysostomo foram
catrafiladas e conduzidas à Cadeia Publica por se terem esbofeteado e
proferido termos indecorosos em plena rua”59, como também na noite do dia 24
de maio de 1940, “Maria Bernarda e Ubaldina Maria de Jesus, que costumam
promover desordens na Rua do Meio, foram recolhidas à cadeia Pública por
terem promovido desordens”60. Dois dias depois dessa ocorrência, dia 26 de
58
SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador
(1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades:
estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, P. 85.
59
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 04 de fevereiro de 1933
60
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 08 de junho de 1940
38
maio de 1940, “Almira Jacinta da silva, Maria pires de Almeida, Almerinda da
Silva e Maria Jacinta da Silva, foram recolhidas à Cadeia pública por terem
desacatado uma família no lugar denominado Queimadinhas”61.
Sendo que
um mês antes dessas prisões também foram recolhidas a Cadeia Pública “por
ter desacatado com palavras injuriosas a uma senhora de família, Augusta de
tal”62
Essa relação entre policiamento e decaídas era extremamente complexa, pois,
os policias que faziam as rondas, aprendendo e moralizando os espaços, em
outros momentos, serão encontrados interagindo com esses sujeitos em seus
territórios espaciais e corporais.63 Mesmo nessa complexa relação, a força e e
controle policial estava presente na paisagem da cartografia marginal do centro
de Feira de Santana, principalmente motivados pelas reivindicações dos
moradores das Ruas paralelas centrais, explicitados no Jornal Folha do Norte.
Impõe-se a visitação da polícia à mal afamada travessa
conhecida por Bêcco da Esteira, para a qual parece ter afluído ali do
bas-fond.
Ainda ontem, cerca de dez horas da noite ocorreram ali sérios
distúrbios e facas andaram a lampejar ameaçadoramente,
salientando-se pelas desenvolturas bellicas n‟a mulher preta, alta e
64
franzina cujo nome não conseguimos saber .
Logo, as rondas e batidas na zona de meretrício do centro da cidade, situados
na Rua do Meio, Rua de Cima, Rua do Fogo, constituíam parte integrante da
paisagem marginal do referido território, configurando-lhe a licenciosidade da
transgressão e perigoso.
O lançamento de um novo Código de Posturas Municipais no ano 1937 é
demonstrativo dessa tentativa de regularização da conduta social. No que
tange aos populares/marginais, seus gestos e suas sociabilidades ganham
61
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 08 de junho de 1940
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 11 de maio de 1940
63
Ver: SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de
Salvador (1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo
interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008.
64
BSMRG – CENEF- Folha do Norte 23 de março de 1935
62
39
conotação repressiva e proibitiva. No Capítulo III no Art. 144º diz que Aquele que, nas ruas, praças, logradouros e lugares públicos proferis
palavras obscenas ou for encontrados na prática de atos ofensivos à
moral e aos bons costumes, incorrerá na multa de 10$000, além da
responsabilidade, em que incidir segundo a legislação vigente.65
O policiamento dos costumes presentes da legislação municipal
converge para o ideal de cidade higiênica postulado para Feira de Santana
pelos seus agentes políticos. Observamos que há um direcionamento cultural
ao controle dos gestos e uma busca de dês-re-territoriliazação do espaço
público. Os hábitos de gritos, arruaças, bebedeiras e xingamentos eram, como
ainda o são, comportamentos culturais significativos dos sujeitos marginais
urbanos em suas sociabilidades. A postura surge desta maneira como um
aparato jurídico e social para uma dês-re-territorialização das decaídas e suas
pares, que davam uma fisionomia marginal ao centro da cidade de Feira de
Santana, depondo contra os “foros de cidade civilizada”.
Apoiados nesses parâmetros, justificando-se e sendo endossados pelas
elites locais que os veículos de comunicação impressos atuaram no sentido de
discriminar e estabelecer uma licenciosidade perigosa aos espaços das
“mulheres e homens da vida”. Como já demonstrado, o Semanário Folha do
Norte ávido propagador da referida modernização, utilizou as suas páginas e a
eloqüência dos seus articulistas e colaboradores para disseminar a partir de
uma visão unilateral e depreciativa os comportamentos e territórios ditos
marginais. Assim, divulgava-se amplamente notas policiais, cenas de crime e
violência, além das denúncias à saúde e moral pública.
Foi providêncial essa desapparição e oxalá a engenharia municipal e
a Saúde Pública conjuguem esforços no sentido de virem a ser
demolidos outros antros de gente de vida airada infectos e
inficcionantes, pocilgas já em ruínas, como são, por exemplo, os
immundos cochicholos da rua Riachuelo, que não dispõem de um
palmo dos mesmos, para serventia dos que ocupam.
Ali faz-se despejo de excretos e águas servidas de toda
espécie em pleno leito da travessa que também atravancam com
65
Arquivo Público de Feira de Santana. Código de Posturas do Município. Decreto-lei nº 01 de
29 de dezembro de 1937.
40
vasilhames de cosinha, mêsas desconjuntadas, catres intanguidos de
parasitas, bacias e gamelas em que lavam roupas ao ar livre,
transformando em coradouro o passivo que os defronta.
Ainda há mais: o glossário de termos indecorosos ali em uso
constitue verdadeiro attentado à moral pública. Por tudo isso,
merecem desapparecer taes casebres tão prejudiciaes no centro de
66
uma cidade adiantada e culta como é a Feira. (grifo nosso)
O direcionamento da marginalização territorial focou-se principalmente
da Rua de Cima e Rua do Meio, seguidos pelos becos ruelas que
entrelaçavam-se e interagiam semiologicamente. As referidas vias compunham
a “cartografia do Prazer” da urbe feirense, sendo as mesmas ocupadas por
casas de cômodos, “cochicholos” e cabarés.
A corporificação dos indivíduos com seus espaços dava-se numa leitura
de
pertencimento,
identidade
e
performance67.
Nessa
perspectiva,
a
constituição da Rua de Cima e seu zonal como território de marginal, esta
intimamente ligada à relação estabelecida entre seus habitantes, que
corporificam seus espaços com seus movimentos cotidianos. No caso em
questão, encontramos as decaídas e seus pares que habitavam a tal território,
criando desta forma, redes de sociabilidade, que transitavam entre a
prostituição, a manteúda, o alcoolismo, os furtos, as brigas, estabelecendo de
fato, práticas de sobrevivência, resistência e territorialização. E o Jornal não
poupava espaço em suas páginas para divulgar tais sociabilidades, visto pelo
viés elitista.
Estão se tornando celebres pelas proezas, as decahidas que
residem no castelo de número 79, a rua de Cima.
A noite, principalmente, as viciadas praticam ali toda sorte de
desatinos, esquecendo-se de que passam e residem familiares
naquele trecho.
Correrias, risadas escandalosas, termos pornographicos e
discussões em altas vozes e até actos indecorosos, eis tudo o que se
ouve e se vê à porta do citado cortiço. O Sr. Cap. Delegado de policia
ignora estes factos. Certos, porém, de que a digna autoridade saberá
66
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 27 de janeiro de 1940.
Ver BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
67
41
tomar as necessárias providências, deixamos ao seu zelo o que fica
68
dito. (grifo nosso)
Ainda:
Fazendo concorrência às viellas mal afamadas em que se agita a
gente do bas-fond, o Becco da Esteira continua em foco por seus
eventos... policiaes.
Na embocadura da celebérrima travessa arraiam viciosos para a
pratica de jogo de azar às escancaras, sem temores dos dispositivos
da lei e dos agentes da Força Publica. E o peór é que para ali affluem
69
garotos das ruas amestrando-se em trapaças.
A dês-re-territorialização física e simbólica do centro feirense foi um
campo de conflito e resistências. As decaídas e seus pares mantinham suas
socializações nos cabarés e nos becos e enfrentavam a ordem modernizante
com seus costumes e jogos cotidianos, através de xingamentos e brigas
constantes, dando corporeidade a zona de meretrício. Segundo Margareth
Rago,
Ao agrupar os indivíduos através de redes subterrâneas de
convivência e solidariedade, apresentava-se como um território que
viabilizava a experiência de relacionamentos multifacetados e plurais,
num contexto de distensão. Práticas licenciosas que contrariavam a
exclusividade sexual imposta pela ordem, tanto quanto encontros,
brincadeiras e jogos que ocorriam nos cabarés e “pensões alegres”
70
da cidade conformavam um espaço importante de interação social.
Na leitura da cidade, a zona do meretrício é tipificada em Feira de
Santana de meados do século passado entre a Rua de Cima, a Rua do Meio,
os becos e ruelas, lidos pelas suas licenciosidades marginais e pelas
performances das suas moradoras tão famosas nos meios de comunicação
impressos. Assim, em publicação do dia 10 de fevereiro de 1945, o poeta Fabio
Bahia publicou um poema com título Rua de Cima71. Neste poema, o autor faz
68
BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 09 de março de 1935.
BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 14 de abril 1935
70
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em
São Paulo. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991
71
Poema Rua de Cima de autoria de Fabio Bahia, publicada no Jornal Folha do Norte de 02 de
fevereiro de 1945.
69
42
uma caminhada pela afamada Rua como sugere Certeau72, apreendendo o
cotidiano dos seus sujeitos. Em cada passo do autor pela rua, evoca-se
aspectos das condições de vida dessa mulheres, debatendo sobre as
sociabilidades e redes horizontais da dinâmica sexo/econômica e cultural
dessas mulheres, assim como, apresentando noções de padrões de saúde e
higiênicas. O poema é um olhar sobre esses sujeitos, mas permite-nos
empreender sobre o cotidiano social e moral tanto dos indivíduos retratados,
bem como, a moralidade sanitária republicana. Assim, ao tempo que o poeta
adentra na “rua dentro de outras ruas”, caminha pelo que ele chama de “inferno
de loucuras, pedaços infectos de vida”, mostrando-nos territorialidades.
Rua de Cima
Inferno de loucuras
Pedaços infectos de vida
De vida sem rumo
De vida sem vida
E o amor!
O amor!
Amor deteriorado
Opulentando o gôso em cubículos imundos.
São seios
Seios queimando febre
Seios jovens que dansam
Na taça da doença.
Rua de Cima algazzarra de vozes
Gritando...
Gritando...
Nomes feios!
Escândalos!
Barulho!
72
CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
43
Barulho misturadocom samba
Barulho misturado com beijos!
Ria de cima
Rua dentro das outras ruas
Confraternização de inúmeras mizerias
Meninas de doze...
Meninas de treze...
Meninas perdidas
Sem culpa nenhuma.
Mães parindo
Morrendo de parto
Sofrendo...
Sofrendo...
Rua dentro das outras ruas
Rua de Cima
A sífilis devora tudo
Devora seios
Devora beijos
Meninas de doze...
Meninas de treze...
Meninas sem dono
Meninas perdidas.
73
A “Rua dentro de outras ruas” foi assim o palco do desenrolar de história
de mulheres marginais, onde se encenou provavelmente incontáveis conflitos
sócio-afetivo-sexuais e econômicos, impossíveis aqui de serem mensurados. A
conflitualidade dessa “cartografia do prazer” era postada no Semanário,
evidenciando as cenas de violência e a perturbação da ordem. Essas
veiculações reafirmavam a necessidade de um ordenamento daquele espaço,
73
BSMRG – CENEF- Folha do Norte 10 de fevereiro de 1945.
44
gerando, por sua vez, a des-re-territorilização dessas mulheres e seus
costumes.
Não é a primeira vez que nos ocupamos dos factos deprimentes que
se desenrolam na celebre rua de Cima.
Farta de ser, talvez, a via urbana freqüentada por farristas
impenitentes e habitada por meretrizes desenvoltas, quer agora ter a
feição turbulenta do tradicional morro da Favela.
Na sexta feira passada, agredido a porta do bar de sua propriedade
pela decahida de nome Helena, conhecida pelos seus maus
costumes, o rapaz de nome Zuzuca procurou reagir.
Helena, porém, que conduzia um copo de meladinha pra fazer os
aperitivos de seu uso, produziu-lhe com o mesmo, fundo golpe no
braço esquerdo, tendo havido grande derramamento de sangue.
Enquanto a victima encaminhava-se para receber curativos na
Pharmacia Sant‟Ana, a desordeira do 77 occultou-se para fugir à
74
ação punitiva da autoridade competente. [sic]
Num rápido passeio pela Rua de Cima e uma entrada em um dos
bordéis dos tantos becos da cidade, é possível notar nossas protagonistas
corporificando o seu espaço. A efetivação das relações sexo-afetivas e
econômicas
que
se
estabeleceram
nesses
territórios
nos
permitem
compreender os perfis sociais e a própria dinâmica sociocultural e econômica
da cidade de Feira de Santana em meados do século XX. Isso é compreendido
nas ocorrências e nos noticiários, no qual, o dia da segunda-feira é o dia da
semana de maior fluxo no meretrício, lotando os cabarés. O fato desse fluxo de
pessoas na zona era decorrente da realização da famosa feira livre que ocorria
no centro da cidade, sendo esta, um espaço de sociabilidades múltiplas e de
complexas redes de manutenção social, econômica, cultural e identitária.75 O
fluxo migratório de pessoas que vinham para a cidade para o comércio na feira
livre, facilitava e favorecia a manutenção dos territórios marginais, dando a
estes sustentabilidade e manutenção.
Com grande aborecimento para as famílias que residem nas
proximidades da famosa rua de cima, voltou a funcionar em noite de
74
BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 16 de março de 1935
MOREIRA, V. D. . Caminhos históricos da feira de Feira de Santana. Sitientibus. Revista
da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, v. 10, p. 185-189, 1992.
75
45
segunda feira passada o infernal bailarico que os farristas
freqüentadores daquela anarchisada via publica, organizam quando
querem e da maneira que melhor entendem.
E foi assim que expandiu-se até ao amanhecer de terça-feira os
incontentados dançarinos do incommodo cabaré, roubaram durante
aquela noite o somno às pessoas que durante o dia empregam as
76
suas actividades em afazeres honestos. [sic]
O fluxo migratório também favorecia o aumento das cenas de violência
físicas e simbólicas envolvendo as mulheres do meretrício no centro da cidade
e seus pares. Essas “cenas de sangue” eram motivadas por diversos fatores
que
incluem
a
própria
socialização
nesses
espaços
licenciosos
às
extravagâncias. Desta maneira, as bebedeiras, as arruaças e as risadarias,
dominavam a cena nos dias de segunda-feira. Logicamente a polícia dos
costumes não se furtaria de intervir nessa dinâmica. As batidas policias e
confrontos violentos eram amplamente divulgados no Jornal Folha do Norte
com a intenção de corroborar com periculosidade daqueles “territórios do
prazer”. Os próprios títulos das matérias ganhava, um dom sensacionalista,
objetivando estabelecer e alcançar a moralidade pública. Assim saiam no
Jornal: Recebeu uma facada enquanto discutia77, Uma cena de sangue na rua
de Cima78; Entre chamas de Fogo79, etc. É possível mensurar como estas
notícias produziam discursos e representações, imprimindo tipificações
moralistas sobre as decaídas e seus pares. Assim, o Jornal Folha do Norte ao
relatar as ocorrências de transgressões na zona nos dias de segunda-feira,
estabelecia uma lógica de compreensão da vida urbana feirense, ao lado da
caracterização popular marginal, estavam inseridos códigos de sociabilidades
que ultrapassavam o espaço do meretrício. Ainda assim, os manipuladores dos
discursos jornalísticos feirense deleitavam-se nessas notas, estabelecendo
cunhos morais.
Segunda-feira última por questão de cuimes, perto de um
casebre onde residem duas mulheres de vida airada e há pouco
76
BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 25 de junho 1936.
BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 18 de junho de 1932.
78
BSMRG – CENEF- Folha do Norte 21 de junho de 1935
79
BSMRG – CENEF- Folha do Norte 25 de abril de 1938
77
46
tempo suicidou-se por ciúmes um infeliz, o individuo de nome
Joaquim de tal, armado de larga faca a que chamam de peixeira,
vibrou profundo golpe no peito esquerdo de seu desafeiçoado Elias,
80
prostando-o sem vida.
Ainda:
Segunda feira ultima, às 6 horas da noite, na travessa General Pedra,
o individuo de nome Valentim de tal, Enciumado, travou forte
discussão com Mariquinhas de tal, terminado o carroceiro por sacar
de uma faca e craval-a na região clavicular de sua contendora. A
Victima foi recolhida ao hospital desta, cidade onde se acha em
81
tratamento.
Assim como:
Ainda segunda-feira ultima, à luz do sol no zenith – meio-dia
amotinou-se o becco recebendo ferimentos leve uma mulher
82
envolvida na arruaça.
A potencialidade desses discursos construtores de uma civilidade moral
para Feira de Santana era uma mecanismo de estabelecer controle e visões de
mundo sobre os populares marginais do centro da cidade, especialmente, as
mulheres que numa dinâmica de gênero contestavam com suas experiências
cotidianas as submissões do controle do poder público e da polícia dos
costumes, mostrando-se empoderadas, reagindo com gritos e arruaças,
tumultuando
as
vias
centrais
da
urbe,
constituindo,
ainda
que,
involuntariamente, uma posição política de luta e resistência.
1.4 Mundanas na Rua do Meio
Entre a casa de cômodos e o cabaré, as mulheres que habitavam a Rua
Sales Barbosa, no centro da cidade de Feira de Santana, constituíam suas
80
BSMRG – CENEF - Folha do norte 21 de maio de 1938
BSMRG – CENEF - Folha do norte 18 de junho de 1932
82
BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 14 de abril de 1935.
81
47
sociabilidades marginais, interagindo entre navalhas, socos e bebedeiras, com
os farristas que enchiam os cabarés onde predominavam as decaidas e
mundanas, com risadas escandalosas e “glossários de termos indecoros” que
as eram peculiar. Não raro, um espaço como este, será palco de cenas de
violência que interagiam com os habitantes nessa configuração das
territorialidades. Para Eric Souza, observar alguns sujeitos marginais com seus
corpos e performances em linhas de fuga, ou nas suas dês-re-territorializações,
possibilita a percepção da dimensão do gênero como uma categoria de
análise.83 Assim, as mundanas ao protagonizarem cenas de violência e
arruaças no centro da cidade, usufruíam da desconstrução de modelos rígidos,
que estabeleciam o feminino como delicado, meigo, materno e, por sua vez,
privado.84
Assim no dia 22 de março de 1942, aproximadamente a meia noite, no
cabaré do Janico situado na afamada Rua Sales Barbosa, entrou em conflito a
mundana Josefa Pereira, mais conhecida como “Zefinha” e Dourivaldo Dórea,
um negociante de gado.85 Esses dados já indicam algumas peculiaridades das
mulheres da Rua do Meio86, pois, pelo avançado horário da noite, as ditas
“mulheres de famílias” já estavam dormindo depois de cumprirem seu papel de
esposa e mãe. A que ressaltar que o fato de uma mulher sair a noite era um
indicador de sua “má conduta”87.
O jovem Dourivaldo Dórea, com 21 anos, solteiro, era um freqüentador
da zona de mulheres, sendo conhecido pelos seus “atos de libertinagem com
que tratavam as mulheres do meretrício”88, no referido dia Dorivaldo
embriagado provocou a mundana “Zefinha” dando-lhe um “purrute”. Pela
83
SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador
(1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades:
estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, p. 90.
84
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade
feminina em São Paulo. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991
85
CEDOC/UEFS - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942.
Termo também utilizado para identificar a Rua Sales Barbosa.
87
Esse fato é amplamente abordados nos Processos de defloramento que discutimos no III
Capitulo.
88
CEDOC/UEFS - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942.
86
48
descrição, esse “purrute” foi uma beliscão nas nádegas da mundana, o que a
deixou irritada, reagindo de maneira inusitada, jogando no mesmo a cerveja
que estava no copo que a mesma bebia. Aqui aparece outra cena a ser
discutida sobre o comportamento feminino e o contraponto estabelecido pelas
mundanas, pois, Josefa reage a agressão, contestando a posição de
submissão e passividade que configuravam as representações do feminino. O
ato de “Zefinha” é uma nítida contestação à imposição masculina e uma
demonstração de controle sobre da mesma sobre o corpo e seus territórios..
Alijado em sua masculinidade, Dorivaldo parte para cima de “Zefinha”
objetivando agredi-la fisicamente, contudo, neste embate é Dorivaldo
que
acaba sendo ferido, apresentando um corte no rosto. A descrição da cena da
briga é muito confusa no processo, mas o fato de Dorivaldo estar alcoolizado
deu a Josefa uma vantagem em relação ao seu oponente. Como Dorivaldo
estava acompanhado de um policial, Josefa é recolhida em flagrante para a
cadeia pública, enquanto Dorivaldo seguiu para o Hospital Dom Pedro de
Alcântara. Aqui surgem outras problematizações sobre o cotidiano na zona de
meretrício, que pela manhã é perseguida pela polícia e a noite, servem de
diversão à mesma89.
Durante o inquérito aparecem outros elementos importantes na
compreensão do cotidiano popular marginal, pois, Dorivaldo relata que a
agressão de Josefa contra ele foi motivado por ciúmes, porque no momento em
que Josefa lhe joga a cerveja ele estava com outra mulher. É bom frisarmos
que Dorivaldo representava um “bom partido” dentro da zona, pois, era um
negociante de gado, atividade de prestigio social, numa sociedade onde a base
econômica era o comércio de bovinos. Indivíduos como Dorivaldo podiam
representar na zona de meretrício, uma noite bem paga, talvez, este seja um
dos motivadores de o mesmo agir com tanta libertinagem com as meretrizes.
89
SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador
(1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades:
estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, p. 90.
49
Josefa Pereira é absolvida da denúncia de lesão corporal, incursa nos
art. 129 do Código Penal de 1940. É interessante destacar neste processo a
sensibilidade do Juiz Oscar Mesquita, que descreve Josefa Pereira com a
verdadeira vítima do Processo. Segundo o magistrado:
Da história desse vil episodio cru e realismo, refeito de “purrutes” e
cervejadas, só pode haver uma conclusão: Zefinha aqui em legitima
defesa não provocou, foi provocada. Não agrediu, foi agredida. O
ferimento com a pulseira simples conseqüência da agressão, merece,
90
pois absolvição. Absolva-a.
Voltando dois anos nosso olhar para a mesma Rua Sales Barbosa,
encontramos a nossa protagonista envolvida em outra cena de violência. O fato
ocorreu no dia 29 de setembro de 1940, aproximadamente as 21:00h na
própria residência de Josefa Pereira, que era uma casa de cômodos que dividia
com duas mundanas. Justamente em função das condições de moradia das
mundanas é que se desencadeia esse conflito. Chalhoub na análise do
cotidiano da classe trabalhadora no Rio de Janeiro observou que os problemas
das moradias favoreciam entre os populares redes de solidariedade e ajuda
mútua, que implicava em dividir cômodos, morar com parentes, entre outras
estratégias, que necessariamente era marcada pela presença da violência.
Segundo o autor:
os eventuais conflitos entre parentes, compadres e amigos possuíam
uma significativa densidade política, sendo expressão das tensões
provenientes de lutas por poder e influencia no interior dos
microgrupos socioculturais, tensões e lutas, estas inerentes à
91
dinâmica de funcionamento de qualquer grupo humano .
Dessa forma, Josefa dividia a casa com outras mundanas de nome
Joanita e Tavinha, na Rua Sales Barbosa, nº 55. O conflito que encerrou com o
espaçamento de “Zefinha” se deu entre a referida mundana e Manoel das
Candeias Sena, com 23 anos de idade, chauffer, solteiro, residente na capital
do Estado. O referido chauffer mantinha sobre sua proteção financeira a
90
CEDOC/UEFS - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 185.
91
50
mundana Joanita que coabitava com Josefa na mesma casa. No dia evento,
Manoel e um amigo de nome Carlos estavam na casa de Josefa no quarto com
suas referidas amantes e segundo a Josefa, “proferiam uma série palavras
decunho obsceno, que a constrangeu”92, pois, como proprietária da casa não
aceitava aquela situação,
então decidiu bater na porta do quarto onde
encontravam-se os amantes exigindo dos mesmos que “parassem com aquela
gritaria, pois, não toleraria aquele comportamento mesmo sendo ela uma
meretriz”93. Observamos que Josefa de fato era uma mulher que “não leva
desaforo”. Nos dois casos em que esteve envolvida, a mesma interagiu com
empoderamento, buscando evidenciar-se. As atitudes de Josefa trazem a balia
uma ampla discussão acerca das desconstruções binárias do gênero,
compreendendo este, não como um dado a partir do sexo, mas uma identidade
sociocultural.94
O incidente de Josefa bater a porta do quarto em que se encontrava
Manoel das Candeias, levou-os a uma intensa discussão na qual não
pouparam palavras agressivas e insultos que alardearam a Rua Sales Barbosa,
já acostumada a tais barulhos. No processo de afirmação de território e poder,
Manoel avança para Josefa Pereira, agredindo-a fisicamente, dando-lhe
diversos socos pelo rosto, tendo a ofendida fugido, sendo perseguida pelo
mesmo pela Rua que residia, refugiando-se na casa de uma vizinha, ao tempo
que o chauffer era controlado por populares que estavam nos bares.
No inquérito policial o depoimento de Manoel das Candeias é elucidativo na
compreensão das relações sexo-afetivas que mobilizavam a economia sexual
da Rua do Meio. Segundo o acusado, o fato de o mesmo pagar parte do
aluguel do quarto que caberia a Joanita, dava-o o direito de desfrutar daquele
espaço, estabelecendo sues próprios códigos, assim afirmou:
92
CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940.
CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940.
94
Ver: MATOS, Maria Izilda de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª
edição, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2001; SCOTT, Joan.. “Prefácio A Gender
And Politcs Of History”. In: Cadernos Pagu: desarcordos e diferenças. Campinas (3) 1994.
93
51
Que tem direito por pagar parte do aluguel, com um companheiro de
nome Carlos, ele respondente com a mulher de nome Joanita que
vivia a custa dele, um outro companheiro de nome Roque, que
95
também estava ahi com uma outra mulher apelidada de Tavinha.
Aqui aparece uma nova configuração do processo de dês-re-territorialização.
Enquanto para Manoel, aquela casa era um espaço custeado por ele para sua
licenciosidade prazerosa do sexo, para Josefa, aquela casa era uma referência
de lar. A relação da zona de meretrício com os indivíduos que dão
representatividade e configuração ao seu espaço é bastante complexa. A zona
de meretrício é um espaço de territorialidades múltiplas que se constitui a partir
das
experiências
extravagâncias
e
dos
licenciosidades,
indivíduos,
em
meio
construindo
às
códigos
possibilidades
e
condutas
de
na
cotidianidade que também estabelecem as proibidades.
Segundo a concepção de Josefa Pereira, o fato de Manoel e outros
homens manterem suas amantes em sua casa através de alugueis de
cômodos, não dava aos mesmos, o direito gozar de todas as liberdades e
privacidades, pois este era seu lar.
A atitude de Manoel pode ser compreendida como um exercício de
masculinidade, estabelecendo “quem manda”, “quem tem a força”, “quem tem o
dinheiro”, valores estes, propagados de maneira normativa, o que dava ao
homem o direito de sobrepor-se socialmente.
A agressão neste caso, não
implica apenas na violência concreta, mas simbolicamente, uma vez que,
Manoel além de impor-se a partir da sua força física, busca impor-se
moralmente, tendo como atributos o próprio exercício da masculinidade,
buscando com isso, estabelecer o seu domínio sobre aquela situação. Como
discute Chalhoub o homem recorre à violência quando se percebe alijado em
sua masculinidade e, dessa forma, busca na forma física reafirmá-la e impôla.96
95
CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940.
Ver: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no
Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001.
96
52
Joana ou Joanita, inquilina da casa de Josefa Pereira, no inquérito,
posiciona-se contra a sua companheira de casa e de profissão. Esta atitude é
facilmente compreensível, uma vez que Joanita, mantinha uma relação sexoeconômica com o acusado, que implicava na sua manutenção e provimento.
Joanita afirma que Josefa era uma mulher “barulhenta e arruaceira” 97, dado
contestado por outras testemunhas arroladas no processo, que afirmavam ser
Josefa uma mulher de bom proceder, mesmo “sendo uma mulher de vida
livre”98. É importante destacar que esta falta de solidariedade entre as
“mundanas” é motivada por questões não meramente econômicas, pois, se
Joanita apoiasse Josefa, ficaria contra o seu amante, e isso seria uma
inferiorização do seu “macho viril”, numa perspectiva das representação de
gênero.
Da mesma forma no dia 17 de abril de 1941, em mais uma casa de
cômodos da Rua Sales Barbosa, nº 87, Renato de tal, conhecido vulgarmente
como Renato Congo de Ouro, casado, artista, residente na cidade de
Cachoeira, agrediu com uma navalha a mundana Maria Pereira de Souza, com
25 anos de idade. A vitima relata que a motivação do crime foi o ciúmes que
Renato sentia dela, pois, este já havia sido seu amante. Renato não aparece
para prestar depoimento durante todo o processo, então não é possível
contestar a versão de Maria Pereira, que declarou que no dia do referido crime,
estava ela em casa quando chegou Renato Congo de Ouro, iniciando uma forte
discussão com a declarante, segundo a mesma: “depois de muito discutir com
Renato, ele foi a venda que fica próxima a casa e trouxe um pouco de cachaça
em um copo e procurou forçá-la a beber e como ella respondente negou-se a
beber a cachaça, tendo nesta hora Renato jogado nela respondente a
cachaça”99. Pelo fato ocorrido de estar suja com a cachaça, Maria desloca-se
para seu quarto a fim de trocar a roupa, sendo surpreendida por Renato que
faz os ferimentos no ombro com a navalha, rasgando-lhe suas vestes.
97
CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940.
CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940.
99
CEDOC/UEFS – Renato de tal – Doc. 2206, Cx. 106, Est. 04, ano 1941.
98
53
A mundana Maria Pereira é muito escorregadia em seu depoimento,
deixando muitas informações soltas sobre a relação que ela mantinha com
Renato Congo de Ouro. Temos que atentar que as perguntas são direcionadas
pelos manipuladores técnicos do processo, que as fazem seguindo os
interesses dos mesmos em estabelecer verdades e contradições. Foram
arroladas cinco testemunhas, todas do sexo feminino, sendo quatro moradoras
da Rua Sales Barbosa. Neste caso, encontramos a solidariedade entre as
mundanas que interferem no conflito acudindo a companheira de infortúnio,
conduzindo-a para a hospital e delegacia.
Entre as testemunhas, destacamos o depoimento da companheira de casa
Maria Pereira, a mundana Ernestina Silva, com 30 anos de idade, que declarou
“que quando estava ela respondente no interior da casa, ouviu os gritos de
Maria Pereira que gritava pedindo socorro, pois Renato Congo de ouro queria
matá-la, que foi ao quarto onde encontrou com Maria Pereira cortada e as
veste rasgadas e Renato com a navalha aberta”100. Ernestina interferiu
diretamente no conflito, pedindo a Renato que se retirasse da casa. A atitude
de Ernestina, comparada a de Josefa Pereira e outras mulheres da zona,
demonstra como estas enfrentavam os homens, subjugando a força física, em
prol do seu empoderamento.
Na casa de Joana
No imaginário popular, quando um determinado lugar apresenta certa
desordem e desmando a partir de comportamentos extravagantes, é
100
CEDOC/UEFS – Renato de tal – Doc. 2206, Cx. 106, Est. 04, ano 1941
54
vulgarmente denominado de “casa de mãe Joana”101. As zonas meretrícios,
ilustradas com casas entreabertas, pouca iluminação e com mulheres a sua
porta, eram um convite a praticidade do ditado, pois, como já apresentamos,
estes espaços configuravam-se licencioso para a extravagância e outras
atividades libidinosas e permissivas. Essa visão de fora para dentro, parecenos equivocada sobre as casas das meretrizes, pois, com a leitura da
documentação observamos que as mundanas, requeriam o controle sobre suas
casas e as decisões de quem poderia ou não freqüentá-la. O caso de Josefa
Pereira logo acima, demonstrou esse conflito de relações com espaço do
meretrício a partir de códigos internos e externos à zona.
Coincidentemente, nossa próxima protagonista chama-se Joana Estrela,
com 27 anos de idade, solteira, residente a Rua Sales Barbosa, nº 82. O
conflito ocorreu no dia 01 de outubro de 1942, envolvendo Joana Estrela e o
guarda de freios da Estrada de Ferro Leste Brasileiro, Alcebiades Francisco
Pinto, 33 anos, casado. Neste conflito, Joana foi violentamente espancada na
porta de sua casa102. A confusão foi desencadeada justamente pelo fato de
Joana “tentar por ordem em sua casa” numa alusão ao ditado que
apresentamos.
O processo que envolve Joana e Alcebiades está incompleto, o que nos
impediu de saber os resultados deste conflito, contendo apenas os
depoimentos e o exame de corpo de delito. No entanto, a precariedade no
processo de conservação do documento não inviabiliza sua potencialidade
histórica no sentido de possibilitar as leituras sobre o cotidiano das mulheres na
zona de meretrício, em Feira de Santana, em meados do século passado. Os
depoimentos como falas “diretas” dos envolvidos no permitiu observar as
versões do crime, seus motivadores e a dinâmica social das decaídas e seus
amantes.
101
Esta expressão vem da Itália. Joana, rainha de Nápoles e condessa de Provença (13261382), liberou os bordéis em Avignon, onde estava refugiada, e mandou escrever nos
estatutos: “Que tenha uma porta por onde todos entrarão”. O lugar ficou conhecido como Paço
de Mãe Joana, em Portugal. Ao vir para o Brasil a expressão virou “Casa da Mãe Joana”.
Fonte: CASCUDO, Luis Câmara. Locuções tradicionais no Brasil - 2ª edição, MEC, Rio,
1977.
102
CEDOC/UEFS – Joana Estrela. Doc. 1583; Cx 83; E 03; ano 1942.
55
Joana prestou depoimento no dia 02 de outubro de 1942, na qual a
depoente dá a sua versão do fato, afirmando que Alcebiades a agrediu porque
não aceitou que a depoente o abandonasse, pois, segundo Joana, esta o pediu
“que não mais a procurasse e parasse de freqüentar a sua casa” 103,
desencadeando uma discussão verbal entre os dois. A depoente afirma que
mesmo com o seu pedido, Alcebiades continuou a freqüentar a casa da
ofendida, chegando até mesmo a acomodar-se, ainda que, contra a vontade da
mesma que insistia em não mais recebê-lo. No dia da ocorrência do crime,
Alcebiades chega até a casa de Joana onde trava uma discussão com palavras
ofensivas, afirmando Alcebiades que “ia tomar uma cachaça e voltava para ali
ficar”104. Antes de retornar para casa, Joana encontra com Alcebiades na Rua,
que já alcoolizado pede que ela retorne para casa, o que não é atendido,
resultando em uma nova discussão culminando no espancamento.
A versão acima foi apresentada por Joana Estrela na delegacia de
policia. É importante atentarmos que na construção dos processos criminais,
as partes constroem suas defesas e acusações a partir do próprio universo
social e psicológico, buscando com isso mobilizar as opiniões daqueles que de
direito possam interferir no desenrolar de cada processo, nas versões
construídas, nos fatos alterados, nas contradições. Tudo isso se dá por meio
dos atores e atrizes sociais envolvidos, que buscam no espaço da instância
jurídica produzir um discurso que visa sempre a auto defesa105.
Atentemos agora para a versão produzida pelo Guarda de Freios
Alcebiades Pinto. Segundo o denunciado, ele “freqüentou” por muito tempo a
casa de Joana, porém, tinha algum tempo que deixou de “fazer as visitas”. O
sentido cotidiano de “frequentar a casa”, transmite-nos a certeza que havia
uma relação entre os envolvidos, e esta relação permeava fatores de
sobrevivência econômica e social. Segue o depoente a afirmar que, por causa
103
CEDOC/UEFS - Joana Estrela. Doc 1583; Cx 83; E 03; ano 1942.
CEDOC/UEFS -Joana Estrela. Doc 1583; Cx 83; E 03; ano 1942.
105
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001; CORRÊA,
Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1983.
104
56
desta ausência, Joana passou a procurá-lo constantemente, indo por diversas
vezes ao seu local de trabalho, reivindicando a presença do mesmo em sua
casa. Devido às idas constante de Joana ao local de trabalho de Alcebiades na
Estrada de Ferro, o mesmo já havia recebido algumas reclamações do
supervisor, afinal, Joana tratava-se de uma “mulher de vida livre”106. Devido à
tamanha insistência de Joana, o mesmo decidiu ir “visitá-la”. No entanto, ao
chegar à casa de Joana, ao vê-lo em sua porta, a referida mundana impediu a
sua entrada, mandando-o embora. O comportamento de Joana deixou
Alcebiades extremante irritado, afinal, ele como homem, estava sendo
sujeitado por uma “meretriz”, dessa forma, a atitude de Joana que impedindo
que o mesmo adentrasse em sua casa, demonstra um processo de
empoderamento de controle de Joana sobre sua casa, seu corpo e sua vida.
Mesmo irritado, Alcebiades afirma que foi embora da casa de Joana, porém,
momentos depois, o acusado a encontra andando na Rua Sales Barbosa, este
que já estava sob o efeito da embriaguez, volta a discutir com Joana,
agredindo-a fisicamente.
Entre as versões de Joana de Alcebiades, existem muitos pontos
convergentes, o primeiro é a confirmação de que havia uma relação sexoeconômica entre ambos, mesmo sendo Alcebiades casado, com residência na
cidade de São Felix. O segundo, é o fato de que houve um conflito motivado
pelo controle de territórios, pois, tanto Joana quanto Alcebiades, relatam a
questão da permanência ou impedimento do acusado freqüentar a casa da
mesma. O terceiro está associado ao fato da própria materialidade do crime e
sua ocorrência na Rua Sales Barbosa.
As relações de sobrevivência das mulheres pobres eram marcadas por
certa autonomia em relação ao homem. As mundanas da Rua do Meio
apresentam essa face das mulheres populares, que por sua condição de classe
social, permitiam que as mesmas realizassem escolhas em sua vida sexo-
106
CEDOC/UEFS -Joana Estrela. Doc 1583; Cx 83; E 03; ano 1942
57
afetiva.107Assim, era Joana e suas congêneres nesse contexto de interação
sócio-sexual e econômico das zonas de meretrício feirense. A negação de
Joana a presença de Alcebiades em sua casa, pode ter sido motivada por
diversos fatores, um dos motivos prováveis seria o fato de que Joana,
possivelmente, estivesse se relacionando com outro homem e, portanto,
estivesse escondendo de Alcebiades. No entanto, este fato de empoderamento
é significativo para repensar as construções sociais de submissão feminina e
os papéis de gênero.
O desenvolver destes fatos nos releva fatores importantes para a
compreensão da dinâmica afetivo-sexual das camadas populares, inclusive das
“mulheres de vida livre”108. Joana era uma das mundanas que morava no
centro da urbe feirense e Alcebíades era um dos muitos homens casados ou
solteiros que freqüentavam cotidianamente a “zona”, estabelecendo redes de
sociabilidades nesta economia sexual.
Os” chivarís” da Rua do Meio
Como já apresentamos, a Rua Sales Barbosa era o centro da vida
boêmia de Feira de Santana no primeiro meado do século XX, assim, este
espaço de sociabilidade marginal conjugava meretrizes, farristas, jogadores,
gatunos, etc. Num misto de conflito e solidariedade esses sujeitos interagiam
uns com os outros e com o espaço, constituindo territorialidades que
107
ASSIS, Nancy Rita Sento Sé. Questões de vida e de morte na Bahia Republicana:
valores e comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas. Salvador:
UFBA, dissertação de Mestrado, 1997; CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o
cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP,
Editora da Unicamp, 2001; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres:
condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de
Mestrado), Salvador: UFBA, 1994.
108
CEDOC/UEFS – Joana Estrela. Doc 1583, Cx 83, E 03, ano 1942.
58
transcendiam entre os espaços, os corpos e comportamentos desses sujeitos
estabelecendo uma “cartografia do prazer”.
Assim, no dia 01 de setembro de 1947109, o negociante Gilberto de
Oliveira, casado, com 23 anos de idade, dançava e bebia em cabaré na Rua
Sales Barbosa. Mesmo alcoolizado, Gilberto continuava a dançar, empunhando
de uma garrafa de cerveja na mão que “imprudentemente” deixou cair no chão,
produzindo estilhaços que atingem a “mundana” Doralice, cortando-lhe no pé,
fazendo jorrar “muito sangue no salão”110. A principio este fato poderia ter
passado despercebido frente aos constantes conflitos encenados naquela via
urbana. No entanto, este caso chega ao conhecimento das autoridades
policiais sem que a ofendida tenha produzido uma queixa. Na portaria do
inquérito o delegado Durval Tavares Carneiro explicita os fatos:
Chegando ao meu conhecimento que a mundana Doralice de
Oliveira da Silva, quando dançava ontem em um cabaré, no baixo
meretrício desta cidade, foi ferida por um estilhaço de garrafa, jogada
no chão, imprudentemente por Gilberto Ferreira, provocando forte
hemorragia, ao ponto de precisar socorro medico, determino que,
111
seja instaurado inquérito.
Este fato nos leva a alguns questionamentos, pois, o que motivou com
que um fato corriqueiro na zona de meretrício, ocupasse as páginas policiais
produzindo-se um inquérito e posteriormente uma denúncia pública? Ainda que
o crime em questão não tenha sido motivado por questões explicitamente de
conflito de gênero ou sexo-afetivo, o caso abre portas para compreender o
controle policial sobre este território, assim como revela outras facetas do
cotidiano das mulheres da Rua do Meio.
O importante para os manipuladores técnicos desse processo não foi a
agressão, mas sim, o debate sobre a sociabilidade marginal das mundanas e
seus agregados. Dessa forma, os discursos produzidos pelos manipuladores
técnicos estavam em consonância com as propostas da elite local, em
109 CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira. Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947.
110 CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira. Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947.
111
CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947.
59
depreciar o cotidiano desses sujeitos, assim como evidenciar as possibilidades
de perigo desses sujeitos em seu espaço, buscando interferir através de uma
política de controle moral. Isso é denotativo na denúncia do Promotor Público
Fernando Alves Dias:
Não sabemos se tudo esta acabado ou se é sinal e
requintada civilização. O certo é que o circulo da moral que era maior
do que o do direito, hoje em dia é muitas vezes menor. E vamos de
ladeira abaixo.
Gilberto Pereira de Oliveira, branco, casado, dansava[sic] no
dia 01 de setembro de 1947 num bas fond da Rua Sales Barbosa. As
horas tantas, já embriagado, dansa[sic] imprudentemente com uma
garrafa de cerveja, deixando a mesma cair no chão. Os estilhões[sic]
112
atingem a mundana Doralice Oliveira da Silva
Os envolvidos prestam depoimento, sendo uníssono, entre réu e vítima o
caráter acidental da agressão, afirmando até, que o próprio Gilberto deu toda
assistência a vítima, conduzindo-a ao hospital e custeando todos os cuidados
referentes a curativos.113 O processo foi arquivado, porém, todas essas ações
foram denotativas da política moral de combate ao meretrício e sua efetiva
perseguição.
Em outro processo, encontramos a mesma Doralice Oliveira envolvida
em outra cena de polícia, apesar de Doralice ser a motivação para este
processo ter sido lido, ela não é nem agressora nem é a vítima em questão. Ela
aparece como coadjuvante, mas protagonizou com seu amante a cena que
deixou o motorista Martins Alves Pereira, solteiro, 27 anos, residente na Rua
Quintino Bocaiúva ferido na cabeça. Era madrugada de segunda-feira, no dia
04 de agosto de 1946, o cabaré do Zuzuca na Rua Sales Barbosa estava
cheio, como de costume os cabarés aumentarem a freqüência neste dia da
semana, com já evidenciamos.
Nessa interação de farristas e mundanas,
entrou no cabaré, o policial Walter Lacerda, chegando logo em seguida
Doralice, amante do referido policial, que já entrou no cabaré em discussão
com amante. Dessa discussão resultou em Walter partir para agredi-la,
112
113
CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947.
CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947.
60
“levantando um tamborete do bar para arrumar em Doralice, quando pegou em
cheio na cabeça de Martins”114, que agredido volta-se para Walter Lacerda
questionando sua atitude, tendo como resposta um murro, acompanhado da
máxima: ““eu sou Policia”115.
O proprietário do cabaré, Zuzuca, declarou que Walter Lacerda já entrou
no seu estabelecimento dando muitas risadas, e gabando-se do fato de ter
agredido a amante, dizendo “eu agora mesmo dei um tapa na cara de
Doralice”116 e continuou a dizer palavras obscenas dentro do cabaré. Zuzuca
ainda traz mais detalhes da cena, declarando que “no mesmo momento entra
Doralice pela casa a dentro chorando ai Walter foi ao encontro da mesma
querendo bater novamente” afirmando a todo instante “sou polícia, eu faço o
que quero aqui dentro”117.
Os casos em que Doralice esteve envolvida, são interessantes no
processo de leitura da política moral das zonas de meretrício. A mesma polícia
de perseguia a zona, convivia cotidianamente nesses espaços e com os
sujeitos outrora perseguidos. O segundo processo sinaliza-nos para o fato de
Doralice manter um caso com um policial; este pode ter sido um dos veículos
que levaram a abertura do inquérito no incidente da mesma com Gilberto um
ano após o evento no cabaré do Zuzuca. Segundo Eric Ferreira, “é
imprescindível perceber que o policial que reprimia a desordem era o mesmo
que podia subverter a ordem, logo após a retirada da sua farda, ou, até
mesmo, ainda com ela. Portanto, ele era um dos construtores da “cartografia
marginal”118
Essa compreensão de gênero, territórios e identidades é significativo
para a compreensão do cotidiano das mulheres pobres do meretricio. Sujeitos
tipificados como decaídas, horizontais, mundanas, infelizes, mas, em seus
114
CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946.
CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946.
116
CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946.
117
CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946.
118
SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador
(1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades:
estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, p. 90.
115
61
movimentos territoriais, sejam físicos ou simbólicos mostram-se empoderadas.
Percebendo as interações e continuidades históricas, observamos que até
hoje, no centro da cidade, sem a presença das famílias abastadas, mas
dominado pelo comércio colorido, disforme e barulhento, encontramos as
prostitutas, habitando os mesmo espaços, porém com novas territorializações
da Rua do Meio, Rua de Cima, nos becos e esquinas, ocupando ainda as
páginas dos jornais locais e as delegacias da cidade, evidenciando as práticas
de violência, vividas e praticadas pelas mesmas.
62
CAPITULO II
BRIGANDO, AMANDO E
VIVENDO...
63
Adentrar na intimidade das nossas protagonistas é ao mesmo tempo
conhecer e ultrapassar os limites da porta da rua e penetrar no cotidiano
doméstico, revelando assim os comportamentos de homens e mulheres das
camadas populares, em Feira de Santana, em meados do século XX. Pensar
as relações do cotidiano de homens e mulheres pobres parece-nos uma forma
de trazer à baila a maneira como viviam e interagiam esses sujeitos sociais, a
partir de seus códigos, condutas e valores que davam significados aos seus
modos de viver119. Assim, esse tema pode parecer simples no primeiro olhar,
porém, ganha uma complexidade com a aproximação do olhar sobre as
relações de conjugalidade, vizinhança, trabalho, estabelecendo, desta forma,
espaços de resistência e sobrevivência onde se observa a dinâmica das lutas
sociais particularizadas.120 Olhemos assim para além do buraco da fechadura.
Faz-se necessário compreender o cotidiano popular e os sentidos dos
comportamentos das mulheres e homens pobres que buscaram nas instâncias
policiais e jurídicas um veículo de resolução dos seus conflitos. Este cotidiano
nos revela histórias corporificadas, numa completa práxis, no qual se
estabelece que o “privado é público”. Assim, somente através de uma
reconstituição investigativa de um completo e complexo quebra-cabeça, onde
cada peça em questão sugere que outra se encaixe, afim de formar num amplo
mosaico de cores e formas, uma figura legível e compreensível da sociedade
feirense e seus conflitos de sexo-afetivo.
No declinar das histórias com suas incontáveis peças do quebra-cabeça
social, revelam-se as numerosas cenas onde emergem as experiências e
sobrevivências dos sujeitos sociais revelando o cotidiano e as formas de amor
e violência em Feira de Santana nas décadas de 1930 a 1948.
No presente capítulo selecionamos trinta e cinco processos, divididos
entre processos criminais de lesões corporais, homicídios e infanticídios, sendo
119
Ver: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. LTC editora, Rio de Janeiro, 1989; e
CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
120
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
64
a distribuição quantitativa são de vinte e sete processos de Lesões Corporais e
sete processos de Homicídios e hum processo de infanticídio, nos quais
pudemos coletar dados e estabelecer relações acerca das construções sociais
sobre as identidades sexuais e de gênero, bem como, compreender as formas
de conjugalidades e os conflitos domésticos motivados pela dinâmica sexoafetiva, assim como, as redes de sociabilidades entre vizinhos, focalizando nas
relações de motivadas pela condição de gênero, procurando estabelecer uma
análise sobre os elementos constituintes dos conflitos e tensões.
Mariza Correia no estudo sobre as representações sociais e sexuais
através dos aparelhos judiciais demonstra que o julgamento da justiça é um
esforço de imprimir na sociedade um modelo lógico e legitimo de
comportamento. Assim, julgam-se comportamentos a partir de um sistema de
normas e valores pensados universalmente. Desta maneira, os julgamentos
não focam nos indivíduos, mas de que maneira aquele ato tem representação
social.121 Segundo Boris Fausto, a peça artesanal dos processos criminais,
contém uma rede de signos que se impõem à primeira vista, antes mesmo de
uma leitura mais cuidadosa do discurso, assim, o documento é carregado de
significações juntando as redes de relações dos envolvidos, como cônjuges,
patrões, vzinhos, parentes, estabelecendo assim, as conformidades dos
envolvidos com sua compreensão dos ditames socioculturais122.
Dessa maneira, constatamos que os valores evocados nos pelos
agentes jurídicos, ou manipuladores técnicos, na apropriação do termo utilizado
por Correa, através dos advogados, promotores e juízes, visam sempre a
universalidade, buscando adequar o sumário de culpa aos padrões exigidos
socialmente. No caso em questão, ligados à condição de gênero, sugerem
sempre valores pautados em modelos dominantes de masculino e feminino,
que não correspondem ao modo de vida dos populares, tais como recato,
delicadeza, submissão, sempre vinculados como constituintes da feminilidade.
121
CORRÊA, Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1983.
122
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001.
65
No que tange à questão das representações jurídicas, uma conduta
amplamente utilizada nos crimes passionais será a defesa da honra, uma vez
que, a honra do homem depende da conduta da mulher, estando nesta
máxima, uma chave da dominação e expropriação sexista da mulher. Assim,
justifica-se que o homem, ferido em sua honra, prive-se dos sentidos racionais
e se sinta motivado ao crime, ainda mais se acompanhado estiver de uma boa
dose de cachaça, ou seja, o alcoolismo nos atos de crimes passionais é mais
um elemento tensionador no mundo dos delitos.
Nos processos-criminais observamos uma face da sociedade que julga e
outra que é julgada, a partir de modelos de conformidades legais. 123 Nos trinta
e cinco processos aqui evidenciados de lesões corporais e homicídios,
podemos estabelecer um perfil social sobre os indivíduos envolvidos nos
delitos, observando as relações entre agressores e vitimas, os instrumentos
utilizados no delito, as ocupações profissões, entre outros dados que nos
permitem fazer afirmações sobre o período estudado.
Com o objetivo de estabelecer uma leitura a partir do conceito de
gênero, buscamos analisar os perfis e padrões de comportamentos dos
envolvidos nos crimes, identificados a partir dos conflitos sexo afetivos. Dessa
forma, observamos que a relação entre agressores(as) e vítimas, segundo a
identificação sexual, encontramos uma predominância masculina entre os
agressores, (68,57%), onde é possível discutir essa configuração da violência
masculina, apreendida socialmente como um dado “natural” e por sua vez,
constituinte da identidade masculina, sendo portanto, compreensível a partir
das relações simbólicas de dominação, como chamou a atenção Bourdieu 124.
Quando observamos os índices das vítimas, esses dados ainda são mais
reveladores, pois, a mulheres representam 80%. Cabe ressaltar que são
sinalizadores das condições de violência de gênero, tomadas como referências
os conflitos entre mulheres X homens e mulheres x mulheres em Feira de
123
Ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 36. ed. Petrópolis – RJ,
Vozes, 2009.
124
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
66
Santana, em meados do século XX. Vale destacar que há um número muito
maior de processos arquivados no CEDOC/UEFS que permitem essa análise,
porém, frisamos, que os aqui evidenciados foram selecionados pelas histórias
e peculiaridades que nos dão suporte de estudar as relações cotidianas e as
relações sexo-afetivas entre os populares.
TABELA 1 - QUANTOS AO SEXO DOS AGRESSORES(AS)
Sexo
Quantidade
Porcentagem
Masculino
24
68,57%
Feminino
11
31,42%
Total
35
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
Sexo
Masculino
Feminino
Total
TABELA 2 - QUANTO AO SEXO DAS VÍTIMAS
Quantidade
Porcentagem
07
20%
28
80%
35
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
No campo das relações entre agressores e vitimas, constatamos que as
agressões são dirigidas a pessoas que integram o circulo sócio-afetivo dos
agressores (amasios(as), vizinhos(as), parentes, etc). Bem como, o local de
ocorrência dos crimes que estão associados, ao campo de interações dos
indivíduos em destaques, sendo o espaço doméstico, o locus privilegiado
dessas ocorrências, bem em função da relação de proximidade e intimidade
entre os envolvidos.
Assim, observamos que a prática da violência surge
como uma resposta legítima a uma dada ofensa, que pode ser real ou
simbólica, revelando códigos particularizados de cada grupo social.
67
TABELA 3 - RELAÇÃO AGRESSORES/VITIMAS
Relação
Amasiamento
Casamento
Vizinhança
Trabalho
Parentesco
Ignorado
Total
Quantidade
13
06
07
04
03
02
35
Porcentagem
37,14%
17,14%
20%
11,42%
8,57%
5,71%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
TABELA 4 - LOCAL DE OCORRÊNCIA DOS CRIMES
Local
Ambiente doméstico
Espaço público
Cabarés
Total
Quantidade
21
12
02
35
Porcentagem
60%
34,28%
5,71%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
Os instrumentos utilizados na prática do delito revelam uma direta ligação com
as ocupações cotidianas dos envolvidos, ou seja, as armas são improvisadas a
partir do acesso dos mesmos ao seu universo econômico e social. Assim,
encontramos esses indivíduos manipulando facas, foices, facões, etc. Na
análise das ocupações entre agressores/vítimas, observamos que esses
instrumentos são corriqueiros nas atividades cotidianas de trabalho. Vejamos a
tabela:
TABELA 5 - INTRUMENTOS EMPREGADOS NOS CRIMES
Instrumento
Faca
Foice
Pedra
Pau/cacete
Armas de fogo
Espancamento
Navalha
Facão
Tesoura
Outros
Total
Quantidade
07
02
01
05
02
05
02
05
01
05
35
Porcentagem
20%
5,71%
2,85%
14,28%
5,71%
14,28%
5,71%
14, 28%
2, 85%
14,28%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
68
TABELA 6 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DOS
Profissão/ocupação
Quantidade
Lavrador/lavradora
10
Operário/operária
05
Chauffeur/motorista
01
Pedreiro
01
Comerciante/negociante 01
Alfaiate
01
Guarda Noturno
02
Cozinheira
01
Domestica
04
Artista
01
Diarista
01
Mundana
01
Carpinteiro
01
Ignorada
05
Total
35
AGRESSORES(AS)
Porcentagem
28,57%
14,28%
2,85%
2,85%
2,85%
2,85%
5,71%
2,85%
11,42%
2,85%
2,85%
2,85%
2,85%
14,28%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
TABELA 7 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DAS VÍTIMAS
Profissão/ocupação
Quantidade
Porcentagem
Doméstica
16
45,71%
Lavrador/lavradora
07
20%
Operário/operária
01
2,85%
Oleiro
02
5,71%
Magarefe
01
2,85%
Negociante
01
2,85%
Mundana
04
11,42%
Ignorada
03
8,57%
Total
35
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948)
Em defesa da honra
Um recurso jurídico largamente utilizado nos Processos de Lesões
Corporais e Homicídios Passionais foi a chamada legitima Defesa da Honra,
que norteou basicamente os conflito sexo-afetivo entre os populares. A honra
69
que lançava-se nos autos e arvorada como imaculável, estava diretamente
ligada a construções e concepções simbólicas dominantes na sociedade,
produzidos pelas esferas dominantes, interferindo nos comportamentos e
identidades masculinas e femininas, configurando de maneira diferenciada as
formas de homens e mulheres se apropriavam desse conceito125. Não raro,
foram os discursos utilizados pelos manipuladores técnicos, especialmente, os
advogados de defesa, os promotores e delegados que lançaram mão do
recurso da honra ultrajada para enquadrar os envolvidos no aparato da lei
prevista pelo Art. 27 §4126 do Código Penal de 1890. Destaca-se que a
justificativa da defesa da honra, também, era utilizada por mulheres quando
envolvidas em crimes que de caráter sexual. Dessa maneira muitos homens
levam ao sumário, histórias nas quais, os mesmos são constantemente
provocados por suas amasias, ultrajando assim a sua imaculada honra
masculina.
Dessa forma, Alexandre Dias dos Santos, com 22 anos de idade,
roceiro, solteiro, analfabeto, agrediu com um facão a sua ex-amasia, Maria
Alves de Jesus, 28 anos de idade, solteira, doméstica, residente no Lugar
denominado São João. No interrogatório, na delegacia, Alexandre conta que foi
amasiado com Maria Alves por seis anos, ou seja, quando iniciaram a relação o
mesmo ainda era menor de idade. Que em dado momento Maria Alves tendo
se aborrecido do acusado, sem o mesmo explicitar o fato deste aborrecido,
deixou sua companhia e voltou para casa do pai, o Sr. André Alves de Jesus.
Porém , o fim da relação não foi o fim dos conflitos, Alexandre acusa que Maria
Alves passou constantemente a fazer-lhe “pirraças”, deixando-lhe irritado
culminado na agressão lhe fez com um facão.
As testemunhas arroladas no processo trazem novos dados que se não
explicam, dão sinalizações para entender os motivos dos conflitos que levaram
125
Para Bourdieu o efeito da dominação simbólica se exerce não na lógica pura das
consciências cognocentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e ação que
são constitutivos dos habitus e que fundamentam aquém das decisões da consciência e dos
controles da vontade.( BOURDIEU, 2007. P. 49-50).
126
Não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de
inteligência no acto de commetter o crime. (GAMA, 1923, P.37)
70
o rompimento da relação como também, a justificativa das ditas “piraças” pela
qual Alexandre diz ser vitima. Assim, a testemunha Endira Ferreira da Silva,
com 45 anos de idade, viúva, residente no lugar denominado São João,
lavradora, analfabeta, afirmou que o denunciado “agrediu Maria de Jesus sua
companheira por ter esta lhe traído com João Xavier, vendente em São João”.
Outra testemunha, o velho Lúcio Macena, com 65 anos de idade, casado,
lavrador, relata que “sabe por ouvir dizer que o motivo do crime foi ter Maria
traído ao denunciado que o facto deu-se na estrada que fica próximo a São
João, ainda sabe pelo dono da venda que João Xavier pagava compras para
Maria”.127
Encontrado o referido João Xavier – que na verdade chama-se João
Patrício de Oliveira, 41 anos de idade, casado, lavrador, em depoimento, João
confirma que de fato mantém a referida ofendida, provendo a casa da mesma,
fazendo-lhe compras de mantimentos na “venda de Caribé”. No dia do crime
João encontrou com Alexandre na dita venda, no mesmo momento em que
chegou Maria Alves, recebendo do depoente o seu provimento, que custou a
João à importância de dois mil e trezentos reis.128 Afirmando ainda que “passou
a ter intimidades, ou melhor, relações sexuais com Maria, porém quando esta
já não estava com o denunciado”
129
. Observamos, nesta cena, uma
contestação do poder masculino de Alexandre, que perde sua amasia para um
sujeito mais velho e que pode mantê-la, sendo dessa forma, vilipendiado em
sua honra masculina. Como afirma Chalhoub, em alguns casos a violência do
homem surge mais como uma demonstração de fraqueza e impotência do que
como uma demonstração de força e poder130.
A ofendida suprime as informações sobre o novo amasiamento em seu
depoimento, descrevendo apenas o fato que a deixou ferida, relatando que o
fato se deu “quando ia desta cidade para sua a residência no logar São João,
cerca de vinte horas mais ou menos, ao aproximar-se da casa de seu pai,
127
CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939.
CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939.
129
CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939.
130
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001. P. 216.
128
71
encontrou no caminho parado Alexandre e sacando de um facão fez-lhe os
ferimentos”.131O próprio acusado no interrogatório falou em aborrecimentos e
pirraças, não informando detalhadamente o fato. Isso nos permite inferir sobre
a construção da honra masculina entre os populares, pois, o fato de ser trocado
por um homem mais velho que tinha condições de suprir sua amasia, tornando
este fato público e notório na comunidade em que residiam, expôs e fez
transparecer uma fragilização do potencial masculino do ofendido. A norma
social estabelecia que coubesse aos homens o provimento e dominação do lar.
Esse será o mecanismo utilizado pelo famoso advogado Vicente dos
Reis, que demonstrará que o crime de Alexandre foi motivado pela desonra em
que o mesmo encontrava-se e pelas provocações pelas quais foi sujeitado.
Apesar de não conseguir a absolvição do denunciado Alexandre, foi
pronunciado e condenado nas penas míninas do Art. 303132, que prevê
reclusão de três meses em prisão celular.
Alexandre Dias dos Santos, nosso constituído, é victima D‟uma
systematica perseguição claramente demonstrada nos respectivos
autos. Desde o flagrante sui generis, até a occulta vingança
preparada pela testemunha João Patrício de Oliveira, que sendo
chefe de família, com idade que podia ser pai do acusado, sabendo
que Maria Alves de Jesus vivia maritalmente com este acusado, pai
de dois filhos do mesmo. O dito João Patrício de Oliveira em seu
depoimento afirma que „elle depoente entrou na venda de caribe,
onde achava o denunciado e depois chegou Maria Alves, que no dia
em que se deu o conflicto elle depoente fez compras para Maria
Alves na importância de dois mil e trezentos reis, que de facto elle
depoente passou a ter intimidades, ou melhor relações sexuais com
Maria Alves, que conhece o denunciado desde menino e sempre teve
bom procedimento”. Bastava somente isso para demonstrado ficar
que o denunciado Alexandre Dias dos Santos, levado pela
133
deshonra, se encontra envolvido nas malhas deste processo.
[grifo nosso]
Diversos foram os casos conflitos sexo-afetivos entre amasiados e examasiados, motivados por intrigas de vizinhos, falatórios na rua, abandono da
casa. Todos esses fatos integravam o cotidiano popular feirense, mobilizando
131
CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939.
Ofender fisicamente alguém, produzindo-lhe dor ou alguma lesão no corpo, embora sem
derramamento de sangue. (GAMA, 1923)
133
CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939.
132
72
as instâncias jurídicas a visibilizarem as histórias e conflitos das pessoas
comuns e despossuídas da sociedade. Dentre os fatores considerados como
motivadores do crime, o fato dos homens não aceitarem o fim da relação,
estavam entre os mais recorrentes índices de agressão.
Fato que ocorreu no dia 23 de junho 1940, na Praça do Mercado, mais
ou menos ao meio dia, em que Elias Ferreira da Silva, 25 anos de idade,
diarista, analfabeto, esfaqueou sua ex-amasia Maria dos Santos Borges de
Assis, 19 anos de idade, doméstica, analfabeta. Elias tenta justificar o crime
acusando ter sido vilipendiado pela ofendida, inclusive tendo esta o chamado
de fêmea em plena Praça do Mercado.134
Na leitura do processo novos indícios aparecem que configuram o crime
como motivado pelo ciúme e pelo fato do companheiro não aceitar o fim da
relação amorosa. Maria dos Santos, a ofendida, assim como quatro
testemunhas das cinco arroladas no sumário, relata que a motivação foi
vingança pelo abandono e pela negação da ofendida em reatar a relação. A
testemunha Maria dos Anjos Santos, 40 anos de idade, solteira, roceira,
analfabeta, relata que
encontrou no lugar denominado Tranca, parado em uma esquina o
acusado presente Elias Ferreira da Silva, que perguntando a Elias o
que estava fazendo ali, este lhe respondeu que estava esperando a
passagem de Maria dos Santos Borges de Assis, sua ex-amasia,
para vingar-se; que ela respondente fez ver a Elias, o inconveniente
que havia e a responsabilidade deu, aconselhando-o a se deixar
daquilo e se ir embora para casa, que perguntou a Elias o motivo de
querer vingar-se de Maria e este lhe disse que Maria tinha lhe sido
135
falsa e lhe e desrespeitado.
Em depoimento, a ofendida relata que o que a motivou a deixar a relação foram
às constantes agressões e os espancamentos empreendidos por Elias contra a
sua pessoa.
Foi por muito tempo amasia de Elias e que foi abandonado por ela
respondente devido às constantes surras que lhe dava o mesmo, lhe
fazia ameaças de ser esfaqueada como foi Vitória, noiva de
Agostinho, que neste encontro Elias pediu a ela uma cachaça, sendo
logo atendido o seu pedido, que Elias logo tomou a cachaça sahiu em
134
135
CEDOC – Elias Ferreira da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940.
CEDOC – Elias Ferreira da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940.
73
sua frente e escondendo-se na esquina, esperou a passagem dela
Maria, que quando ela respondente isto fazia, Elias deu-lhe uma
136
grande facada, deixando ainda a faca presa na barriga.
Sem ter como amparar suas justificativas e sendo condenado a quatro
anos de prisão celular incurso nas penas da lei do Art. 304 137, o réu foi preso,
adquirindo livramento condicional depois de 16 meses de reclusão.
De igual maneira João Anastácio dos Santos, também conhecido como
José Felix de Araujo, 28 anos de idade, operário, preto, analfabeto, esfaqueou
sua ex-amasia Valdete Silva Araujo, 20 anos de idade, analfabeta, parda, no já
conhecido Mercado Municipal.138 Pelos dados, percebemos que o Mercado era
um lugar de sociabilidade dos indivíduos das camadas populares feirenses,
sendo um ponto de convergência entre a zona urbana e a zona rural, além de
ser um espaço onde haviam possibilidades de amplas redes de socialização.
José Anastácio fez uma descrição detalhadíssima da sua convivência
com a Valdete, chegando até a data do crime no dia 28 de junho de 1947. O
relato do acusado impressiona pela recriação do cotidiano do casal que vivia
em uma casa alugada de Afonso Pinheiro de Melo, na região das Baraunas de
Cima, era uma casa de quintal, na qual o denunciado criava alguns pombos.
Viveram amasiados por dois anos e segundo José Anastácio, “tinha a melhor
convivência possível do casal e assim mantiveram-se os amantes por mais de
dois anos, como o declarante gostasse imensamente de Valdete não poupava
sacrifícios para vê-la satisfeita”.
No dia de Corpus Cristi, José Anastácio, ao voltar para casa, não
encontrou sua amasia, achando a chave do lado de fora da porta, procurando
notícia entre os vizinhos, descobriu que a mesma havia em companhia de
algumas vizinhas ao qual ele não gostava que a mesma mantivesse relações
136
CEDOC – Elias Ferreira da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940.
Se da lesão corporal resultar mutilação ou amputação, deformidade, ou privação
permanente do uso de um órgão ou membro, ou qualquer enfermidade e que prive para
sempre o ofendido de poder exercer o seu trabalho. (GAMA, 1923, p.374 e 375)
138
CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01,
ano 1947.
137
74
estreitadas, deixando a casa e seguindo para residir com outro homem,
conhecido como Carlito magarefe. Valdete Silva havia deixado a casa sem
informar ao seu amasio, “sem dar a menor satisfação ao declarante e sem com
ele ter a menor desinteligência”.
Devido ao abandono de Valdete, José
Anastácio decide retirar-se das Baraunas, entregando a casa e vendendo os
pombos do seu criatório, indo residir na Rua da Bolacha.
José Anastácio
afirma que “sempre gostou muito de Valdete, mas diante do seu abandono,
dela se esquecera, não alimentando idéias de ciúmes ou vingança contra sua
ex-amante”. O denunciado ainda expõe que sua ex-amásia, após abandoná-lo,
passou a insultá-lo “sempre que passava ao seu lado, chamando-o de “BOIÃO,
o que fez com que amigos do declarante o aconselhasse a deixar a cidade,
evitando a constante provocação da aludida amante”139
Antes de cumprir com aconselhamento dos amigos, José Anastacio e Valdete
se encontraram no Mercado, onde ocorre uma contenda entre os dois,
resultando dessa forma, no esfaqueamento da ex-amásia. Sobre o ato do
crime, o acusado traz uma versão acidental, narrando mais uma vez de
maneira minuciosa o ocorrido:
estando o declarante no mercado descascando uma laranja com uma
faca tipo jacarandá, tomada de empréstimo do vendedor de jeijão,
quando chega Valdete acompanhada de Raimunda e Maria Elisa,
tendo uma delas apontado o declarante a Valdete, ao tempo que lhe
atribuíam estar zangado e para evitar qualquer agressão de sua
parte, uma delas entrega a sombrinha a Valdete para com ela agredir
o declarante. (...) No dia do fato, depois de haver recebido a
sombrinha das mãos de sua amiga, Valdete aproximou-se do
declarante servindo-se deste intrumento para dá-lhe uma bancada no
rosto e em ato continuo, o declarante que ainda continuava a
descascar a laranja, levantou o braço em atitude de defesa e neste
momento, fere a Valdete sem que houvesse da sua parte a intenção
de atingi-la, ferida, Valdete sai em direção ao mercado da farinha e o
140
declarante deixa o local indo para Cruz das Almas.
139
CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01,
ano 1947.
140
CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01,
ano 1947.
75
José Anastácio dos Santos é denunciado como incurso no Art.
121§2º141. O Promotor Público afirma que o motivador do crime foi o ciúme,
assim denuncia que:
o acusado vivia amasiado com Waldete Silva Araujo, depois a sua
amante deixou o denunciado. Este enciumado, cego pelo monstro
magnificamente descrito pelo grande Shakespeare, resolveu por
termo as suas mágoas e ao seu desespero. No dia 29 de junho de
1947, no mercado desta cidade, vibrou certeira facada no peito
142
esquerdo de Waldete, deixando desfalecida no solo.
José Anastácio é condenado a sete meses e quinze dias de reclusão na
Cadeia pública, em Feira Santana, sendo enquadrado na lei no Art. 129.143
Mulheres que matam
Aos analisar os processos de homicídios passionais e lesões corporais
envolvendo homens contra mulheres, ou vice-versa, os fatores recorrentes
serão motivados pelas relações sexo-afetiva e brigas de vizinhanças144. Nos
processos nos quais as mulheres são as agressoras, em especial, nos casos
de homicídios, observamos, uma completa instabilidade judicial no processo de
julgamento, pois, isso combate e fere uma construção social em que pauta-se
em parâmetros sexuais para definir lugares e posicionamentos socioculturais
em que mulheres e homens se opõem dicotomicamente a partir de valores
ligados, principalmente às noções deterministas que visam os sexos
cristalizados em elementos, passividade e docilidade X virilidade e força,
respectivamente. Assim, as mulheres que mataram, romperam essa relação
binária e burlaram um código cultural.
141
Matar Alguém. Código Penal Brasileiro. Dec. 2.848 de 07 de dezembro de 1940.
CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01,
ano 1947.
143
Ofender a integridade corporal ou a saúde de alguém. Código Penal Brasileiro. Dec. 2.848
de 07 de dezembro de 1940.
144
Ver: ASSIS, Nancy Rita Sento Sé. Questões de vida e de morte na Bahia Republicana:
valores e comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas. Salvador:
UFBA, dissertação de Mestrado, 1997.
142
76
Assim, no dia 01 de junho de 1948, na fazenda Santa Iria, no Distrito de
Jaguara do termo de Feira de Santana, o velho Manoel Macário da Silva,
lavrador de sessenta e oito anos, mais conhecido como Teixeira, foi
assassinado, pela lavradora Francisca Soares de Jesus, viúva, trinta seis anos
de idade, que golpeou com uma foice a referida vítima. A princípio o relato
parece assustador, uma mulher matou um idoso, cortando-lhe com um golpe
fatal de uma foice, porém, o desenrolar do processo, denunciará muitos gestos
e peculiaridades da sociedade feirense, que levaram a ré a ser inocentada do
crime nas duas instâncias.
Francisca Soares, assim como a maioria da população feirense da
década de 1940, vivia na Zona Rural. O levantamento dos dados recentes aos
censos da década registrados pelo IBGE aponta uma população composta por
83. 268 habitantes, sendo que menos de vinte mil ocupavam a área urbana145,
demonstrando assim uma marcante ruralidade da população feirense. Ao
analisarmos os dados referentes ao nível de alfabetização da população,
observamos que pelo recenseamento de 1940, havia uma realidade de 55. 579
analfabetos,146 o que representa a maioria esmagadora da população que não
sabia ler nem escrever. Isso é verificado nos autos dos processos criminais em
que são denotativos os altos índices de analfabetismo. Exemplo claro é o
referido no processo das partes entre Francisca Soares e Manoel Macário, na
qual todas as cinco testemunhas arroladas no processo, além da interrogada e
depoente, são analfabetos. Aqui, cabe relembrarmos Chauloub e Mariza
Correa, quando os autores atentam para observar os detalhes na construção
do documento. O fato de os populares não produzirem uma cultura letrada, não
inviabiliza que tenhamos acesso ao seu cotidiano, mesmo que seja distorcido
através das mãos dos escrivães e advogados.
“Pequena” como era conhecida nossa a acusada,vivia na Fazenda
Santa Iria, no dia crime que ocasionou a morte de Manoel Macario da Silva,
mais conhecido como “Teixeira”. A acusada estava em companhia da vizinha
145
146
Enciclopédia dos municípios Brasileiros. V. XX. Rio de Janeiro: IBGE, 1958. Pp. 228.
IBGE – Recenseamento Geral de 1940.
77
Egídia, pois, ambas pretendiam fazer uma visita a uma doente conhecida por
“Nita de Manoel de Andreza”.
Neste momento, chegaram à residência da
acusada o seu compadre “João do Pão” e Manoel Macário, que regressava de
uma tapação de casa no lugar São Jorge. Essa tapação é um mutirão feito, na
maioria, por homens, que auxiliam um vizinho na construção de sua casa, que
era feita de taipa; construções de madeira roliças retiradas no mato e
entrelaçadas, que formam a estrutura física da construção que é preenchida
por barro pisado e umedecido e depois coberta com palhas de uma parreira.
Como é costumeiro entre as solicializações masculinas, nessas tapações,
serviam-se cachaça como recompensa pela atividade laboriosa. A presença do
álcool nas socializações populares, demarca o fator do embriaguez que os
envolvidos nos processos apresentam. Como afirma a acusada que Manoel
Macário
que
era
um
indíviduo
“acostumado
a
andar
embriagado”.
Aproveitando-se da situação de embriaguez, o velho Macário “procurou
adiantamento com a interrogada, a quem disse liberdade, ofendendo-a de toda
a forma, que João do Pão, a pedido da interrogada conduziu “Teixeira” para
longe de sua residência, cujas portas e janelas estavam fechadas”.
Observamos que houve uma tensão de caráter sexo-afetivo, pois, o
velho Macário, segundo a interrogada, insinua palavras e gesto obscenos que
davam a entender que o mesmo propunha estabelecer um contato sexual com
a mesma, gerando com isso grande indisposição entre ambos. Com isso,
“pequena” conta que se trancou em sua casa e ficou com sua vizinha Egidia
até o jantar, e que, logo após, ao abrir a janela da frente da casa, deparou-se
de modo surpreendente com Manoel Macário, que estava escondido,
aguardando a sua saída. Relata a interrogada:
Que Macário saltou rápido a janela para dentro da casa agarrando
logo a interrogada com quem lutou por muito tempo procurando
dominá-la para sujeita-la aos seus desejos libidinosos, que antes
da meia noite, resolveu Macario agredir fisicamente a interrogada, em
quem vibrou uma bofetada por cima do olho esquerdo, cujo sinal
ainda pode ser visto, conforme mostra a Autoridade. Que a casa da
Interrogada estava inteiramente as escuras, razão por que não
percebeu logo que Macário estava armado com um facão, que foi
Egidia quem a advertiu a Interrogada desta circunstância, razão por
que apanhou um pau que encontrou atrás da porta para se defender,
que estando Manoel Macário de arma em punho, a interrogada se
78
defendeu com o pau que somente depois veio notar que era uma
foice, recordando-se de haver dado duas pancadas em Macário, não
sabendo em que parte do corpo fora o mesmo atingido que na luta
travada com Macário a interrogada sentiu um forte tombo na mesa da
sala de jantar, caindo da mesma certos vasos que se quebravam,
produzindo forte ruído, que Macário com os golpes que receberam
recuara um pouco, dando margem a que a interrogada fugisse
147
amedrontada para o mato em companhia da amiga Egidia.
[grifo
nosso].
Após o fato relatado, da fuga das envolvidas no crime, as mesmas vão
até a casa do vaqueiro da fazenda “Barra”, de nome Bernardo, e conta-lhe o
ocorrido, pedindo que ele as acompanhe, pois, temiam sofrer novas agressões
de Macário. Francisca, constrói nas peças jurídicas uma representação de
ingenuidade e inocência quase infantis, convergindo com a proposta de modelo
feminino proposto pela normalidade social e jurídica, afirmando ainda que, “por
não saber as conseqüências do acontecido que ao deixar a casa a porta ficou
aberta e Macário ficou em seu interior ainda com vida, somente depois veio a
saber que a interrogada da sua morte.” Francisca continua em defesa de sua
índole irrefutável, colocando-se adequada ao modelo requerido de uma mulher
nas condições de classe, ela afirma que:
não bebe, não joga, nunca foi presa ou processada, vivendo
honestamente nas fainas da lavoura, que nunca teve intenção de
matar quem quer que seja “só tendo este trabalho porque se viu
na rua das armarguras” que antes dos últimos acontecimentos, de
trágica conseqüências a interrogada havia procurando a esposa de
Macário no sentido de evitar as suas atitudes inconvenientes e os
seus desejos insensatos, que conhecidas as conseqüências de seus
148
atos, procurou logo a polícia, apresentando-se as autoridades.
[grifo nosso].
É bom destacar que Francisca apresenta-se à polícia em companhia de
seu advogado, o Dr. Edelvito Campello de Araujo, ocorrendo o seu
interrogatório no dia 03 de junho de 1948, dois dias após o crime. O fato de
Francisca possuri um advogado esclarece o fato de a mesma apresentar
bastante coesão no seu discurso de interrogatório, da mesma, focar na questão
da defesa da honra e evidenciar sua índole de mulher trabalhadora. Em
contrapartida, a mesma apresenta a vítima como um indivíduo provocador,
147
148
CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948.
CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948.
79
libidinoso e alcoólatra. Essas representações jurídicas foram bastante
evidenciadas durante todo o julgamento, o que levou Francisca Soares a obter
êxito. No entanto, a viúva de Manoel Macário, surge no processo trazendo
outra versão para o crime. Em depoimento, Leocádia Gomes da Silva,
lavradora, com cinqüenta anos de idade, traz em diversos momentos do
processo a utilização da imagem de mulher desprotegida e vitimada, que com a
viuvez ficou com onze filhos e netos para cuidar. Ao contrário do que algumas
testemunhas apresentaram no sumário, onde se referiam a Macário como um
homem violento, Leocádia apresenta que “foi casada com há cerca de trinta e
nove anos com Manoel Macário da Silva e sempre viveu bem com o mesmo
até o dia que foi assassinado”. A viúva conta que mantinha uma boa relação de
amizade com a acusada Francisca soares de Jesus, sendo costumeiro as
visitações entre ambas, chegando a rezarem novenas juntas na casas de
ambas, porém, os conflitos iniciaram-se devido a uma contenda de vizinhas,
segundo a depoente:
“ Pequena” no sábado último, antes da morte de Teixeira, botou
Maria Anita na anca de cavalo que cavalgava fogosamente, dando
por isso três quedas em Maria Anita, caindo ambas no chão, que
disseram isso ao seu marido “Teixeira” e este então reclamou com
“Pequena” dizendo que ia contar a “Seu Né” que pequena zangou-se
e lhe respondeu “que antes de contar a „Seu Né‟, que ela “Pequena” o
mataria, que devido a jura de “Pequena” só parece que “Pequena”
149
estava esperando seu marido para matá-lo.
O depoimento de Leocadia não surtiu muito efeito para o julgamento de
Francisca Soares, pois, a prova testemunhal foi unânime em confirmar o
interrogatório da acusada. Segundo Egídia Pereira, casada, lavradora,
analfabeta, moradora na fazenda Santa Iria, “Manoel Macário não tinha bom
procedimento, sendo dado a bebidas e a provocações, que não respeitava
famílias de quem quaisquer que seja, era até temido por várias moças das
redondezas, que no dia anterior aos dos fatos era relatado que Manoel Macário
espancou a própria esposa”150. Ainda outra testemunha o vaqueiro Bernardo
149
CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948.
150
CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948.
80
Gomes da Silva, com trinta e três anos afirma que “Macário quando bebia era
impulsivo e brigão e desrespeitador de famílias, que o depoente nunca viu, mas
sabe por ouvir dizer que Macário espaçava a própria mulher”. Com isso, o
depoimento da viúva não influenciou a jurisprudência que sentenciou
absolvendo Francisca Soares. A sentença foi apelada para a egrégia corte, a
qual negou provimento à apelação e confirmou a sentença de absolvição.
Vejamos o parecer do Sub-procurador geral da Justiça, o Dr. Nicolau Calmon.
É um imperativo de justiça e decência negar-se provimento ao
recurso de oficio do Dr. Juiz Criminal da Comarca de Feira de
Santana.
A recorrida matou Manoel Macário da Silva, na defesa de seus mais
sagrados direitos: seu lar, sua integridade física e sua honra de
mulher honesta.
A coragem demonstrada em defender-se, sua bravura no revidar a
sua brutal agressão a intrepidez com que repeliu as satíricas
investidas de Manoel Macário, sagram-na mulher de espírito forte,
honesto, incorruptível paradigma da sertaneja inquebrável ante as
agruras da sorte.
Fosse ela uma dama da sociedade uma vez de um processo crime
teria toda a imprensa do país a exaltar-lhe a resistência oposta o
denovo, o arrojo e valentia com que defendeu seu lar e sua honra.
A legitima defesa com que com agiu emerge tão evidente e
151
incontroversa do processo que, ocioso, nos parece ressaltá-lo.
O parecer do Dr. Nicolau Calmon traz à baila algumas representações
socioculturais que identificam ou visam identificar as mulheres pobres,
consideradas honestas. Para essas mulheres, louva-se o fato do labor diário,
da força exercida para este trabalho que as sustentam juntamente com a
família, além de sublimar aspectos característicos das performances ruralista e
sertanejas, como no caso da valentia empreendida na defesa da honra. Essa
valentia é cara a uma cidade que tem uma mulher heroína, como é o exemplo
de Maria Quitéria.
Observa-se que os agentes do judiciário em Feira de Santana
sensibilizaram-se com a história de vida de Francisca Soares, a conhecida
151
CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948.
81
“Pequena”. O próprio codinome da acusada já representava uma noção
semiológica de fragilidade, requerido de proteção, uma vez pequena, está é
incapaz de ser uma criminosa. Logicamente não é nossa intenção ser um
julgador dos processos evidenciados nesse trabalho, mas podemos inferir que
a justiça feirense sensibilizou-se com os julgamentos femininos. No total de
sete processos envolvendo homicídios produzidos por mulheres, em três houve
absolvição e nos demais as penas foram menores que quatro anos de reclusão
celular. Essa é uma observação particularizada do judiciário feirense.
Nos casos de homicídios passionais e nos conflitos sexo-afetivo
desenvolvidos no âmbito doméstico, como nos casos já relatados, observamos
a presença de códigos sociais que identificam os sexos, especialmente, as
mulheres, a partir de valores ligados ao privado. Não raro, foram as defesas
que se construíram a partir dessa premissa que davam as mulheres esse
salvo-conduto jurídico de defensoras dos lares, mães dedicadas, indivíduos
frágeis e sensíveis. No próximo caso continuamos a relatar peculiaridades do
cotidiano popular feirense, observado do privado para o público. Assim, no dia
15 de março de 1939 ocorreu um assassinato na Vila de São Vicente distrito
do Município de Feira de Santana, praticado por Maria do São Pedro, uma
lavradora, analfabeta, 33 anos de idade, mãe do menor Francisco Paulo de
Jesus, contra o seu amásio, com que convivia a mais de nove anos, o
magarefe Liberato Ferreira de Lima, com 35 anos de idade.
Após praticar o crime de homicídio, Maria de São Pedro procurou as
autoridades policiais para relatar o ocorrido, assumindo a autoria do crime e
estabelecendo sua verdade para os fatos que passou a narrar, afirmando ter
sido a autora do assassinato de Liberato Ferreira de Lima. Informou ainda, ter
sido obrigada a cometer a transgressão em sua legítima defesa. Maria de São
Pedro, no seu depoimento traz à baila aspectos da vida conjugal do seu
amasiamento, ao afirmar que era constantemente violentada pelo seu amásio,
habituado a espancá-la. Continua a narrar o seu cotidiano, contando os
detalhes do fato vitimizador, dizendo que se “achava no seu trabalho tratando
uma carne com uma faca, na ocasião em que Liberato quis furá-la, procurou
82
defender-se do golpe com o braço e a faca que estava na mão dela
respondente feriu mortalmente a Liberato que faleceu logo após”.152
Como já discutimos anteriormente a utilização da legitima defesa era
uma arma jurídica utilizada pelos acusados para justificar seus crimes de
caráter sexo-afetivo, seja pelos homens, que evidenciavam a defesa da honra
masculina ultrajada em sua virilidade, seja pelas mulheres, que defendiam os
lares, a integridade moral e a sua condição de fragilidade. O depoimento de
Maria de São Pedro e todo o processo do seu sumário de culpa são recheados
desses recursos que buscavam imprimir uma construção ideal de mulher. O
advogado de defesa, o Dr. Vicente dos Reis, utilizou também, em sua peça
judicial, esses artifícios que tinham como efeito a sensibilização dos julgadores,
apoiando-se em padrões socioculturais que definiam posturas idealizadas para
o masculino e o feminino.
A denunciada Maria São Pedro a custa dos maiores sacrifícios
construiu uma casa para residência em logar[sic] chamado “cuba! na
Vila de São Vicente, deste termo.
Esta casa, porém, afirmavam a testemunha Manoel Mario da Cruz em
depoimento – “esta casa é de propriedade da denunciada que possui
apenas uma porta de frente”.
Maria de São Pedro a denunciada passou a viver maritalmente com
Liberato Ferreira Lima, morando na referida casa.
Há alguns anos porém Liberato Ferreira Lima resolveu espancar
Maria de São Pedro que isso, procurou garantir sua vida pedindo
providencia a polícia.
Firmino José de Cerqueira em depoimento diz que mais de uma vez a
denunciada se queixara a ele depoente que é inspector do quarteirão
local de que Liberato lhe espancava, e o depoente lhe aconselhou
que mudasse de terra, abandonando Liberato, que por certo não
a acompanharia, ao que ela retrucava não poder isso fazer
porque a casa que vive e morava era de propriedade della, que
não tomou nenhuma providencia por que não se tratava de
espancamento grave.
Claro está que a denunciada Maria São Pedro uma mulher
franzina, agredida por Liberato Ferreira Lima, homem robusto,
forte e ágil, tendo feito algumas afiadíssimas facas de seu trabalho –
magarefe- numa apertada casa cuja porta ela não podia alcançar
sem poder pedir e receber socorro, não teria outro recurso senão
usar de um direito que lhe faculta a lei – o direito da legitima
defesa.
152
CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
83
O que é certo ate provarem contrario, é a seguinte declaração da
acusada Maria São Pedro: que foi ela autora do assassinato de
Liberato Ferreira Lima, o que fez em sua defesa porque Liberato
habituado a espancar a ella respondente, hoje a agrediu armado de
faca e ella respondente que se achava no seu trabalho – tratando
uma carne com uma faca na ocasião em que Liberato quiz feril-a
procurou defender-se de golpe com o braço e a faca que estava na
mão dela respondente feriu mortalmente a Liberato que faleceu logo
153
depois. [grifo nosso]
A defesa da acusada ampara-se no próprio cotidiano dos envolvidos
para construir o discurso jurídico que visa a impunibilidade da acusação,
focando-se nos maus tratos empreendidos por Liberato contra Maria do São
Pedro, especialmente, destacando o fato de que a casa em que viviam
pertencia a acusada. Sendo assim dava-se a acusada um empoderamento na
relação do amasiamento, colocando-a numa proximidade simétrica com o
parceiro conjugal. Definitivamente Maria de São Pedro apresentou em seu
favor, o fato de prover, também, o lar.
As testemunhas arroladas no processo trazem informações sobre a
convivência dos envolvidos, afirmando que os mesmos eram dados à
embriaguez,
“gostavam
de
tomar
uns
tragosinhos”154
e
estavam
constantemente em “rusgas”, vivendo da prática de trabalhos rústicos e
braçais.155 Apesar da caracterização social dos envolvidos, as testemunhas do
processo trazem uma nova versão para os autos ao afirmarem ter encontrado o
corpo da vitima deitado em uma cama num compartimento da casa onde
dormiam Liberato e Maria, estando a vítima com as pernas para fora da cama,
trajando uma calça e nu da cintura para cima. O corpo da vítima apresentava
um grande ferimento no peito direito, havendo muito sangue junto a cama,
segundo as testemunhas que afirmavam só terem visto vestígio de sangue no
quarto de Maria do São Pedro. As testemunhas que depuseram no processo
ainda frisaram o fato de ser Liberato um individuo forte e corpulento, que tinha
bastante agilidade com facas devido ao seu oficio de magarefe. Isso significa
153
CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
Depoimento da testemunha Manoel Brlarmino de Cerqueira - CEDOC – Maria de São Pedro
– Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
155
CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
154
84
que numa luta corporal, Maria do São Pedro, como já descrita, franzinha, não
haveria como subjugar este homem. A partir dos depoimentos surgem novos
caminhos para a investigação do crime. As versões construídas nos
depoimentos sugeriam que Maria de São Pedro premeditou o crime, não
podendo afirmar se ela assassinou a vítima quando esta dormia, ou se
preparou alguma bebida para fragilizar Liberato a fim de concluir o assassinato.
Partindo dessas observações a Promotoria Pública através do Promotor Lauro
Azevedo apresenta os indícios da culpabilidade da acusada.
Os indícios são fortes, existem na casa convincentes de que a
acusada faltou com a verdadde quando procurou explicar como se
teria dado o facto.
Assim é que alegou: é ela respondente que se achava no seu
trabalho tratando uma carne com uma faca na ocasião em que
Liberato quiz feril-a, procurou defender-se do golpe com o braço e a
faca que estava na mão della respondente ferio mortamemente a
Liberato que faleceu após.
Porém, o encontro do cadáver de Liberato no quarto e não na salinha
do casebre, deitado numa cama baixa, de ventre para cima, com as
pernas para o lado de fora apenas trajando calça e apresentando um
extenso ferimento no peito do lado direito, depõem inilludivelmente
contra aquela assertiva da denunciada.
São taes indicicios bem, a testemunha muda a que se refere
Bentham, que Deus parece haver colocado junto à denunciada para
fazer jorrar luz nas trevas em que ela procurou ocultar o seu crime.
Ademais, verifica-se que a denunciada e a victima viviam em
constantes rusgas, e o facto attestado pelas testemunhas de que a
victima era homem robusto e bastante forte, residem em logar ermo,
longe de visinhos, ao envez de favorecera situação da denunciada no
caso, mas explica a maneira de como teria agido.
E a conclusão a tirar-se da prova é, pois que Liberato achava-se
deitado na cama dormindo ou não – a vítima encontrava-se apenas
vestida de uma calça- portanto nu da cintura para cima, maneira
usual de dormir própria de indivíduos da classe de Liberato – ocasião
em que foi assassinado pela denunciada e a qual pretendia tira-lhe
mesmo a vida conforme de feita dissera a testemunha Firmino
Cerqueira.
E para liquidar tão rapidamente a vitima, a própria natureza do
ferimento do lado direito do peito e num homem forte e robusto – e de
molde a mostrar que Liberato não podia ter recebido o ferimento de
faca com resultados tão rápido e certo de maneira como pretendeu
156
fazer crer a denunciada.
156
CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
85
Os indícios apresentados pelo promotor e as versões por ele construídas
levaram a ré ser condenada através do artigo 294§ 2º em grau médio. No
entanto, no Tribunal do Júri, a defesa utilizando do recurso de perturbação dos
sentidos e inteligência no momento do crime, garantiu, assim, a absolvição da
ré em sessão do dia 18 de outubro de 1939.
O recurso jurídico amparado no Art. 27§ 4 estabelece que não são
criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e
de inteligência no ato de cometer o crime, segundo o Código Penal Brasileiro,
Dec. N. 847, de 11 de outubro de 1890.
Apelada a sentença pela promotoria à Egregio Tribunal, Maria do São
Pedro foi de fato condenada no Art. 294§ 2 em grau médio, que implicava em
seis anos de reclusão celular. A ré cumpriu metade da pena e foi beneficiada
pelo livramento condicional, onde observamos no relatório do Diretor
Penitenciário, o Sr. Leopoldo Brago, as afirmações constantes de idealizações
de gênero apresentando valores como maternidade, passividade, perseverança
como atributos femininos, além de impor uma visão vitimizada da condenada e
penitente, trazendo à baila mais uma vez o cotidiano laborioso de mulheres:
Maria de São Pedro é uma pobre mulher analfabeta, ignorante e
rústica. Sempre viveu de trabalhos braçais na roça. Basta referir que
até a data em que delinqüiu, nunca tinha ido a cidade de Feira de
Santana, sede do Município a que pertence o districto de São
Vicente.
È de índole pacata, humilde e submissa. Seu filho Francisco Paulo
de Jesus que segundo os cálculos da penitente deve contar 12 ou 13
anos de idade, e que ficara em companhia de sua irmã Jeronima de
Jesus, se acha presentemente no referido Município de Feira de
Santana. Quanto aos projetos que tem a penitente para orientação de
sua vida futura, declara a mesma que se obtiver com espera o
livramento condicional solicitado do Egrégio Conselho Penitenciário
da Bahia, retornará a São Vicente, onde pretende trabalhar para o
157
sustento e a criação do filho. [grifo nosso]
Em briga de marido e mulher não se mete a colher!
157
CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
86
A compreensão social de que as brigas e conflitos domésticos não era
uma questão de interferência pública, era bastante difundida na sociedade
feirense nas décadas evidenciadas nessa pesquisa. O ditado popular
vulgarmente conhecido que dá nome esse sub-título denota de maneira
bastante usual o que era refletido nos depoimentos em que os envolvidos eram
cônjuges. Talvez aqui esteja um dos principais motivos do pequeno número de
processos depositados nos arquivos que caracterizavam tais crimes, uma vez
que, os conflitos domésticos ficavam entre as quatro paredes. Partindo deste
pressuposto, encontramos o processo crime que envolve o casal Manoel
Cypriano da Silva e Julia Elvira da Silva.
Julia Elvira da Silva, 35 anos, doméstica, residente na fazenda Abade,
no distrito de Ipuaçu no município de Feira de Santana, foi encontrara boiando
no rio Cavaco na referida fazenda, trajando uma saia escura e uma camisa
branca. A vítima era casada com Manoel Cypriano da Silva, 35, lavrador,
analfabeto. Há uma grande incógnita sobre a morte de Julia. Teria sido
Cypriano seu esposo o autor do crime? teria Julia cometido Suicídio? teria sido
um acidente? Estas respostas ficaram sem ser respondidas, pois, Cypriano que
é recolhido como suspeito do crime, comete suicídio em cárcere, enforcando se
com uma corda providenciada pelo mesmo e feita com crina de cavalo durante
a madrugada do dia 29 de agosto de 1947. Não há resposta sobre a morte de
Julia, então qual o motivo de trazermos esses baila? O que nos interessa neste
caso é observar as relações de violência nas relações conjugais e os modos de
como a sociedade compreende e licencia estas violências.
A convivência entre Julia e Cypriano era marcada por espancamento e
violência. A testemunha Alcebiades Conceição, casado, 18 anos, roceiro,
analfabeto declarou nos autos que estava ele cortando umas sementes de
fumo de cabeça baixa, tratando do seu trabalho, quando ouviu um bate boca.
Em vista disto, o depoente deixou o seu trabalho por um instante e procurou
saber o que se passava: “viu dentro do mato o Sr. Cypriano em companhia de
sua mulher Julia discutindo e Cypriano que estava com uma corda um pouco
87
grossa, batia em dona Julia, vendo que era barulho de marido com mulher
ele declarante não quis aparecer pois poderia se dar mau e procurou
continuar o seu serviço”.158
Outra testemunha ocular, o jovem Antonio Capinam, 15 anos, roceiro,
analfabeto, declarou que observou que embaixo de um pé de manga da
fazenda do Abade estava o Sr. Cypriano batendo em sua mulher dona Julia
de corda, que a corda que o Sr. Cypriano utilizava era uma cilha. Ele,
declarante, parando para vê o resultado, observou que dona Julia correu para
dentro do mato e o sr. Cypriano correndo atrás para bater mais na ofendida.
Notou ainda, que dona Julia não gritava e ele declarante não viu mais nada,
pois, no mato fechado, eles desapareceram.
Ao analisarmos os depoimentos das testemunhas acima, observamos
que os mesmos não se espantam pelo fato de encontrar Cypriano agredindo
Julia com uma corda, compreendendo esta ação, como sendo algo legitimo da
relação conjugal, demonstrando o processo social e cultural de subjugação das
mulheres através da violência doméstica. Por ser uma violência protagonizada
por indivíduos que conjugam intimidades, estas cenas de violência não ganham
notoriedade pública, requerendo que tais conflitos sejam resolvidos a partir de
negociações e códigos particulares de convivência.
O percurso de Cypriano da prisão por suspeita de assassinato, até o seu
suicídio durou dois dias, domingo e segunda-feira, respectivamente 27 de 28
de agosto de 1947, período em que o mesmo andava muito agitado pelo arraial
da Fazenda Abade, apresentando-se nervoso trêmulo e choroso em muitos
momentos. Relata-nos a testemunha, Amâncio Caetano da Costa, casado,
lavrador com 47 anos, sabendo ler e escrever que encontrou com Cypryano e
notou que o mesmo estava muito agitado, que ele declarante, interrogou o
mesmo para saber qual o motivo daquela agitação.
Durante a conversa
Cypriano solicita ao Sr. Amâncio; “eu quero que o Sr. vá até minha casa para
dar um conselho a minha mulher que quer me abandonar” 159; Amancio deu
158
159
CEDOC – Manoel Cipriano da Silva – Doc. 1597, Cx. 83, Est. 03 ano 1947.
CEDOC – Manoel Cipriano da Silva – Doc. 1597, Cx. 83, Est. 03 ano 1947.
88
como resposta “que não ia porque em briga de mulher e homem outra
pessoa não deve se meter, que sai por pior”. A conversa entre Cypriano e
Amâncio confirma nossas observações acerca das representações sociais
sobre os conflitos e violências sexo-afetivo de caráter conjugal. Mesmo
afirmando que não iria interferir no conflito entre Cypriano e Julia, o vizinho
Amâncio, sensibilizando-se e “ vendo o estado de Cypriano” numa típica atitude
que demonstra as múltiplas relações de solidariedade de gênero, decidiu ir até
a casa do referido, porém, em meio do caminho encontrou com o mesmo que
lhe informa que a sua mulher, Julia Elvira da Silva, estava na beira do rio em pé
com um filho menor de nome Zica. Pela informação recebida, dirigiu-se até o
rio onde não encontrou nem a referida Julia, nem o menor Zica, filho dos
envolvidos, assim, como não a encontrou na casa da mesma quando a foi
procurá-la. Encontrando com o menor Zica , este o informou que a mãe tinha
seguindo em direção ao rio, porém, não sabia para onde tinha ido. Como afinal
não tinha encontrado Julia para aconselhá-la, ele segue para sua casa de
residência “não maldando nada”. Essa ausência de maldade a qual se referiu
Amâncio resultou que no dia seguinte, segunda-feira, dia 28 de agosto de
1947, mas uma vez, chegou o acusado Cypriano dizendo que ao declarante
que fosse até o rio que Julia estava boiando.
Essa indisposição apresentada pelas testemunhas arroladas no
processo é um sinalizador da moralidade e da dinâmica sexo-afetiva em Feira
Santana. Nos casos já relatados neste capítulo inferimos que em todos os
crimes de caráter sexo-afetivo, encontramos como elementos corriqueiros os
espancamentos, as brigas, a embriaguez. Esses fatores são de conhecimento
do grupo social ao qual vitima ou acusado(a) fazem parte, demonstrando que
tal comportamento é legível, licencioso e compreensível entre os populares, o
que o torna silencioso e velado.
Os conflitos sexo afetivos foram um dos mais recorrentes embates entre
homens e mulheres das camadas populares. Vários são os motivos evocados
pelos agressores para justificar ou acionar o ato violento, porém, os mais
recorrentes foram o ciúme e a embriaguez, aliados a uma concepção
89
internalizada de dominação masculina. Sidney Chalhoub chama a atenção para
os significados da violência masculina entre os populares. Para o autor um dos
seus prováveis significados é que os estereótipos sobre o ser homem e o ser
mulher propalados pela classe dominante eram parcialmente internalizados
pelos amantes das classes trabalhadoras. O homem, especialmente, aprendia
pelos estereótipos dominantes que as mulheres eram sua propriedade privada,
o que tornava mais frustrado ao perceber que a prática de vida não autorizava
que ele exercesse aquele poder ilimitado que o ser possuidor tem teoricamente
o direito de exercer sobre aquilo que é possuído.160
Na complexa relação de posse e dominação, muitas mulheres em Feira
de Santana foram espancadas e violentadas pelos seu maridos e amasios.
Assim, no dia 27 de agosto de 1940, no lugar conhecido como “Tranca”,
Orlando Costa ou José Viera, pois, o mesmo havia mudado de nome, já que,
era um fugitivo penitenciário, 27 anos, carpina, analfabeto, natural de Salvador,
empregado na estrada de Rodagem, agrediu com uma faca a Maria da
Conceição, 32 anos, empregada do armazém de fumo, analfabeta e parda.
Existem duas versões para o fato como de costume nos processos-criminais.
Na versão de Orlando, a agressão foi motivada por que ao chegar na casa
onde mora a vitima, depois do trabalho, trouxe uma garrafa de gás, estando
bastante embriagado, quando notou que sua amasia estava preparando a
comida de outro homem, o que o levou a reclamar daquele procedimento.
Contudo, que Maria da Conceição não gostou da reclamação, iniciando uma
discussão que terminou em luta.
que ele derrubando-a, livrando-se de Maria da Conceição precipitouse e apanhando uma pequena faca que achava em cima de uma
meza, fez com esta os ferimentos em Maria da Conceição e retirou-se
161
do local em companhia de um chauffer de estrada.
Segundo a ofendida, Orlando Costa ou José Viera vinha propondo-a
amasiar-se com ela, que recusa a proposta. No dia do crime, mais ou menos
às vinte horas, José Viera chegou na casa da ofendida e a encontrou do lado
160
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 228
161
CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940.
90
de fora e lhe disse que tinha chegado para dormir, porém, a ofendida não
aceitando que o mesmo ficasse em sua casa, gerando um conflito. Nesse
embate, José Viera pegou-a a força e levou para dentro de casa aos
empurrões e agressões e, ali dentro da casa, a esfaqueou: “que conhecendo
José Vieira e sabendo a mataria, safou-se de suas mãos e sahiu correndo pela
porta a fora caindo na praça denominada Padre Ovidio”.162
As versões apesar de diferentes tem alguns pontos de convergência que
nos permite fazer algumas afirmações, uma delas é que de fato existia uma
relação sexo-afetiva entre os envolvidos; o fato de ele trazer uma garrafa de
gás foi comprovado. Esse gás é o conhecido querosene utilizado para
abastecer candeeiros e para acender os fogões a lenha, realidade bastante
emblemática da paisagem feirense que misturava o urbano e o rural
constantemente, como até no presente momento, é possível encontrar em
plenas avenidas movimentadas da cidade, cavalos e carroças convivendo com
essa paisagem urbanizada. No final do depoimento de Maria da Conceição ela
afirma, que por conhecer o acusado, sabia que o mesmo poderia matá-la. Isso
demonstra que já havia de fato um contato íntimo entre ambos, essa afirmação
direciona para o fato de Maria da Conceição ter conhecimento sobre o passado
do seu amasio que já havia sido preso e condenado por um crime de
assassinato de sua ex-amásia de nome Julieta Vanderlê Braga, na cidade do
Salvador capital do Estado. Os depoimentos das testemunhas arroladas trazem
a confirmacão da cena do crime, como também expressam os ditames sociais
no que diz respeito aos conflitos sexo-afetivos, partindo da premissa que tem
que serem resolvidos pelas partes privadamente.
Assim, a testemunha Constantino José de Santana, 27 anos de idade,
solteiro, empregado da casa de Abilio Ribeiro, analfabeto, afirmou que,
“passando no lugar denominado Tranca, viu o acusado presente, pegar uma
mulher e levar puxando para dentro de uma casa, que ele respondente
162
CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940.
91
pensou que aquilo era pilheria, porém, logo depois viu a mulher pedindo
socorro dizendo que o acusado presente queria matar”.163
A vizinha de Maria da Conceição e sua companheira de infortúnio, Maria
Bernardina Moreira, 22 anos de idade, residente no lugar “Tranca”, solteira
doméstica, analfabeta relatou:
Que ouviu um barulho na casa sua vizinha Maria da Conceição, uma
zoada e sahindo para ver o que era, encontrou o barulho entre o
acusado e sua visinha, procurando acomodar os dois, o acusado
presente que se diz chamar José Vieria, foi contra ela respondente
tentando feril-a com a faca com a qual se achava, que neste ocasião
Pedro de tal, residente na rua de Aurora, que ahi se achava puxou ela
164
respondente e levou –a para dentro de casa.
O fato de a vizinha tentar acomodá-los é um sinalizador que existia uma
relação entre ambos e que era conhecida por Maria Bernardina, além de que a
atitude da outra testemunha Pedro de tal de tirá-la deixando em casa é uma
forma de expressar que não se devia intrometer-se em casos de homem e
mulher.
Orlando Costa que ora utiliza o nome José Viera foi condenado há um
ano de prisão celular, incurso na pena máxima do Art. 303.165
Entre outros fatores motivadores de conflito sexo-afetivo entre homens e
mulheres populares estava a questão da subsistência dos lares. Mesmo entre
esse grupo social ser bastante usual a simetria na relação de trabalho, uma vez
que, as mulheres das camadas populares, mantinham com seus amasios e
esposos uma relação real de compartilhamento das despesas, mesmo as
declaravam-se como domesticas nos autos dos depoimentos, deixavam
escapar as atividades de labor diário. Ainda assim, entre os populares vigorava
mesmo que simbolicamente o ideal do homem provedor do lar, ainda que a
realidade fosse bem diferente.
163 CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940.
164 CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940.
165 Art. 303 – Ofender fisicamente alguém, produzindo-lhe dor ou alguma lesão no corpo,
embora sem derramamento de sangue. Pena de prisão celular de três meses a um ano.
(GAMA, 1923, 373)
92
Lucia Maria de Jesus, casada, 50 anos, roceira, analfabeta, branca,
residente no lugar Lagoa Pirrichi, no distrito de Maria Quitéria neste
Município166, reclamou ao seu marido Gregório Lima, pelo fato do mesmo ser
um homem preguiçoso, demonstrando ao mesmo suas atitudes. Por este
motivo, iniciou-se forte discussão entre ambos na qual Gregório exclamou que
se ela estivesse descontente, “pois arrume suas trouxas e fosse embora”167,
acirrando ainda mais a discussão ela responde “que só sairia dali aos pedaços
e não com vida”. Depois muita discussão, Gregório decidiu confirmar as
palavras de Lucia, tomando de uma foice fez na ofendida os ferimentos que
apresentou no exame de corpo delito.
Gregório de Lima foi denunciado incurso no art. 303 do Código Penal,
porém, não chegou a ser julgado, o crime prescreveu, extinguindo a
punibilidade.
Mesmo destino teve Maria Almeida dos Santos, conhecida como Maria
Gorda, casada, 47 anos de idade, vendedora, preta, sabendo assinar o
nome168, afirma que teve a infelicidade de casar-se com Candido Evangelista
dos Santos, com o qual foi amasiada a mais de dois anos. A ofendida afirma
ser constantemente espancada pelo referido esposo, sendo que o mesmo só
casou com a ofendida com o interesse em seus bens, pois a mesma possuia
uma casa e tinha “um negócio de uma barraca de comida no mercado desta
cidade, nada faz somente tomando o meu dinheiro o quando nego em entregar
este me espanca de facão, cabo de vassoura e uma faca, quando não ameaça
matar”169
Os homens pobres, no uso da violência contra suas amasias e esposas,
motivados por fatores socioeconômicos, demonstravam no ato da imposição
violenta, uma forma de demarcação simbólica de espaços e trânsitos, no qual
não era permitido as mulheres questionarem seus lugares e ações. Dessa
forma esta violência é de fato uma atitude de fraqueza, muito mais do que de
166
CEDOC – Gregório de Lima – Doc. 2197, Cx. 105, Est.04, ano 1941
CEDOC – Gregório de Lima – Doc. 2197, Cx. 105, Est.04, ano 1941.
168
CEDOC – Cândido Evangelista dos Santos – Doc 2088, Cx. 99, Est. 04, ano 1946.
169
CEDOC – Cândido Evangelista dos Santos – Doc 2088, Cx. 99, Est. 04, ano 1946.
167
93
força, como afirma Chalhoub, o que é absolutamente necessário enfatizar que
neste caso o uso da violência empreendido pelo homem é uma demonstração
de impotência. Não raro, em muitos casos os agentes jurídicos utilizavam os
recursos da defesa da honra, que já discutimos anteriormente. Para o autor “a
realidade concreta dentro da qual se desenrolam as relações de amor entre
esses homens e mulheres pobres é, então, desfigurada e distorcida para servir
á ideologia da dominação masculina.”170
Filha ingrata...
Os conflitos decorrentes no âmbito do privado não estavam restritos aos
crimes de caráter sexo-afetivo, outras expressões de conflitos domésticos
também ocuparam as páginas amareladas dos processos criminais como as
brigas entre membros da mesma família, sendo estes conflitos intermediados
com mais freqüência por vizinhos e pessoas próximas, não atendendo assim, a
regra do “meter a colher”; isso é denotativo na compreensão do código cultural
das relações de violência.
O crime envolvendo Maria Justina de Jesus e Maria Conceição, filha e
mãe respectivamente, abrem-nos mais uma vez as portas na compreensão do
cotidiano popular. Ambas viviam na mesma casa, na Fazenda “genipapo‟, no
distrito de Bom Despacho, neste município, eram roceiras e analfabetas. Maria
Justina tinha 33 anos era solteira e filha de criação da velha Saloia, como era
vulgarmente conhecida a idosa de 80 anos, Maria da Conceição, que a criou
desde que a mesma tinha menos de um ano de idade.171
Maria Justina é ré confessa do assassinato da sua mãe de criação
através de envenenamento. O caso chega até a justiça devido a uma queixa
prestada pela vizinha Maria da Pureza, mãe da jovem Maria Romana, a qual
170
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 217
171
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932.
94
Maria Justina confessou em segredo ter provocado a morte da velha que a
criou. Nos autos do interrogatório Maria Justina contou com detalhes que no
sábado, dezesseis do janeiro de 1932, à tarde, envenenara uma porção de
feijão que havia colocado em um prato para servir a sua mãe de criação. O
veneno utilizado foi o rosalgal, produto tóxico utilizado como pesticida,
comprado pela própria Justina a pedido da sua mãe com o objetivo de acabar
com uma praga de formigas na roça que a velha cuidava com a ajuda da
acusada. O prato envenenado foi servido a octogenária que comeu
normalmente por ser habitual a filha lhe servir seu almoço. No outro dia, o
domingo dia 17 de janeiro de 1932 a velha estava morta, sendo enterrada no
distrito de Almas no Municipio de Feira de Santana. O principal motivo
apresentado por Justina para ter cometido o crime foi uma contenda que teve
com a mãe de criação, que acusou de ter favorecido um grupo de ciganos a
furtar-lhe uma pulseira de ouro. Fato que a acusada também confessa
afirmando “ter concorrido para que os ciganos se apoderassem como de fato
se apoderaram da referida pulseira”172 por isso, “ficara ela acusada
incandescida com a velhinha, praticando como praticou o seu envenenamento
em um prato de feijão, que ela em pessoa dera a velhinha para comer.”173
No decorrer do interrogatório novos indícios surgem como motivador
para o crime, o fato de Maria Justina ser a única herdeira da velha Saloia, pode
ter motivado a acusada a antecipar a morte da sua criadora, afim de apoderarse dos bens e posses da idosa, uma vez que, a velha Saloia, havia deixado em
escritura a casa com o terreno onde moravam e mais uma casa no distrito de
Almas para sua filha de criação. Ao final do interrogatório Maria Justina de
Jesus, diz-se arrependida do crime praticando.
A vizinha que prestou queixa contra Maria Justina, é a mãe de Maria
Romana de Jesus, com dezenove anos de idade, solteira, doméstica
analfabeta, a qual declara que Maria Justina
indo a casa dela testemunha, lhe contara em segredo o facto
criminoso, dizendo mais que já dias antes procurava um meio de
172
173
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932
95
envenenar a velhinha saloia e que finalmente no sábado fizera em
prática o seu desejo, que ela testemunha temendo que se sucedesse
o mesmo consigo ou com outra pessoa qualquer de sua casa, por
isso que a acusada depois, da morte da velha Saloia, viera morar
174
com a família dela testemunha.
A testemunha questionou Maria Justina sobre o veneno utilizado no
crime, afirmando a acusada ainda possuir um pouco em uma latinha. Assim a
testemunha pedira que lhe trouxesse o resto e como de fato a acusada, no dia
seguinte, fizera, trazendo o resto do veneno. Maria Romana depõe que “diante
do sucedido, ella testemunha, não guardou segredo, levando o facto ao
conhecimento da mãe dela testemunha que se chama Maria da Pureza de
Jesus”.
Como a velha Saloia havia sido enterrada, sem suspeitas de
assassinato, foi necessário realizar um exame cadavérico para comprovar o
envenenamento, e para tal foi feito a exumação do corpo no dia 30 de janeiro
de 1932 pelos doutores Carlos Levindo de Moura Pereira e João Rodrigues da
Costa Dória. Como o corpo já se encontrava em estado de putrefação,
dificultou o exame, mesmo assim, foi recolhido um pedaço do rim, do intestino,
do fígado e o estômago, que se encontrava em bom estado de conservação.
Os órgãos foram encaminhados ao instituto médico-legal Nina Rodrigues para
os exames tóxicos. A conclusão dos exames concluiu que “nas vísceras de
Maria da Conceição continha arsênico”175.
O promotor público denunciou Maria Justina como incursas nos Art.
294§ 1º176 combinado com o Art. 296177 e o Art. 39§ 2º, 3º, 7º e 9º178. O juiz, Dr.
Manoel Ferreira Coelho expede o mandato de prisão preventiva contra Maria
174
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932
176
Art. 294. Matar alguém. (GAMA, 1923, p. 358)
177
Art. 296. É qualificado crime de envenenamento todo atentado contra a vida de alguma
pessoa por meio de veneno, qualquer que seja o processo, ou método de sua propinação, e
sejam quaes forem seus efeitos definitivos. (GAMA, 1923, p.365)
178
Art. 39. Circunstancias agravantes. §2º ter sido o crime cometido com premeditação,
mediando entre a deliberação crimonosa e a execução o espaço, pelo menos, vinte e quatro
horas. §3º ter o deliquente cometido o crime por meio de veneno, substancias anesthesicas,
incêndio, asphyxia ou inundação. §7º Ter o delinqüente procedido com traição, surpreza ou
disfarce. §9º Ter sido o crime cometido contr ascendente, descendente, cônjuge, irmão,
mestre, discípulo, tutor, tutelado, amo, domestico, ou de qualquer maneira, legitimo superior ou
inferior do agente. (GAMA, 1923, p 54 a 59).
175
96
Justina de Jesus no dia 03 de junho de 1932, sendo a mesma pronunciada
pelo crime e incursa nos artigos já mencionados.
Em julgamento, a defesa utiliza-se do recurso jurídico já mencionado em
outros casos que é amparado pelo Art. 27 §4º que prever que não são
criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e
de inteligência no ato de cometer o crime.
179
Assim Maria Justina de Jesus é
absolvida da acusação pelo Tribunal do Júri no dia 02 de agosto de 1932,
como sentencia o Juiz:
Em conformidade com as decisões do jury reconhecendo por maioria
180
de trez a dois [ilegível a palavra] Art. 275 §4 do Código Penal em
favor da ré Maria Justina de Jesus, absolvo a mesma da acusação
que lhe fora intentada e findo o prazo legal do crime da ré para em
seu favor alvará de soltura mandando da-lhe baixa sua culpa e pagar
os custos pela inculpabilidade.
Sala das sessões do Tribunal do Jury da Cidade de Feira de Santana,
181
as 16 h. em 02 de agosto de 1932
Outro conflito desencadeado no espaço privado foi a agressão praticada
por Alexandrina de tal em seu padastro Pedro Ferreira, 55 anos, oleiro,
analfabeto, amasio de Lucia de tal, mãe de agressora. Pedro é um dos casos
raros de homem que procura a polícia para prestar queixa de lesão corporal
contra uma mulher. Há que se destacar que o contexto machista da sociedade
feirense tão cara a ícones demarcadores de bravura e virilidade com o
sertanejo bravo, encontramos um homem subjugado por uma jovem mulher
causa espanto e alegria a nós pesquisadores. Alexandrina corriqueiramente
estava envolvida em brigas e contendas, seja entre os membros da família,
seja entre vizinhos. Das cinco testemunhas que depõem no processo, todas
são unânimes em afirmar que Alexandrina era uma mulher “barulhenta e
179
GAMA, 1923, p. 37.
Art. O direito de queixa privada prescreve seis mezes contados do dia em que o crime for
cometido. Não basta que a queixa seja oferrecida dentro dos seis mezes, a que se refere o Art.
275. É necessário ainda que a pronuncia seja decretada dentro do referido prazo, sob pena de
se julgar prescrita a ação. (GAMA, 1923, p 340 e 341)
181
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932
180
97
desordeira, tendo um mau procedimento”
182
. Esses fatos afirmados pelo Sr.
Eugênio Eduardo Basílio, 34 anos, residente no lugar Santo Antonio dos
Prazeres, oleiro, analfabeto. O depoente Matheus Apostolo Evangelista, 24
anos, pedreiro, sabendo ler e escrever ainda acrescenta que Alexandrina já foi
repreendida por ter agredido sua progenitora.
Pois bem, vemos que
Alexandrina tem um histórico que não lhe permite muito recursos jurídicos
pautados em valores que afirmem uma dada essência feminina. A acusada, em
nada corresponde aos modelos requeridos e divulgados de comportamento
feminino amparados nos conceitos de maternidade, passividade, submissão,
entre outros.
Pedro
Ferreira
relatou
que
no
dia
13
de
janeiro
de
1941,
aproximadamente às 20 horas, chegando ele na casa a qual reside, encontrou
com Alexandrina, filha da sua amasia, que neste momento estava a mesma
proferir palavras indecorosas, xingando muito sua dita amasia. Que ele na
posição de homem da casa, reclamou a acusada, pois, “ficava feio aquela
descompostura”. Iniciou-se desse encontro um conflito entre ambos, chegando
o mesmo a afirma que aquela não era a casa dela, para se proceder daquela
maneira. Declarando Pedro Ferreira que “nessa hora, Alexandrina avançou
para ele respondente dando-lhe um empurrão o que foi também feito por ele
respondente, que Alexandrina logo que recebeu o empurrão deu nele
respondente uma facada, fugindo em seguida, não sabendo ele respondente o
paradeiro da mesma”
Alexandrina é pronunciada e condenada, incursa no art. 303 do código
penal. Como a ré fugiu não encontrou no processo seu interrogatório para fazer
uma relação com as versões sobre o fato. Porém, o que é importante nesses
processos acima relatados sãos as nuances das relações violência presentes
no espaço doméstico, colocando em debates a dinâmica familiar dos populares
que não correspondia à máxima de “lar doce lar” ou “lar feliz”, comumente
relacionados a valores elitistas e modelos erigidos pelos grupos dominantes e
julgados com regra geral na sociedade. Em todos os casos relatados, neste
182
CEDOC – Alexandrina de tal – Doc.715, Cx. 43, Est. 2, ano 1941.
98
capitulo encontramos essa desfiguração do modelo familiar harmônico, com
padrões estabelecidos e normatizados.
Mãe desnaturada...
No desenrolar da pesquisa, ao analisarmos as representações femininas
nos processos criminais, eleva-se concepções acerca dos comportamentos
sociais dos populares numa nítida tentativa de controle e adequação. Focamse basicamente na mulher vitimizada que reage ao acumulo de agressões
sofridas e infringe a lei praticando o crime em legitima defesa, ou na mulher
que tomada de privação dos sentidos comete o crime, porém, motivado por
fatores que a vitimizam e inferiorizam, pois, cabe as mulheres comportamentos
que atribuam-na valores ligados a maternidade, fragilidade, delicadeza, entre
outros adjetivos sociais de uma dita “essência feminina”. Mas o que dizermos
dos crimes de infanticídios? Esses são considerados abomináveis, pois, é
quando a mulher nega seu papel sagrado de mãe, sendo algoz de sua própria
prole.
Assim, no dia 16 de junho de 1933, Ovídio do Nascimento, 22 anos de
idade, lavrador, residente no distrito de humildes, analfabeto, caminhando pela
Fazendo Boa Vista junto ao Arraial deste distrito, viu os restos mortais de uma
criança “que os urubus estavam acabando de comer ficando na sepultura uns
trapos de panos alvo que naturalmente teriam envolvido a criança ali mal
enterrada.”183
A cena acima descrita é bastante comovente e fez com que se
buscassem a responsável por aquele gesto de ausência de valores cristãos.
Dessa maneira, chega-se a Maria do Carmo Oliveira, solteira, 19 anos,
doméstica, residente no distrito de humildes. Maria do Carmo engravidara de
Thomaz Alves Franco a qual tinha uma relação de amigamento, mantendo
183
CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano
1933.
99
encontros sexuais semanais com o referido. Os vizinhos assustam-se ao saber
que fora Maria do Carmo a autora daquele crime, a mesma era tida como moça
honesta, trabalhadora, pois, ajuda dona Theodora a fazer charutos, sendo
também cantora da Igreja Matriz do distrito de Humildes184. Maria do Carmo
Oliveira confessa o crime e relata com detalhes o corrido em seu interrogatório.
No dia 09 de junho de 1932 às trezes horas, deu luz a uma criança do
sexo feminino, conservando a dita creança viva uma hora mais ou
menos, depois resolveu matal-a apertando a garganta para não
chegar ao conhecimento da senhora Theodora quem lhe criou.
Depois de matal-a[sic] deixou debaixo da sua cama até o dia de
sábado, doze do corrente quando das sete para oito horas da noite
aparecendo Thomaz Alvas Franco, pai da dita criança, tomou e levou
185
para enterrar. [sic] [grifo nosso]
Maria do Carmo, em nenhum momento do processo, demonstra
arrependida do feito, porém, há que destacar que o fato de ser o crime
considerado socialmente monstruoso, faz com que os agentes jurídicos,
inclusive escrivães demonstrem insensibilidade com a acusada, o que não nos
permite afirmar se de fato, Maria foi tão insensível em seu interrogatório. Maria
apresenta-nos uma informação importante, que cometeu o infanticídio para que
a senhora com a qual morava não descobrisse da gravidez nem do filho. Com
base nessa informação podemos inferir sobre um fator recorrente na dinâmica
de sobrevivência entre os populares, que devido a condição de classe, viviam
como agregados em casas de famílias, trocando o provimento diário por abrigo
e alimentação, isso sinaliza para os reajustes familiares de uma sociedade
herdeira de uma tradição escravista. Assim, surge um novo questionamento,
quais as conseqüências de se ter uma criança nessas condições sociais?
Observamos que Maria do Carmo opta pela própria manutenção na casa de
Dona Theodora à criar sua filha, subjugando esta ao óbito no momento do
nascimento. Observamos que o fato do infanticídio foi racionalmente praticado
184
CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano
1933.
185
CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano
1933.
100
que a mesma oculta o cadáver da recém nascida por três dias debaixo da
cama, até o amasio poder enterrá-lo.
Thomaz Alves Franco, o pai da criança e ocultador do seu cadáver
também foi interrogado, mas busca inocentar-se da participação do crime,
afirmando que sensibilizou-se com a filha morta, pois, a enterrou acreditando
que a mesma havia nascido morta. No interrogatório:
que no dia doze do corrente as oito horas do dia recebendo recado
de Maria do Carmo de Almeida lhe chamando para chegar a casa
dela. O que ele fez inocentemente, dizendo ele, Maria que a noite, ele
Thomaz voltasse lá o que fez nesta ocasião, recebeu dela um
embrulho em pano alvo o que ele espantou-se perguntando o que era
aquilo, ela lhe respondeu que era a filha para enterrar. Recebeu com
tanto remorso que não sabe a que sexo pertencia e disse ela
186
parturiente que tinha nascido morta. [grifo nosso]
O promotor público denuncia o casal incursos nos Art. 298187, Art
21§2º188, Art. 64189 e Art. 39§ 13º190. Os réus são pronunciados e expedido
mandado de prisão, porém, ambos fogem do lugar onde residiam, não sendo
encontrado o paradeiro dos mesmos.
Mulheres que brigam...
O convívio de vizinhança entre os populares era marcado por uma maior
relação de proximidade, transformando-se estes em integrantes constituintes
das relações familiares, interagindo através de trocas de favores, como no
compartilhamento de produtos alimentícios, medicinais e demais produtos que
186
CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano
1933.
187
Art. 298- matar recém-nascido, isto é,infante, nos sete primeiros dias do seu nascimento,
quer empregando meios directos e activos, quer recusando à victima os cuidados necessários
à manutenção da vida e a impedir sua morte. (GAMA, 1923, P. 369)
188
Art.21 §2º Os que, antes ou durante a execução, prometterem ao criminoso auxilio para
evadir-se, occultar ou destruir os instrumentos do crime, ou apagar os seus vestígios. (GAMA,
1923, P.26)
189
A cumplicidade será punida com as penas da tentativa e a cumplicidade da tentativa com as
penas desta, menos a terça parte. Quando, porém, a lei impuzer à tentativa pena especial, será
aplicada integralmente essa pena à cumplicidade. (GAMA, 1923, p. 88)
190
Ter sido crime ajustado entre dois ou mais indivíduos. (GAMA, 1923, P.60).
101
iam desde um sabão para lavar roupas, até uma galinha para dividir os ovos ou
um porco. Na dinâmica de integração e proximidade entre vizinhos existiram os
conflitos desencadeados por contendas, fofocas e pela complexa demarcação
de território seja fisicamente, seja simbolicamente.
No caso do conflito entre Leonidia Victoria de Lima, 27 anos de idade,
casada, analfabeta e Maria José de Almeida, 23 anos de idade, solteira,
sabendo ler e escrever, ambas lavradoras, residentes na fazenda Boa
Esperança no distrito de Tanquinho, no município de Feira de Santana,
demonstra as contentas e rixas costumeiras entre vizinhas. Em depoimento,
Leonidia apresenta as causas decorrentes da agressão, apresentando-nos um
faceta do cotidiano das mulheres rurais feirenses, como o fato buscar água
para abastecimento da casa em fontes, a dinâmica do trabalho nas lavouras,
que eram o meio de recurso familiar das mulheres e homens pobres da zona
rural.
Achava-se ela depoente no caminho da fonte da Fazenda Boa
Esperança que dista uma légua desta localidade onde encontrou-se
com Maria José de Almeida a quem pediu para não passar dentro se
sua roça de lavoura deixando aberta a porteira da mesma afim de
evitar prejuízos causados com a entrada de animais que devastavam
a sua lavoura já por várias vezes. Neste interin Maria José lhe
agredia, após acalorada discussão foram as vias de fato, resultando a
depoente sair ferida. Que sua agressora a subjugou-lhe com uma
pedra na mão deu-lhe diversas pancadas no rosto, na cabeça, nas
191
costas e costelas.
Como de costumeiro nos conflitos de Lesões Corporais, as duas partes
envolvidas contam versões diferenciadas, buscando evidentemente construir
um discurso de vitimização, muito em consonância com que discutimos no
início do capítulo sobre as representações jurídicas de mulheres nos
processos,
as
quais
reafirmam
posturas
pautadas
na
passividade,
demonstrando que os atos agressivos são conseqüências da legitima defesa
de sua integridade, que neste caso, evidente é a integridade física. Assim
Maria José declara que:
Passava por dentro da roça de Leonidia vitória de Lima de quem é
desafeta a mais de oito anos e com destino a fonte quando ela volta
191
CEDOC – Maria José de Almeida – Doc. 935, Cx. 54, Est. 02, Ano 1940.
102
foi insultada e agredida pela sua contentadora Leonidia Vitória, a
quem tomou um cacete e em seguida uma pedra e com o fim de
defender-se, então em luta e lançou mão da mesma pedra com esta
192
deu algumas pancadas na cabeça da sua mesma agressora.
Como não houve testemunha ocular do fato, as testemunhas arroladas
no processo, trazem à baila o comportamento e procedimento das envolvidas,
que serão caracterizadas com “meretrizes”, “barulhentas” “mal procedidas”.
Como declarou o José Sebastião Barbosa, 34 anos, solteiro, lavrador, “ que
não só a ofendida como também a acusada eram casadas e hoje vivem do
baixo meretrício”. Continua José Batista de Oliveira, 20 anos, solteiro, lavrador,
“ que não só a acusada como a ofendida são mundanas”. Por fim, Manoel de
Oliveira, 18 anos de idade, solteiro, lavrador, analfabeto, declara “ que não só a
acusada como a ofendida são geniosas e gostam de barulho, vivendo ambas
do baixo meretrício e que eram inimigas de longa data”.
As informações trazidas pelas testemunhas abrem novos caminhos na
análise do cotidiano conflituoso entre as envolvidas, pois, o fato de viverem do
“meretrício”, traziam novas tensões que vão além de cuidado e controle da
roça, às contendas oriundas de conflitos sexo-econômico, como a disputa por
clientes ou territorializações.
O fato da conduta das envolvidas influenciou a decisão do Júri que condenou
Maria José de Almeida no grau máximo do Art. 303 do Código Penal.
É salutar frisarmos que o município de Feira de Santana até meados do
século XX, ainda tinha uma população inferior a cem mil habitantes, sendo que,
a maioria da população dividia-se nas zonas rurais e distritos, isso demonstra
que uma fofoca ou intriga era facilmente disseminada devido a proximidade
gerada pelo convívio social em sociedade interiorana, ainda que isso seja
contestando pelos veículos midiáticos que propagavam a modernização da
cidade, como já discutimos no I Capitulo.
Dessa forma, no dia 02 de abril de 1837, chega a delegacia de policia de
Feira de Santana, Anna Pereira da Invenção, 37 anos de idade, queixando-se
192
CEDOC – Maria José de Almeida – Doc. 935, Cx. 54, Est. 02, Ano 1940
103
de Maria Alexandrina, conhecida como Isabel, 19 anos de idade, apresentando
ferimentos decorrentes de cortes com uma navalha, que foi manipulada por
Maria Alexandrina. Mais uma vez o processo crime nos traz as peculiaridades
do cotidiano de mulheres pobres na urbe feirense. As envolvidas eram
analfabetas, solteiras, domésticas e residentes na Rua General Pedra. Anna
Pereira relata que se encontrava na Praça dois de julho quando chegou Maria
Alexandrina conhecida por Isabel e lhe “passou uma grande descompostura”.
Em decorrência do conflito desencadeado na Praça referida, a ofendida foi a
casa do Delegado, onde se queixou de Maria Alexandrina, recebendo conselho
do subdelegado lhe “disse que fosse para casa e que ia tomar as
providências”. Antes do Delegado “tomar as providências” ela e Maria
Alexandrina entram em mais um conflito na casa da vizinha de nome,
Eufrozina, onde “Maria Alexandrina, com uma navalha na mão, lhe fez
inesperadamente os ferimentos que apresenta, tendo Ella depoentes corrido
novamente até a casa do Delegado”.
Um fato bastante elucidativo nesse processo sobre o cotidiano dessas
mulheres populares é a questão das constantes brigas e discussões em
público. Esse comportamento das populares levam-nos a problematizações
acerca dos modelos de educação feminina, sempre aparados no recato e
delicadeza193, o que não correspondiam aos ditames e costumes das
populares. Assim, os motivos para o crime: rixas e desentendimentos que
vinham de longa data, sendo corriqueiras as ofensas verbais e as
desmoralizações públicas entre ambas. Em interrogatório, Maria Alexandrina
relata que
Feriu Anna Perreira por ter a mesma lhe insultado bastante, isso já se
reproduzindo por muitos dias e que hoje foi obrigada a fazer isto, que
Anna Pereira já há cerca de oito mezes que vem procurando intrigas
194
com Ella depoente, sendo Ella obrigada a praticar essa violência.
193
SOUSA, Ione Celeste de. Garotas tricolores, deusas fardadas: as normalista em Feira
de Santana, 1925 a 1945. São Paulo: EDUC, 2001.
194
CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937.
104
Os relatos de Maria Alexandrina são confirmados pelas testemunhas,
que afirmam ser Anna Pereira, uma mulher de mal procedimento e dada a
barulhos. A questão do procedimento é bastante aludido nos processos
criminais, pois, conduzem a formação de culpa ou absolvição dos denunciados.
O fato de um indivíduo, mulher ou homem ser considerado socialmente como
tendo um bom ou mal proceder, interfere diretamente na aplicação das penas,
que podem variar entre grau mínimo ao máximo. Os denunciados(as) quando
condenados que apresentam bom procedimento são incursos nas penas
míninas ou leves, sendo também aplicado o seu inverso. Assim a testemunha
Isaura Ferreira da Silva, com 41 anos, solteira, residente a Rua General Pedra
neste município, relatou:
Que há mais de seis mezes ouve a ofendida insultar a denunciada e
armada dizer que só se retirará da Feira quando lhe fizesse um
serviço (...) assistia sempre discussão entre as ellas, tendo
opportunidade certa feita de separar a denunciada com luta iminente
com a offendida. Que a denunciada é de bom proceder e a
offendida Anna Pereira é muito ruim, tendo já sido presa
195
diversas vezes.
Baseado na caracterização social dos sujeitos envolvidos no processo, o
advogado de defesa, o Dr. Vicente dos Reis, constrói mas uma peça jurídica,
na qual utiliza o comportamento social de Anna Pereira para justificar a legitima
defesa de sua cliente. Dessa forma, o experiente advogado, cria uma
tipificação de mulher perigosa para Anna Pereira na tentativa se sensibilizar o
júri.
A suposta victima é a conhecida desordeira Anna Pereira, pensionista
por diversas vezes da cadeia Publica desta cidade.
Confiada na sua valentia, affeita ao crime, acostumada a ver correr
na lâmina de sua faca ou navalha o sangue dos que caiam em seu
desagrado, vinha há tempos, insultando e perseguindo a pobre menor
Maria Isabel, dizendo, mesmo de público “que só se retiraria da Feira
quando lhe fizesse um serviço”, esta certamente, quando
assassinasse a dita menor. (...) que é possuidora de um exemplar
procedimento afirmam todas as testemunhas.
195
CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937.
105
O certo é que a menor Isabel foi colocada pela perversa Anna
196
Pereira, neste dilema – morrer ou matar.
Apesar do esforço do advogado, Maria Alexandrina é condenada e
incursa nas penas míninas do Art. 303 do Código Penal. A condenação em
pena mínina é considerada uma vitória da defesa, uma vez que a prova do
crime é cabal, além de ré ser confessa.
196
CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937.
106
Capítulo III
Os crimes do amor
107
Este capítulo analisa as relações sexo-afetivas entre os populares
aparados no conceito de honra, a partir da análise de 53 processos criminais
de defloramentos, sedução e estupros em Feira de Santana, nas décadas de
1930 a 1948.197 O caminho percorrido entre o desvirginamento até à queixa
revela-nos uma faceta do cotidiano socioeconômico e sexual dos populares
que transitavam entre a urbe e o campo feirense. Debruçar-se sobre este
cotidiano popular, é vislumbrar as estratégias de sobrevivência e as
experiências vividas por homens e mulheres que tornaram público sua
intimidade
através
das
interlocuções
judiciais,
apresentando-nos
as
concepções históricas sobre honra feminina e suas nuances socioculturais. É
importante acrescentar que a honra é um comportamento enquadrado a partir
das relações que uma dada sociedade confere aos seus sujeitos, que variam
de acordo com as relações sociais e de gênero.198
O próprio Código Penal de 1890 no Título VIII, estabelece os crimes
contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao
pudor199, que enquadrava os crimes de violência carnal, rapto, lenocínio,
adultério ou infidelidade conjugal e ultraje ao pudor público. Nesses crimes
tipificados, as mulheres e suas performances sexuais, eram os elementos
centrais do enquadramento da lei, associando diretamente ao conceito de
honra. A honra feminina ligava-se à masculina, pois, os ditames da
normatividade legal eram pensados numa realidade de família paterfocal, no
qual o homem, como responsável pela proteção da família, deveria
salvaguarda sua honra no controle dos corpos de suas filhas no regulamento
197
Os processos utilizados neste capítulo foram catalogados pelo CEDOC com crimes de
DEFLORAMENTO, porém, cabe ressaltar que após a mudança do Código Penal em 1940, a
terminologia criminal passa ser SEDUÇÃO, por isso que ao longo do capítulo, utilizaremos o
termo exposto na documentação, ou seja, defloramento, porém atentamos o leitor para os
ditames legais do Código Penal.
198
RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do
Salvador, 1940-1970. (Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p. 101.
199
GAMA, Affonso Dionysio da. Código Penal Brasileiro (Dec. n. 847, de 11 de Outubro de
1890). São Paulo, Saraiva editora, 1923, p. 325
108
do comportamento das mulheres do lar200. Segundo Fausto, “desvenda-se
desse modo o pressuposto de que a honra da mulher é o instrumento mediador
da estabilidade de instituições sociais básicas – o casamento e a família”201.
Elemento material da honra feminina, a virgindade, esta ligada
diretamente, à presença do hímen, considerado um “selo biológico” que
atestava a mulher para o casamento, separando-as entre honestas e
desonestas202. Sueann Caulfield, fez a análise dos juristas do início do século
passado, que se debruçaram sobre os crimes sexuais e definiam que uma
mulher solteira virgem era uma prostituta em potencial203. Cabe destacar que a
materialidade da honra, a virgindade, já era questionada nas primeiras décadas
do século passado, pela inserção do saber médico, que discutia a existência do
hímen complacente204.
No bojo desse debate, estabelecia-se ao lado da
materialidade do hímen, a concepção de honra social, atrelado ao
comportamento e aos costumes.
Com a mudança do Código Penal em 1940, a redação do título da lei é
alterada, substituído por Crimes contra os Costumes205, separando-os dos
crimes contra a família, enquadrando os a partir de então como crimes contra a
liberdade sexual, sedução e corrupção de menores, rapto, lenocínio ou tráfico
de mulheres e ultraje ao pudor. Nesta nova redação da lei, surge também
uma nova relação com seu enquadramento social, suprimiu-se a palavra honra
e focou-se nos costumes, sendo direcionado ao conceito de pudor.
Essas
mudanças nas concepções de honra sexual foi fruto de um amplo debate entre
200
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura, 2000; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição
feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado),
Salvador: UFBA, 1994; RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na
cidade do Salvador, 1940-1970. (Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007.
201
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001, p. 196.
202
Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
203
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura, 2000, p. 77.
204
CAULFIELD, Op. Cit. 76.
205
Capitulo VI – Código Penal Brasileiro, Decreto Lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940.
109
jurista nos anos de 1920 e 1930, destacando Afrânio Peixoto e Nelson Hungria,
que buscavam definir um novo conceito de honra, combatendo a idéias
“himenocêntrica”, de valorização social da virgindade, que não correspondiam
a uma noção de avanço social e por sua vez demonstravam um atraso nas
instituições políticas e sociais brasileiras206. O que estava em foco eram as
mudanças a nível de Brasil com a industrialização e a entrada das mulheres no
mercado de trabalho institucional, como operárias e, em conseqüência, em
outras atividades, emergindo uma “mulher moderna”, que trabalhava e atuava
para além do privado e do doméstico. Cabe destacar que essa “mulher
moderna” é pensada a partir de um modelo elitista de mulher, pois, entre as
mulheres populares, a permanência na rua e no mundo do trabalho, era uma
prática corriqueira e constituinte das identidades dessas mulheres dos grupos
populares, sendo em diversos aspectos uma resignificação da escravidão
passada207.
A busca na definição da honra feminina levou os juristas e comentadores
do Novo Código a focar-se nos aspectos morais, pois, este apresentava um
caráter subjetivo ligando-se aos costumes e comportamentos. Nelson Hungria
ao comentar o Novo Código Penal, demonstrou, que era importante adequar o
Código à emergência de uma nova sociedade e rever os postulados penais. No
tocante aos crimes sexuais, o autor foca no sentido da caracterização da honra
feminina, ligada ao conceito de pudor, que transpunha e atuava como uma
ação preventiva, pois, a nível individual, exercia um controle subjetivo e
psíquico de maneira complexa, causando a inibição em defesa dos critérios
ético-sociais atinentes ao que o autor chama de “amor genésico”, e, a nível
coletivo, exercia uma injunção de observância das formas de normalidade e
reservas impostas, no que respeita a função sexual, a experiência e as
necessidades sociais.208 Dessa forma, o pudor funcionava como o policiamento
206
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura, 2000, p. 163
207
Ver essa discussão da mulher no espaço da rua em: SOARES, Cecília Moreira. A Mulher
Negra na Bahia no século XIX, (dissertação de Mestrado), Salvador, UFBA, 1994.
208
HUNGRIA, Nelson; LACERDA, Romão Cortes de. Comentários ao Código Penal. Rio de
Janeiro: Companhia Editora Forense, 1948, p 90.
110
dos costumes coletivos e individuais, atuando numa sociedade que
apresentava “crises morais” como o fato das “mulheres modernas”. O
julgamento não era apenas pela materialidade do fato, mas nas conjunturas
morais e pudicas em que se inscreve.209
Nosso ponto de partida para compreender os crimes sexuais em Feira
de Santana nos anos de 1930 a 1948 é uma indagação sobre o que levaram
tantos pais e mães pobres a procurarem na justiça a reparação do
desvirginamento de suas filhas? qual o conceito de honra que vigorava entre os
populares?
A análise sobre os comportamentos sexo-afetivo entre os populares, nos
apontam para organizações particularizadas de família, como as famílias
matrifocais210211, ou através de conjugalidade, decorrente de relações de
amasiamento, de concubinato, etc. Entre os pais que prestaram queixa, dos
cinqüenta e três processos, apenas treze eram casados. É importante
localizarmos a noção de honra entre este sujeitos e perceber a circularidade
entre o Código Penal, os costumes e as experiências de vida dos sujeitos
evidenciados. Vemos pela leitura processual, que a materialidade da honra
entre os populares que procuraram a delegacia para queixar-se, estava na
virgindade, sendo o hímen este elemento definidor. Pelo alto índice de
analfabetismo em Feira de Santana, nas décadas em evidência, acredito que
nenhum pai ou mãe tenham lido algum dos Juristas e comentadores dos
códigos penais vigentes no período em estudo, seja o Código de 1890, seja o
Código de 1940, porém, nas falam nos autos dos processos, demonstram
209
Ver debate em RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na
cidade do Salvador, 1940-1970. (Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p. 101.
210
A matrifocalidade é um conceito antropológico, para pensar as relações familiares nas quais
a presença e o direcionamento familiar é focado no feminino, ou seja, na figura da mãe. Essa
formação familiar é bastante experimentada entre os populares, pois, devidos aos códigos de
conjugalidade popular, favorecer um maior trânsito e autonomia entre os sexos, gerando dessa
forma relações mais flexíveis comparadas aos modelos elitistas de familiar nuclear burguesa.
Assim não raro eram as famílias formadas pro mães solteiras, provendo sua prole com o
trabalho feminino. Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres:
condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de
Mestrado), Salvador: UFBA, 1994.
211
Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e
cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA,
1994
111
apropriar-se dos conceitos penais ao acreditarem que a perda do hímen levava
consigo a honra feminina e, por conseguinte a honra familiar, condicionando
aquele indivíduo à prostituição.212 As falas dos queixosos nos processos são
exemplares, como foi o caso de Maria Theodora de Jesus, 44 anos de idade,
residente no beco do Bom e Barato, solteira, doméstica, analfabeta, que
procurou a delegacia no dia 10 de setembro de 1941, para queixar-se do
desvirginamento de sua filha, afirmando que a sua atitude era para “não ficar
impune um crime desta ordem e na prostituição a filha, procurou queixar-se
pedindo providencias”213
Ainda continuamos a nos indagar, o que levou indivíduos como Maria
Theodora, pobres e analfabetos, a requererem na Justiça a confirmação de
uma honra feminina que não correspondiam ao cotidiano dos mesmos?
Constata-se que Maria Theodora é solteira, mesmo tenho alguns filhos, o que a
enquadra como uma mãe solteira que, por sua vez, era um modelo desviante
na norma legal de conduta moral, mas confirma a nossa observação sobre as
organizações particularizadas de famílias. Boris Fausto analisando os crimes
sexuais em São Paulo nas décadas de 1880 a 1924, presume que os valores
familiares ligadas à honra e virgindade, permeavam por todos os grupos
sociais.214 Ainda, Marta Esteves ao estudar os crimes sexuais no Rio de
Janeiro, chama a atenção para as peculiaridades culturais na compreensão da
honra entre os populares, a autora observa que os populares ao darem as
queixas “necessitavam convencer as autoridades de que possuíam um
conceito de honra vinculado à virgindade e ao casamento regular”215 Essa tese
defendida por Esteves é a que melhor define o comportamento das populares
nas instâncias legais. Não compreendo como uma atitude submissa a ação
desses sujeitos de queixar-se, reafirmando o conceito de honra-virgindade. O
212
CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da
Cultura, 2000, P. 27
213
CEDOC/UEFS - Hermes Sodré – Doc. 2152, Cx. 103, Est.04, Ano 1941.
214
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001.u
215
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 118.
112
olhar mais atento demonstra que há empoderamento e lutas de representação,
pois, esses indivíduos, mesmo não compreendendo o Código Penal, acredito
que jamais o tenham lido, o re-significavam a partir do costume, e, dentro dos
princípios da normatividade construíam suas versões. Segundo Esteves, “é
exatamente a prática de muitas ofendidas pobres que permite pensar a
hipótese de a honra para elas ter significado distinto, apesar da difusão dos
valores higiênicos”216. Dessa forma, o que estava em jogo nas delegacias e
tribunais eram lutas e resistências por manutenção sócio-econômica.
O longo caminho do processo crime até a sentença do Juiz é bastante
enviesado, por muitos acertos particulares, arquivamentos, fugas, casamentos,
etc. No ato da queixa, busca-se a prova material, que é a constatação do
desvirginamento através do exame de corpo de delito, que se constitui numa
prova jurídica e num álibi que pode favorecer a acusação, como também a
defesa. O exame funciona com a averiguação física da queixosa, desvelando
sua intimidade, onde os médicos peritos respondem ao questionário composto
de cinco quesitos, os quais: PRIMEIRO – se houve defloramento; SEGUNDO qual o meio empregado; TERCEIRO - se houve copula; QUARTO - se houve
violência para fins libidinosos e QUINTO - qual o meio empregado, se força
física, se outros meios que privasse a mulher da possibilidade de resistir e
defender-se.217 Assim, cabia aos peritos a confirmação do fato, dando-lhe a
prova. A conclusão do exame definia se o defloramento foi recente ou antigo,
se a vítima estava grávida, ou se, por exemplo, a vítima adquiriu alguma
doença sexualmente transmissível. O fato da brevidade ou não do
defloramento, corroborava ou contradizia a queixosa, pois, o fato de constatar
um defloramento antigo ou “cicatrizado” era um denunciador de que a vítima
vivia em “prostituição”.
Confirmada a prova cabal do crime, segui-se o processo, porém, outro
fator preponderante para configuração do crime de estupro ou defloramento é a
216
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 118.
217
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Defloramentos e Estupros
113
comprovação da menoridade. Cabe destacar que em Feira de Santana em
meados do século XX, que influía uma ampla ausência de documentação
comprobatória, sendo requeridas as certidões de batismo ou mesmo os
exames de verificação de idade que se assemelhavam ao exame de corpo de
delito. A prova da idade era um fator crucial para caracterização do crime,
sendo este um dos principais motivos de arquivamento.
Nas declarações prestadas pelas queixosas/queixosos e as vítimas,
vemos emergir discursos que buscam estabelecer uma representação feminina
na qual a ofendida é posta à baila e relacionada aos ditames sociais requeridos
para identificação de uma menina honrada. Assim, evocam-se parâmetros de
passividade, fragilidade, inocência e recato218. Dessa forma, as representações
que circulam nos processos, tendem a requerer uma mulher como uma figura
passiva, sem desejos ou impulsos219. O oposto é identificado como mundanas,
meretrizes. Para tal identificação são trazidos à tona elementos do cotidiano
das ofendidas e dos denunciados, ligados ao comportamento social e
integração familiar, portanto, são perguntas fundamentais nos processos de
crimes sexuais, qual o procedimentos dos envolvidos? Pois, a construção
social da honra requeria comportamentos tanto femininos quanto masculino,
porque ao homem era cobrado o trabalho e a providência do lar, mesmo assim,
o que fica de fato em questão era o comportamento feminino. No que se
referem às mulheres essas perguntas são direcionadas para os elementos
envolvendo a interação entre o público e o privado, como se a menina sai
sozinha a rua, ou se sai à noite, se freqüenta festas, se já teve outros
namorados ou noivos. No caso dos homens essas perguntas são direcionadas
às relações públicas, como se trabalha ou se é dado à embriaguez. A
caracterização
das
masculinidades
e
feminilidades
apreendidas
pelos
discursos nos apresentam posições de dominação simbólica na qual se
estabelece uma relação binária de homem sedutor, viril versus mulher
218
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
219
FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001, p. 204.
114
seduzida, consumível. Em todo o processo há uma tentativa de reafirmar a
deserotização feminina, reivindicando mulheres, que não controlassem seus
corpos e desejos. Não raro, foram os casos em que a mulher entra como vítima
e sai como autora do delito, pois, o comportamento desregular frente essa
deserotização, faz com as ofendidas passem de seduzidas à sedutoras.
Os envolvidos...
Os dados quantitativos oriundos da análise dos processos nos dão
suporte para estabelecer o perfil social dos sujeitos que transitaram nessa
esfera jurídica dos processos de crimes sexuais, observando desta forma, as
profissões, as idades, a cor, o estado civil, a instrução, o local de moradia.
Esses dados nos levaram a constatações peculiares da sociedade feirense,
entrelaçadas nas redes socioculturais dos nossos sujeitos.
Uma breve amostragem acerca da autoria das queixas de crimes
sexuais, prestadas em Feira de Santana de Santana, nas décadas de 19301948, constatamos uma maior presença masculina no ato da queixa, que
visava a “reparação da honra perdida”, através do desvirginamento. Apesar
deste dado caminhar em consonância com a legislação da época que
determina que a queixa deveria ser prestada pelo chefe da família, que
historicamente é centrada na figura masculina do pai.
O que nos chama
atenção neste fato, é que em estudos sobre a mesma temática, realizados por
outros historiadores, entre eles, Ferreira Filho, Sanches, Esteves, encontraram
uma realidade oposta, na qual a autoria das queixas era majoritariamente
feminina, demonstrando as nuances dos arranjos familiares populares 220.
220
ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito.
115
Destacamos que estes estudos focaram os centros urbanos da cidade de
Salvador e Rio de Janeiro. Entre os feirenses, o percentual masculino nas
queixas representa 54,7%, entre os pais, responsáveis e patrões. Este dado
pode sinalizar para o fato de que o município de Feira de Santana, ainda na
década de 1940, contasse com uma população largamente situada na Zona
Rural, o que interferia nas redes de sociabilidades e na dinâmica cultural dos
relacionamentos sexo-afetivos, em que a permanência de famílias biparentais
eram mais relevantes, mesmo entre os populares, sabendo que essas famílias
não eram constituídas por casamentos eclesiásticos ou civis, mas sim por
relações de amasiamentos e concubinatos, como demonstrados no II capitulo.
TABELA 8 - AUTORIA DA QUEIXA
Queixoso
Pai
Mãe
Avó
Responsável
Patrão
Vizinho
Tia
A vítima
Ignorado
Total
Quantidade
19
16
03
06
03
01
01
02
01
53
Porcentagem
35, 84%
30,18%
5,66%
11,32%
5, 66%
1,88%
1,88%
3,77%
1,88%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de defloramentos e estupros. (1930 – 1948)
Apesar de a porcentagem masculina ser maior, não podemos deixar de
problematizar, o relativo número de queixas prestadas pelas mães. Nestes
processos, verifica-se a ausência do pai no ambiente familiar, o que nos
permite inferir sobre a constituição familiar dos populares que não seguiam as
ditames da regra da biparentalidade, destacando as queixas prestadas por
mães solteiras. Destacando ainda que entre as dezesseis mães que prestaram
queixa, três são viúvas. Alberto Heraclito Ferreira Filho ao discutir o tema,
Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque
Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994; SANCHES, Maria Aparecida
Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico.
Salvador 1900/1950. (dissertação de Mestrado), Salvador, UFBA, 1998.
116
demonstra que entre os populares havia certo reajustamento familiar, porém,
mesmo nas famílias matrifocais, o pai, figura masculina, representava uma
referência com bastante força. O autor chega a afirmar que a “sociedade
baiana, no tocante aos populares, tão feminina na sua expressão prática e
cotidiana e tão masculina em seus valores, regras e propósitos”221.
As nossas “meninas desonradas” tinham, na maioria dos casos, idades
entre 10 a 19 anos, sendo o quesito da idade uma das peças chaves num
processo de estupro e defloramento, pois, a própria lei sinalizava para fator da
idade como preponderante na caracterização do crime. No Código Penal de
1890, estabelecia que “nos crimes contra a honra da mulher, o consentimento
desta, sendo menor, não exime da pena o autor do delito” 222. A idade interferia
no desenrolar do processo e julgamento, pois, o defloramento numa menor de
14 anos, considerava-se crime com presunção de violência, o que facilitava
para a ofendida a sua “reparação” com o casamento, ou a condenação do réu.
Cabe destacar que a falta de comprovação da idade da ofendida, devido à
precariedade nos registros civis e a própria condição de analfabetismos e
pobreza dos nossos sujeitos, era preponderante para o arquivamento dos
processos. Como fica evidente na fala do Promotor Público ao solicitar o
arquivamento de um processo de defloramento:
À certidão de baptismo foi negativa. De tudo, pois, o elemento único
existente nos autos comprovador de sua idade é o exame médico, o
qual conclue achar-se a idade comprehendida entre 18 e 20 anos.
Ora, em face dessa conclusão e na impossibilidade de apresentação
de outra prova a respeito, requer a Promotoria o archivamento deste
papeis, tendo em attenção os dispositivos dos arts. 217º e 2º do
223
actual código Penal. [sic]
221
FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e
cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA,
1994, p. 69.
222
GAMA, Affonso Dionysio. Código Penal Brasileiro – (Dec. N. 847, de 11 de outubro de
1890), Livraria Academica, Saraiva Editores, São Paulo, 1923. P. 326.
223
CEDOC – Doc.1647, Cx.85, Est. 03, ano 1941 – Pedido de arquivamento de processo pelo
Promotor Lauro de Azevedo em 16 de janeiro de 1942.
117
TABELA 9. QUANTO A COR/IDADE/ESTADO CIVIL DAS VÍTIMAS
Cor
Branca
Parda
Preta
Morena/mulata
Ignorada
Qt.
04
32
09
01
07
%
Idade
7,54% 10 a 19
60,37% 20 a 29
16,98%
1,88%
13,20%
Qt.
47
06
%
Estado civil
88,67% Solteira
11,32%
Qt.
53
%
100%
Total
53
100%
53
100%
53
100%
Total
Total
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Crimes de defloramento e Estupros 1930-194
TABELA 10. QUANTO A COR/IDADE/ESTADO CIVIL DOS RÉUS
Cor
Branco
Pardo
Preto
Moreno/mulato
Ignorado
Qt.
04
12
01
02
34
%
7,54%
22,64%
1,88%
3,77%
64,15%
Total
53
100%
Idade
10 a 19
20 a 29
30 a 39
40 a 49
Acima de 50
Ignorada
Total
Qt.
08
21
11
03
02
08
53
%
15,09%
39,62%
20,75%
5,66%
3,77%
15,09%
100%
Estado civil
Solteiro
Casado
Viúvo
Ignorado
Qt.
33
13
01
06
%
62,26%
24,52%
1,88%
11,32%
Total
53
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Crimes de defloramento e Estupros 1930-1948
A análise sobre as profissões dos réus comprova o que buscamos
discutir ao longo dos capítulos anteriores, que retrata a dinâmica rural de Feira
de Santana de meados do século XX, uma vez que 35,8% dos acusados
declararam ser lavradores ou roceiros, um amplo percentual, porém 64, 2% dos
envolvidos declararam ocupações que sinalizavam para o um dado
crescimento da paisagem urbana feirense no tocante a ocupação popular. A
questão da ocupação ou profissão dos acusado era um fator bastante
requerido nos processos, pois, assim como exigia-se das mulheres um
comportamento casto, ao homem exigia-se um comportamento ligado ao
trabalho e a disciplina.
118
TABELA 9 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DO RÉU
Profissão/ocupação
Lavrador/roceiro
Operário
Chauffeur/motorista
Ferreiro
Pedreiro
Comerciante/negociante
Profissões liberais
Policial Militar
Barbeiro
Eletricista
Funcionário Público
Alfaiate
Ignorada
Padeiro
Total
Quantidade
19
02
03
02
03
09
03
01
02
01
01
01
05
01
53
Porcentagem
35,8%
3,7%
5,6%
3,7%
5,6%
16,9%
5,6%
1,8%
3,7%
1,8%
1,8%
1,8%
9,4%
1,8%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Crimes de Defloramentos e Estupros (1930 – 1948)
Quando observamos as profissões declaradas pelas vítimas, constamos
uma complexa definição de ocupação feminina em Feira de Santana, (79,26%)
das ofendidas declaravam como domésticas e (16, 98%) como lavradoras.
Essas
identificações,
principalmente
a
de
doméstica
requer
uma
problematização, pois, a declaração de doméstica podia definir a ocupação
como “empregada doméstica” ou a afirmação de que cuidava do próprio lar.
Maria Aparecida Sanches, em estudo sobre as relações de trabalho e cotidiano
das empregadas domésticas em Salvador, chama a atenção para essa
definição de domestica, afirmando “o hábito de se considerar como de
doméstica toda e qualquer mulher que não tivesse outra profissão definida,
como no caso de operárias e modistas, poderiam levar a uma distorção nas
informações, levando-nos a considerar como empregadas domésticas
mulheres que não exerciam a profissão e quem eram na verdade donas-decasa”224.
224
SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e
relações de trabalho doméstico. Salvador 1900/1950. (dissertação de Mestrado), Salvador,
UFBA, 1998. P. 12.
119
Essas diferenciações são percebidas pela análise leitura dos autos, na
qual observamos nossas protagonistas se relacionado economicamente, como
costureiras, vendedoras e prostitutas, ainda que, nas suas declarações sobre
sua ocupação destacava ser doméstica. Isso pode inferir sobre as relações
entre público/privado, pois, a leitura social da mulher honesta vincula-se esta
ao
meio
doméstico e
privado,
sendo, portanto
um
sinalizador das
preocupações femininas em caracterizar-se como honestas, demonstrando
pertencimento a um lar. Cabe destacar que o nível de violência nos relatos dos
crimes são mais evidente entre as mulheres que ocupavam a profissão de
empregadas domésticas, uma vez que, viviam longe da vigilância da família
que, grande parte morava na zona rural. Dessa forma, a prática da sedução e
violência é mais constante entre este grupo social, sendo estas meninas
desvirginadas por seus patrões ou agregados da casa225. Somente em 01
(hum) caso envolvendo conflito sexual entre patrões/agregados e empregadas
a sentença foi favorável a vitima. Isso nos remete a célebre expressão de
Viveiros de Castro, no qual demonstra que para os agentes judiciais eram
complicado acreditar em “uma criada de condição humilde e baixa que se diz
iludida pela promessa de casamento que lhe fez seu amo, homem rico ou de
elevada posição social”226. As ocupações também ligam-se ao local de
ocorrência dos crime, apresentando as nuances e as pistas da qual Chalhoub
chama atenção que o historiador das camadas populares deve estar atento227.
TABELA 10 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DA VÍTIMA
Profissão/ocupação
Doméstica
Lavradora/roceira
Estudante
Ignorada
Total
Quantidade
42
09
01
01
53
Porcentagem
79,26%
16,98%
1,88%
1,88%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Defloramentos e Estupros. (1930 – 1948)
225
Op. Cit.
CASTRO, Viveiros. Os Delitos Contra a Honra da Mulher. Rio de Janeiro: Freitas Bastos e
Cia, 1936, p. 57.
227
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001.
226
120
Na formação social dos processos e caracterização dos envolvidos no
processo de crime sexual, vê-se revelarem-se os padrões de moralidade
pública impostos aos sexos. Na caracterização do crime de defloramento, é
condição sine qua non para que haja a sedução e a conseqüente promessa do
casamento. Dos cinqüenta e três processos, somente em seis processos, a
vitima não menciona que o acusado prometeu casar-se, mas em dois desses
seis aparece a relação de provimento, como o fato de as vítimas afirmarem que
os acusados “Prometia tomar conta dela”228 ou que “não a deixaria atoa”229, ou
que “providenciaria uma casa para
a mesma ofendida” 230. Nessa
caracterização da sedução, a existência de algum vínculo afetivo entre os
envolvidos era fundamental para a mulher provar sua “inocência” no fato,
descrevendo uma relação de namoro ou noivado, na qual o acusado, freqüente
regularmente a casa da ofendida, firmando um compromisso com a família da
mesma. Martha Esteves, estudando crimes sexuais no Rio de Janeiro nos
primeiros anos do século XX, destaca que os relacionamentos entre os
populares não seguiam as regras descritas pelo antropólogo Thales de
Azevedo231, que se pautou nas relações sexo-afetiva da elite, que era
ritualizada em seqüências de passagens, até chegar o casamento. Entre os
populares, esses contatos eram motivados pela própria interação cotidiana do
trabalho, da vizinhança e ressaltando as questões ligadas à dinâmica de
sobrevivência material e tais contatos, não pressupunham um ritual elitista de
cortejamento. Em Feira de Santana, observamos a mesma realidade, as
relações eram estabelecidas em curto espaço de tempo e sem que houvesse a
prática do ritual do namoro descrito por Azevedo. Entre os envolvidos verificouse que 66,03%, das vitimas declarou que eram namoradas ou noivas dos seus
ofensores. Porém quando observadas as declarações dos acusados esses
228
CEDOC/UEFS – Brasilino Almeida – Doc. 2255, Cx. 109, Est. 04, Ano 1940.
CEDOC/UEFS – José Caetano Cerqueira – Doc. 1642, Cx. 85, Est. 03, Ano 1941.
230
CEDOC/UEFS – Geremias Almeida Mattos – Doc. 1662, Cx. 85, Est. 03, Ano 1940
231
AZEVEDO, Thales de. As regras do namoro à antiga: aproximações sócio-culturais.
São Paulo: Ática, 1986.
229
121
índices reduz-se para 24,52%, porém todos são os envolvidos são unânimes
em negar a autoria do defloramento ou estupro.
TABELA 11 - RELAÇÃO DO RÉU COM A VÍTIMA
Relação
Namorado
Noivo
Vizinho
Cunhado
Irmão
Pai
Tio
Conhecido
Padrasto
Patrão
Total
Quantidade
31
04
03
02
02
01
01
05
01
03
53
Porcentagem
58,49%
7,54%
5,66%
3,77%
3,77%
1,88%
1,88%
9,43%
1,88%
5,66%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Defloramento e Estupros 1930-1948
A análise das sentenças jurídicas dos processos de crimes sexuais,
demonstra as dificuldades que as ofendidas tinham em provar seu
desvirginamento. No ato de tornar público que já havia sido “detratada em sua
honra”, as defloradas precisavam além da prova cabal do desvirginamento, a
prova moral, que a configurasse com as representações de mulher honesta
vigentes na época. Os padrões exigidos para uma mulher honesta, amparados
em concepções elitistas, requeriam que as mulheres mantivessem ligadas aos
ditames do privado. Assim, o comportamento das meninas pobres, que
necessitavam trabalhar desde cedo nas casas de família, armazéns e outras
ocupações, as tornavam suscetíveis e vulneráveis a vivenciarem os “prazeres
da carne”. A deficiência nos registros de nascimentos era outro fator que
dificultava o processo, pois, a prova da idade era crucial para a definição do
crime de sedução e estupro.
Pela quantidade de processos arquivados,
56,60%, concluímos que era difícil e complexo uma mulher provar que foi
desonrada, uma vez que, era ainda mais complexo a prova de sua honra.
122
TABELA 12 - QUANTO A SENTENÇA
Sentença
Arquivado
Absolvido
Condenado
Improcedente
Pronunciado
Julgamento não conta
Morto
Outros
Total
Quantidade
30
02
08
04
03
02
02
02
53
Porcentagem
56,60%
3,77%
15,09%
7,54%
5,66%
3,77%
3,77%
3,77%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos de Criminais de Defloramento e Estupros 1930-1948
O sistema jurídico, apesar de longe da realidade cotidiana dos
populares, com seus cânones e vocabulários próprios aos que transitam em
seu meio, por diversos momentos, foi o palco principal para o desenrolar de
histórias que envolviam mulheres e homens populares que em nada conheciam
dos enquadramentos jurídicos. Uma vez que, entre os 62,26% das ofendidas
eram analfabetas.
GRAU DE INSTRUÇÃO DA VÍTIMA
Grau de instrução
Ler e escreve
Analfabeta
Total
Quantidade
20
33
53
Porcentagem
37, 73%
62, 26%
100%
Fonte: CEDOC/UEFS – Processos de Criminais de Defloramento e Estupros 1930-1948
No sistema jurídicos, esses processos ganhavam vida, trazendo a tona,
vozes
multifacetadas,
sejam
entoadas
pelos
protagonistas
e
seus
coadjunvantes, ou seja pelos “manipuladores técnicos” com bem frisou Correa,
analisando o papel dos representantes jurídicos
no desenvolvimento
processual. Desta forma, na justiça, constroem-se verdades e ocultam-se fatos,
elevam-se valores que dão significado à sociedade que é representada, sendo
assim, processo funciona como uma representação da sociedade, pois, traz a
123
tona
as
mentalidades,
comportamentos,
valores,
códigos
legais
e
consuetudinários que são legitimados pelos grupos que a compõem.
Em diversos momentos do desenvolvimento processual observamos as
interferências sócio-juridicas, quando seus agentes ( delegados, advogados,
promotores, juízes) utilizam estratégias de buscar nos costumes, mecanismos
de agravar ou atenuar os atos criminosos, fazendo muitas vezes com que o
processo ganhe novos rumos, e em alguns momentos os papeis sejam
invertidos, levando a vítima e tornar-se ré.
Da análise dos discursos produzidos nestas instâncias, apropriamos o
cotidiano social, dessa forma, encontramos mulheres e homens negociando na
complexa relação da economia sexual e afetiva, envolta em valores como,
honra, recato, virilidade, fragilidade, entre outros, que permeavam as normas
sociais em Feira de Santana de meados do século XX.
As histórias...
Em meios às mudanças do Código Penal, as transformações urbanísticas e
modernizantes pelas quais o município de Feira de Santana vivenciavam em
meados do século XX, chegou à delegacia de policia, Judith Reis, solteira, 40
anos de idade, analfabeta, queixando-se do negociante Ernesto dos Santos,
conhecido como “Baio”, viúvo, 52 anos de idade, pelo mesmo ter sido o autor
do defloramento da sua filha Maria da Glória, menor, 11 anos, doméstica,
analfabeta, preta, residente na Avenida Araujo Pinho, no lugar conhecido como
Olhos D‟água232 Judith passa a relatar minuciosamente o percurso entre Maria
232
CEDOC/UEFS – Ernesto M. dos Santos – Doc.2209, Cx.106, Est.04, ano 1945.
124
da Gloria e “Baio” até o fato delituoso. Conta-nos que tendo “Baio” pedido a sua
filha no mês de junho de 1945 para ajudá-lo a contar ovos, com qual o mesmo
negociava nos dias de segunda-feira, dia em que ocorria a feira –livre no centro
da cidade, dia também de maior fluxo na cidade. Por esta ajuda, o velho “Baio”
prometeu
dar
uma
gratificação.
Devido
às
precárias
condições
de
sobrevivência, morando numa casa de cômodos no lugar conhecido como
Olhos D‟água e por passar por dificuldades, mandou que sua filha Maria da
Gloria fosse ajudar, por um espaço de tempo de dois meses. Aqui cabe uma
análise sobre a condição social dessas meninas pobres, pois, desde cedo
tinham que trabalhar, seja por vontade própria, seja induzidas pelas mães, para
ajudar no provimento da casa. Neste ponto, vemos que o trânsito das meninas
pobres pelo universo público do trabalho, obrigavam-nas a ficarem fora de casa
e saírem à noite, estabelecendo assim, suas experiências de classe, revelando
seu cotidiano e seus costumes.
Todas as noites, Maria voltava para casa acompanhada por “Baio”,
variando entre as dezenove e vinte horas, recebendo assim a gratificação do
acusado de três ou quatro cruzeiros por semana. Contudo, Maria deixou de
prestar o serviço para “Baio”, pois, decidiu ir para a cidade de Cachoeira visitar
sua madrinha. Enquanto a jovem estava em companhia da madrinha na
referida cidade, “Baio” saiu dizendo que “tinha feito coisa feia com a menor” 233,
que mandou trazer a filha de Cachoeira e na presença da madrinha interrogoua que confessou não ser mais virgem e que foi “Baio” “que fez aquilo com
ela”.234
Nosso primeiro impulso como feministas, é construir uma grande revolta
contra Ernesto Melo dos Santos, porém, como historiadores, precisamos estar
atentos as especificidades dos processos e antes de qualquer posicionamento
passional, buscarmos evidenciar os discursos e as representações sobre os
comportamentos populares.
233
234
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
125
Assim, no dia 09 de outubro de 1945, quatro dias após a queixa
prestada por Judith, Ernesto Melo dos Santos, o “Baio”, apresenta-se para
interrogatório. “Baia” confessa que manteve relações sexuais com a menor,
porém, afirma que esta não era mais virgem, frase usual entre os acusados de
defloramento. No interrogatório, o acusado traz elementos constituintes do
cotidiano da queixosa e suas filhas, visando depreciá-los a fim de construir uma
visão moralista de que Maria não era uma mulher honesta. Assim declarou
Baio que a menor Maria da Gloria não era mais virgem, o que deu a ele o
“direito” de praticar com a mesma relações sexuais, pois, a virgindade como já
discutimos correspondia a um “selo moral”; na sua ausência, esta menina não
podia ser considerada honrada. Baio ainda diz que mantinha contato antigo a
com a família da ofendida sendo que Judith já havia sido sua inquilina,
conhecendo, portanto, o seu comportamento, que é identificado como uma
“mulher de vida livre” pelo próprio interrogado, afirmando ainda que Judith “vive
amasiada com um tal José, que sua companheira de casa de nome Maria da
Aleluia, viu José pela madrugada com a menor nos braços”235.
O direcionamento do discurso de “Baio” vai no sentido de desmoralizar o
modo de vida da queixosa, demonstrando que vida que possuía, não podia
transmitir valores morais e boas condutas as sua filha menor.
Na leitura
documental, fica implícito que “Baio” manteve uma relação um pouco mais
aprofundada com sua empregada do depósito de ovos que possuía na Rua
Marechal Deodoro, pois, este a acompanhava as noites depois do serviço na
volta para casa, além de interferir na vida pessoal da mesma, pois, foi “Baio”
que levou Maria da Gloria para a cidade de Cachoeira, deixando-a na casa dos
seus padrinhos, buscando evitar um conflito entre a menor e sua amasia de
nome Matilde, “querendo bater” na menor. “Baio” relata que descobriu que a
menor não era mais virgem quando pôs a mesma em interrogatório e esta “lhe
declarou que Felisberto de Tal, empregado do caminhão de Renato Rios lhe
235
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
126
havia pegado pelas penas diversas noites na própria casa da mãe dela onde
tinha relações com a irmã mais velha e também com ela Maria da Gloria” 236.
Ao passo que novos sujeitos aparecem no processo sendo arroladas
como testemunhas, surgem novas conotações sobre o cotidiano dos
envolvidos sendo o processo direcionado muito mais para a criminalização da
conduta de Judith e Maria da Gloria do que para o fato do seu defloramento ou
sedução. Assim as vítimas, tornam-se “rés” do processo, sendo o principal alvo
dos manipuladores técnicos com exceção do Promotor Fernando Alves Dias,
que categoriza Ernesto dos Santos, como um homem “desalmado”. Contudo,
as declarações das testemunhas apresenta Judith como uma “mulher de vida
fácil”. Desta maneira Américo de Ferreira da Silva, solteiro, lavrador de 38 anos
de idade, sabendo ler e escrever, assim relata:
Que já foi amasio de Judith e esta é mulher de vida livre, que quando
com ella morava na Fonte do Mato, na casa tinha apenas um
cômodo, no qual Judith dormia com as filhas. Que a irmã de Maria da
Glória, Clotildes, conhecida como Coló, há mais de quadro anos vive
237
de meretrício.
Cabe destacar que Américo por ter sido amásio de Judith, pode ter
utilizado seu depoimento como uma espécie de vingança pelo fim do
relacionamento. A testemunha chega a afirmar que “não acha que Baio foi o
autor do estupro”, deixando a culpa sobre a mãe que não deu exemplo a sua
filha, levando-a para o mesmo caminho do meretrício. Outra testemunha,
Sinizio Santos Costa, vaqueiro, solteiro, 42 anos, também traz à baila o
cotidiano de Judith, demonstrando que mesma era alcoólatra e identificando-a
como uma mulher de vida fácil, assim relata:
Baio em conversa disse a ele depoente que tinha tido relações
sexuais com a menor Maria da Gloria entretanto ela não era mais
virgem, que ele depoente respondeu para Baio, eu não quero ouvir
esta conversa; disse isto porque Baio a mãe da menor por nome
Judith e um tal de José que é amasio de Judith vivem
constantemente embriagados onde moram em uma travessa dos
236
237
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
127
Olhos D‟água. Conhecendo Judith de pouco tempo, sabe ser esta
238
uma mulher de vida fácil
A testemunha Paulino Chaves da Costa, casado, com 50 anos,
serventuário da justiça, modificou trouxe outra abordagem ao processo, disse
que quando passava pela Rua Marechal Deodoro, “à tardinha”,
quando
encontrou-se com “Baio” debaixo de uma árvore, na qual o mesmo fazia
“arrumações de galinhas”, dizendo-lhe o acusado: “seu Paulino venha cá, bem
o senhor me aconselhou para eu largar Matildes, aquela cachaceira, o Sr. Vae
saber agora que ela me arranjou, anda espalhando por ai que eu fiz mal a uma
menina que trabalhava aqui comigo”. Após esta conversa entre os dois, “Baio”
trouxe para a presença da testemunha a queixosa Judith a qual o depoente
refere-se como sendo “uma mulherzinha baixinha de cor branca”, onde passou
“Baio” a fazer perguntas a referida mulher e esta afirmando que o acusado
nada devia a sua filha.
Não é possível afirmar, mas este testemunho foi
manipulado entre o acusado e a própria testemunha, pois, Judith na pretoria,
nega ter conversado com o mesmo Paulino e que nunca estivera nesta
situação descrita. No entanto, está não é a única contradição presente neste
longo processo.
A situação de Judith e sua filha Maria da Gloria não era a das melhores
pelo que foi exposto pelas testemunhas no inquérito, porém, devido a prova
cabal do desvirginamento e da menoridade da vítima, o Promotor Público
Fernando Alves Dias denuncia Ernesto Melo dos Santos, como incursos no Art.
213239 combinado com o Art. 224240. O denunciado constitui com seu advogado
o Dr. Edelvino Campello D‟Araujo, que utilizando das falas tendenciosas das
testemunhas, faz sua peça jurídica, buscando reafirmar a ausência da honra e
honestidade da família de Judith, caracterizando mesma como prostituta e por
sua vez, a verdadeira responsável pelo fato delituoso, pois, falhara na instrução
das suas filhas. Cabe destacar que em nenhum momento do processo aparece
238
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945
Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Código Penal
Brasileiro – Dec.2848 de 07 de dezembro de 1940.
240
Presume-se a violência, se a vitima: Não é maior de 14 anos; É alienada ou débil mental, e
o agente conhecia esta circunstância; não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.
Código Penal Brasileiro – Dec.2848 de 07 de dezembro de 1940.
239
128
a figura do pai da vitima, nem mesmo menciona que esta o possua. Assim
solicitou o Advogado no dia 15 de setembro de 1945 a inimputabilidade do
crime:
A inimputabilidade do acusado é manifesta.
Judith Reis, mãe da menor Maria da Gloria, vivendo do meretrício,
arrastou suas duas filhas Clotildes e Maria da gloria à prostituição,
mercadejando com seus corpos de criança.
Convivendo em promiscuidade, num miserável cubículo, a mãe, à
vista das filhas menores, entregava-se aos amantes de cada noite, ou
de cada hora. As filhas tinham na vida dissoluta da genitora e
miserável exemplo, que cedo frutificou...
Primeiro, Clotildes, menina ainda; depois, Maria da Gloria.
O acusado teve, em verdade, relações sexuais com Maria da Gloria.
Ela, porém, já conhecera antes outros amantes.
Confessou-o a própria mãe à Testemunha Paulino Chaves da Costa.
E apontando como autor do desvirginamento de Maria da Gloria um
certo Felisberto.
O acusado foi assim um dos amantes passageiros de Maria da
Gloria, não é responsável em absoluto pela sua desdita.
Oportunamente, demonstrar-se-á de forma completa e cabal a
241
irresponsabilidade penal do acusado.
O direcionamento da criminalização de Judith e conseqüente absolvição
de “Baio” foi o caminho percorrido pela defesa. Esse direcionamento é seguido
no processo mesmo com a substituição do advogado Edelvino Campello
D‟Araujo, pelo advogado cachoeirano Jorge Watt, que afirma:
Neste processo tudo é falsidade é mentira.
Judith Reis, é a maior responsável por tudo, pois, desviada de uma
vida humilde e recatada, preferiu o baixo meretrício, arrastando
criminosamente as suas duas únicas filhas menores a perdição,
tirando no caso, num mesmo lar... Resultado econômico...
Mãe e filhas prostitutas num mesmo lar...
241
242
242
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945
129
Parece-nos que o advogado tinha razão, neste processo “tudo é mentira
é falsidade”, a única coisa é o desvirginamento. Porém quem mentia e falseava
os fatos? As contradições começam a surgir durante a pretoria. Judith é
novamente convocada a depor e já expõe diferentemente a forma pela qual
soube do ocorrido do crime. Na delegacia a mesma afirmou que soube do fato,
por ter “Baio” dito pela cidade que “tinha feito coisa feia com a menor”. No
entanto, em Juízo, Judith declara que soube do fato, sendo declarado pela
madrinha da menor de nome Felipa, pois, Maria da Glória passando um tempo
com a madrinha, esta a pôs em confissão e descobriu o desvirginamento.
Judith ainda defende-se afirmando:
que não é prostituta, que não tem vida livre e desregrada. Que mora
a há mais de quatro anos com ella depoente um homem de nome
243
José Mendes Salvador e nenhum outro entra em sua casa.
A protagonista do processo aparece com sua voz na pretoria no dia 07
de junho de 1946, quando é realizado o primeiro depoimento da vítima e,
posteriormente no dia 28 de maio de 1947, para um novo depoimento solicitado
pela defesa. Maria da Gloria trará duas versões para crime a desvirginou. No
primeiro depoimento a referida ofendida afirma que o autor do seu estupro foi
Ernesto Melo dos Santos, vulgo Baio, que o fez atrás da fábrica de algodão no
dia 30 de agosto de 1945, quando esta voltava para casa à noite, mais ou
menos às vinte horas, na companhia do mesmo, pois trabalhava para o
acusado contado ovos. Assim relatou Maria da Gloria:
o acusado conduzindo a vitima sozinho para a casa da mãe desta e
no caminho pegou a força e conseguiu beijando-lhe ate a boca, e
praticar o crime do seu desvirginamento. O acusado conseguiu da
mãe da vítima conduzi-la de dia para a casa dele e na volta,
igualmente à noite, teve relações ainda a força com a depoente, que
alguns depois ela depoente contou o facto a sua madrinha Felipa,
que contou a sua progenitora. Que ela continua a viver com sua mãe
244
recatadamente e nunca mais teve relações com ninguém
243
244
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
130
No segundo depoimento, quase um ano depois do primeiro, este
solicitado pelo advogado de defesa Jorge Watt, Maria da Glória, traz uma nova
versão paar o crime, confirmando agora a versão de Ernesto Melo dos Santos,
vulgo Baio. Vejamos o que depôs a menor:
Que quem fez mal ou deflorou a depoente foi um rapaz por nome
Felisberto morador do sertão, mas não sabe a localidade. Que foi
ouvida pela primeira vez por este juízo e declarou que foi Ernesto
Melo dos Santos o seu estuprador, isto fez porque foi obrigada a
depor contra Ernesto pela sua Madrinha de nome Felipa dos Santos,
que mora em Cachoeira.
Que a madrinha pegou-a atraz de uma porta certo dia e obrigou-a a
dizer que o seu desvirginador fora Ernesto Melo, ordenando –lhe
depois,que a mesma declarasse isso em juízo, que fez isto a sua
madrinha Felipa porque Ernesto gostava muito dela depoente. Que o
referido Felisberto deflorou a declarante já faz anos, tendo se dado o
fato nas imediações da estrada de ferro desta cidade, que o dito
Felisberto também gostava muito da depoente e um dia a convidou
para passear fazendo-lhe promessas e conseguindo desvirginá-la.
Depois que teve contacto carnal com Ernesto Melo, três vezes que
teve relações com Ernesto nos dias anteriores ao que Felipa obrigoua a falar contra o mesmo Ernesto.
Que depois que teve relações com Felisberto, continuou com sua
vida sossegada, convivendo em companhia de sua mãe; que
atualmente esta convivendo com uma senhora casada, a quem
auxilia nos trabalhos domésticos de nome Maria miúda, residente as
245
margens da linha de ferro.
Também em novo depoimento Judith Reis nega ter sido Ernesto Melo
dos santos o autor do desvirginamento de sua filha. Aqui requer voltar a
mesma indagação anteriormente proposta, quem estava mentindo ou
falseando? Não é possível afirmamos de se houve alguma negociação entre as
partes envolvidas seja vitima e acusado, ou se de fato esta última versão seja a
que de fato ocorreu, porém o que no interessa são as representações sociais
evocadas em todos os discursos impetrados durante a o sumário de culpa.
Observamos que em grande parte do processo o cotidiano da vítima e de sua
mãe ganhou mais destaque do que a confirmação do próprio defloramento.
245
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
131
Podemos com isso analisar as imagens e representações sobre as mulheres
pobres em Feira de Santana, mulheres trabalhadoras que provinham seus
lares do trabalho coletivo entre os membros da família, sem uma rígida
separação sexista, entre homens provedores e mulheres dotadas ou homens
públicos e mulheres privadas, como bem discutiu Michelle Perrot. Afirmadas
como enganadoras, prostitutas, interesseiras, Judith e Maria da Gloria,
silenciaram-se no processo certamente amordaçadas por alguns cruzeiros ou
outras formas menos prazerosas de calar-se. Dessa forma, no dia 07 de agosto
de 1948, o Juiz Alibert Baptista julga improcedente a denuncia e absolvendo o
denunciado. Porém, o Promotor Público pede a apelação do crime ao Egrégio
Tribunal que decide por condenar o réu a quatro anos de reclusão na sanção
das penas do artigo 213 no dia 13 de dezembro de 1948, mesmo com a
condenação, não há relato da prisão do condenado, fato que também foi
observado durante todo o processo não se pediu a prisão preventiva do
acusado, tendo o mesmo até solicitado ao Procurador do Estado o Dr. Cosme
de Farias, um Habeas Corpus preventivo. Ao final, Ernesto Melo dos Santos
casa-se com Maria da Gloria Reis, extinguindo a punibilidade do seu crime,
tendo os cônjuges 50 anos de diferença de idade entre ambos.246
Afinal, quem desvirginou a vítima?
Fato corriqueiro nos processos de crimes sexuais são as contradições
entre o discurso da vítima e do acusado no que se refere à autoria do
desvirginamento. Falas como, “prometeu casar-se”, “já a encontrei deflorada”, “
não quer reparar o mal que fez”, de tão usuais, passam a ser peças integrantes
dos processos de delito sexual. Mas afinal, se todos os homens negam a
veementemente a autoria do crime, quem deflorava essas meninas? Se Feira
de Santana fosse localizada na região Norte do país, poderiam os sujeitos
envolvidos acusarem o “boto” que seduziam as mulheres, deflorando-as. Mitos
246
CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945.
132
a parte, esse conflito entre “defloradores e defloradas”, traz a baila outros
debates que recai na perspectiva de compreensão dos valores e costumes
requeridos para os sexos.
Desta maneira, Eduardo Pedreira Barboza, 55 anos de idade, residente
no lugar Pedra do Descanço, casado, roceiro analfabeto, procurou a delegacia
de Policia no dia 19 de setembro de 1940 para queixar-se de Jair de Souza,
como sendo o autor do desvirginamento de sua filha menor de dezoito anos,
Julia Assunção Barboza, afirmando “que sabe que a família do acusado se
opõem ao casamento”, por isso busca na instancia policial “providencias, para
sua filha não fique no abandono.”247
Julia da Assunção Barboza acusou que o autor do seu defloramento foi
Jair Souza, que “há seguramente dois anos era noivo dela respondente,
prometendo marcar o dia do seu casamento que há cinco meses passados,
conseguiu com sua promessa de casamento, desvirginar ela respondente”248.
Nesta declaração de Julia, aparecem alguns dos elementos básicos do crime
de defloramento e sedução, pois, a mesma relatar ter tido uma longa relação
com acusado, aparecendo o quesito da promessa de casamento, fato
preponderante para o crime de sedução seguido da menoridade da vítima.
Julia relata que após o desvirginamento, Jair deixou de freqüentar sua casa,
sendo que espalhou-se o boato no lugar onde reside de que “não era mais
moça”, decidindo assim,
confessar aos seu pai que resolveu pedir
providencias.
Antes de Jair do Vale Souza, depor no processo, são arroladas cinco
testemunhas que afirmam ter Julia Barbosa, “bom proceder”, “nunca tendo
ouvida detratar de sua honra” até o presente fato. Jair Souza constitui como
seu advogado o famoso Dr. Vicente dos Reis, só aparecendo para depor após
a denuncia do Promotor Público que o denunciou com incurso nas penas da lei
do art. 267 combinado com art. 276. No sumário de Culpa, ouvido o
denunciado este expõe que não foi o autor do defloramento de Julia Barbosa,
247
248
CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940.
CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940.
133
negando inclusive que nunca teve relações sexuais com a mesma e que não
era seu noivo, apenas namorado por um curto período. Assim relata:
Que deixou o namoro de Julia da Assunção Barboza porque chegou
ao seu conhecimento que Julia, foi encontrada uma noite das vinte
quatro para uma hora no caminho de sua casa em companhia de
Arlindo de tal, musico da 25 de março, residente na Rua da
Misericórdia. – Que lhe disseram isso Julio Luco dos Pães, residente
249
na Rua da Misericórdia e outros.
Visando direcionar o processo para o comportamento de Julia Barbosa,
Jair e seu advogado, buscam elementos do cotidiano da referida vítima para
demonstrar a ausência dos elementos básicos que definem uma mulher
honesta e recatada. Dessa forma o procedimento da ofendida que foi
largamente defendido pelas testemunhas, será o alvo do controle jurídico. No
traçar do cotidiano de Julia, descobrimos que a mesma foi charuteira,
trabalhando para o João dos Santos, 36 anos, negociante, que nesse período
em que trabalhou como charuteira, saia do trabalho às seis horas ou mais tarde
da noite, voltando sozinha para sua casa, percurso escuro pela carência na
iluminação pública em Feira de Santana em meados do século passado. O fato
de trabalhar fora de casa como charuteira ou em serviços domésticos, fazia de
Julia, uma mulher pública, por isso avesso de uma mulher recatada.
Dessa forma o Dr. Vicente do Reis, não poupa palavras para depreciar
este cotidiano de Julia, expondo-a como sendo de procedimento duvidoso, o
que segundo o bacharel, justiçava a implicância da família do denunciado para
com Julia Barbosa.
O acusado disse, e plenamente provado já esta nos autos; que
efetivamente tivera um ligeiro namoro com Julia Barbosa , cujo
namoro fora terminado desde 1939, devido o irregular procedimento
desta SENHORA
, que fora vista em logar bastante ermo tarde
da noite com Arlindo Almeida, maior, solteiro, artista, residente nesta
cidade.
Procedimento bastante irregular, porque não se pode admitir que uma
menor, se porventura o fosse, freqüentando, sosinha festas públicas,
distantes de sua residência meia légua mais ou menos e a meia noite
para uma hora da madrugada ficasse a procura de um homem
249
CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940
134
qualquer para acompanhá-la ate sua casa, passando por logares
ermos, sem iluminação como se sabe é a estrada da Pedra do
250
Descanço, nesta cidade.
O processo é concluído com a Impronuncia do denunciado, pois, não foi
provada a menoridade de Julia Barbosa, que apresenta uma certidão de
nascimento lavrada no dia 25 de setembro de 1940, cinco meses após a
prática do crime imputado ao acusado, sendo no exame de verificação de
idade, como no relato das testemunhas, teria Julia Barbosa a idade
compreendida entre 21 a 23 anos, fazendo desaparecer a figura penal do
defloramento, seguindo o art. 267 do Código Penal.
Tendo comparecido da delegacia de Policia no dia 07 de agosto de
1941, Pedro Ferreira Barbosa, com 61 anos de idade, casado, funcionário
municipal, residente a Rua São José, tutor da órfã Edith dos Santos, para
queixar-se de Naphitalino Vieira, com 44 anos, casado, fotografo, residente a
Rua Salles Barboza, pelo mesmo ter desvirginado a referida menor de 16 anos
que vivia sob sua proteção a mais de oito anos.251 O caso chegou ao
conhecido de Pedro Barbosa, pois, a dita menor entrou em conflito com a
amásia de Naphitalino, de nome Petronilha Alves, que tentou espancar Edith,
sendo impedidas pelo cunhado de Pedro Barbosa de nome Mauricio, que
relatou a Pedro que havia acontecido e o motivo do conflito, descobrindo assim
o desvirginamento de sua tutelada. Aqui já tem um sinalizador que
juridicamente depõe contra Edith dos Santos, pois, o acusado era amasiado
com outra mulher e em conseqüência não tinha assumido com a mesma e com
a sua família um compromisso de namorado ou noivado, inviabilizando a
sedução através do pedido de casamento.
Ouvida no inquérito, Edith dos Santos, com 16 anos, solteira e
doméstica, afirma que foi Naphitalino o autor do seu desvirginamento, porém,
não menciona a sedução pelo casamento e sim indica uma situação de
violência na conjunção carnal. Assim declara:
250
251
CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940.
CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941.
135
Que ano passado, a data não se recorda, passando na casa, onde
Nahphitalino[sic] tira retratos, na rua Senhor dos Passos,
Nhaphitalino[sic] que se achava na porta da casa, chamou ela
respondente e levou-a para um quarto da casa e ai, segurando ela
respondente pelos braços, deitou-a na cama e a desvirginou e depois
disse a ela que não dissesse isto a ninguém. Que Nafitalino[sic] de
quando em vez dava dinheiro a ela respondente para que se
252
calasse.
Apesar da descrição do ato do crime apresentado por Edith, a mesma
demonstra-se passiva no processo de sujeição sexual, observa-se que
aparecem alguns elementos que sinalizavam uma relação consensual. O fato
do acusado a ter chamado e levado para um quarto da loja de fotografias sem
demonstrar uso da força é uma peça desse quebra cabeças que são os
processos criminais. Outro fator que depõe para uma relação consensual é a
presença do dinheiro, pois, a própria Edith afirma que “de quando em vez dava
dinheiro a ela respondente para que se calasse”.
Quando ouvido em interrogatório durante o Inquérito Naphitalino nega a
autoria do defloramento, trazendo em seu interrogatório nuances fundamentais
da compreensão das relações sexo-afetiva entre os populares, pois,
Naphitalino era casado, mas não vivia com a esposa, vivendo maritalmente
com Petronilha através do amasiamento. Como já destacado, o acusado era
residente na Rua Salles Barboza, conhecido no período como zona de
meretrício, o que pode sinalizar que esta relação com Petronilha, poderia ter
ocorrido fruto de encontros proporcionados pela economia sexual. O que
chama a atenção nesse interrogatório é o teor de desdém que Naphitalino
refere-se a Edith o que pode ser compreendido como um recurso jurídico de
estabelecer representações sociais, pois, dessa forma seria mais fácil
convencer os manipuladores jurídicos da sua inocência no caso. Vale lembrar
Viveiros de Castro, quando estabelece a dificuldade das mulheres pobres
justificarem seus defloramentos por homens de condições sociais mais
252
CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941.
136
abastadas, pois, estas passam de seduzidas a sedutoras.253 Dessa forma
declara Naphitalino:
Que não foi ele o autor do desvirginamento dessa moça e que isto é
uma calunia assacada contra a sua pessoa pela sua própria amasia
Petronilha Alves Motta, que levada pelo ciúme absurdo que tem dele
respondente, chegou ao ponto de o caluniar dessa forma, que ele
respondente é pai de família, tem filhas moças e sempre procurou
cumprir com os seus deveres, fazendo se respeitar como é publico e
notório nesta terra e assim seria incapaz de praticar uma ação desta
ordem, principalmente com pessoas de inferior qualidade a sua como
é Edith Santos e assim repete que isto é uma calunia que lhe levanta
254
sua própria amasia Petronilha Alves Mota levada pelo ciúme.
Naphitalino ainda apresenta uma carta supostamente escrita por Edith
dos Santos sem estar datada, a carta é uma confissão da pretensa inocência
de Naphitalino no crime.
Senhor Nafitalino Vieira
Tenho a lhe dizer que fui chamada a delegacia e estava nervoza e
com tanto medo de mi botarem de casa para fora que cheguei a
desmaia por isto digo aqui que o senhor não me deve nada quem me
deve já morreu e o nome delle so direi se for forçada pode mostrar
255
esta as autoridades.
Edith em outro depoimento nega ter sido a autora da carta. A
comparação das assinaturas da ofendida nos depoimentos na carta, observase uma perceptível diferença nas letras, apesar de parecida de alguma
maneira. A situação de Edith piora quando depõe a amasia de Naphitalino
Vieira, Petrolina Alves Motta, 34 anos de idade, residente à Rua Salles
Barboza, solteira, doméstica,, que declara que desconfiou que Edith Santos
estava mantendo uma relação de “namoro” com seu amasio. Mas quando
“entendeu-se com este, o qual negou que tivesse qualquer namoro com Edith”.
Mesmo com a negação de Naphitalino, a depoente passou a observar o
trânsito de Edith na loja do acusado, chegando a vê-la entrando algumas vezes
253
CASTRO, Viveiros. Os Delitos Contra a Honra da Mulher. Rio de Janeiro: Freitas Bastos e
Cia, 1936.
254
CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941.
255
CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941.
137
na loja de fotografias. Um certo dia quando Edith passava pela frente de sua
casa na Rua Salles Barbosa, esse é outro fato peculiar da sociedade feirense,
as meninas consideradas “honestas” não passavam sozinhas pelas ruas tidas
como zona de meretricio, assim, Petronilha enraivecida xingou a menor Edith,
que respondeu “que ela estava enganada consigo”. Neste momento de conflito
encontrou com Mauricio Falcão, descobrindo a relação de parentesco do
mesmo, com Pedro Barbosa que era tutor da órfã Edith, aconselhando: “que
dissesse a Edith que se ela era moça evitasse freqüentar a fotografia de
Naphitalino e se não era, teria que se entender com ela”.256
A performance de Petronilha no processo sugere uma visão bem
estigmatizada da mulher popular, que brigava na rua, xingava, falava alto, na
linguagem da imprensa da época dizia-se que “promovia arruaças”. Nenhuma
da envolvidas no processo demonstram passividade, estas mulheres estão
longe do modelo de recato e delicadeza postulados ao seu sexo.
Naphitalino é denunciado pelo Promotor Público com incurso nas penas
da Lei do art. 267, combinado com a art. 276 do Código Penal, porém, com não
é provada a menoridade da ofendida, o processo é arquivado. No entanto, é
interessante vermos a conclusão do promotor, o mesmo que foi autor da
denuncia.
Se menor de dezoito anos, força é de convir, que as próprias
declarações de Edith, pelas quais se vê a facilidade com que se
entregou ao denunciado, ainda mais não procurando queixar-se
senão depois que um terceiro descobrio[sic] o facto[sic] – tirariam a
seriedade de uma acusação , de que tivesse sido seduzida pelo
257
denunciado.
Da mesma forma, procurou a delegacia de polícia no dia 04 de setembro
de 1941, Maria Theodora de Jesus, com 30 anos de idade, doméstica,
residente ao “Beco do Bom e Barato” para queixar-se de Hermes Sodré,
solteiro, com 20 anos de idade, lavrador, analfabeto, “por ter o mesmo, com
promessa de casamento, iludido a filha menor de dezessete anos de nome
256
257
CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941.
CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941.
138
Maria Soares, desvirginando-a e nega-se a reparar o crime que praticou e para
não ficar impune um crime desta ordem e na prostituição a filha dela
declarante,
procurou
esta
delegacia
para
queixar-se,
pedindo
uma
providencia”.258 A maneira moralista com Maria Theodora, refere-se ao
desvirginamento de sua filha, demonstra-nos como entre os populares os
discursos moralizantes referentes aos costumes estavam bastantes difundidos,
observamos que a queixosa, associa o fato do desvirginamento, como uma
impossibilidade adquirir um relacionamento conjugal, o que nas analises sobre
a conjugalidade popular, constata-se que a maioria das relações são
estabelecidas a partir de amasiamentos, sem a efetivação de um casamento
seja civil ou eclesiástico. No próprio ato da queixa, a mãe da ofendida relata
que soube do desvirginamento quando a filha fugiu para morar com David
Dantas, este a submeteu a interrogatório e esta contou-lhe que havia sido
desvirginada por Hermes Sodré.
Quando ouvido no inquérito Hermes Sodré nega a autoria do
defloramento, o que era uma prática costumeira entre os homens a negação do
crime. Além de negar o crime, Hermes, busca depreciar o cotidiano de Maria
Soares, afirmando que a mesma não tinha um comportamento adequado, pois,
vivia sempre a passeios e desacompanhadas de pessoas da sua família, sendo
uma menina muito falada no lugar onde mora, devido a ter tido vários
namorados, inclusive relata o fato da fuga da ofendida para morar com David
Dantas.259
A situação da menor Maria Soares, solteira, roceira, analfabeta não foi
muito boa durante o seu inquérito. Foram arroladas cinco testemunhas, todas
homens, é bom destacar. As testemunhas confirmaram o depoimento do
acusado Hermes Sodré, trazendo à baila o cotidiano da ofendida, sendo
considerada uma menina de “péssimo procedimento”, onde já ouvia detratar da
honra desde antes do caso de Hermes Sodré. A testemunha Manoel Cundes
Ferreira, com 20 anos de idade, solteiro, lavrador, declarou:
258
259
CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941.
CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941.
139
que Maria Soares tinha diversos namorados, porém ele respondente
não sabe o nome e sabe que a mesma não procede bem, pois, antes
de surgir este fato de que é acusado Hermes Sodré, Maria Soares,
sem o consentimento de seus pais ou creadores , abandonou a casa
onde mora e fugiu com David de tal, residente na Vila de Maria
260
Quitéria
O tão citado David Dantas, também aparece para ser ouvido no
inquérito, onde relata que Maria Soares ofereceu-se para morar com o mesmo,
tendo levado-a com ele para a casa, onde a mesma declarou que não era mais
virgem, o que o levou a verificar se era verdade. Nos processos de
defloramento, uma maneira atenuada de o homem declara que praticou cópula
sexual com ofendida em questão, é declarar que verificou que será mesmo
virgem a sua namorada. Na maioria dos casos a verificação, na versão
masculina, confirma que a menina já era desvirginada. David Dantas relata
que confirmou que a menor já havia sido desvirginada, colocando-a em
confissão, lhe contou que o autor foi Hermes Sodré.
Esse jogo de pingue-pongue com a virgindade e o desvirginamento de
Maria Soares, leva-nos mais uma vez a compreender a relação social que se
estabelecia um hímen associado à honra feminina e conseqüentemente a
honra das instituições casamento e família, tão caras a uma sociedade que
divulga-se moderna e civilizada. Assim, o Promotor Lauro de Azevedo pede o
arquivamento do processo, negando proceder a denuncia. Declarou que:
A attitude da offendida, fujindo de casa e passando a morar em
companhia de outro homem, para somente depois vir acusar o
individuo como autor do seu desvirginamento, facto relatado por ella
própria e atestado pelas testemunhas ouvidas neste inquérito, tiraria
a seriedade de uma acusação contra Hemes Sodré e impossibilitando
261
a Promotoria de tomar qualquer iniciativa no caso.
Dos cinqüenta e três casos estudados, apenas em 03, ocorrem a
confissão do acusado de ter praticado o defloramento, resultando em
260
261
CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941
CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941
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condenação, que é suspensa devido a realização do casamento entre as
partes.
O perigo mora em casa...
Uma das perguntas fundamentais nos processo de crimes sexuais era a
questão de que se as ofendidas costumavam sair de casa sozinhas. Essa
pergunta deixa de ter efeito quando os ofensores moram na mesma casa das
ofendidas. Assim analisamos os casos de estupros e defloramento produzidos
por membros da mesma família ou aparentados, apresentando uma faceta das
relações familiares entre os populares, na questão da moradia, sendo comum a
divisão de cômodos, na dinâmica interna das famílias e erotização dos
incestos, que punham em questão os ditames desta instituição. Dos 06
processos evidenciados, encontramos envolvido 01 pai, 01 padrasto, 01 irmão
de criação, 02 cunhados e 01 tio emprestado. Vamos às histórias.
O casal Lauro Ferreira da Silva, 25 anos de idade e Verônica de Oliveira
Freitas com 20 anos, residiam à Rua Pedra do Descanço na cidade de Feira
De Santana. Como costumeiro entre os populares, o referido casal alugava
cômodos da própria casa, com o objetivo de ajudar nas despesas da família.
Assim, chegou a residência dos mesmos um casal com uma menina, este
casal era Felix Pires e Etelvina e menor era Elita Honorata, irmã de Etelvina. O
referido do casal, vindo do lugar Serra Azul na cidade de Orobó, acomoda-se
na casa de Lauro e Verônica. O objetivo de Felix Pires em vir para Feira de
Santana era a busca por emprego, sabendo o mesmo, que estava escalando
homens para trabalharem na Estrada de Rodagem Rio-Bahia. O objetivo do
emprego foi alcançado e Felix empregou na Estrada de Rodagem, porém ficou
por pouco tempo, se empregando na Fábrica de Beneficiamento de Algodão 262.
262
CEDOC – Felix Pires – Doc. 1416 Cx. 76 Est. 03, ano 1941.
141
Passavam-se mais de três meses que Felix Pires e sua amasia
chegaram a Feira de Santana, Verônica e Etelvina já haviam construído uma
certa relação de amizade pelo convívio diário na mesma casa, criando hábitos
comuns. Assim, no dia 25 de agosto de 1941, uma segunda-feira, dia da
tradicional e conhecida feira livre no centro da cidade, as duas saíram para o
mercado para fazer as compras semanais, deixando em sua residência a
menor Elita Honorata acompanhada do cunhado Felix Pires. Assim relata
que:
mais tarde voltando ele depoente para a casa, encontrou a casa
fechada e a menor Elita trancada sosinha[sic], que Elita estava toda
ensangüentada e perguntando-lhe o que havia acontecido, Elita lhe
disse que Felix Pires, amasio da irmã dela, lhe havia pegado a pulso
e a desvirginado e no dia imediato Felix
Pires receando
provavelmente alguma coisa, retirou-se com a amasia e desta cidade
263
deixando a menor ofendida em casa dela depoente
O caso chegou ao conhecido das autoridades policiais através da queixa
prestada por Lauro Ferreira da Silva, que levou a referida menor até a
delegacia para as devidas providências legais. O exame de Corpo de Delito
constatou o estupro e demonstrou que foi realizado mediante o uso da força e
violência física. A menor Elita Honorata, não é ouvida no processo, acredito
que pela idade presumível entre 10 a 12 anos constatados pelo exame de
verificação de idade, afirmando que a menor ainda era impúbere. A vitima é
silenciada e ocultada no processo que desnudou sua intimidade. Não se sabe
o qual destino levou a menor, se ficou com casal que lhe socorreu, se voltou
para a casa do pais, nada se sabe sobre seu paradeiro, assim como não se
sabe o paradeiro do seu agressor que fugiu com sua irmã, deixando-a
abandonada em Feira de Santana. A sentença do processo foi a condenação
do réu no grau máximo nas penas do Art. 268 combinado com Art. 272 e 330
do Código Penal.
Caso semelhante ocorreu com a menor Maria da Cruz com 10 anos de
idade, filha de Maria Alice de Jesus, 29 anos de idade, roceira, residentes no
263
CEDOC – Felix Pires - Doc .1416 Cx. 76 Est. 03, ano 1941.
142
lugar chamado rosário no Município de Feira de Santana. Maria Alice procura
a delegacia no dia 05 de outubro de 1939 para queixar-se contra Manoel
Martins, amasio de sua irmã Elvira, mora parede meia com sua casa 264. Mais
uma vez observamos a questão da moradia envolvendo crimes sexuais entre
familiares, devido a precárias condições de sobrevivência, muitas mulheres e
homens pobres faziam suas casas, ou “quartinhos” de maneira coletiva,
dividindo-se cômodos, como é o caso entre Maria Alice e sua irmã Elvira que
fizeram as casas juntas uma a outra, aproveitando-se das mesmas paredes.
Assim as relações de intimidade e privacidade ficam comprometidas pela
proximidade e interferência no cotidiano de ambas.
Maria Alice acusa Manoel Martins do estupro de sua filha, que
aproveitando-se de a mesma esta sozinha em casa, chamou-a para “torrar uns
amendoins” na casa do acusado, praticando o fato criminoso. A própria
ofendida em auto de declarações relatou que:
Manoel mandou ela torrar uns aminuis[sic], deu a ela uns e mais R$
200, em dinheiro e mandou ela apagar a luz e fexar[sic] a porta que
ela respondente fez o que Manoel Martins mandou e voltando para
junto dele, Manoel Martins levou-a para a cama, tirou as calçolas dela
respondente, deitou-a na cama e fez isto, que saio muito sangue, que
Manoel limpou com um pano – Manoel fez isto com ela duas vezes,
265
uma na casa e outra no caminho da roça.
Notamos que no depoimento da menor aparecem elementos que
indicam um suposta relação de sujeição sexual, motivadas pelas condições de
pobreza em que vivia a menor. Isso fica evidenciado na presença do dinheiro e
dos amendoins “negociados”. O interrogatório de Manoel Martins, com 36 anos,
solteiro, lavrador, sabendo ler e escrever dá novos sinais sobre essa relação. O
acusado que morando num quarto de parede meia com a casa da menor Maria
afirma que:
chegando da feira, que um dos dias desta semana e não achando-se
em casa a companheira dele, chegando a menor Maria para torrar
uns amindois[sic], para ele tomar com café, que a menor Maria foi
torrar os amendois[sic] e pediu a ele para dar um pouco do
264
265
CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939.
CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939.
143
amendois[sic], que elle respondente disse que dava os amendois[sic],
mas ela tinha que pagar, que Maria disse a elle que só podia pagar
assim, e tirando o cordão da calçola e deixou cahir[sic] a mesma e
chamou ele respondente que encostando Maria no fogão começou a
266
brincar com ella.
Observamos alguns pontos em comum nos discursos em torno do
desvirginamento da menor. Fica provado que foi Manoel Martins o autor do
crime, segundo, houve de fato uma sujeição sexual, pois, quando o acusado
afirma que daria o amendoim a menor, porém esta “teria que pagar”, nos
sinaliza para uma barganha sexual, tanto que o mesmo acusado declara que “
encostando Maria no fogão começou a brincar com ela”. Perguntado no
interrogatório que tipo de brincadeira o acusado referia-se este disse: “que
botou Maria de costas para elle e serviu-se da mesma nas cochas”267. Ainda
afirmou que “limpou uma coisa que correu pelas pernas de Maria com um
pano, porém não reparou se era sangue e estava no escuro”268.
A declaração de Manoel confessando o crime chamou a atenção dos
manipuladores técnicos do processo, que chegam a ser solicitado um exame
de sanidade mental do acusado, que constata que o mesmo não possui
nenhum agravo mental, sendo, portanto, de inteiramente responsável pelos
seus atos. Manoel é condenado nas penas máximas do artigo 268 combinado
com artigo 272 do Código Penal, sendo recolhido à penitenciaria no dia 10 de
outubro de 1939.
Morar na mesma casa facilitava os contatos sexuais? Essa pergunta é
facilmente respondida quando analisamos esses casos de defloramento e
estupros entre familiares e aparentados. Dessa maneira procurou a delegacia
no dia 29 de maio de 1944, Romana Ramos, 35 anos de idade, casada,
residente no lugar chapada do Distrito de Almas do Município de Feira de
Santana, queixando-se de Marcelino de Santana, seu filho de criação, com 20
anos de idade, lavrador, analfabeto, por ter desvirginado sua filha menor de 14
anos, Davina Ramos. Marcelino chegou até a casa de Romana Ramos no ano
266
CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939.
CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939.
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CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939.
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de 1932, com menos de 08 anos de idade, sendo uma das vítimas da forte
seca que amargurava o sertão, sendo criado pela queixosa como um filho269.
Marcelino e Davina cresceram na mesma casa, porém, no dia 24 de
dezembro, véspera do natal, estando os dois sozinhos em casa, ocorreu o
desvirginamento de Davina. Segundo a ofendida:
Que no dia vinte e quatro de dezembro do ano próximo findo estando
em casa a tarde sozinha, isto é, com Marcelino, conversaram sobre
namoro, quando Marcelino começou com proposta de casamento e
fez com que eu fosse para o quarto com ele, como não tivesse
ninguém em casa, ele mi enganou bastante, resolvi attender-lhe
dando-se ahi o defloramento, não declarando aos meus paes porque
elle alimentava sempre a idéia de casar-se , nenhuma desconfiança
270
havia porque Marcelino morava na mesma casa.
Este fato poderia ficar silenciado por muito tempo, longe da
desconfiança de qualquer membro da família, no entanto, Davina, engravidou e
sendo colocada em confissão pela mãe da ofendida, descobriu que o pai da
criança e autor do defloramento era Marcelino, que a este tempo já havia
fugido do lugar onde moravam.271 As três testemunhas arroladas declaram,
diferentemente do Romana declarou, que Marcelino e Davina eram namorados
a mais de um ano, sendo do conhecimento dos vizinhos este fato, pois, seria
impossível, esta relação ser de conhecimento dos vizinhos e Romana nunca ter
ouvido tratar sobre o mesmo. Talvez o fato de Romana Ramos suprimir este
fato, pode ser com o objetivo de imprimir um conceito de maternidade ligada ao
zelo e cuidado com os filhos e lares, pois, seria inadmissível uma mãe que
acobertasse um amasiamento de sua filha menor, procurar na justiça a
reparação da “honra”.
A denuncia do Promotor é julgada improcedente pelo Juiz Alibert do
Amaral Baptista, pela ausência de provas, sendo apelada a sentença pelo
Ministério Público que através do seu representante legal faz um discurso
bastante emotivo, associando o crime sexual como sendo uma atitude de
269
CEDOC – Marcelino de Santana – Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944.
CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944.
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CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944.
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ingratidão de Marcelino contra a referida Romana, a qual foi responsável pela
sua criação e manutenção.
Não é possível que os crimes contra os costumes fiquem impunes. O
acusado e foragido Marcelino retribuiu a acolhida de maneira ingrata.
Na seca de 32, trinta e dois, quando toda zona estava cruciada pelo
sol escaldante, e no solo comburido apenas verdejava o mandacaru,
Marcelino bateu á porta de Romana Ramos, mãe da vitima. Salvouse. Matou a fome e a sede. Mais tarde, deu o pago: seduziu a filhinha
as sua bemfeitora. Não queremos fazer retórica, porém ressaltar que
o denunciado vivia na casa da vitima, como faz certo a prova
testemunhal. Concluindo, requeremos a reforma da sentença do
Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 1ª vara, por ser de irrestrita
272
JUSTIÇA.
Com essa apelação do Promotor Fernando Alves Dias, Marcelino é
condenado pelo Egrégio Tribunal a 03 anos de reclusão, incurso nas penas da
lei do art. 213 combinado com o art. 224 do código penal, sendo preso no dia
31 de janeiro de 1948. Porém, fica pouco tempo recluso, pois a punibilidade
extinta mediante o casamento com a ofendida no dia 15 de junho de 1948.273
Procurar a delegacia para denunciar um crime de defloramento já era
uma situação muito confortável para os envolvidos nas ofensas, pois, tinham
suas vidas expostas, suas intimidades reveladas. Imaginemos o que seria ir até
uma delegacia e queixar-se do próprio marido que deflorou a própria filha?
Uma situação ainda mais complexa e muito mais invasiva. Este foi o dilema
vivido por Luzia Maria de Jesus, 48 anos de idade, residente a Vila de
Gameleira, lavadeira, analfabeta, casada, que procurou as autoridades policias
no dia 01 de agosto de 1939 para queixar-se do marido Mathias Marques da
Cruz, por ser o autor do desvirginamento de sua a filha Candó Marques da
Cruz. 274
Luzia relata que seu marido aproximadamente a mais de 01 ano, porém,
continuava a conviver na mesma casa, sem que dormissem na mesma cama,
sendo que Mathias dormia no chão em frente ao quarto da sua filha. Ela
começou a desconfiar da filha candó, pois, “vinha crescendo a barriga e os
272
CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944.
CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944.
274
CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939.
273
146
remédios que ela declarante dava, desconfiando de moléstia, não produziam
efeito”.275 Essa desconfiança se concretizou no dia 17 de julho de 1939,
quando sua filha Candó “deu a luz a uma criança do sexo masculino e não
podendo Candó esconder mais o facto, confessou a ella declarante que o pai
daquela
criança
defloramento”.
era
Mathias
Marques,
seu
pai
foi
o
autor
do
276
A ofendida relatou que o próprio pai manteve relações sexuais com ela,
mediante o uso da violência, segundo a ofendida:
Que deve esta criança e o pai é o seu próprio pai que é o autor do
seu defloramento. Que o pai dela Mathias Marques deixou de dormir
no quarto com sua progenitora, para dormir n aporta de seu quarto no
chão, uma noite entrou no quarto della respondente, e a fazendo-a
descer da cama pegou-a no chão e ali a deflorou com promessa de
277
espancamento se gritasse.
Mathias Marques nega a autorias do defloramento da filha e diz-se
vítima de calúnia. O acusado, busca construir sua inocência na afirmação de
um comportamento “indecente” de sua filha, afirmando que “Candó todas as
noite, sahia de casa não sabendo elle respondente para que, entretanto não
pode acusar ninguém”278. Ao fazer essa declaração da própria filha, Mathias
expõe-se no sentido de falhar como pai e condutor da família, o que é
fortemente questionado pelo delegado, pois, sendo ele um pai, como deixava a
filhar ter tal comportamento e mesmo estando grávida, por que não procurou as
autoridades para queixar-se. As falas de Mathias são permeadas de
contradição, o mesmo ainda afirma que é casado a vinte anos com sua mulher
e que nunca abandonou a sua cama, exceto uns dias, quando esta estava
atacada por percevejos, o que lhe obrigou a dormir no chão.
Estes casos evidenciados nos chamam atenção para o convívio familiar
entre os populares, não quer dizer com isso que esta seja uma prática apenas
275
CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939.
CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939.
277
CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939.
278
CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939.
276
147
desse grupo social, porém entre membros da elite, casos como estes eram
abafados com viagens, casamentos arranjados e outras estratégias de
manutenção do status quo social. O processo de Mathias fica inacabado, não
sabemos o motivo de não ter havido a denuncia do ministério público, talvez o
fato da idade da ofendida com 21 anos de idade que a tornava maior
legalmente, não enquadrando o fato como estupro nem defloramento seguindo
a lei em vigor. O procedo é arquivo no ano de 1965, após a prescrição do
crime. Assim, como em muitos outros casos envolvendo as mulheres pobres
em Feira de Santana, ficamos sem saber o paradeiro das nossas
protagonistas.
O último processo evidenciado sobre crimes sexuais no ambiente
familiar envolve uma família composta por uma viúva com cinco filhos que
casa-se com um também viúvo com dois filhos, juntos tem mais dois filhos
juntos, ou seja, uma família grande como costumeiro entre os populares da
zona rural, sendo que esta conta de filhos não é exata, pois, encontramos três
referências aos filhos do casal, uma que descrevia a agrupamento de quinze
filhos, outro de dez e este que citamos de nove filhos. A quantidade não
interessa, o importante é perceber as interações e os conflitos se deram nessa
família formada pela união de José Leão dos Santos, 40 anos idade, lavrador,
casado, analfabeto e Maria Ferreira da Silva, 30 anos idade, doméstica,
casada, analfabeta.279
José Leão dos Santos é preso em flagrante no dia 19 de agosto de
1948, após espancar violentamente sua, produzindo nela feridos com uma
estaca verde, que arrancara da cerca da sua casa. O espancamento de Maria
Ferreira da Silva é o cume de história de fato que se inicia com a descoberta do
desvirginamento de sua filha Maria de Lourdes da Silva, menor de 13 anos de
idade pelo padrasto José Leão dos Santos.
Como costumeiro na zona rural os pais levam seus filhos para a roça
com eles para auxiliar nos trabalhos diários de manutenção dos cultivos. Dessa
279
CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948.
148
forma agiu José Leão, levando Maria de Lourdes e mais três irmãos menores
para a roça consigo. Segundo a ofendida:
Que chegando lá[na roça], à sombra de um pé de pinha o seu
padrasto mandou dois irmão ir colher feijão e o outro mandou plantar
melancia, que ficando a sós, o seu padrasto lhe puxara pela cintura,
280
jogando-a no chão, fazendo o que bem quis.
O fato do desvirginamento foi testemunhado pelo irmão da menor
ofendida de nome Vital, que confidenciou o que testemunhou para a mãe do
referido, esta procurou seu ex-cunhado Pascoal Brandão e tio dos seus cinco
filhos do primeiro casamento e contou o caso, que imediatamente pegou a
menina ofendida e retirou da casa de José Leão para procurar as autoridades
policias. Antes
de a queixa ser prestada, José protagoniza a cena de
espancamento da mulher e é preso em flagrante.
Na delegacia as histórias começam a ser cruzadas e vem a tona o
espetáculo de códigos e valores cotidianos que norteavam as relações entre o
sexos nesse contexto social. José Leão confessou que manteve intimidades
sexuais com a menor, pela descrição que faz dos fatos, com extrema
naturalidade, demonstra que o acusado considerava aquela atitude normal e
constituinte do seu sexo. Assim declara:
que de fato teve relação algumas vezes com a menina Maria de
Lourdes, filha de sua mulher, atualmente com a idade aproximada de
12 a 14 anos, que Maria de Lourdes já é púbere, tendo o interrogado
relações com ela cerca de mais de um ano,mesmo antes do inicio do
seu ciclo menstrual, que não deflorou Maria de Lourdes, praticando
com a mesma apenas atos de libidinagem, acreditando
que ela
seja ainda virgem, que mesmo na ultima vez em que esteve com a
referida menor “andou tateando”, “atarando e não achou jeito”, que
nunca usou de violência para com a menina e nem jamais lhe pagou
281
cousa alguma pela satisfação de seus desejos sexuais
José Leão diz que a briga com sua esposa não foi por causa da
descoberta do defloramento da menor, pois, “de fato a ultima vez, o fato foi
descoberto pelo menino vital, e irmão da ofendida, que não se aborreceu tanto
280
281
CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948.
CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948.
149
com sua esposa pelo caso do defloramento da menina, mas sim pela maneira
leviana e infiel com que procedeu282”. Mesmo depois de declarar abertamente
que mantinha relações sexuais com a filha da sua mulher com quem era
casado há 04 anos, José Leão, reivindica da mesma um comportamento
atrelado a submissão e aprisionamento ao lar. A briga iniciou-se quando o
acusado chegou em casa e não encontrou a mulher na mesma, descobrindo
que a mesma tinha ido a casa de um viszinho de nome Josué Tavares da Silva,
com 41 anos, solteiro, lavrador, pegar uma farinha emprestada, segundo José
Leão, “ Josué nunca teve farinha para emprestar para ninguém, não possuindo
si quer um pé de mandioca”. Ao chegar na casa de Josué encontrou a casa
fechada tendo por isso invadido a casa tendo a oportunidade de ver sua mulher
Maria dos Santos saindo correndo pelo fundo da casa, que seguiu sua mulher
até sua casa onde fez os ferimentos com uma estaca.
É interessante a relação de gênero presente neste caso em especial,
pois, o acusado agrediu sexualmente a menor Maria de Loudes, agrediu
fisicamente o menor Vital, por que contou para a mãe que viu o padrasto tendo
relações com a irmã e agrediu a mulher Maria Ferreira, pois, considerou seu
comportamento “leviano e infiel”. Vemos que José Leão, revestido do poder
masculino que a sociedade que configurava, impõe-se sobre sua família, a
ponto de estabelecer um código de violência licenciosa283.
José Leão fica recluso na cadeia Publica menos de dois meses, tendo
livramento no dia 08 de outubro de 1948, após, novo depoimento da menor
Maria de Lourdes que inocenta o padrasto, afirmando que:
Declarou a Policia ter sido o seu padrasto José Leão da Silva o autor
do seu desvirginamento forçada e insinuada pelos seus tios irmãos
284
de sua mãe, Alberto Justino e Eduardo Ferreira da Silva
282
283
CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
284
CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948.
150
Diversos fatores podem sinalizar para as motivações que levaram a
menor de Maria de Lourdes, a inocentar seu padrasto em novo depoimento. No
entanto, um dos fatores que podem ter sido o agravante era a questão do
provimento do lar, que pode ter ficado comprometido com a prisão de José
Leão, uma vez que era uma família com mais de dez filhos para manter. Assim,
José Leão é posto em liberdade, porém essa liberdade lhe dura menos que um
ano, pois, o referido faleceu no dia 13 de agosto de 1949 285, deixando assim
Maria Ferreira da Silva novamente viúva e desta vez com mais quatro filhos
para criar e manter.
285
CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948.
151
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O famoso Promotor Público da Comarca de Feira De Santana no dia 22 de
novembro de 1941 ao solicitar o arquivamento do processo de defloramento de
Maria José Bispo, empregada, 15 anos de idade, solteira, moradora no lugar
conhecido como Campo Limpo, natural de Maria Quitéria, analfabeta, preta,
filha de Evarista Ferreira, que acusou Manoel Basílio, solteiro, com 36 anos,
chauffer, residente a Rua Voluntários da Pátria, nº 17, sabendo ler e escrever,
de ser o autor do seu defloramento na casa de seu patrão Leocadio, escreveu
uma frase que me chamou bastante atenção, assim declarou: “Impõe-se
portanto o silêncio destes papeis”286 .
De fato o Promotor nunca imaginou que as histórias daqueles indivíduos
romperiam o anonimato e transporia o silêncio do arquivamento, pelas mãos de
um historiador que vasculha entre as estantes e caixas empilhadas em um
arquivo. O silêncio imposto foi rompido, essa é nossa função como
historiadores das camadas populares, dá voz e visibilidade aos sujeitos
invisibilizados e silenciados pelo processo histórico.
A sensação de conclusão é inquietante, pois, coloca-nos de frente as
incompletudes do trabalho cientifico da pesquisa histórica. Foram muitas
páginas escritas e muitas histórias problematizadas no sentido de compreender
as relações sexo-afetiva e o controle social em Feira de Santana. Estou
convencido das inumaras possibilidades de pesquisas e problematizações que
a documentação evidenciada permite, atreladas a leitura da categoria gênero.
Na escolha do objeto de pesquisa, buscávamos revelar uma faceta da
sociedade
feirense,
compreendendo
as
identidades,
estereótipos
e
principalmente as experiências dos sujeitos apreendidos em seu cotidiano e
nas suas interações culturais.
286
CEDOC/UEFS – Doc. 2264, Cx. 109, Est. 04, Ano 1941.
152
Nos processos criminais encontrei, mulheres e homens que me revelaram as
aspectos característicos da sociedade feirense de meados do século XX, como
referente grande número de analfabetos, a predominância das relações rurais
entre os populares, a importância crucial que exercia feira livre no centro da
cidade, movimentando-a todas as segundas-feiras, estabelecendo um diálogo
entre o urbano e o rural, o centro e a periferia.
Os valores e códigos de condutas tão foram expostos pela documentação, seja
através das falas dos envolvidos, seja na interlocução com os manipuladores
técnicos, que utilizavam os processos como palco para encenar os modelos
normativos de controle das camadas populares.
Este estudo sobre as mulheres em Feira de Santana foi motivado pela paixão
ao tema e pela nossa posição política e inquietante de compreender as
relações de gênero e as desigualdades entre os sexos. De tal maneira
inquietante, concluo este trabalho com plena consciência de que o tema é
relevante e este é um apenas um passo no olhar ao passado silenciado,
invisibilizado e oculto.
153
FONTES
I - PROCESSOS CRIMINAIS
Centro de Pesquisa e Documentação CEDOC/UEFS.
RELAÇÃO DOS PROCESSOS:
Lesões Corporais e Homicídios
CEDOC – Alexandre dos Santos – Doc.1253, Cx.69, Est.03, ano 1939.
CEDOC – Alexandrina de tal – Doc.715, Cx. 43, Est. 2, ano 1941.
CEDOC – Cândido E. dos Santos – Doc 2088, Cx. 99, Est. 04, ano 1946.
CEDOC – Elias F. da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940.
CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948.
CEDOC- Gabina Amélia - Doc 807, Cx. 48, Est. 02, ano 1948
CEDOC – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947.
CEDOC – Gregório de Lima – Doc. 2197, Cx. 105, Est.04, ano 1941
CEDOC – Joana Estrela. Doc 1583, Cx 83, E 03, ano 1942.
CEDOC – João Calmon de Brito - Doc. 2001, cx 95 Est. 04 – ano 1948
CEDOC – José Anastácio dos Santos – Doc. 207, cx. 10, Est. 01, ano 1947.
CEDOC - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942.
CEDOC - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942.
CEDOC – Manoel Cipriano da Silva – Doc. 1597, Cx. 83, Est. 03 ano 1947.
CEDOC – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940
CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937.
CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939.
CEDOC – Maria José de Almeida – Doc. 935, Cx. 54, Est. 02, Ano 1940
CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932.
CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940.
CEDOC – Renato de tal – Doc. 2206, Cx. 106, Est. 04, ano 1941
CEDOC – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946
Infanticídio
CEDOC - Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx.
142, est. 05, ano 1933.
Defloramentos e Estupros
CEDOC - Doc. 671, Cx. 40, Est. 02
CEDOC – Doc.2209, Cx.106, Est.04
CEDOC – Doc 1182, Cx 63, Est 03
CEDOC – Doc 1240, Cx 08, Est 03
CEDOC – Doc 1404, Cx75, Est 03
CEDOC – Doc 1582, Cx 83, Est 03
154
CEDOC – Doc 1636, Cx 84, Est 03
CEDOC – Doc 1642, Cx 85, Est 03
CEDOC – Doc 1647, Cx 35, Est 03
CEDOC – Doc 1648, Cx 85, Est 03
CEDOC – Doc 1662, Cx 85, Est 03
CEDOC – Doc 1672, Cx 86, Est 03
CEDOC – Doc 1700, Cx 87, Est 03
CEDOC – Doc 1743, Cx 90, Est 03
CEDOC – Doc 187, Cx 09, Est 01
CEDOC – Doc 2007, Cx 96, Est 04
CEDOC – Doc 205, Cx 10, Est. 01
CEDOC – Doc 2200, cx 105, Est. 04
CEDOC – Doc 2432, Cx 121, Est 05
CEDOC – Doc 2445, Cx 123, Est 05
CEDOC – Doc 2489, Cx 127, Est 05
CEDOC – Doc 2575, Cx 133, Est 05
CEDOC – Doc 558, Cx 32, Est 02
CEDOC - Doc 619, Cx 36 Est. 02
CEDOC – Doc 671, Cx 40, Est 02
CEDOC – Doc 758, Cx 45, Est 02
CEDOC – Doc 789, Cx 47, Est 04
CEDOC – Doc 931, Cx 54, Est 02
CEDOC – Doc 932, Cx 54, Est 02
CEDOC – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02
CEDOC – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03
CEDOC – Doc. 1416 Cx. 76 Est. 03
CEDOC – Doc. 1642, Cx. 85, Est. 03
CEDOC – Doc. 1662, Cx. 85, Est. 03
CEDOC – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04
CEDOC – Doc. 2255, Cx. 109, Est. 04
CEDOC – Doc. 2264, Cx. 109, Est. 04
CEDOC – Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04
CEDOC – Doc. 36, Cx 02, Est 02
CEDOC – Doc.1647, Cx.85, Est. 03
II- Jornal Folha do Norte
Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvão / Centro de Estudos Feirenses/
Museu Casa do Sertão / UEFS.
Jornal Folha do Norte - 1930
Jornal Folha do Norte - 1931
Jornal Folha do Norte - 1932
Jornal Folha do Norte - 1933
Jornal Folha do Norte - 1934
Jornal Folha do Norte - 1930
Jornal Folha do Norte - 1935
155
Jornal Folha do Norte - 1936
Jornal Folha do Norte - 1937
Jornal Folha do Norte - 1938
Jornal Folha do Norte - 1939
Jornal Folha do Norte - 1940
Jornal Folha do Norte - 1941
Jornal Folha do Norte - 1942
Jornal Folha do Norte - 1943
Jornal Folha do Norte - 1944
Jornal Folha do Norte - 1945
Jornal Folha do Norte – 1946
Jornal Folha do Norte - 1947
Jornal Folha do Norte - 1948
III. CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAIS
Arquivo Público Municipal de Feira de Santana - Decreto-Lei Nº 01 de 29 de
Dezembro de 1937.
IV. LITERATURA
Código Penal Brasileiro. Dec. 847 de 11 de outubro de 1890.
Código Penal Brasileiro. Dec. 2.848 de 07 de dezembro de 1940.
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Oscar
Damião
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161
Anexos
162
Anexo 1.
PROJETO DE PESQUISA: Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência
em Feira de Santana (1930-1948).
Autor: Luiz Alberto da Silva Lima
Centro de Pesquisa e Documentação (CEDOC – DCHF / UEFS)
Nº do Doc:
Caixa:
Estante
Subsérie: P. de inicio:_________________
Nº de Folhas
P. de finalização:_____________
AGRESSOR(A):_______________________________________________________
Estado Civil:____________________Profissão/Ocupação:_____________________
Idade: __________Sexo:___________Escolaridade:___________ Cor:__________
Naturalidade:______________________ Endereço Residencial: _______________
Filiação:_______________________________________________________________
NOME DA VÍTIMA:__________________________________________________________
Estado Civil:__________________ Idade:_____________ Sexo:_________________
Profissão/ Ocupação:___________________ Vínculo c/ o agressor(a):____________
Endereço residencial:____________________________________________________
Naturalidade:______________ Cor:_________Escolaridade:___________________
Filiação _______________________________________________________________
Artigo de enquadramento do crime (Tipo Penal):____________________________
Local de Ocorrência: ___________________________________________________
Data do crime: ______________ Dia: _____________Horário:__________________
Motivos explicitado nos autos:_____________________________________________
Instrumentos utilizados para a consumação do fato delituoso:__________________
Autoria da queixa_______________________________________________________
Sentença_______________________________________________________________
Quantidades de testemunhas arroladas _____________________________________
Juiz____________________________ Promotor_____________________________
163
Anexo 2.
164
Anexo 3
Doc. 305, Cx 16, Est, 01, Ano 1933.
165
Anexo 4
Doc. 1583, Cx. 83, Est. 03, Ano 1942.
166
Download

Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira