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Dia Um: terça-feira, 21 de abril de 2009
Um recorte no espaço-tempo...
O prédio de controle do Grande Colisor de Hádrons
(LHC) do CERN era recente: sua construção fora autorizada
em 2004 e concluída em 2006. O edifício englobava um pátio
central, inevitavelmente denominado de “o núcleo “. Cada
escritório possuía uma janela que dava ou para o núcleo ou
para o restante do campus do CERN. O quadrilátero ao redor
do núcleo tinha dois andares, mas os elevadores principais
contavam com quatro paradas: duas no nível acima do solo;
o porão, que abrigava a caldeira e o depósito; e o nível 100
metros abaixo do solo, que se abria em uma plataforma
temporária para o monotrilho utilizado para o deslocamento
pela circunferência de 27 quilômetros do colisor. O túnel
estendia-se sob fazendas, as proximidades do aeroporto de
Genebra e o sopé da cadeia de montanhas do Jura.
A parede sul do corredor principal do prédio de controle
era dividida em 19 seções longitudinais, cada uma delas
decorada com um mosaico de autoria de artistas dos países-membros do CERN. O da Grécia mostrava Demócrito e a
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origem da teoria atômica; o da Alemanha retratava a vida
de Einstein; o da Dinamarca, a de Niels Bohr.
Nem todos os mosaicos tinham como tema a física: o francês mostrava o skyline de Paris e o italiano, uma vinha com
milhares de ametistas representando uvas.
O centro de controle do Grande Colisor de Hádrons
era um quadrado perfeito, com grandes portas de correr
posicionadas precisamente no centro de dois de seus lados.
A sala tinha pé-direito duplo, e a metade superior era toda
de vidro, para que os grupos em visita ao local pudessem
observar os procedimentos. O CERN oferecia visitas guiadas
ao público às segundas e aos sábados, às 9h e às 14h (cada
uma com três horas de duração). Penduradas nas paredes
abaixo das janelas de vidros estavam as bandeiras dos 19
países-membros, cinco por parede; o vigésimo intervalo era
tomado pela bandeira azul e dourada da União Europeia.
A sala de controle continha dúzias de consoles. Um deles
era dedicado à operação dos injetores de partículas e controlava o início dos experimentos. Adjacente a ele, encontrava-se outro, com face angular e dez monitores embutidos que
indicavam os resultados reportados pelos detectores Alice
e CMS, os gigantescos sistemas subterrâneos produzidos
pelos experimentos do LHC. Os monitores do terceiro console mostravam segmentos do túnel subterrâneo do colisor,
ligeiramente curvado, com a viga da pista do monotrilho
pendurada acima.
Lloyd Simcoe, pesquisador nascido no Canadá, estava
sentado diante do console dos injetores. Tinha 44 anos, era
alto e bem barbeado, com olhos azuis e cabelos cortados bem
baixos, de um tom castanho tão escuro que alguém poderia
enganar-se e chamá-lo de negro — exceto nas têmporas, onde
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cerca da metade dos fios era grisalha.
Os físicos de partículas não eram famosos por seu esplendor ou elegância, e Lloyd até recentemente não fora exceção.
Porém, concordara alguns meses atrás em doar todo o seu
guarda-roupa ao Exército da Salvação de Genebra, e deixara
sua noiva escolher itens novos em folha para ele. Verdade seja
dita que as roupas eram chamativas demais para seu gosto,
mas ele precisava admitir que nunca tivera uma aparência
tão boa. No momento, usava uma camisa bege folgada, um
paletó vermelho-alaranjado, calças marrons com bolsos externos, em vez de internos, e (em aquiescência com a tradição
da moda) sapatos italianos de couro preto. Lloyd também
havia adotado dois símbolos universais de status que por
acaso também faziam parte da cor local: uma caneta-tinteiro
Mont Blanc, que ele mantinha presa ao bolso interno do
paletó, e um relógio suíço analógico de pulso.
À sua direita, em frente ao console dos detectores, estava
Theo Procopides, companheiro de pesquisa de Lloyd. Com
27 anos, Theo era 18 anos mais jovem do que Lloyd; mais
de um engraçadinho já havia comparado o conservador de
meia-idade Lloyd e seu colega grego ferino à dupla Crick e
Watson. Theo tinha cabelos escuros espessos e cacheados,
olhos cinzentos e maxilar destacado e proeminente. Quase
sempre estava de calças jeans vermelhas (Lloyd não gostava
delas, mas ninguém com menos de 30 usava jeans azuis
agora) e uma das camisetas de sua coleção interminável
com personagens de quadrinhos do mundo inteiro. Hoje era
a vez do venerável Piu-Piu. Uma dúzia de outros cientistas
e engenheiros estavam posicionados nos demais consoles.
Mexendo o cubo...
A não ser pelo zumbido suave do ar-condicionado e do
ruído macio dos coolers dos equipamentos, a sala de controle
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estava absolutamente silenciosa. Todos estavam nervosos e
tensos após um dia longo de preparação para esse experimento. Lloyd olhou ao redor e depois respirou fundo. Seu
pulso estava acelerado, e ele sentia frio no estômago.
O relógio da parede era analógico; o do console, digital.
Os marcadores de ambos aproximavam-se rapidamente das
17h — que Lloyd, mesmo depois de dois anos na Europa,
ainda lia como cinco da tarde.
Lloyd era diretor do grupo colaborativo formado por
mais de mil cientistas que utilizava o detector Alice ( “A
Large Ion Collider Experiment “, ou “O Experimento do
Grande Colisor de Íons “). Ele e Theo haviam passado dois
anos projetando o colisor de partículas atual — dois anos
realizando um trabalho que tomaria o tempo de duas vidas.
Eles buscavam recriar níveis de energia que não existiam
desde um nanossegundo após o Big Bang, quando a temperatura do universo atingira 10.000.000.000.000.000o. No
processo, esperavam detectar o Santo Graal da física de alta
energia, o há tempos procurado bóson de Higgs, a partícula
cujas interações dotavam de massa as outras partículas. Se
o experimento fosse bem-sucedido, a descoberta do Higgs e
o Nobel que provavelmente seria conferido a seus descobridores seriam deles.
Todo o experimento era automatizado e precisamente
cronometrado. Não havia um grande interruptor de faca
para acionar, nenhum gatilho escondido sob uma coberta
retrátil para ativar. Sim, Lloyd projetara e Theo codificara
os módulos centrais do programa desse experimento, mas
tudo agora estava sob o controle de um computador.
Quando o relógio digital marcou 16:59:55, Lloyd começou
a contagem regressiva.
— Cinco.
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Ele olhou para Michiko.
— Quatro.
Ela sorriu para ele de forma encorajadora. Deus, como
ele a amava...
— Três.
Ele desviou o olhar para o jovem Theo, o Wunderkind
— o tipo de jovem prodígio que Lloyd esperara ter sido um
dia, mas que nunca fora.
— Dois.
Theo, sempre brincalhão, ergueu o polegar para ele.
— Um.
Por favor, Deus... pensou Lloyd. Por favor.
— Zero.
E então...
E então, subitamente, tudo mudou.
Houve uma mudança imediata na iluminação — a iluminação fraca da sala de controle foi substituída pela luz do sol
vinda pela janela. Porém, não houve nenhum ajuste, nenhum
desconforto — e nenhuma percepção de que as pupilas de
Lloyd estivessem se contraindo. Era como se ele já houvesse
se acostumado com a luz mais intensa.
No entanto, Lloyd já não conseguia controlar os olhos.
Ele queria olhar ao redor, ver o que estava acontecendo, mas
seus olhos se moviam como se por vontade própria.
Estava na cama; aparentemente, nu. Ele sentia os lençóis
de algodão deslizarem pela sua pele ao se erguer, apoiando-se
em um cotovelo. Quando mexeu a cabeça, viu de relance as
trapeiras, que pareciam estar situadas no segundo andar de
uma casa de campo. Havia árvores à vista, e...
Não, não podia ser. Aquelas folhas estavam queimadas
pela geada. Porém, hoje era dia 21 de abril — primavera,
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não outono.
A visão de Lloyd continuou a se deslocar e subitamente,
com o que deve ter sido espanto, ele percebeu que não estava
sozinho na cama. Havia outra pessoa a seu lado.
Ele se retraiu.
Não... não estava certo. Ele não teve qualquer reação
física; era como se seu corpo estivesse desconectado de sua
mente. Mas ele sentia vontade de se retrair.
A outra pessoa era uma mulher, mas...
Que diabo estava acontecendo?
Ela era velha, enrugada, com pele translúcida, o cabelo,
uma teia de aranha branca. O colágeno que um dia preenchera suas faces se acumulara em papadas nos cantos da
boca, boca que agora sorria, as linhas nos cantos perdidas
em meio às rugas permanentes.
Lloyd tentou se afastar daquela bruxa velha, mas seu
corpo se recusou a cooperar.
O que em nome de Deus estava acontecendo?
Era primavera, não outono.
A menos que...
A menos que, claro, ele agora estivesse no hemisfério sul.
Que tivesse sido transportado de algum jeito da Suíça para
a Austrália...
Mas não. As árvores que ele vira pela janela eram áceres e
álamos; ele devia estar na América do Norte ou na Europa.
Sua mão estendeu-se. A mulher usava uma camisa azul-marinho. Não era a camisa de um pijama, entretanto; tinha
dragonas abotoadas e diversos bolsos — roupa esportiva feita
de lona, o tipo vendido na L. L. Bean ou na Tilley, o tipo
que uma mulher prática poderia usar em jardinagem. Lloyd
sentiu seus dedos esfregando o tecido agora, sua maciez, sua
flexibilidade. E então...
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E então seus dedos encontraram o botão, duro, de plástico,
aquecido pelo corpo dela, translúcido como sua pele. Sem
hesitar, seus dedos agarraram o botão, abriram-no, deslizando-o pela casa de botão costurada. Antes que a camisa
caísse, o olhar de Lloyd, ainda agindo por vontade própria,
ergueu-se novamente até o rosto da velha, prendendo-se em
seus olhos azul-claros, com íris rodeadas por um halo de
anéis brancos quebrados.
Ele sentiu as próprias faces se retesarem ao sorrir. Sua mão
deslizou para dentro da camisa da mulher, encontraram seu
seio. Mais uma vez, ele teve vontade de se retrair, de retirar
a mão. O seio era macio e enrugado, com pele pendurada
— uma fruta estragada. Os dedos se juntaram, seguindo os
contornos do seio, encontrando o mamilo.
Lloyd sentiu uma pressão mais embaixo. Por um momento horrível, pensou que estava tendo uma ereção, mas não.
Em vez disso, subitamente, sentiu a bexiga cheia; precisava
urinar. Retirou a mão e viu as sobrancelhas da velha erguerem-se, com curiosidade. Lloyd sentiu os próprios ombros
erguerem-se e caírem de leve, como se aquilo fosse a coisa
mais natural do mundo, como se ele costumasse sempre
pedir licença nas preliminares. Os dentes da mulher eram
ligeiramente amarelados — um amarelado próprio da idade
—, mas de resto estavam em ótimo estado.
Enfim, seu corpo fez o que ele estivera com vontade de
fazer o tempo inteiro: afastou-se daquela mulher. Lloyd
sentiu uma dor no joelho ao fazê-lo, uma pontada aguda.
Doeu, mas ele ignorou de forma solene. Deixou as pernas
penderem para fora da cama e pousou os pés suavemente no
chão frio de madeira. Ao erguer-se, ele viu mais do mundo lá
fora, pela janela. Ou era meio da manhã ou meio da tarde,
pela sombra derramada por uma árvore que caía duramente
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na seguinte. Um pássaro que fizera ninho em um dos galhos
assustou-se com o movimento súbito no quarto e alçou voo.
Era um pintarroxo, do tipo maior norte-americano, e não
do pequeno, que se encontra no Velho Mundo; aqui era definitivamente os Estados Unidos ou o Canadá. Na verdade,
parecia muito a Nova Inglaterra — Lloyd amava as cores do
outono da Nova Inglaterra.
Lloyd viu-se movendo devagar, quase arrastando-se pelas
tábuas do piso. Deu-se conta de que seu quarto não estava
em uma casa, e sim em um chalé; a mobília era a miscelânea
comum de uma casa de campo. A mesa de cabeceira (baixa,
feita de compensado coberto de uma fina folha de revestimento imitando madeira): aquilo, ele reconhecia, finalmente.
Ele comprara aquele móvel quando estudante e acabara
colocando-o no quarto de hóspedes da sua casa em Illinois.
Mas o que estava fazendo aqui, neste local estranho?
Ele seguiu em frente. Seu joelho direito o incomodava a
cada passo; ele se perguntou o que poderia haver de errado
com ele. Havia um espelho na parede, cuja moldura era de
pinho nodoso envernizado. Aquele tom contrastava com a
“madeira “ mais escura da mesa de cabeceira, claro, mas...
Jesus.
Jesus Cristo.
Por vontade própria, seus olhos encararam o espelho ao
passar por ele, e ele viu-se ali refletido...
Por meio segundo, pensou que fosse seu pai.
Mas era ele mesmo. O cabelo que lhe restara na cabeça
estava inteiramente grisalho; o de seu peito, branco. Sua pele
estava flácida e enrugada; ele parou de andar.
Poderia ter sido radiação? Será que o experimento o expusera àquilo? Será que...
Não. Não, não era isso. Ele soube dentro de seus ossos
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— de seus ossos artríticos. Não era isso.
Ele estava velho.
Era como se tivesse envelhecido vinte anos ou mais, como
se...
Duas décadas de vida tivessem se passado, extraídas de
sua memória.
Teve vontade de gritar, de berrar, de protestar contra
aquela injustiça, contra aquela perda, exigir uma prestação
de contas do universo.
Porém, não pôde fazer nada disso; ele não tinha controle
algum. Seu corpo continuou seu arrastar vagaroso e dolorido
até o banheiro.
Quando se virou para entrar no banheiro, olhou de volta
para a velha na cama, deitada, com a cabeça apoiada em um
braço e um sorriso sedutor, malicioso. Sua visão continuava
ótima — ele viu o brilho dourado no terceiro dedo da mão
esquerda dela. Já era ruim demais que estivesse dormindo
com uma velha, mas estar casado com uma...
A porta de madeira lisa estava entreaberta, mas ele estendeu o braço para acabar de abri-la, e, do canto do olho,
vislumbrou uma aliança em sua própria mão esquerda.
E então a compreensão o atingiu. Aquele ser feio de dar
dó, aquela estranha, aquela mulher que ele nunca tinha visto
antes, aquela mulher que não se parecia nem de longe com
sua amada Michiko, era sua esposa.
Lloyd sentiu vontade de olhar de novo para ela, tentar
imaginar como ela teria sido décadas mais jovem, reconstruir
a beleza que ela um dia poderia ter tido, mas...
Mas continuou seguindo para dentro do banheiro, voltando o rosto de leve para a privada, inclinando-se para
abrir a tampa, e...
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... e, subitamente, incrivelmente, felizmente, surpreendentemente, Lloyd Simcoe estava de volta à CERN, de volta à sala
de controle do LHC. Por algum motivo, estava caído em sua
cadeira acolchoada de courim. Ele endireitou o corpo e usou
as mãos para puxar a camisa de volta ao normal.
Que alucinação incrível, aquela! Teria de pagar um preço
alto por isso, entretanto: supostamente, deveriam estar protegidos de forma total aqui, a 100 metros de profundidade
entre eles e o colisor. Porém, já ouvira falar que as descargas
de alta energia poderiam causar alucinações; com certeza,
foi o que havia acontecido.
Lloyd levou um instante para se reorientar. Não houvera
transição entre aqui e ali: nenhum clarão, nenhuma tontura,
nenhum incômodo nos ouvidos. Num segundo, ele estava
no CERN, no outro, em outro lugar — durante o quê?, dois
minutos, talvez. E agora, da mesma forma estranha, estava
de volta à sala de controle.
Claro que nunca tinha saído dali. Claro que tudo fora
uma ilusão.
Olhou em volta, tentando ler a expressão facial dos outros.
Michiko parecia chocada. Será que estivera olhando para
Lloyd enquanto ele alucinava? O que será que ele fizera?
Retorcera-se todo como um epiléptico? Gesticulara no ar
como se acariciasse um seio inexistente? Ou apenas caíra na
cadeira, inconsciente? Em caso positivo, ele não poderia ter
ficado assim durante muito tempo (não mais do que os dois
minutos que ele percebera), senão com certeza Michiko e os
demais estariam todos em cima dele agora, checando-lhe o
pulso e afrouxando seu colarinho. Ele olhou para o relógio
analógico da parede: de fato, ele marcava dois minutos depois
das cinco da tarde.
Depois ele olhou para Theo Procopides. A expressão do
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jovem grego estava mais contida do que a de Michiko, mas
ele se comportava tão cuidadosamente quanto Lloyd, olhando
ao redor para cada uma das pessoas no local, desviando o
olhar assim que alguém o encarava de volta.
Lloyd abriu a boca para dizer algo, embora não tivesse certeza do que desejava dizer. Porém, fechou-a quando ouviu um
gemido vindo da porta aberta mais próxima. Evidentemente,
Michiko também ouviu, pois os dois se levantaram ao mesmo
tempo. Ela estava mais perto da porta, entretanto, e quando
Lloyd chegou lá, ela já estava no corredor.
— Meu Deus! — exclamou ela. — Está tudo bem?
Um dos técnicos — Sven — lutava para se levantar.
Segurava o nariz com a mão direita, pois sangrava profusamente. Lloyd se apressou para entrar na sala de controle
e soltou o kit de primeiros-socorros pendurado na parede,
depois correu de volta ao corredor. O kit estava em uma caixa de plástico branca; Lloyd a abriu e começou a desenrolar
uma atadura de gaze.
Sven se pôs a falar em norueguês, mas parou depois de
um instante e recomeçou em francês.
— Eu... eu devo ter desmaiado.
O piso do corredor era de azulejos brancos; Lloyd viu
uma mancha carmesim onde o rosto de Sven atingira o
chão. Estendeu a gaze para ele, que agradeceu com um gesto,
enrolou-a e pressionou-a contra o nariz.
— Que coisa maluca — disse ele, com um som de riso.
— Até mesmo tive um sonho.
Lloyd sentiu suas sobrancelhas erguerem-se.
— Um sonho? — perguntou, também em francês.
— Parecia tão real! — continuou Sven. — Eu estava em
Genebra, no Le Rozzel.
Lloyd conhecia bem o lugar: uma creperia estilo bretão
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que ficava na Grand Rue. Sven prosseguiu.
— Mas parecia uma coisa de ficção científica. Havia
carros passando por mim sem tocar o chão, e...
— Sim, sim! — Era uma voz de mulher, mas não em resposta ao que Sven dizia. Vinha de dentro da sala de controle.
— A mesma coisa aconteceu comigo!
Lloyd reentrou na sala em penumbra.
— O que aconteceu, Antonia?
Uma mulher italiana robusta estava falando com dois
outros dos presentes, mas agora virara o rosto para encarar
Lloyd.
— Era como se de repente eu estivesse em outro lugar.
Parry disse que a mesma coisa aconteceu com ele.
Michiko e Sven agora estavam à porta, bem atrás de Lloyd.
— Comigo também — declarou Michiko, parecendo
aliviada por não estar sozinha nessa.
Theo, de pé perto de Antonia, franziu a testa. Lloyd olhou
para ele.
— Theo? E você?
— Nada.
— Nada?
Theo fez que não.
— Todo mundo aqui deve ter desmaiado — concluiu
Lloyd.
— Eu com certeza — disse Sven. Ele afastou a gaze do
rosto, depois tocou o nariz novamente para ver se o sangramento havia parado. Não havia.
— Por quanto tempo ficamos inconscientes? — quis saber
Michiko.
— E... meu Deus! E o experimento? — perguntou Lloyd.
Ele correu até a estação de monitoramento do Alice e digitou
algumas teclas.
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— Nada — disse ele. — Droga!
Michiko expirou, desapontada.
— Deveria ter funcionado! — disse Lloyd, dando um
tapa no console. — Nós deveríamos ter conseguido o Higgs.
— Bom, alguma coisa aconteceu — disse Michiko. —
Theo, você não viu nada enquanto o resto de nós estava...
estava tendo visões?
Theo fez que não.
— Absolutamente nada. Acho que... acho que eu apaguei
mesmo. Só que não havia escuridão. Eu estava vendo Lloyd
fazer a contagem regressiva: cinco, quatro, três, dois, um,
zero. Depois houve um corte, sabe, como num filme. E de
repente Lloyd estava caído na cadeira.
— Você me viu cair?
— Não, não. É como eu disse: num segundo, você estava
sentado normalmente, no outro estava caído, sem conexão
alguma entre uma coisa e outra. Acho que... acho que eu
apaguei mesmo. Não registrei você caído com mais rapidez
do que registrei você sentado, mas...
De repente, uma sirene cortou o ar: era um veículo de
emergência de algum tipo. Lloyd correu para fora da sala
de controle e todos o seguiram. A sala que ficava no lado
oposto do corredor tinha uma janela. Michiko, que ali chegou
primeiro, já estava abrindo a persiana; o sol de fim de tarde
invadiu o lugar. O veículo era um caminhão de bombeiros
do CERN, um dos três que havia ali, e corria pelo campus
em direção ao prédio da administração.
O nariz de Sven, pelo jeito, parara de sangrar; ele agora
segurava de lado a massa sangrenta de gaze.
— Será que alguém mais caiu? — perguntou ele.
Lloyd olhou para Sven.
— Os caminhões de bombeiros são usados tanto para
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primeiros socorros quanto para incêndios — disse Sven.
Michiko se deu conta da magnitude do que Sven estava
sugerindo.
— Precisamos checar todas as salas daqui; ver se estão
todos bem.
Lloyd assentiu e voltou para o corredor.
— Antonia, verifique todas as pessoas da sala de controle. Michiko, leve Jake e Sven e vá por ali. Theo e eu vamos
procurar por aqui.
Ele sentiu uma leve pontada de culpa por se separar de
Michiko, mas precisava de um instante para entender o que
vira, o que vivenciara.
A primeira sala em que Lloyd e Theo entraram continha
uma mulher nocauteada; Lloyd não se lembrava de seu nome,
mas ela trabalhava no departamento de relações públicas. O
monitor de tela plana à sua frente mostrava o desktop 3D
familiar do Windows 2009. Ela ainda estava inconsciente;
com certeza, por causa do hematoma enorme em sua testa,
indicando que caíra de cabeça na borda de metal da sua mesa
e ficara desacordada. Lloyd fez o que tinha visto em inúmeros filmes: segurou a mão esquerda dela com a sua direita,
de forma que as costas da mão dela ficassem para cima, e
deu-lhe tapinhas gentis com sua outra mão, enquanto falava
com a mulher para que acordasse.
Por fim, ela acordou.
— Dr. Simcoe? — perguntou ela, olhando para Lloyd. —
O que aconteceu?
— Não sei.
— Eu tive um... sonho — disse ela. — Eu estava em uma
galeria de arte em algum lugar, olhando um quadro.
— Você está bem agora?
— Eu... eu não sei. Minha cabeça dói.
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— Talvez você tenha sofrido uma concussão. É melhor ir
para a enfermaria.
— O que são todas essas sirenes?
— Bombeiros. — Pausa. — Olhe, preciso ir agora. Outras
pessoas também podem estar feridas.
Ela assentiu.
— Ficarei bem.
Theo já havia prosseguido corredor abaixo. Lloyd saiu da
sala e o seguiu. Passou por Theo, que estava atendendo outra
pessoa caída. O corredor fazia uma curva à direita; Lloyd foi
por ali. Chegou à porta de um escritório, que se abriu silenciosamente quando ele se aproximou. As pessoas ali dentro
pareciam estar bem, embora falassem animadamente sobre
as visões diversas que haviam tido. Havia três indivíduos,
duas mulheres e um homem. Uma das mulheres viu Lloyd.
— Lloyd, o que aconteceu? — perguntou ela em francês.
— Ainda não sei — respondeu ele, também em francês.
— Estão todos bem?
— Tudo bem aqui.
— Não pude deixar de ouvir — continuou Lloyd. — Vocês
três tiveram visões, certo?
Todos assentiram.
— Pareciam reais?
A mulher que ainda não falara com Lloyd apontou para
o homem.
— A de Raoul, não. Ele teve uma espécie de experiência
psicodélica.
Ela disse aquilo como se fosse mais do que esperado, dado
o estilo de vida de Raoul.
— Eu não diria exatamente “psicodélica “ — disse Raoul,
como se precisasse se defender. Seu cabelo loiro era comprido e limpo, amarrado num rabo de cavalo glorioso. — Mas
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com certeza não parecia real. Havia um homem com três
cabeças, sabe...
Lloyd concordou, dispensando mentalmente aquela informação.
— Se vocês todos estão bem, então venham conosco;
algumas pessoas tiveram quedas horríveis quando isso que
ainda não sabemos o que foi aconteceu. Precisamos encontrar
eventuais feridos.
— Por que não passar uma mensagem pelo alto-falante e
solicitar que todos se reúnam no saguão? — sugeriu Raoul.
— Então podemos fazer uma contagem e ver quem não está
presente.
Lloyd se deu conta de que aquilo fazia perfeito sentido.
— Continuem a busca; algumas pessoas podem necessitar
de atenção imediata. Vou até a administração.
Ele saiu da sala, enquanto os outros se levantavam e se
dirigiam para o corredor também. Lloyd pegou o caminho
mais curto até a administração e passou correndo pelos variados mosaicos. Ao chegar, parte dos funcionários estavam
cuidando de alguém que aparentemente caíra e quebrara o
braço. Outra pessoa se queimara ao cair de cara na própria
xícara de café quente.
— Dr. Simcoe, o que aconteceu? — perguntou um homem.
Lloyd já estava se cansando daquela pergunta.
— Não sei. Você sabe operar o sistema de AF?
O homem o olhou; pelo jeito, Lloyd estava usando um
americanismo que o camarada não entendia.
— O AF — repetiu Lloyd. — O sistema de comunicação
interna.
O homem ainda parecia não entender.
— O alto-falante!
— Ah, claro — disse ele, com um inglês endurecido pelo
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sotaque alemão. — Aqui.
Ele levou Lloyd até um console e acionou alguns botões.
Lloyd apanhou a base fina de plástico do microfone robusto.
— Aqui quem fala é Lloyd Simcoe. — Ele ouviu a própria
voz retornando pela caixa de som instalada no corredor,
mas os filtros do sistema eliminavam qualquer retorno ali.
— Obviamente, algo aconteceu. Diversas pessoas estão feridas. Se você está no ambulatório... — Ele parou de novo;
aqui o inglês era uma segunda língua para a maioria dos
funcionários. — Se consegue andar, e se as pessoas com quem
está também conseguem, ou pelo menos podem ser deixadas
sozinhas sem riscos, por favor venha até o saguão principal.
Alguém pode ter caído em um lugar escondido; precisamos
descobrir se alguém está ausente.
Ele devolveu o microfone ao homem.
— Pode repetir este aviso em francês e alemão?
— Jawohl­ — respondeu ele, já acionando chaves internas.
Ele se pôs a falar ao microfone.
Lloyd se afastou dos controles do sistema de alto-falante.
Depois incitou as pessoas capazes de andar a se dirigirem até
o saguão, decorado com uma placa comprida de bronze resgatada de um dos outros edifícios que foram demolidos para
dar lugar ao centro de controle de operações do LHC. Na
placa, lia-se a sigla original do CERN: Conseil Européenne
pour la Recherche Nucléaire. Hoje em dia aquela sigla não
significava mais nada, mas suas raízes históricas eram honradas ali.
A maioria dos rostos no saguão era branca, com uns
poucos... Lloyd parou antes de se referir mentalmente a eles
como “melanoamericanos”, o termo hoje preferido pelos
negros dos Estados Unidos. Embora Peter Carter ali fosse
de Stanford, a maioria dos outros negros era, na verdade,
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da África. Também havia alguns asiáticos, incluindo, claro,
Michiko, que fora ao saguão em resposta ao pedido do alto-falante. Lloyd foi até ela e abraçou-a.
Graças a Deus que ela, pelo menos, não se ferira.
— Alguém está seriamente machucado? — perguntou ele.
— Uns hematomas e outro nariz sangrando — respondeu
Michiko —, mas nada grave. E você?
Lloyd vasculhou a multidão atrás da mulher que batera
a cabeça. Ela ainda não chegara.
— Uma possível concussão, um braço quebrado e uma
queimadura feia. — Ele fez uma pausa. — Deveríamos chamar algumas ambulâncias; levar os feridos a um hospital.
— Eu cuido disso — disse Michiko, e desapareceu dentro
de uma sala.
O grupo reunido aumentava; agora somava cerca de
duzentas pessoas.
— Atenção, todos! — gritou Lloyd. — Sua atenção, por
favor! Votre attention, s’il vous plaît! — Ele aguardou até
todos os olhares voltarem-se em sua direção. — Olhem ao
redor e vejam se reconhecem seus colegas de trabalho. Se
alguém que vocês viram hoje não estiver aqui, por favor me
avisem. E se alguém deste saguão necessitar de cuidados médicos imediatos, por favor me avisem também. Já chamamos
algumas ambulâncias.
Quando ele disse isso, Michiko voltou. Sua pele estava
ainda mais branca do que o normal, e sua voz tremia quando
ela falou.
— Não vai vir nenhuma ambulância — avisou ela. — Pelo
menos não imediatamente. A telefonista do resgate informou
que elas estão todas presas em Genebra. Pelo visto, todos os
motoristas nas ruas e estradas desmaiaram; não é possível
sequer estimar o número de mortos.
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