CADERNOS NEGROS é uma publicação do
grupo QUILOMBHOJE. Constitui uma
antologia de contos e poemas, iniciada em
1978, com Cadernos negros 01, chegando ao
número 20 em 1997.
O significado dessa publicação é tornar-se um
contraponto essencial no âmbito da literatura
brasileira como instituição.
Essa literatura, denominada hoje de afro-descendente, pode
ser definida como aquela de onde emerge uma consciência
negra. O poeta enunciador assume a identidade negra,
buscando recuperar as raízes da cultura afro-brasileira,
protestando contra o racismo e o preconceito:
De mim
parte um canto guerreiro
um vôo rasante talvez rumo
norte
caminho trilhado da cana-deaçúcar
ao trigo crescido, pingado de
sangue
do corte do açoite. Suor
escorrido
da briga do dia
que os ventos do sul e o
tempo distante
não podem ocultar.
Observa-se o desejo de influir, através da
palavra poética, na modificação da ordem
social. Os poemas, no geral, são engajados:
“Nossa pele teve maldição de raça
e exploração de classe
duas faces da mesma diáspora e
desgraça.”
Os poetas, com freqüência, socorrem-se da crença
de que a palavra poética é uma milagrosa arma na
defesa dos direitos humanos e contra a
discriminação e a opressão que atingem negros e
pobres:
“Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta.”
Além do engajamento, afirmado na força da palavra
poética, bem ao gosto sartreano, é comum o
exercício da “martirologia”, uma rememoração dos
sofrimentos impostos pela escravidão, e o rancor
invade muitas vezes a retórica poética:
“Nossa raça traz o selo dos sóis e luas
dos séculos a pele é mapa de pesadelos
oceânicos e orgulhosa moldura de
cicatrizes quilombolas”
O ressentimento explode com facilidade, numa forma
de exorcizar o passado. É necessário dar uma
resposta ao branco. Às vezes o poema é revanche:
“Ah, senhores, que túmulo de
merda será o vosso, que vermes
vos roerão na morte amarga e
sonora, que alvos dragões
defecarão em vossa carne.
Nenhuma estupidez escraviza o
negro ao branco e permanece
impune”
Podemos concluir que nessas diversas antologias
de Cadernos negros, os poetas parecem obedecer a
uma pauta prévia: um “eu” enunciador fala em nome
de um “nós” da comunidade, dirigindo-se a um “tu”
leitor, que deve sensibilizar-se pela palavra poética
e motivar-se a aderir a mesma luta:
“Quando te envolver
Em minha negritude
Pegarás em armas
Armas-palavras
E sairás pelas ruas
Aos brados”
POEMAS SELECIONADOS
Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Me envia mensagens do orum
Meus dentes brilham na noite escura
Afiados como o agadá de Ogum
Eu sou descendente de Zumbi
Sou bravo valente sou nobre
Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta
Me empurram pra luta me comovem
Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim
Eu trago os duros punhos cerrados
Cerrados como rochas
Floridos como jardins
O eu-lírico, ao afirmar-se como descendente de Zumbi, busca nesta
ancestralidade sua legitimação para a luta. Atribui-se o papel de iluminado, já
que zumbi lhe envia mensagens de Orum, que é o sol. Seus dentes brilham
porque anunciam o ânimo acirrado para a luta e também porque contrastam
com as trevas da opressão. E são afiados como espadas de Ogum, o
Patrono dos guerreiros. Juntam-se, portanto, no ânimo do enunciador a força
da ancestralidade e a instrumentação da crença.
Na segunda estrofe, há um grito escondido no peito que desabrocha, não
mais em vez de negro, mas coletivizado solidariamente como voz de todos
os oprimidos – negros e pobres de todo o mundo.
Na terceira estrofe, o eu-enunciador se coloca como guardião de todos os
sentimentos de organização e reação dos oprimidos.
Na metáfora final, porém, fundem-se dureza e lirismo. Finalmente é uma luta
de palavras, e palavras poéticas, nas quais a dureza das rochas não se
incompatibiliza com a ternura das flores.
De mim
parte um canto guerreiro
um vôo rasante talvez
rumo norte
caminho trilhado da cana-de-açúcar
ao trigo crescido, pingado de sangue
do corte do açoite. Suor escorrido
da briga do dia
que os ventos do sul e o tempo distante
não podem ocultar.
De mim
parte um abraço feroz
um corpo tomado no verde do campo beijado no negro da boca da noite
amado na relva, gemido contido
calado na entranha
oculto do medo da luz do luar.
De mim
parte uma fera voraz
(com sede, com fome)
de garras de tigre
pisar de elefante correndo nas veias
de fogo queimando vermelho nas matas
rugir de leões bailando no ar.
De mim
parte de um pedaço de terra
semente de vida com gosto de mel
criança parida com cheiro de luta
com jeito de briga na areia da praia
de pele retinta, deitada nas águas
sugando os seios das ondas do mar.
De mim
parte N E G R I T U D E
um golpe mortal
negrura rasgando o ventre da noite
punhal golpeando o colo do dia
um punho mais forte que as fendas
de aço
das portas trancadas
da casa da história.
Para Jorge Henrique Gomes da Silva
Este é o poema da ancestralidade africana
transformada em lume lírico que vem acender a
reação.
A poetisa demonstra sua fé na força da palavra
poética. E a linguagem atinge um alto grau de
poeticidade. Há uma rememoração dos rigores da
opressão escravista, mas não há “martirologia”
ressentida. A palavra poética, com sua força
simbólica, recupera o passado, a origem africana. E
é justamente desse lirismo remoto que o eu-lírico
colhe a força para abrir as “portas trancadas da casa
da história”.
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o zelador
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredito
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo com o vazio
às vezes as migalhas do que sonhei e
não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me lancei de
supetão
no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição que
me promulgo a cada instante
também a violência dum impulso que
me ponho do avesso com acessos de
cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria concebida como
um eterno
começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
Às vezes! ...
Expressa-se no poema a consciência dolorosa dos
mecanismos da segregação racial e social que,
internalizados, atingem a auto-estima e geram a
alienação, a fragmentação existencial e as crises de
identidade.
Note-se que o emissor se coloca como objeto da
ação opressiva do sistema social discriminada e
excludente, mas também como sujeito das mesmas
ações alienantes e anuladoras, a partir do momento
em que sem senso crítico se aniquila e retrai-se.
a mulher ainda desespera
à espera do primeiro beijo
úmido de sim
e permissão de macho
a mulher no entanto conspira
na sua ira secular de silêncio
em sua ilha de nãos
e arremessos
exercitando batalhões oníricos
o relógio com suas obrigações e rugas
questiona eros
homo
hetero
o útero e seu mistério
sapato de salto
batom
rouge
e este inadiável instante etéreo
de saltar
para
dentro
de
si
na conquista do espaço além da moda
é tempo de mulher
é tempo de colher
orgasmos reais de
mulheridade
o casamento se cale
até que a liberdade o repare
o macho relaxe
ao primeiro beijo
e o fêmeo desejo
intumesça a chama
e abra o céu ao meio.
O poema reflete sobre a condição feminina, sua
vida afetiva e emocional, percepção e desejos que
apontam para uma existência livre dos obstáculos
que comprometem a identidade autônoma da
mulher.
Não se trata de uma postura feminista, nem
tampouco machista, mas racionalista: a mulher
deve saltar para dentro de si mesma, para colher
“orgasmos reais da mulheridade”.
TESTE
TEXTO (Questões 01 e 02)
EFEITOS COLATERAIS
Na propaganda enganosa
paraíso racial
hipocrisia faz mal
nosso futuro num saco
sem fundo
a gente vê
e finge que não vê
a ditadura da brancura
Negros de alma negra se inscrevem
naquilo que escrevem
mas o Brasil nega
negro que não se nega
(MINKA, Jamu. Cadernos negros: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, p. 76)
01. No texto, o eu-lírico:
(01)
apresenta um discurso imperativo, incompatível com o projeto de
construção de uma sociedade humana e igualitária.
(02)
busca compreender o comportamento excludente das elites que
desconhecem a história de luta do negro.
(04)
repudia a visão edênica de integração racial na divulgação ilusória de uma
suposta aliança entre brancos e negros.
(08)
opõe-se à propagação da idéia de um convívio harmonioso, sem fraturas
como conseqüência de um verdadeiro ajuste social.
(16)
destaca a resistência de um povo na procura de sua afirmação, vinculada à
questão identitária.
(32)
mostra-se resignado, por isso adota uma postura passiva, conformista
diante da inexorabilidade da conjuntura.
(64)
povos.
recomenda um pacto social para garantir maior entendimento entre os
02. Assinale as opções verdadeiras:
(01)
“Efeitos colaterais” (título) sugere a existência de outros danos, paralelos à
segregação racial.
(02)
“nosso futuro num saco / sem fundo” (v. 04/05) caracteriza o ceticismo do
sujeito-poético comprometido com os problemas de sua raça.
(04)
Ao referir-se à “propaganda enganosa” (v. 01), o autor compromete os meios de
comunicação ao estimular a sua cumplicidade na divulgação do engodo.
(08)
Em “paraíso racial” (v. 02) percebe-se o engajamento de vários setores da
sociedade na descoberta de um ambiente favorável para a relação entre os homens.
(16)
“a gente vê / e finge que não vê” (v. 06/07) confirma a paciente submissão de
um povo que prefere alienar-se diante dos obstáculos.
(32)
“a ditadura da brancura” (v. 08) põe à mostra o discurso monolítico de uma raça
com o fim de desautorizar os oprimidos.
(64)
“mas o Brasil nega / negro que não se nega” (v. 11/12) reconhece que o país
não aceita a diversidade e pune a negritude em sua afirmação.
TEXTO
OUTRAS NOTÍCIAS
Não vou às rimas como esses poetas
Que salivam por qualquer osso.
Rimar Ipanema com morena
É moleza,
Quero ver combinar prosaicamente
Flor do campo com Vigário Geral,
Ternura com Carandiru,
Ou menina caprichosa / trem para Japeri.
Não sou desses poetas
Que se arribam, se arrumam em coquetéis
E se esquecem do seu povo lá fora.
(SEMOG, Ele. Cadernos negros: os melhores poemas. São Paulo. Quilombhoje, p. 58.)
03. No texto, o sujeito-poético:
(01)
de forma crítica, utiliza os recursos da poesia para questionar os poetas e
a própria poesia.
(02)
faz uma análise de seu trabalho poético, colocando-se à margem da
poesia desvinculada das questões sociais mais angustiantes.
(04)
prefere “outras notícias” com forma de amenizar os sofrimentos das
camadas menos favorecidas da sociedade.
(08)
desafia os outros autores a utilizar ambientes populares sem ferir o belo
literário.
(16)
recusa o diálogo e mostra-se intransigente na defesa de uma literatura com
bases populares.
(32)
desdenha os poetas que buscam apenas, em cenários agradáveis,
inspirações para a produção literária.
(64)
protesta contra a poesia por exercer um papel puramente estético.
TEXTO
DÚVIDA
Se a margarida flor
É branca de fato
Qual a cor da Margarida
Que varre o asfalto?
(RIBEIRO, Esmeralda. Cadernos negros: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, p. 61)
04. Assinale a proposição ou proposições
verdadeiras de acordo com as idéias do texto:
(01)
O texto traz uma reflexão sobre questões não-resolvidas, o que dá margem
à perplexidade do eu-lírico.
(02)
A dúvida é conseqüência da indagação que busca, através das impressões
visuais, dar maior plasticidade ao discurso literário.
(04)
“Margarida” (v. 03) e “...varre o asfalto?” (v. 04) estão unidos numa relação
de equivalência social e racial.
(08)
O autor aproveita-se da polissemia das palavras para colocar, no mesmo
plano, as naturezas física e humana.
(16)
O eu-lírico hesita em aceitar os fatos numa demonstração de incerteza
quanto ao futuro do homem e à conservação do meio ambiente.
(32)
O sujeito-poético defende a tese da desigualdade social, incorporando-se
aos oprimidos na luta pela preservação dos direitos humanos.
(64)
A poesia serve como objeto de discussão e de análise da situação do
negro, sempre exilado na periferia do sistema.
TEXTO
SER E NÃO SER
O racismo que existe,
O racismo que não existe.
O sim que é não,
O não que é sim.
É assim o Brasil
Ou não?”
(SILVEIRA, Oliveira. Cadernos negros: os melhores poemas. São Paulo. Quilombhoje, p. 108)
05. O questionamento do poeta:
(01)
coloca em xeque as verdades impostas que objetivam dissimular as reais
condições da raça negra na vida social do Brasil.
(02)
tem força redutora, pois nada acrescenta à tentativa das autoridades
brasileiras de promover, entre nós, a aglutinação racial.
(04)
atenta para a inversão de valores e conceitos de forma enganosa com a
intenção de confundir o modo de ver e de pensar do povo brasileiro.
(08)
expõe a controvertida visão das pessoas sobre um tema instigante e de
obscuras interpretações.
(16)
expressa o lado hipócrita do preconceito racial no Brasil através da astúcia
e do juízo falso.
(32)
enfatiza a falta de senso crítico do povo brasileiro que se revela impassível
diante da seriedade do assunto.
(64)
assume um caráter sensacionalista, sem fins utilitários, visando,
unicamente, desmascarar as verdades estabelecidas.
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