“ Observámos as chamas na noite. Um odor abominável pairava no ar.
Subitamente , as portas abriram-se .Para dentro do vagão saltaram umas
personagens umas curiosas, vestidas com casacos ás ricas e calças pretas.
Nas mãos, lanternas e bastões. Puseram-se a bater a torto e a direito, e a
gritar:
- Desçam todos! Deixem tudo no vagão! Rápido!
“Passados quinze dias da chegada, já sofro da fome
regularmente, a fome crónica desconhecida dos homens
livres, que provoca sonhos de noite e se espalha em
todos os membros dos nossos corpos; já aprendi a não
me deixar roubar, pelo contrário, se encontro algures
uma colher, um cordel, um botão que possa apanhar
sem perigo de punição, ponho-os no bolso e passo a
considerá-los meus de pleno direito. Já apareceram, na
sola dos meus pés, as chagas que não saram. Empurro
vagões, trabalho com pá, canso-me à chuva, tremo ao
vento; até o meu próprio corpo já não me pertence:
tenho o ventre inchado e os membros emagrecidos, o
rosto inchado de manhã e encovado à noite; alguns
entre nós têm a pele amarela, outros cinzenta; quando
ficamos sem nos ver por três ou quatro dias, temos
dificuldade em reconhecer-nos.”
“Não temos regresso. Ninguém
deve sair daqui, pois poderia levar
para o mundo, juntamente com a
marca gravada na carne, a terrível
notícia do que, em Auschewitz, o
homem teve coragem de fazer ao
homem.”
“Diante de nós , aquelas chamas. No
ar, o odor de carne queimada. Devia
ser meia-noite. Tínhamos chegado a
Birkenau. “
“Desapareceram assim num instante, traiçoeiramente, as nossas mulheres, os nossos pais,
os nossos filhos. Quase ninguém teve oportunidade de se despedir deles. Vimo-los durante
algum tempo como uma massa escura na outra ponta do cais, depois deixámos de os ver.”
“Que somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria,
condenados quase com certeza à morte, mas que uma faculdade nos restou, e
temos de a defender com todo o vigor porque é a última: a faculdade de negar o
nosso consentimento. Temos, portanto, sem dúvida de lavar a cara sem sabão, na
água suja, e limparmo-nos ao casaco. Temos de engraxar os sapatos, não porque a
tal obriga o regulamento, mas por dignidade e por propriedade. Temos de caminhar
direitos, sem arrastar as socas, certamente não em homenagem a disciplina
prussiana, mas para nos mantermos vivos, para não começarmos a morrer.”
“O homem interroga e Deus responde. Mas nós não
compreende-mos as Suas respostas. Não podemos compreendêlas. Porque elas vêm do fundo da alma e lá permanecem até á
hora da morte.”
Bibliografia
Primo Levi, “Se Isto É Um Homem”
Elie Wiesel, “Noite”
José António Liberato
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