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Mau era um homem pequeno, com uma cicatriz que ia
de um lado a outro da face esquerda. Eu o escolhi no
mercado russo, em meio a uma turba de condutores com
olhos suplicantes. Eles conduziam bicicletas, tuk tuks,
riquixás e motos. Poucos tinham carros. Eles me espremiam, tentando atrair meu olhar, tentando me apartar
da multidão.
A luz nos olhos de Mau era como um orifício através de papel preto. Ele avaliava e calculava. Eu o escolhi
porque, quando se adiantou, os outros recuaram. Falei
que talvez levasse várias noites. Falei que precisava ir a todas as boates de Phnom Penh. A luz de seus olhos se insinuou nos meus. Quando lhe contei o que estava fazendo,
o orifício se abriu e fechou sobre uma fugaz compaixão.
Então ele mencionou seu preço, que era alto, e disse, Posso te ajudar, borng srei.
Os ossos abrem caminho até a superfície. Trinta anos se
passaram desde aquele dia no mercado em Phnom Penh.
Ainda ouço sua voz. Eu o conheci na velha Montreal, no
L’air du temps, onde fui para ouvir Buddy Guy cantar
I Can’t Quit the Blues. Eu tinha 16 anos, e era noite de
Halloween. Charlotte e suas amigas não usavam fantasias, mas aproveitei a ocasião para disfarçar minha idade,
usando uma máscara vermelha brilhante, enfeitada com
penas amarelas e roxas nas têmporas. Meu longo cabelo encaracolado estava solto e eu vestia um suéter preto
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canelado, meus jeans mais largos, botas de couro. Assim
que passamos pelo porteiro, retirei a máscara e vi você
olhando para mim. Conseguimos uma mesa redonda
perto do palco na sala repleta de fumaça. Durante toda
a primeira parte, enrolei cigarros e os passei para as garotas em minha mesa; ouvi Buddy Guy defender seus
blues, sobrancelhas erguidas, olhos bem abertos, cantando Stone Crazy e No Lie, então, fechando os olhos,
ele cantou o amor da menina simples e o amor mendicante, e fiquei espiando para ver se você estava olhando
para mim.
Não me esquivei dos seus olhos escuros como
lama. No intervalo você ficou de pé, ergueu a cadeira
acima da cabeça e cruzou o público na minha direção.
Você era magro e rijo, vestia camiseta branca e jeans desbotados e trazia o cabelo preto amarrado atrás, na nuca.
A jaqueta de couro era surrada e os tênis, gastos. Você se
afastou para o lado para dar passagem a uma bandeja e
perguntou para as garotas na minha mesa, Posso me sentar com vocês? Eu trouxe minha cadeira.
As garotas olharam umas para as outras e alguém
disse pode, e você colocou a cadeira ao meu lado, as costas voltadas para a mesa. Charlote disse, Você toca no No
Exit, vi você no pub. Qual é o seu nome?
Serey.
Elas lhe serviram a cerveja do jarro e você conversou com todas nós com sua voz gentil. Perguntou, O que
vocês estão estudando? Quando se virou para mim, tive
de dizer, Ainda estou no ensino médio.
Sou monitora dela de latim, informou Charlotte.
O nome dela é Anne Greves. Você perguntou, Latim é
difícil? Uma garota no outro lado da mesa havia gostado
de você e disse, Estou estudando latim. Você contou que
era monitor de matemática na universidade. Disse que as
havia visto por lá, mas não a mim.
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Charlotte disse, O pai dela dá aulas por lá e ela
não quer ser vista.
Você sorriu novamente; seu dente da frente tinha
uma lasca em forma de meia lua e você disse, Legal, com
um sotaque estranho do Québec e inglês, e mais alguma
coisa que não consegui identificar.
As luzes da casa se apagaram. Você chegou mais
perto e sussurrou, Quero tocar o seu cabelo.
Eu não disse nem que sim nem que não, mas senti
a pressão afetuosa da palma da sua mão em minha cabeça. Então você apoiou os cotovelos nas costas da cadeira.
Você falava com um misto de interesse e falta de
atenção que eu conhecia bem nos homens. Seus olhos inquietos piscaram na direção do palco, na direção da mesa
da qual você tinha vindo, na minha direção. Você queria
ver quem o estava observando. Queria ver Buddy Guy, as
trombetas e guitarras na frente. Queria olhar para mim.
Anos mais tarde você disse, Lembro de ter visto você enrolar cigarros com uma das mãos. De se mexer inquieta
quando as garotas na sua mesa conversavam. Você parecia tão livre. Lembro da luz no seu cabelo.
Era uma época em que jovens de todas as partes cruzavam
as montanhas do Afeganistão em Kombis e cantavam em
ashrams na Índia. Mas rapazes como você não eram hippies, nem pacifistas ou mochileiros; rapazes colonizados
como você sempre foram mandados ao exterior para estudar. Você estava longe havia seis anos e aprendera a se
sentir à vontade em três idiomas, a navegar pelos costumes e peculiaridades do Ocidente. Sua formação era matemática e rock. Você conhecia funções e relações, e seus
amigos músicos cantavam canções contra a guerra e se
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reuniam a favor da paz. Era uma época em que os jovens
acreditavam que o mundo podia prescindir de fronteiras,
como a música. Olhando para trás, tudo isso era ingênuo.
Você era cinco anos mais velho e falava uma língua que
eu nunca tinha ouvido. E havia aquela sensação animal,
o cheiro da sua jaqueta de couro, a agitação em meu estômago, a voz de Buddy Guy e sua respiração em meu
ouvido.
Anos mais tarde você disse, Lembra daquela época, o choque que causava um cara asiático com uma garota branca, ou um negro com uma branca, ou um francês
com uma inglesa, todos nós fingindo que nada era proibido? Nunca tive coragem de sair com uma garota branca
antes de você, antes daquela noite no L’air du temps.
Buddy Guy entrou para a última parte do show vestindo
uma jaqueta verde que despiu enquanto tocava, martelando, puxando e curvando cordas com a mão esquerda, enquanto balançava solto o braço direito, os dedos da
mão direita puxando e agarrando, de modo a conseguir
se livrar da manga esquerda. A jaqueta caiu no chão e
ele riu para nós quando aplaudimos a palhaçada. A mãe
dele havia morrido naquele ano e ele disse que ia conseguir uma guitarra de bolinhas em homenagem a ela, mas
que ainda não a possuía. Produziu sons que tinha ouvido
em outros lugares e outros tempos, trombetas e violinos,
criando um gumbo à moda de Nova Orleans, um pouco
disso, um pouco daquilo, prestando homenagem a Muddy, B.B. e Junior. E então passou a suas próprias obras.
Cantou a misericórdia de Deus em blues como One Room
Country Shack, o amor impaciente em Just Playing my Axe
e, com aquele sorriso imenso e encantador, cantou Mary
Had a Little Lamb, sobre pedir uma moeda a um anjo,
sobre sentimentos estranhos e corações partidos e, balan-
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çando a cabeça, sobre mulheres que não conseguia agradar, mas todos sabíamos que ele conseguia agradar qualquer uma, e desejei que as luzes nunca se acendessem.
Você envolveu meus ombros com o braço musculoso, me
puxou para perto e perguntou com voz muito, muito terna, Posso te levar para casa? Algumas pessoas dançavam
nas laterais e você me pegou pela mão e me tirou para
dançar também; você conseguia balançar os quadris, mas
movimentava as mãos de um jeito que não era nem rock
nem blues, mas uma ligeira flexão do pulso para trás no
final das batidas.
Charlote e as garotas na minha mesa estavam vestindo seus casacos, pendurando as bolsas nos ombros, puxando de dentro das golas quentes os longos cabelos que
pareciam camisas ondulando em um varal, e eu disse a
elas, Até mais.
Seguimos rumo ao norte em ruas de paralelepípedos, cruzando o ar frio do outono. Você gostaria de ir ver
minha banda?, você perguntou.
Talvez, respondi. De onde você é?
Camboja.
Gente comemorando o Halloween passou por
nós, rindo e conversando em joual,* cruzando acelerada a
escuridão, vestindo capas pretas, máscaras de demônio e
asas de anjo. Camboja? Baixei minha máscara de volta.
Você tocou as penas e disse, Anne Greves, eu gosto daqui. As coisas são incrivelmente livres aqui.
Eu soube desde aquela primeira caminhada até minha
casa.
* Joual é o nome dado ao francês quebequense falado pela população de Montreal. Contém muitas palavras em inglês e em geral está
associado à classe trabalhadora. (N. da T.)
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Diante do apartamento de meu pai em l’avenue
du Parc, girei para te encarar e te puxei para baixo da
escadaria de ferro. Você pousou os lábios sobre os meus e
me lembro dos seus olhos através dos orifícios de minha
máscara e do toque da sua mão em minha cabeça. Você
me puxou e senti o primeiro toque dos seus dedos em minha pele. Pelas grades da escada percebi o movimento de
um menino vizinho com sua cesta de Halloween, olhando fixo para nós a partir das sombras, mastigando um
bombom. Atraí seu olhar e disse, Jean Michel, pourquoi
tu n’est pas au lit? Então olhei para você e recitei, O malheureux mortels! O terre déplorable! Você riu, me soltou
e disse, Quero que o mundo inteiro veja, e ergueu a mão
como se fosse roubar o bombom do menino. Então nos
juntamos ao garoto nos degraus e você tirou do bolso um
pedaço de barbante e mostrou-lhe um truque. Lá estávamos nós, um expatriado, um garotinho e uma menina
quase mulher, juntos na escuridão. Ainda ouço sua voz
cantando I Found a True Love, de Buddy Guy, e me lembro de como nos sentamos naquela noite e observamos as
nuvens passarem pela lua.
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