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A SOCIEDADE CIVIL E A ESFERA PÚBLICA NA PERSPECTIVA
DA ÉTICA DO DISCURSO DE JÜRGEN HABERMAS
Eduardo Barbosa Vergolino – Graduando em Filosofia
Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP
Para os gregos, o homem é um ser social e necessita de leis e normas para viver
socialmente organizado, o que gerou uma cultura de debate em torno da formulação e
reformulação destas leis e normas.
Trata-se de um processo discursivo que tem como objetivo principal a captação
de consensos, por menor que seja o grupo envolvido, visando uma aplicação das leis
pelos indivíduos da sociedade
Entretanto, nem sempre o debate seguiu regras éticas coerentes para a
universalização da lei ou norma. A esfera pública, na perspectiva habermasiana, se
define, justamente, a partir e em função deste debate contínuo entre os cidadãos do
Estado. Para Jürgen Habermas, a esfera pública é a rede comunicacional entre os
agentes sociais que surge a partir da tematização e da problematização dos problemas
encontrados pelo povo.
Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública
tem que reforçar a pressão exercida pelos problemas, ou seja,
ela não pode limitar-se a percebe-los e a identifica-los,
devendo, além disso, tematizá-los, problematizá-los e
dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem
assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar
(HABERMAS, 1997, p. 91).
Portanto, é necessário que a população esteja em permanente comunicação para
a elaboração de consensos. Para tanto, os problemas que antes se viam apenas
discutidos no interior da esfera pública privada (família), agora entram na esfera
pública, passam pelo crivo do agir comunicativo e espalhando-se atingem todos capazes
de formar opiniões. Assim formam-se consensos que influenciam diretamente o
trabalho do poder político.
O debate, porém, necessita ser realizado conforme uma série de critérios para
se estabelecer a validade e a veracidade do consenso obtido na esfera pública. Estes
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critérios estão embasados na Teoria do Agir Comunicativo que é a base lingüística para
o entendimento entre os indivíduos.
O primeiro critério chama-se agir comunicativo. Para o cidadão concretizar sua
participação efetiva dentro da rede comunicacional da esfera pública necessita de
condições básicas. São estas, ter o direito à educação de qualidade, à saúde, ao lazer, à
moradia digna e ao trabalho. Sem estas condições o cidadão pode ficar facilmente
susceptível a manipulação daqueles que utilizam a ignorância alheia para ascenderem
em seus objetivos muitas vezes antiéticos e inescrupulosos. O Estado deve desenvolver
uma política que garanta à todos esses direitos básicos ao cidadão para o mesmo, ao
formar sua opinião, se sentir à vontade para defendê-la de forma argumentativa e possa
assim ter todas as possibilidades de agir comunicativamente e fazer parte da esfera
pública.
Falamos de agir comunicativo, isto é, da racionalidade comunicativa do
indivíduo orientada para o entendimento mútuo entre os participantes do discurso.
Participação esta desatrelada de uma perspectiva egoísta ou orientada aos interesses
particulares.
Falamos então de agir comunicativo quando agentes coordenam
seus planos de ação mediante o entendimento mútuo
lingüístico, ou seja, quando eles os coordenam de tal modo que
lançam mão das forças de ligação ilocucionárias próprias dos
atos de fala (HABERMAS, 2004, p. 118).
O segundo critério, bastante relevante da Teoria do Agir Comunicativo, é o agir
estratégico. Este possui basicamente a mesma fundamentação do agir comunicativo,
entretanto, visa especificamente a manipulação do ouvinte para a obtenção de fins préestabelecidos.
O uso desta forma de comunicação é claramente observável em discursos
políticos no mundo todo. O político, a fim de obter votos e eleger-se faz uso de meios
de persuasão. O agir comunicativo estratégico está ligado diretamente ao uso do ato de
fala ilocucionário na sua forma “perversa”. O ato de fala ilocucionário transforma-se em
perlocucionário, pois utiliza uma racionalidade teleológica. “Em contextos estratégicos
de ação, a linguagem funciona, em geral, segundo o modelo de perlocuções. Aqui, a
comunicação lingüística é subordinada aos imperativos do agir racional orientado a
fins” (HABERMAS, 2004, p. 123). Podemos afirmar então, que o mundo da vida
infestado pelo agir comunicativo estratégico é baseado numa relação entre os indivíduos
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de observação mútua. Aumentam, assim, as chances de estabelecerem relações nas
quais “os outros do discurso” aceitam as pretensões dos “donos do discurso” como
válidas e verdadeiras.
Quando visamos a esfera pública brasileira, percebemos uma constante e forte
influência dos meios de comunicação na formação dos consensos acerca da realidade
social, econômica e cultural do país. Segundo Lucia Aragão,
[...] haveria atualmente dois processos concomitantes ocorrendo
na sociedade: de um lado, a pluralização e, do outro, a
massificação das formas de vida; um processo de equalização
entre os homens e outro de impotência dos indivíduos face à
complexidade do sistema (2002, p. 212).
Esses dois processos podem afetar energicamente o rumo das potencialidades
comunicativa e democrática da sociedade como um todo.
Eis o momento da sociedade civil que luta contra a massificação dos
indivíduos, e conseqüentemente, busca organizar os consensos debatidos na esfera
pública.
Para Habermas, a sociedade civil cultiva a comunicação que ocorre entre as
organizações não governamentais, instituições sem fins lucrativos e o Estado. Esta
comunicação tem por objetivo solucionar, de forma mais coesa e forte, as reivindicações
e os problemas sociais.
O núcleo da sociedade civil, formado por ONG’s, associações e organizações
livres, é a base de receptação dos discursos da esfera pública formados no mundo da
vida. Essas organizações captam os discursos sobre os problemas sociais e os
transformam em discursos consensuados na esfera pública política, gerando processos
deliberativos e decisivos. Só com essas tomadas de posição é que a sociedade civil
transforma os problemas sociais particulares em questões de interesse geral no quadro
da esfera pública.
No entanto, para exercer sua função social da melhor forma possível, a
sociedade civil necessita que os direitos fundamentais sejam respeitados e preservados.
Direitos esses que são: a proteção da privacidade, a personalidade, liberdade de crença,
liberdade de opinião e de reunião, sigilo do telefone e da correspondência, assim como o
direito à proteção da família. São direitos fundamentais que Habermas defende de forma
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intensiva, pois a ausência deles impedirá a formação da esfera pública e, dificultará o
desenvolvimento do processo decisivo de articulação das reivindicações populares.
De acordo com Habermas, se o Estado ou qualquer outra instituição sufocar a
comunicação pública espontânea, a esfera pública ficará deformada e conseqüentemente
fará com que a sociedade civil não consiga exercer sua função social. Quanto mais for
destruída a força de socialização que é o agir comunicativo, mais fácil será tornar a
massa popular alienada entre si, fiscalizável e isolada. Portanto, a liberdade do
indivíduo é essencial para o desenvolvimento de uma esfera pública atuante e de uma
sociedade civil ética voltada para o bem comum da sociedade.
Esta sociedade civil, para os indivíduos, tem um papel social diferente do
estado e da economia. Possui também os seguintes componentes essenciais para sua
emancipação e desenvolvimento junto à esfera pública.
a)
Pluralidade, ou seja, a união das diversidades de grupos e
famílias, associações voluntárias, cuja autonomia permite uma
variedade de trabalhos em função das formas de vida existentes
no mundo.
b)
Publicidade, com o intuito de agregar a cultura e divulgar o
trabalho. As instituições de cultura e comunicação fazem o papel
de expandir os horizontes do trabalho realizado por determinada
instituição social.
c)
A vida privada como base do domínio do desenvolvimento livre
do indivíduo no aspecto moral e de autodesenvolvimento. A vida
privada necessita da liberdade para seu desenvolvimento saudável
e sua formação individual dentro de um caráter próprio de cada
cultura e região geográfica.
d)
A legalidade, um dos componentes básicos da sociedade civil.
Ela é uma estrutura de leis gerais e direitos básicos, necessária
para organizar a pluralidade de instituições sociais. Desta forma,
com o respaldo das leis, as organizações podem atuar de forma
segura no âmbito social exercendo seu papel fundamental de
apoio à luta das classes menos favorecidas da sociedade (Cf.
COHEN e ARATO, 2001, p. 395).
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Para Habermas, estes componentes são de suma importância para o
desenvolvimento da sociedade civil, pois sem um desses componentes as organizações
se tornariam fragilizadas. É o que acontece em países ou regiões onde a democracia e os
direitos básicos são suprimidos, ou seja, países ditatoriais ou até mesmo em regiões
onde o coronelismo é de forte influência.
Sendo assim, em áreas onde a democracia não é bem difundida e respeitada, a
sociedade civil, por meio de suas organizações livres e instituições, não consegue
exercer o seu papel fundamental que é o de trabalhar a opinião na esfera pública,
visando informar a esfera pública política quais são as necessidades mais urgentes para
as quais a sociedade busca solução.
Nos tempos modernos a sociedade civil encontra vários empecilhos para o seu
desenvolvimento. O problema da pseudodemocracia nos países ditos desenvolvidos, a
falta de condições de sobrevivência nos países subdesenvolvidos, a má forma de
governar na qual o povo é excluído, etc., todos esses problemas podem ocorrer em
várias camadas da sociedade fazendo com que se torne cada vez mais difícil a
organização e a luta do povo ante o Estado controlador.
Movimentos sociais, iniciativas de sujeitos privados e de foros
civis, uniões políticas e outras associações, numa palavra, os
agrupamentos da sociedade civil, são sensíveis aos problemas,
porém os sinais que emitem e os impulsos que fornecem são,
em geral, muito fracos para despertar, a curto prazo, processos
de aprendizagem no sistema político ou para reorientar
processos de decisão (HABERMAS, 1997, p. 106).
Portanto, a sociedade civil como estrutura que capta da esfera pública os
problemas sociais, não possui força suficiente para levar as reivindicações ao ponto de
exercerem qualquer tipo de influência nas decisões do Estado para o público.
Sendo assim, a única esfera que sai perdendo é a própria sociedade, que não
possui conhecimento de sua força para reivindicar seus direitos.
Afora esta concepção de sociedade civil como dimensionada pelo fator cultural
e pelo Estado, atualmente a globalização exerce uma força muito forte em diversos
segmentos sociais, alguns teóricos estudiosos da sociedade civil ainda acreditam na
possibilidade de ocorrer uma reconstrução da sociedade civil.
Possivelmente pela constante utilização do termo sociedade civil em diferentes
sentidos fez-se com que a idéia de sociedade civil esteja cada vez mais ambígua e
duvidosa na atualidade. Quando é articulada pelos indivíduos da sociedade, a vontade
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de reconstruir ou defender a sociedade tende a aumentar a mobilização social. Porém,
essa imagem não é adequada para se tomar por base para a autoreflexão crítica ou para
uma orientação das limitações mais importantes da ação coletiva que se visa fazer. O
que se necessita, na verdade, é uma concepção da sociedade civil que se possa refletir
nos núcleos de novas instituições coletivas e articular projetos embasados nessas
instituições que podem contribuir, e muito, para a emergência de sociedades mais
democráticas e mais livres do poder econômico e estatal.
Mesmo que trabalhemos as melhores teorias do passado sobre sociedade civil,
elas não podem cumprir esta tarefa hoje em dia. Sem dúvida, as teses que se referem à
decadência da esfera pública e à transformação do ambiente social em novas formas de
manipulação, controle e dominação, correspondem como a experiência dos países
capitalistas avançados e desenvolvidos. O ponto de vista otimista dos teóricos
defensores da sociedade civil vêem em todas as partes: um público democrático,
solidário e com formas de autonomia livre.
No entanto, os teóricos esquecem que para se verificar a aplicação de
determinada teoria é necessário, antes de mais nada, analisar a sociedade atual com
todos os seus problemas e suas relações sociais. É o que faz muito bem Luhmann,
“Pero cuando las opiniones de un analista que se ajusta fuertemente a la realidad de la
sociedade existente, [...], empiezam a parecerse a las de los críticos más radicales [...]”
(COHEN e ARATO, 2001, p. 476). Então, os defensores da sociedade civil, cujos olhos
estão fechados para os fenômenos negativos da sociedade, nos mostram ou nos deixam
crer que estão submetidos a uma forte influência ideológica.
A ética do Discurso em sua forma mais legítima se efetiva no espaço
comunicativo das esferas públicas e da sociedade civil, mais especificamente nas
relações comunicativas entre os indivíduos agentes do discurso. A relação entre o
falante e o ouvinte deve seguir regras e normas para um entendimento comum, em que
nenhuma parte saia ofendida ou lesada.
Dois princípios importantíssimos para a fundamentação da ética do discurso
são o princípio “U” e “D”. O princípio “U” relaciona-se a questão da universalização do
proferimento lingüístico. “[...] uma norma só vale como justificada quando é
“igualmente boa” para cada um dos concernidos” (HABERMAS, 1989, p. 89). A
proposta de universalização, colocada por Habermas, nos mostra o quão importante é a
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intenção da universalização do discurso. Nós só poderemos então tomar como válidas as
proposições que tenham em sua formulação uma possibilidade real de assentimento de
todos os possíveis afetados e participantes do discurso. Sem este princípio os indivíduos
poderiam tomar como válidas proposições negativas para possíveis afetados. Portanto,
“o princípio-ponte possibilitador do consenso deve, portanto, assegurar que somente
sejam aceitas como válidas as normas que exprimem uma vontade universal [...]”
(HABERMAS, 1989, p. 84).
Já o princípio “D” relaciona-se com o grupo real, enquanto o princípio “U”
relaciona-se com o ideal. O princípio do discurso “D” diz: “Só podem reclamar validez
as normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os concernidos
enquanto participantes de um Discurso prático” (HABERMAS, 1989, p. 116). Ou seja,
é no princípio “D” que efetiva-se a relação ética entre os participantes. Jamais uma
norma poderá ser tomada como válida se um dos participantes disser não. Pois assim já
estará fora do processo de universalização tanto no campo prático como no ideal. Tendo
assim de ser reformulada para conquistar sua pretensão de validez.
A esfera pública na perspectiva da ética do Discurso de Jürgen Habermas busca
aprimorar e efetivar um diálogo que vise o comum acordo das relações intersubjetivas
dos indivíduos participantes do Discurso. Após um longo e exaustivo debate dentro da
esfera pública, a sociedade civil (ONG’S, sindicatos, igrejas, associações de moradores,
instituições filantrópicas, entre outras) organiza o consenso entre os indivíduos e o lança
para a esfera pública política tomar as devidas decisões.
Este é o processo segundo o qual a sociedade como um todo pode aprimorar
suas idéias e conquistar mudanças reais no espaço público. O constante diálogo entre os
indivíduos capazes e conscientes das necessidades plurais da comunidade, deve ser o
mais coeso e sincero, além de democrático, nas suas pretensões e formulações.
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Referências bibliográficas
ARAGÃO, Lúcia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2002.
COHEN, Jean L. & ARATO, Andrew. Sociedad Civil y Teoría Política. Trad. Roberto
Reyes Mazzoni. México: Carretera Picacho-Ajusco, 2001.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Trad. De
Flávio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. vol. II
___________ . Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo
Mota. São Paulo: Loyola, 2004.
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LIMITES DA EXISTÊNCIA: ESTAMOS MESMO VIVENDO?
A CRISE DA MODERNIDADE NA EXPRESSÃO DA VIDA PRIVADA
Cátia Cilene Lima Rodrigues ∗
Bruno Leonardo dos Santos Correia ∗
Rafael Pacharoni ∗
Introdução
“ It´s the sense of touch. In a real city, you walk. You brush past people.
People bump into you. In L.A., nobody touches you. We are always
behind this metal and glass. I think we miss that touch so much. That we
crash into each other just so we can feel something”. 1
(Graham, personagem de Don Cheadle, na fala que inicia o filme “Crash
– no limite”, logo após um pequeno acidente de batida de carro)
A proposta de escrever um texto analítico sobre a crise da Modernidade a partir
do filme “Crash – no limite” nos envolveu após a realização de um trabalho acadêmico,
em que com os conteúdos discutidos na disciplina “Ética e Cidadania II” deveria-se
realizar uma reflexão teoricamente fundamentada sobre o filme. A discussão tomou
corpo com a proposta de continuação do trabalho, com possibilidade de pesquisa
bibliográfica que ampliasse a fundamentação dando maiores e melhores subsídios para a
seguinte análise preliminar da Modernidade a partir da expressão cinematográfica
especificada.
Sendo assim, num processo a “seis mãos” e contribuição de diferentes perfis,
fomo-nos questionando sobre a situação em que a humanidade se encontra na
atualidade, sobretudo em grandes centros urbanos, no que se referia a vida. Sem
∗
Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia Social da Religião, Professora de “Ética e
Cidadania” na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
∗
Estudante de Educação Física na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
∗
Técnico em Administração de Empresas e Estudante de Educação Física na Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
1
“É o sentido do tato. Numa cidade de verdade, você anda, esbarra nas pessoas, elas topam
com você. Em Los Angeles, ninguém toca em você. Estamos sempre atrás de metal e vidro.
Acho que sentimos muita falta do toque. Damos encontrões uns nos outros só para sentirmos
alguma coisa” (tradução livre)
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necessitar esforço para a pesquisa empírica, abrindo os jornais do dia podemos
facilmente concluir: a humanidade atravessa uma severa crise, em que os valores morais
estão sendo desconstituídos por acelerados processos de mudança, mas sem que
propostas eficazes para a dignidade e qualidade de existência sejam veiculados.
Há um embrutecimento árduo na sensibilidade social, nas relações
interpessoais, há uma ausência de altruísmo ou da capacidade de simples empatia pelo
outro. Paradoxalmente, os distúrbios de ordem emocional são cada vez maiores e em
mais acentuados graus. E são muitos os seres humanos que gostariam de alterar tal
processo, contudo sentem-se atados ou impotentes diante da estrutura social que o dilui
na solidão da sua existência.
Corrupção política e social, altos índices de criminalidade, organizações
terroristas com ou sem ideais, jovens agressores, torcidas organizadas que atacam-se
como inimigas – e não como adversárias. Bombas, ataques militares a zonas civis,
candidatos a cargos públicos representativos que gastam mais nas campanhas do que
poderão ganhar em salários durante o mandado, caso eleitos. A sua vizinha que lhe quer
– por força quase física – convencer que a conversão a determinada religião é sua única
possibilidade de salvação; isso, claro, após ter mantido o mesmo comportamento com as
últimas outras quatros diferentes religiões para as quais já se convertera. A vida prática
cotidiana, os jornais, até as novelas discutem o tema: a humanidade experimenta uma
crise ética. Aí encontra-se a relevância e urgência do tema que nos propomos a discutir
no presente texto: a crise da Modernidade na expressão da vida privada é uma das
questões filosóficas mais importantes do homem contemporâneo para sua afirmação
existencial e para a própria viabilização da vida humana.
Sendo a arte uma das formas mais antigas utilizadas pelo ser humano para
comunicar sentimentos, pensamentos e emoções, enfim, para manifestar e compartilhar
impressões e opiniões da sua realidade, sua análise pode ser meio de compreensão dos
conflitos humanos. Ao compreender a arte como produção ou criação de objetos com
estrutura e significado, com a propriedade de apreender a realidade e apontar por meio
de processos cognitivos uma visão do mundo, pode-se concluir que a arte em si tenha a
capacidade de provocar uma depuração do caráter moral – do autor ou da situação
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apontada 2 . Transpondo a linguagem verbal ou mesmo a realidade do dia a dia, a obra
artística causa o impacto emocional necessário ao despertar do senso moral na direção
da síntese da consciência – essência para a reflexão sobre valores.
Deste modo, delineia-se tanto alvo, como caminho que pretendemos percorrer:
com o objetivo de analisar, discutir e relacionar as problemáticas éticas da Modernidade
Ocidental, presentes no cotidiano público e privado das pessoas, sobretudo em grandes
aglomerados sociais, nos dispomos a realizar revisão bibliográfica que suporte o
enquadramento panorâmico da questão para, então, apontarmos observações
preliminares com relação a apresentação que a referida película ganhadora Oscar de
melhor filme de 2006 faz sobre tal realidade, “Crash”, dirigida por Paul Haggis.
Para tanto, pensamos em subdividir o artigo em alguns eixos. Primeiro,
acreditamos ser de fundamental importância para a compreensão da atual crise a revisão
histórico-sequencial do mundo ocidental desde as bases das antiguidade clássica, a fim
de se perceber a formação ética ocidental, bem como os fatores determinantes da
ruptura dos valores que caracterizam o atual momento histórico. A partir de tal
abrangência, nos dedicaremos a uma breve apresentação de questões teóricas que
descrevem e definem a Modernidade, bem como as problemáticas de tais características
para da cidadania, para a ética e, sobretudo, para a existência concreta humana. Por fim,
com suporte teórico de Giddens, Berger, Dupas, Chauí e J.J.Queiroz, entre outros
autores, realizaremos uma análise da condição humana angustiante na Modernidade
através do filme “Crash – no limite”.
O filme conta, entre histórias da realidade privada, como a vida social vinculase em rede, demonstrando tal tese com ilustrações de como uma atitude isolada de um
sujeito social reproduz consequências (nem sempre intencionais) a terceiros,
demonstrando a relação entre a esfera privada – ou das escolhas éticas – e a esfera social
– dos desdobramentos para a cidadania e política – da realidade humana. De forma
criativa e sensata, sem ridicularizações piegas, aponta angústias e motivos para a
tomada de decisão na vida prática, discutindo com poesia e seriedade a questão das
escolhas frente o conflito de interesses pessoais diante do que é politicamente correto.
De certo modo, aponta que não há mocinhos ou bandidos, há seres humanos:
contraditórios, angustiados, buscando vida boa e justa.
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O Psicólogo russo Vygotsky trabalha e fundamenta tal tese em “Psicologia da arte”, editado
pela Martins Fontes, 1998.
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São vários dramas privados que se cruzam e se influenciam na relação coletiva
de partilha do mesmo espaço político. O investigador honesto, de origem muito pobre e
dificuldades com a mãe viciada em drogas, que acaba vendendo o resultado de uma
investigação, em troca da ficha limpa do irmão caçula, que têm cometido pequenos
furtos e roubos. O preocupado e dedicado pai de família que é político corrupto. A
mulher da alta sociedade, abastada financeiramente e aparentemente sem preocupações
graves, mas que está sempre irritada, humilhando com arrogância e preconceito os
menos favorecidos, acaba percebendo sua solidão e como sua vida é vazia, e encontra
na empregada sua única amiga. Cineasta negro bem sucedido, após reincidentes abusos
morais, tem um surto emocional, pondo em risco a própria vida. Policial novato,
idealista e correto, solicita afastamento do parceiro preconceituoso, mas acaba
assassinando à queima roupa um negro, motivado pelo terror imaginário ao diferente e
desconhecido. O latino-descendente que sai do subúrbio de violência para bairro mais
seguro a custa de árduo trabalho, continua sendo vítima de discriminação por sua
ascendência. Policial branco, com dificuldades financeiras para solucionar os problemas
de saúde do pai, abusa reativamente de negros ricos ou em postos de poder, mas é o
único a colocar-se em risco para salvar a vida de uma mulher acidentada – e negra.
Imigrante persa, comerciante, assustado com a violência, pede à filha, americana, que
compre uma arma para sua defesa pessoal, mas é acusado pelo vendedor que insinua
que ele seja terrorista; tendo o seu estabelecimento invadido e depredado, culpabiliza o
chaveiro latino a quem ele mesmo proibiu de consertar a porta, e tenta matá-lo. Ladrão
de carros encontra furgão abandonado e, ao entrega-lo a seu receptor, descobre que no
veículo há contrabando humano: orientais ilegais destinados ao serviço escravo; decide
libertar e não vender as pessoas. Imigrante oriental bem inserido sócio e
economicamente é, na realidade, contrabandista de seres humanos.
Nestes apontamentos, observamos no decorrer das várias situações
apresentadas criticamente no filme que a modernidade caracterizada pela desconstrução
de certezas, gera insegurança por sua falta de referenciais morais confiáveis e universais
como uma linguagem de valores e regras válidas a todos neste contexto de globalização.
Neste caos de fragmentos e dúvidas, principalmente pelo sentimento de falta e de vazio
existencial, ações radicais e não raras vezes de violência reativa ao medo do
aniquilamento, passam a ser frequentes e dão a tônica dos relacionamentos, talvez
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fundamentando a tese do diretor, pela frase inicial do filme após uma batida de
automóveis (crash): a agressão é uma resposta a falta de contato pois, na ausência de um
contato humano positivo, o ser humano que é um ser social e simbólico, aceita o contato
destrutivo apenas para ainda se sentir humano – ainda que, objetivamente, isto o leve
pelo caminho da destruição e, sem pessimismos, possível extinção.
I.
Constituição dos Valores Ocidentais: Da Antiguidade Clássica à
Constituição da Modernidade
Sinteticamente, poderia-se definir valores como o conjunto de critérios de
preferência que é utilizado na determinação de uma escolha ou de um comportamento
pessoal. Assim, os valores estão na base de toda e qualquer atitude da vida, desde o que
comer no desjejum até em qual aplicação financeira se irá investir as economias, dada a
realidade e as possibilidades que esta define. E, como desde Aristóteles, sabemos que o
objetivo da vida é a felicidade, a orientação das suas decisões em sua vida prática, ou
seja, os seus valores, têm como meta atingir o que é certo ou coerente com o alvo da
existência: ser feliz.
Os valores pessoais nunca estão desvinculados da sociedade. O ser humano,
dependente do grupo para a própria manutenção e sobrevivência, sobretudo nos anos da
formação do caráter - a infância – e, ainda que algum sujeito apresente-se em oposição à
norma vigente, tal contraste ou negação só é possível em função de uma norma já
existente e por ele conhecida.
Assim se constitui a Moral: como o conjunto de regras, normas e valores,
frequentemente baseado nas tradições e costumes e nem sempre com fundamentação
lógico-racional, que forma o ponto de convergência das ações humanas para um acordo
entre os indivíduos, com propósito – consciente ou não – de minimizar os conflitos, a
violência e o extermínio do ser humano pelo próprio ser humano em sua natureza
impulsiva, desejosa de poder e domínio, agressiva. Assim como posterior e
intencionalmente a Lei, a Moral que fazer valer a conformidade entre a humanidade, e é
forte agente moderador do comportamento humano. Mas, a Moral social é relativa e
condiz com critérios como temporalidade, espaço, região geográfica, religião/cultura.
Já a ética pode-se atualmente ser definida por um processo de busca por valores
universais, que fossem comuns a todos os povos, de modo racional o esforço para ser e
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existir com a posse da liberdade pessoal, o que supões reflexão, consciência e
autonomia do sujeito. Assim, deliberara-se na prática por ações de responsabilidade
social e em busca de integridade, num processo de alteridade que promoveria a
tolerância necessária entre as diferenças culturais para a efetivação da cidadania
construtiva nesta sociedade global. Esta, a cidadania, palavra deveras utilizada em
campanhas eleitorais e projetos sociais, é, antes de tudo, a mediadora da consciência
ética da realidade, enquanto desenvolvimento teórico, para uma conduta ética de fato,
sobre a mesma realidade, na esfera coletiva: é a expressão da conduta pessoal na
coletividade, na concretude do significado de participação política.
Com o propósito de discutir as problemáticas éticas da modernidade ocidental,
na qual envolve-se o cotidiano da vida privada e seu desdobramento efetivo na esfera
pública, a ética assim desenvolve seu papel fundamental no contexto do indivíduo, pois
é a promotora da reflexão que viabiliza a ampliação da consciência individual, enquanto
sujeito das ações, que tomará diante possibilidades reais escolhas e posicionamentos no
desfecho diário de sua vida; e coletiva, com o desenvolvimento das consequências da
ação local para o coletivo do qual compõe um todo. Sendo assim, e a partir do processo
dialético entre a realidade objetiva e subjetiva, a cidade torna-se “abrigo”, onde ocorre o
processo de tensão e choque entre os diversos hábitos que se conflituam, impondo-se
uns aos outros.
A moralidade, a ética e os valores que constituem a Modernidade Ocidental
têm suas bases no Cristianismo, que por sua vez possui duas principais fontes culturais:
a tradição filosófica Clássica e a tradição filosófica hebraica. Do prisma filosófico, de
acordo com Aristóteles, ética é a virtude prática que leva ao bom convívio público e à
organização social. E justamente a questão da Modernidade, enquanto seu problema e
sua meta, é a felicidade e seu uso em vista da dignidade humana, contudo há de se
questionar seu niilismo hedonista na aplicação do conceito na Modernidade. Ocorre que
esta não é exclusiva perspectiva moral organizadora dos valores ocidentais: os
fundamentos hebraicos, edificadores de grande parte do Cristianismo – religião
ocidental desde o fim da Antiguidade e soberana por toda idade Média – são somados a
ela via religião.
Visualiza-se uma crise ética decorrente origem ambígua do próprio
Cristianismo: por um lado, a influência do pensamento filosófico grego, em que o
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pensamento racional precede a observação e normatização da realidade para, então,
determinar a escolha atitudinal do sujeito, supondo compreensão para efetivação da
ação numa dinâmica de autonomia; por outro lado, a ascendência Judaica, que prioriza a
observação da Lei independente da compreensão, e a normatização decorre da
obediência daquilo que é revelado miraculosamente ao sujeito – e independentemente se
ele entende ou não, sua ação é marcada pela obediência, submissão e heteronomia
diante do sagrado. No Cristianismo, surgido provavelmente como seita em classes
baixas do Judaísmo, há a junção da idéia de ética como revelação, submissão
heterônoma e com o objetivo de alcançar a Santidade, somada posteriormente à tradição
da Filosofia Clássica, que considera a ética como atitude autônoma, livre e responsável
do indivíduo diante da realidade com o objetivo da felicidade. Esse somatório de
tradições, não só diferentes como também antagônicas, gera o conflito de choque ético
na cultura Cristã, dando o caráter de crise ética à Modernidade Ocidental, que cada vez
mais desconstrói seus valores, marcada pelo relativismo generalizado, sem propor
referenciais orientadores para a conduta humana.
Assim, na Modernidade, essa dupla e ambígua influência ética para o
comportamento moral do sujeito choca-se numa dinâmica conflituosa – seja para o
sujeito em sua realidade privada, seja para o contexto coletivo. Se por um lado, a atual
conjuntura moral no Ocidente funciona de modo hedonista, pela busca do prazer e da
realização do desejo, por outro há o consenso sobre o Bem nos moldes Cristãos –
considerando que o conceito natureza em si não seria molde para conceituação de
bondade – que conflituam as escolhas a serem realizadas no plano humano, definindo o
caráter da crise ética moderna. Contudo, no plano do desenvolvimento científico, com o
retorno aos valores estóicos desde o Renascimento, relevando a ética enquanto
simplicidade do comportamento deduzido a partir da racionalidade da natureza, o ser
humano deixa de ser considerado superior como é feito na tradição religiosa Judaico
Cristã e passa a significar parte dela.
Desse modo, com o advento das ciências sociais e do estudo do comportamento
humano como Natureza, leva ao Realismo Político e a concluir que o Bem é reconhecer
o Ser Humano como ele é, em sua natureza, e orientá-lo – sem juízo moral, só
observando-o tal como é e age.
16
Na transição da predominância dos valores judaicos cristãos medievais,
administrados de modo obscuro pelo clero - poder instituído na época - para a tentativa
de maior coerência e racionalidade da fé e da questão existencial-religiosa promovida
pelo movimento da Reforma Protestante, houve certa acomodação amistosa na dupla
pertença do cristianismo, base ético-moral do Ocidente. Mas tal como nos aponta
Weber 3 , a conduta prática da ética protestante, baseada sobretudo no valor ao trabalho,
à vida ascética e honesta, e à poupança do lucro obtido com o trabalho abençoado,
tornou-se um dos principais fatores promocionais do acúmulo de capital fundamental ao
novo sistema econonômico delineador da Modernidade, o Capitalismo. Inicialmente
revolucionário, por atribuir ao indivíduo liberdade e possibilidade de ascensão social
por mérito, o Capitalismo vai se transformando ao passo que distancia-se dos
referenciais religiosos que inicialmente o promoveram. Paralelamente, o Humanismo e
o Iluminismo, enquanto movimentos culturais buscam base referencial nos valores
clássicos. Contudo, a Modernidade continua marcada por seus valores Judaico-Cristãos,
essencialmente antagônicos ao valores Greco-Romanos. O Racionalismo, que buscava
encontrar bases sólidas na lógica Clássica para a construção de um sistema filosófico
coerente e inteiramente racional (conceito lógico), entra em colapso por fundamentar
sua busca pela verdade no critério da lógica científica - antagônico ao critério medieval
ou Reformado, que se dava pela fé – ao conferir que o método científico leva a
diferentes resultados igualmente lógicos uma mesma questão. Onde estaria a verdade?
Inicia-se o Jogo da Crise da Modernidade, que escolhe o utilitarismo como gerenciador,
o hedonismo como critério de valor e sujeita o ser humano comum à solidão do
individualismo e do egocentrismo, tendo como alternativa ilusória de preenchimento
afetivo-moral o consumo, que atende os interesses dos “senhores do sistema”, que assim
se mantém ao Poder.
II.
Terror, Violência e Sagrado numa realidade construída socialmente
O mundo da vida cotidiana é adotado como uma realidade incontestável
na conduta subjetiva de seus integrantes, pois exerce na consciência humana
a maior tensão dentre as diferentes esferas da realidade, que caracteriza-se
pela forma imediata e intensa que se impõe; mas é o pensamento e a ação
humana deste mundo que o torna dotado de sentido para os indivíduos, sendo
assim afirmado real por eles.
3
Weber, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
17
De acordo com tal tese de Berger e Luckmann (1985), esta realidade por
assim dizer, mostra-se também para os indivíduos como uma relação
intersubjetiva, isto é, um mundo de interações e participações mútuas na vida
cotidiana. Dentro deste contexto o contato face a face é fundamental, pois
tenho o outro como inteiramente real. No entanto, na rotina da vida cotidiana
sucedem-se tipificações, na qual não apenas o outro é um tipo (relação
recíproca), mas as situações em si são típicas, fato este que consiste em uma
estrutura social, elemento inerente da realidade da vida cotidiana, mas que só
é possível enquanto objetivações, ou seja, a primeira só se constitui pela
última. Tal processo atinge o seu maior grau de importância na linguagem, pois
é através dela que a vida cotidiana é objetivada, na qual todas as espécies de
experiências e fatos adquirem significações que por sua vez são também
tipificadas.
Sendo assim, o mundo que apresenta-se para o homem estabelece uma
relação integra e recíproca para com este último, isto é, o homem torna-se
homem em um ambiente natural, que por sua vez também é um ambiente
humano, na relação com o outro. A partir de então, que o homem desenvolve o
organismo (biológico) e o eu humano em um ambiente socialmente
determinado, ou seja, o homem é um corpo que por conseguinte tem esse
corpo como entidade (propriedade).
Logo para as seguintes considerações tomamos a asserção de Berger e
Luckmann (1985), segundo qual “O Homo sapiens é sempre, e na mesma
medida, homo socius.” 4 , de modo que podemos falar de ordem social como
produto da atividade humana dentro das relações sociais. Entretanto toda a
atividade humana está submetida ao hábito (enquanto situações/ações e seus
atores definidos, padronizados, em suma, as tipificações), cuja extensão se
propaga em uma institucionalização, que de acordo com Berger e Luckmann
(1985), “... ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais
por tipos de atores” 5 , fazendo com que para todos os indivíduos em uma
sociedade, identifique a trivial rotina como a vida cotidiana deles.
Como já dito, a vida cotidiana está em constante transformação pela
construção da atividade humana e que haja vista é institucionalizado, formando
por fim uma ordem institucional, na qual tem suas raízes na divisão do trabalho,
que segue conduzindo o ciclo da institucionalização. Mas para esse mundo,
agora institucionalizado, ter o seu caráter próprio de objetivação, ele deve ser
transmitido para uma outra geração, pois só assim a dialética social apresentase plenamente, como uma interiorização realizada partindo da socialização,
exigindo assim meios que justifiquem (legitimem) tal mundo social, pelo fator
controlador das condutas institucionalizadas.
Dito de maneira mais clara, esse processo se desenvolve quando, no
estado da divisão do trabalho, um corpo de conhecimento se forma através de
uma atividade particular, que terá estruturas lingüísticas referentes a tal
atividade, possuindo assim uma funcionalidade controladora e condutora da
institucionalização deste campo de conduta (o conhecimento como
legitimação), e que no seu corpo de conhecimento a mesma caracteriza-se
como instituição objetiva, logo, no seu processo de socialização (transmissão)
4
5
Berger; Luckmann, 1985, p. 75.
Ibid., p.79.
18
ela será compreendida como uma verdade objetiva, formando tipos de pessoas
especificas, na qual as mesmas interiorizarão tal socialização como realidade
subjetiva (ficando claro que não há o descarte da possibilidade de o homem
apreender os fenômenos humanos como não humanos, após o
estabelecimento de uma realidade social objetiva).
A construção social da realidade, segundo Berger e Luckmann (1985), está de
fato vinculada com a questão de como se desenvolve a distribuição de conhecimento na
sociedade. Como já anteriormente apontado, a atividade humana se torna responsável
por tal ocorrência em forma de papéis desempenhados por seus integrantes
representando a ordem institucional, e portanto os papéis atuam como mediadores do
acesso particular de esferas do acervo comum do conhecimento, na qual resultará no
surgimento de especialistas, que necessariamente terão de conhecer tudo que diz
respeito as suas especificas atividades. Este fato implicará na segmentação institucional,
pois com o conhecimento fragmentado, a questão dos significados íntegros não será
efetivada, ou seja, todo um contexto dotado de sentido pleno não será possível devido
ao fracionamento do indivíduo com relação ao conhecimento e a experiência social, que
o mesmo terá, criando assim sub universos sociais de significações isoladas. Sendo
assim, Berger e Luckmann (1985) ratificam de vez dizendo que:
“... a relação entre o conhecimento e sua base social é dialética, isto é,
o conhecimento é um produto social e o conhecimento é um fator na
transformação social.” 6
Todos os pressupostos até então aqui apresentados diz respeito à
objetivação da realidade da vida cotidiana, porém uma questão vem à tona: o
que garante a um indivíduo se integrar por completo em tal mundo socialmente
objetivado?
No contexto da objetivação, na qual o indivíduo se integra, a mesma
deve ser dotada de sentido para ele, fazendo com que a legitimação se
encarregue de manter o acesso do indivíduo para com a objetivação, e que
subjetivamente ela possa tornar-se plausível, isto é, dando significação para o
mesmo. De acordo com a complexidade que as objetivações atingem, o nível
das legitimações se diferem. Sendo a legitimação incipiente, isto é, o
vocabulário, acaba tornando-se a legitimação inerente, mas seu grau de
complexidade também se modifica de acordo com a necessidade, ou seja,
como estrutura pragmática (máximas, provérbios,...), estrutura especifica
(teorias explicitas sobre uma determinada área institucional), e a maior
estrutura legitimadora, os universos simbólicos, na qual será sucintamente
desenvolvida.
6
Ibid., p. 120.
19
Os universos simbólicos têm um caráter especifico, pois constitui uma
forma amplamente integrada dotada de sentido, de todos os setores da ordem
institucional, isto é, todas as experiências humanas de objetivações sociais de
significados e subjetivamente reais. A partir de então, todas as realidades
integram ao universo simbólico, de significações, logo, legitima a biografia
individual na realidade da vida cotidiana, pois a mesma exerce um caráter
ordenador, que permite ao sujeito conceber a realidade da vida cotidiana, como
sendo a realidade. Porém como o universo simbólico tem um caráter teórico,
após sua cristalização torna-se susceptível a problemas. No entanto, há
mecanismos conceituais de manutenção assim como: a mitologia, teologia,
filosofia e a ciência nos quais, exceto a mitologia, detêm um corpo de
conhecimento especifico e especializado.
Para Berger e Luckmann (1985), a realidade da vida cotidiana só se
manifesta como sendo a realidade pelo universo simbólico (produção social),
ou seja, para a sua constante manutenção enquanto a realidade, os corpos
especializados de conhecimento, no caso os peritos, são os principais
definidores da realidade em uma sociedade, pois formam estruturas unificadas
de poder, caracterizando portanto as ideologias, gerando assim conflitos entre
os mesmos. Contudo as sociedades contemporâneas caracterizam-se pelo
fato de serem pluralistas, isto é, tem seus próprios universos nucleares, mas
compartilham com diferentes outros universos parciais, assim como propõem
Berger e Luckmann (1985):“O pluralismo encoraja tanto o cepticismo quanto à
inovação, sendo assim eminentemente subversivo da realidade admitida como
certa do status quo tradicional.” 7 Em suma, como definem Berger e Luckmann
(1985), integrando tal discussão:
“Tudo quanto até aqui dissemos a respeito da socialização implica a
possibilidade da realidade subjetiva ser transformada. Estar em sociedade já acarreta
um contínuo processo de modificação da realidade subjetiva.”
8
E por fim: “Na dialética entre a natureza e o mundo socialmente construído, o
organismo humano se transforma. Nesta mesma dialética o homem produz a realidade
e com isso se produz a si mesmo.” 9
Caracterizada pela incerteza construída, pelo caráter de transitoriedade, pela
fragmentação de idéias, de discursos, de pensamentos e, sobretudo pela falta ou pelo
conflito de referenciais e indicadores de valores válidos para uma vida digna para o
sujeito e para a coletividade, a humanidade vivencia um episódio de terror. Utopias
sócio políticas enfraqueceram-se diante o Capitalismo de consumo e o grande número
7
Ibid., p. 169.
Ibid., p. 207.
9
Ibid., p. 241.
8
20
de casos de corrupção entre as próprias instituições que defenderiam a ética na esfera
pública, e a sociedade civil sente-se refém de uma violência que a abrange de todos os
lados: o abandono. Alienados, os indivíduos solitários e desarticulados socialmente
travam uma relação quase psicótica de superficialidade no contato com o outro.
Indiferença. E todos buscam por respostas, verdades, um paradigma que dê suporte à
existência, uma ideologia para viver, como diria o poeta 10 . A busca pela identidade
deixa de ser uma característica própria da condição da adolescência, e passa a ser
problemática humana. Quais valores temos? Quais as prioridades? A quais diabos
venderíamos a alma? Direitos Humanos? Fé? Qual é a ética verdadeira frente aos
avanços científicos, tecnológicos? Calam-se nossas indagações, ainda que nos pareçam
infinitas, e ainda não escutamos nem sussurros de qualquer resposta convincente.
Contudo, se a realidade é uma construção social, a emancipação e ampliação da
consciência humana no sentido da reflexão ética poderia nos projetar, efetivamente, a
novos pressupostos nesta constante construção da realidade. Nós somos a realidade.
Compreender o processo pelo qual transitamos até o presente é fundamental para a
edificar os valores da nossa fabulosa nova época.
III.
Identidade, Cidadania e Modernidade em Crise
Até o presente momento, nosso texto aponta que a nossa existência se
caracteriza por um traço híbrido, que é composta por agrupamento de diferentes
conceitos, opiniões, verdades; trata-se de um momento indefinido na história da
humanidade. O velho sistema econômico, o Capitalismo, é agora “adornado” com o
toque do neo-liberalismo. A Globalização, conceitue-lhe positiva ou negativa, é dado de
realidade que não recuará enquanto processo em um só passo; ao contrário, avança a
cada dia com novas tecnologias de comunicação e de informação. Tal modernização
leva a descentralização, privatizações e, indubitavelmente, a alterações da estrutura
cultural, ainda que seja consequência do capital, para uma nova modalidade:
massificada. Mas ainda que possamos afirmar que os antigos assombros da humanidade
se apresentam com máscaras diferentes, há algo de novo neste momento da História: há
10
Referência à letra da música “Ideologia”, de Cazuza, no trecho que afirma: “Ideologia, eu
quero uma para viver”.
21
uma busca generalizada por visões, por uma conversão de valores que nos sejam
plausíveis à possível sobrevivência digna, justa, harmônica, ao menos.
Vivemos em um período de transformações sociais associadas à Modernidade.
Período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas
e universalizadas do que antes. Mas como chamaremos este período é a dúvida
apresentada por Anthony Giddens 11 (1991). Chamaremos de Sociedade da Informação?
De consumo? Pós-modernidade?
O período Moderno tem associado a si descontinuidades como: ritmo de
mudança, escopo de mudança e a natureza intrínseca das instituições
modernas. Como lado negativo desse período, Giddens (1991) fala sobre as
preocupações ecológicas (que tanto nos aflige hoje), totalitarismo (abuso do
poder) e o confronto nuclear (ameaça constante).
Atualmente o que modela o mundo moderno é o Capitalismo, analisado
pela Sociologia e pelas ciências do comportamento humano (reflexão sobre a
vida social moderna). Para compreender a própria Modernidade, Giddens
(1991) usa o auxílio de conceitos como tempo e espaço, categorias escolhidas
por seu traço universal. De acordo com o autor, o dinheiro (capitalismo) é o
meio de distanciamento entre o tempo e espaço. Ele possibilita transações
entre agentes separados no tempo e no espaço.
O desencaixe é outro conceito que auxilia na compreensão da Modernidade e
no desenvolvimento das instituições sociais moderna pois, de acordo com Giddens
(1991), desencaixe é “o “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de
interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” 12 ,
entre seus mecanismos estão as fichas simbólicas e os sistemas peritos.
A Modernidade que é marcada também por movimentos sociais em que
o poder é exercido pela força. Sistemas de pós-escassez, formação de
cooperativas de políticas globais pelos estados, também marcam esse período.
Essas transformações da Modernidade alteraram também a intimidade,
através das relações entre tendências globais e vida cotidiana, outra
transformação é a do eu (reflexivo), da confiança e a preocupação com a autosatisfação. Cada vez mais as pessoas se apresentam com o sentimento
embotado, isoladas e solitárias em grandes conclomerados urbanos e,
sobretudo, agressivamente reativas: na impossibilidade de troca afetiva positiva
11
12
Giddens, A. “As consequências da Modernidade”, 1991.
Ibid., p. 29.
22
com o ser humano, a violência pode ser um tipo, ainda que destrutivo, de
relacionamento que ainda nos lembre que somos humanos.
Para diferenciar o período Moderno do período Pré-Moderno, Giddens
(1991) utiliza complexos mecanismos, como a segurança relacionada ao
perigo, e a confiança enquanto mecanismo relacionado ao risco - termo que
passou a existir apenas no período Moderno. O dinheiro está relacionado à
confiança, que está relacionada à informação plena, ou a credibilidade e
crença, que estão relacionadas à interação social. Dentro dessas relações
interpessoais, a sinceridade foi substituída pela autenticidade, a honra pela
lealdade. Essa necessidade de achar em que confiar é apresentada de forma
brilhante pelo filme vencedor do Oscar de 2006 (Crash – No limite, 2005). Não
se confia em ninguém, perde-se o sentido de humanidade.
De acordo com Savater (2004), seja qual for o valor que se atribua ao
outro ou a seu comportamento, ele é seu semelhante, e nisto reside o seu
valor: a vida humana transcorre entre seres humanos, e a realidade se constrói
a partir das relações sociais simbolicamente estabelecidas pela linguagem e
interação entre os seres humanos, como afirmam Berger e Luckmann (1985).
Assim, só nas experiências compartilhadas podemos construir a identidade
pessoal, dela tornar-se consciente e, então, configurar para nós mesmos os
valores que podem orientar nossa existência. Logo, se não confio na existência
e no outro, não faço trocas simbólicas. Sem elas, há a impossibilidade de
encontrar tanto o equilíbrio individual, quanto para o relacionamento
interpessoal. O resultado, exemplificado na obra de (diretor), é a conduta
violenta, ressentida, traumática substituindo a assertividade necessária para o
desenvolvimento humano.
Outra consequência da modernidade apontada por Giddens (1991) e
exemplificada no Filme “Crash – No limite” (2005) é a desatenção social
(compromisso com rosto e sem rosto), onde milhares de pessoas se cruzam
todos os dias sem estabelecer nenhuma relação, ou pessoas que se cruzam
nas ruas e mal sabem que por algum motivo estão relacionadas e suas atitudes
podem refletir em ambos. Essa desatenção social está ligada à ausência da
capacidade de confiabilidade (mecanismo da modernidade).
A tradição recebe sua identidade apenas da Reflexividade do moderno,
pois a idéia de ruptura com a tradição é inerente à idéia de Modernidade.
Segundo Giddens (1991):
“A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de
informação renovada sobre estas próprias práticas, alternando assim
constituitivamente seu caráter”. 13
A Modernidade está totalmente ligada à Globalização, da economia, da
cultura pelas tecnologias de comunicação e pela mídia. A Globalização está
13
Ibid., p.45.
23
ligada ao Capitalismo que modela a Modernidade. Através do Capitalismo
(maior riqueza , maior poder), se deram as inovações tecnológicas constantes,
mas também difusas. Nesse período, a interação do homem com a natureza se
dá através do industrialismo, junto ao Capitalismo. De acordo com Giddens
(1991):
“Mas, até onde durarem as instituições da modernidade, nunca seremos
capazes de controlar completamente nem o caminho nem o ritmo da viagem. E
nunca seremos capazes de nos sentir inteiramente seguros, porque o terreno
por onde viajamos esta repleto de riscos de alta-consequência . Sentimentos
de segurança ontológica e ansiedade existencial podem coexistir em
ambivalência.” 14
Muitos dos fenômenos atribuídos a Pós-modernidade, na verdade,
dizem respeito ao fato de vivermos em um mundo em que presença e ausência
se combinam de maneiras historicamente novas. Segundo Giddens (1991):
“num mundo pós-moderno, o tempo e o espaço já não seriam
ordenados em sua inter-relação pela historicidade, um mundo que entrelaçaria
o local e o global de uma maneira complexa”. 15
Neste sentido, o problema da crise de valores, da ética propriamente dito, se
expande em direção à coletividade, tornando-se uma questão política, ou seja, de
cidadania. Diante o niilismo e falta de autonomia moral generalizada, sem consciência
da liberdade existencial e, portanto, com dificuldade para assumir a responsabilidade
ante as consequências das atitudes cometidas, o Ser Humano Moderno apresenta-se
heterônomo diante a vida. Com a fragmentação do saber e com o processo de
destradicionalização dos valores, a sensação de velocidade frenética deixa as pessoas
confusas quanto os critérios que regem suas escolhas, bem como sem condições para
estabelecer quais as prioridades – no nível pessoal ou coletivo – em suas vidas. Desejo
confunde-se com necessidade e com culpa. A corrosão da identidade pessoal facilita o
processo de desconstrução de identidade nacional, do sentido de cidadania, da
importância do sujeito na esfera social.
O enfraquecimento do indivíduo, que leva à irritabilidade, intolerância,
preconceito, alienação e manutenção de esteriótipos discriminativos sociais passa a ser
reforçada pela conduta política alienada em todos os campos: do representante público
corrupto ao eleitor alienado. Consequência disto, se desconstitui os Direitos Humanos
14
15
Ibid., s/p.
Ibid., p.176-177.
24
básicos de modo legitimado pelo ódio coletivo, sem meios dignos de saúde, educação,
segurança, habitação, trabalho. Mas se o objetivo da ética é a vida boa, a felicidade ao
Ser Humano, estamos no caminho inverso. Tal é a crítica de “Crash – no limite”(2005):
sem a constituição de referências não paradigmáticas mas, antes, tolerantes e amorosas,
não há sobrevivência e evolução da espécie humana, apenas o conflito, o impacto, a
ruptura. Crash.
A idéia de cidadania como pensamos atualmente, tendo o cidadão como aquele
que na dinâmica social trava relações políticas de direitos e deveres, enquanto convívio
construtivo e igualitário da realidade social humana, iniciou-se na Grécia Clássica, na
origem das suas primeiras cidades, onde o ser humano passa a ser considerado um ser
político em consequência de sua condição de ser social. Contudo, durante o período do
Feudalismo Medieval, a cidadania não ocorreu, devido a opressão e a estrutura daquela
sociedade em que, apesar da existência de leis, os benefícios contemplavam
exclusivamente uns e os deveres eram obrigação de outros, sem concomitância para o
mesmo indivíduo.
A Revolução Francesa tornou-se marco da cidadania moderna, com o
objetivo de igualdade para todos (“igualdade, fraternidade e liberdade”). O
trabalho tornou-se o primeiro marco para a existência da cidadania liberal: a
partir dele, e pela capacidade de cada um, todos seríamos iguais. De fato, a
história mostrou que não foi bem assim. As relações de poder e de valor
simbólico entre os Seres Humanos impediam a igualdade, a liberdade e a
fraternidade de efetivarem-se. Marx critica a ideologia burguesa, aponta a
exploração do trabalhador pelo capital e alienação resultante de tal processo
em que o ser humano é tratado como coisa e não como semelhante.
As críticas Marxistas contribuem para o surgimento de novos embates
por direitos dos trabalhadores, como reivindicações por trabalho, saúde,
habitação e educação. Além dos direitos civis e políticos, os direitos sociais
começam a ser refletidos e constituídos pela humanidade, tanto em
referenciais socialistas como em referenciais liberais (Welfare State, por
exemplo).
Nos anos 60 e 70 a questão da cidadania era muito discutida no Brasil,
porque aquele era um período de opressão pelo governo militar. Acontecem
movimentos sociais, em busca do “ser cidadão”, que seria ter direitos.
Se, neste breve panorama da história, podemos observar que há o
esforço para alcançar meios de vida em que a existência seja não só possível,
mas digna e boa a todos, a questão é a falta de êxito nas empreitadas. Mas o
desejo de poder em benefícios próprios dificulta a efetivação da cidadania.
Como arma contra a corrupção social, a constituição limita o poder dos
governantes (divide o poder em três: legislativo, judiciário e executivo) e detém
as idéias de direitos e deveres. Porém, a cidadania é resultado da interação
25
entre todas as instâncias e atores sociais, em sua representações de soberania
e de submissão social.
A Cidadania está muito ligada à política, pois cidadania trabalha a
coletividade (cooperação, respeito, responsabilidade no parâmetro coletivo). O
convívio humano é rodeado de vontades e de interesses diversos, em busca de
Poder, ou seja, da capacidade de transformar a vontade dos outros em sua
própria vontade, através da força ou do convencimento. Se a Ética discute
sobre as orientações das ações humanas particulares, a Política discute essas
ações voltadas para um público maior. Portanto Ética e Política devem
caminhar juntas, pois ações pessoais refletem em ações sociais, e escolhas
pessoais têm reflexos coletivos, exatamente o que é retratado no filme
analisado. O objetivo da política é tomar decisões que reflitam na coletividade
de modo a administrar a vida social com finalidade de proporcionar
humanidade nas relações internas do grupo: desenvolver crítica para o
desenvolvimento da cidadania. Cidadania é respeito, é participação
responsável, é coletividade, “bem-comum”, é justiça social.
O trabalho, desse modo, deveria configurar condição de realização do ser
humano mas, atualmente, com tanto desemprego, mecanização da mão-de-obra, entre
outros fatores, fica difícil de se realizar. Na sociedade atual a produção é automatizada,
com bens de curta duração, de consumo descartável e de exigência estética. O ser
humano passa a ser tratrado como mercadoria (quanto mais trabalhadores, menores
salários; quanto mais produz, menos se tem para consumir), o trabalho tornou-se
rotineiro e irreflexivo, alienado.
Neste contexto, é preciso saber para fazer, não para criar; lucrar é preciso. A
atualização profissional num mundo global e informatizado é constante (e por conta do
profissional), e as relações de trabalho passam a se definir por uma desumanização do
corpo e da vida. Há uma inversão de valores: produto vale mais que o Ser Humano,
aparência vale mais que a essência. Nesta nova sociedade, Cidadania confunde-se com
consumismo; cartão de crédito com identidade; Cargo com o que a pessoa é; Bondade
com geração de lucros. Nesta perspectiva, pretendemos refletir as possibilidades da
existência ética na realidade contemporânea com a análise a seguir.
IV.
Crash: estamos todos no limite da vida?
O ser humano é um ser social: suas ações, mesmo quando individuais,
refletem na coletividade. Ou seja, ele convive num meio social (escola,
trabalho, família, clube, sociedade, igreja), e é impossível escapar da
participação. Através dessa convivência é gerado conflito de vontade e de
interesses, de poder. Uma ação individual reflete em ações coletivas, por isso é
de suma importância que um cidadão (ter direitos e deveres; ser súdito e
26
soberano), possa refletir sobre sua participação política, ou seja, ter
consciência da importância da sua conduta para o todo coletivo.
Através de tal discussão teórica (o cidadão como ser político), será então
refletida uma discussão crítica/prática, ou seja, todas as problemáticas (Consciência
ética, trabalho, produção e consumo) dessa discussão teórica na sociedade atual.
O trabalho tem como definição ser a condição de realização do Ser
Humano (fundamento da vida cultural e da civilização e capacidade de
produção de bens materiais, transformando a natureza), mas nos dias atuais
isso não vem ocorrendo devido a más condições, o trabalhador deixou de
trabalhar por realização, resultando em um trabalho alienado, ou seja, trabalho
rotineiro e irreflexivo, na qual o ser humano se torna uma mercadoria (o
trabalhador não sabe seu valor (produz, mas não sabe produzir, ou seja, ele
sabe colar uma sola, mas não sabe produzir um sapato) e trabalha, por
exemplo, por dinheiro).
De acordo com a problemática do trabalho, a sociedade atual se depara
com a questão da produção e do consumo. “Se existe trabalho, existe
produção, logo quem produz, consome, e se existe consumo, existe maior
produção”. Para que este ciclo esteja cada vez mais “motivado”, se criou uma
idéia estereotipada de Belo, na qual tudo o que devemos produzir e consumir,
deve ser voltado para tais características. Mas não numa referência à estética,
mas ao que é superficial e passageiro. Como “devemos” consumir e produzir o
que é Belo, o corpo humano se torna uma mercadoria: por exemplo, as
modelos, que são vistas pela sociedade como padrões de beleza, e logo todos
querem obter o corpo “Belo”, mas não necessariamente saudável.
Tanto em nossa sociedade, como na problemática que trata o filme,
podemos notar o “conflito” e a inversão de valor entre o Eu (ser e existir) e o
Ter/Parecer (produzir/consumir). Nesta perspectiva, “Cidadania” confunde-se
com “consumismo”, “cartão de crédito” com “identidade”, “Cargo” com o que a
pessoa “é”, “bondade” com “geração de lucros”.
Realizada tal discussão teórica daremos início as problemáticas apresentadas
pelo filme e observadas por nós. Cabe orientar ao leitor que serão apresentadas aqui,
apenas idéias gerais. O filme trata da questão da individualidade, apresenta questões
como o racismo, preconceito e o estereótipo (“mexicanos não sabem dirigir”;
preconceito contra o árabe na loja de armas; estereótipo em relação ao chaveiro, que é
rotulado como gangster; questão racial entre os negros, em que eles tem preconceito
contra eles mesmos). O poder também é discutido no filme, caracterizado pelo seus
excessos: policial quando usa do Poder da sua autoridade e abusa moral e sexualmente
de uma mulher, ou quando há o assalto dos jovens negros a um casal, através da
violência. A questão da alienação em relação ao trabalho se caracteriza de várias
formas em que a humanidade é trocada pela lucratividade: na loja de armas, a mulher
faz uma proposta ao balconista que não quer vender, mas quando o dinheiro é pedido de
27
volta, acaba e vendendo as balas, numa submissão ao dinheiro, e à falta de consciência.
Em outro episódio, o filme retrata tal debate através do policial que quer ser transferido
por não aceitar atitudes abusivas que presenciou, mas se submete ao seu trabalho
mesmo sabendo que nele acontecem fatos de negligências éticas profissionais.
As problemáticas da produção e consumo também podem ser vistas no filme
através do trabalho da empregada do político, vista como mercadoria e instrumento, por
sua patroa que lhe trata como “coisa”. A venda de orientais como se fossem
mercadorias e o oriental hospitalizado quase morrendo, mas que mesmo assim pede
para que sua mulher desconte imediatamente o cheque que ele possuía retratam de
forma enfática tal realidade. A manutenção dos esteriótipos sociais foi retratada pela
sequência em que na filmagem de uma série de tv o negro que faz uma personagem
começa a falar de maneira formal, e um dos diretores acha um absurdo pois, para ele, os
negros tem que falar como gangster, e quem fala de maneira formal são os brancos,
fazendo com que ele venda essa imagem. A super valorização do consumo do belo de
modo superficial leva ao vazio existencial e é tematizado no filme pela vida irada da
mulher rica que vive o sonho de qualidade de vida americana no seu cotidiano, com
bens e aparência, acesso a produtos e diversos relacionamentos, mas que sente-se
sozinha, irritada e infeliz constantemente. Trocou sua existência pela aparência.
Diante de todas as problemáticas envolvidas no filme, todas as ações
individuais acabaram refletindo na coletividade, e por fim promovendo uma
reflexão sobre as atitudes tomadas (como quando o policial volta a se
encontrar com a mulher assediada e salva sua vida; quando o investigador
deixa de exercer sua função para salvar o irmão, o deixando livre, ou o negro
que passa o tempo todo atrás de dinheiro ilegal mas, ao invés de vender os
orientais clandestinos que encontra casualmente, e ganhar o tão desejado
dinheiro, ele os liberta. Conclui-se então a importância da consciência ética que
cada indivíduo deve possuir em relação as suas ações para que elas reflitam
de forma positiva na sociedade, exercendo assim seu papel como cidadão.
V. Considerações Finais
Com base nos estudos teóricos realizados, concluímos que a crise da
Modernidade é um grande expoente a ser debatido na atualidade. Confiança,
consumismo, risco, niilismo, poder, individualismo, consequências dessa crise
da Modernidade, que refletem diretamente no convívio social, que é
caracterizado por incertezas (exemplo: risco x confiança ), pelo sentindo
efêmero, fragmentação de ideias e discursos teóricos, isto é, conflito de valores
que influenciam o contexto social. O resultado dessas consequências , ou
28
características da modernidade, são as condutas violentas, ressentidas,
traumáticas, que prejudicam o relacionamento interpessoal.
O compromisso sem rosto, o indivíduo sem identidade, o vazio
existencial são exemplos do que ocorre na atualidade e são muito bem
apresentado pelo Filme “CRASH-NO LIMITE”, em que pessoas se cruzam,
mas nem sabem que se cruzaram, pessoas tomam atitudes e nem sabem que
as mesmas irão influenciar ou acarretar danos – a si mesmas ou a outras
pessoas, “desconhecidas” por ela. Isto é, mais uma vez apresentamos aqui, e
portanto concluímos, que a ação da esfera individual reflete na esfera coletiva,
e como mostra o filme discutido, este tipo de ação está construindo e
modificando a todo momento a realidade, onde cada vez mais o espírito de
cidadania é deixado de lado, bem como os valores que possibilitariam uma
existência digna ao Ser Humano.
Por isso é de fundamental importância no atual contexto de realidade a
retomada da reflexão sobre Ética, pois ela tenta resgatar esses valores (que
foram, e estão sendo deixados de lado, pelas características da modernidade)
de forma racional e, assim, que possa configurar tal universalidade que seja
comum a todos os povos: sem fundamentalismos ou imposições, mas através
do respeito, da alteridade, do cultivo da empatia pela humanidade que o outro é
e constitui em si. Arriscamos afirmar que nos falta a ética amorosa que vê o
diferente não como inimigo mas como elemento constituinte da variedade que
desenha a realidade humana, como pessoa semelhante em sua existência
humana. E, nesse sentido, conotamos o amor não como sentimento relativo,
piedoso ou apaixonado mas, antes, como emoção definida que conduz à ação
e práticas efetivas em favor do objetivo ético essencial: a digna vida humana
sem acepção de pessoas, mas com discernimento de condutas. Nesse espaço,
entra a Cidadania , que tem como papel mediar a consciência ética para uma
conduta ética de fato, de uma mesma realidade.
O filme analisado tem como característica fundamental para nossa
conclusão, a questão da reflexividade , onde as primeiras atitudes tomadas
pelos personagens , eram atitudes impulsivas (que não havia reflexão), e
contribuíam para esta amarga realidade em que vivemos. Numa segunda
instância, alguns personagens se tornam seres mais reflexivos (características
da consciência Ética) e suas atitudes passam a ser ações de caráter cidadão.
Como profissionais ligados à Educação Física, cientes da
Responsabilidade Civil dessa profissão enquanto categoria política no grupo
social, preocupamo-nos, ao fim, com a realidade na qual tal atividade se insere.
Observamos que, para além do corpo material, físico, e numa perspectiva de
ética como a busca dos fundamentos e do aperfeiçoamento virtuoso bio-psicosocial, o trabalho da Educação Física é com o sujeito humano. Este, em crise
de identidade e valores retratado pelo filme e análise realizada, muitas vezes
buscam esta área do conhecimento humano apenas por motivações
superficiais, consumistas, fragmentadas, utilitaristas. E então, questionamos
qual a contribuição à cidadania e à sociedade mais harmoniosa que a
Educação Física poderia trazer.
A Educação Física deve contribuir para a formação dos indivíduos. Ela
deve trabalhar o ser num contexto geral, tanto as dimensões biológicas (o
corpo humano, o físico, a coordenação, etc), como trabalhando dimensões
29
sociais e psicológicas, em que o profissional deve usar seus conhecimentos e
contribuir para que seu aluno aprimore os seus convívios sociais, o aspecto da
coletividade, do trabalho em grupo. Na sua prática cotidiana, seja na escola, na
academia, no clube, nas empresas, o trabalho com o corpo deve emancipar a
consciência pessoal ao conferir identidade ao sujeito, uma vez que o corpo é a
expressão da existência. Sendo assim, são seus conteúdos transversais o
respeito, a determinação, a disciplina, o senso de unidade, a competitividade
saudável ao desenvolvimento e não à destruição traiçoeira, o equilíbrio, a
valorização da saúde, o relacionamento inter e intra pessoal. Ou seja, na
ampliação da consciência corporal, promover a dilatação da consciência
pessoal, viabilizando o exercício prático de condutas éticas através do
exercício e do esporte que promova a reflexão constituinte dos princípios
morais que levem o indivíduo à condição de cidadão crítico, consciente,
participante criativo de um mundo melhor. Além de trabalhar questões de
formação específica deste campo do conhecimento, o papel de todos
educadores é ensinar e compartilhar conhecimentos de modos e situações
diferentes, contribuindo para a formação integral do indivíduo, e para a
formação de um cidadão.
Deste modo, apontamos o papel da Educação e da prática reflexiva
como fundamento central na resolução, complexa e provavelmente não tão
próxima, dos problemas éticos contemporâneos discutidos teoricamente neste
trabalho e retratados no filme analisado. Há uma urgência no que se refere à
existência digna, se não à própria sobrevivência humana, do resgate de valores
éticos e morais que dêem sustentação à conduta promotora de uma sociedade
produtiva, humanizada, respeitosa e harmônica. Há a necessidade do olhar
crítico para a realidade, assim como o faz o filme “Crash – no limite”, que
observe que todos, sem exceção, apresentam características que transformamse em virtudes ou deforminadades de acordo com a tônica dada pela conduta
pessoal. Não há mocinhos ou bandidos. Há pessoas. Carentes de identidade,
de contato que humanize e edifique, mas, sobretudo, de amor pela própria
existência e pela existência do semelhante.
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31
COMO DISTINGUIR O BAJULADOR DO AMIGO–PLUTARCO
Marcio Gimenes de Paula
O pensador grego Plutarco (que viveu aproximadamente entre 47-120
D.C) nasceu na cidade grega de Queronéia, na Beócia, e por lá viveu até o
final de sua vida. Destacam-se seus estudos em matemática, medicina, retórica
e suas viagens pelo Egito, Ásia e Roma. Como cidadão, ele também tomou
parte da vida política, participando de diversos cargos importantes do seu
tempo.
Seus escritos revelam uma época singular do pensamento grego. Suas
reflexões acompanham o período histórico da decadência do mundo romano e
o nascimento do cristianismo. Seus trabalhos voltam-se especialmente para os
assuntos morais e, por esse motivo, convenciona-se intitulá-lo como um dos
primeiros moralistas. Dentre suas obras podemos destacar Moralia (obra
composta de 83 opúsculos, dentre eles o texto que examinaremos aqui, Como
distinguir o bajulador do amigo) e As vidas paralelas (onde ele aborda, através
da análise dos dramas individuais, a obra de importantes personalidades
gregas e romanas).
A filosofia de Plutarco configura-se como oposta às abstrações
platônicas e aristotélicas e igualmente contrária à indiferença dos estóicos e
epicuristas em relação à vida pública. O apego de Plutarco ao subjetivo e a
ligação deste com a vida social fazem do pensador um dos autores prediletos
de Montaigne, Shakespeare e Schiller.
Como distinguir o amigo do bajulador é um trabalho rico em citações de
filósofos, das tragédias e da mitologia gregas. Ao tentar abordar a distinção
entre o bajulador e o amigo, o pensador inicia explorando o tema do amorpróprio de cada indivíduo. Segundo seu entender, o amor-próprio, que é algo
importante na vida do ser humano, está no limite entre a temperança e a
desmedida, que pode ser caracterizada aqui como vaidade: “Aliás, o amorpróprio oferece à bajulação um vasto campo para nos atacar, e sob a
aparência da amizade, dominar nossa confiança. Como transforma cada um de
nós nos primeiros e maiores bajuladores de nós mesmos, ele facilita a entrada
32
de estranhos, para obtermos dele os testemunhos e a aprovação da justa
opinião que este amor-próprio tem de si mesmo” (PLUTARCO, 1997: 11-2).
Tal vaidade facilita o aparecimento dos bajuladores. Plutarco não se
preocuparia com a bajulação se esta atingisse apenas os homens vis ou
pobres. Entretanto, a bajulação é destinada sempre aos poderosos, uma vez
que são esses que possuem as coisas desejadas pelo bajulador ou que, por
uma questão de poder ou prestígio, podem ajudar os bajuladores a obtê-las:
“Do mesmo modo, não é aos homens pobres, fracos e desconhecidos que a
bajulação se liga, mas às casas opulentas, e mesmo aos reinos e impérios, dos
quais freqüentemente é a causa da ruína”(PLUTARCO, 1997: 12-3).
Com efeito, o objetivo de Plutarco é circunscrever detalhadamente a
bajulação. Segundo seu entender, é exatamente nisso que se constitui a
prudência. O intuito é perceber quem é e como age o bajulador, pois assim
procedendo, podemos nos livrar dele e nos afastar dos seus males. Entretanto,
tal atitude exige cuidado, pois não se deve afastar um amigo simplesmente
pelo fato dele nos elogiar. Nem todo elogio é procedente de um bajulador.
Cabe, portanto, analisar o que seria típico de um bajulador e o que seria típico
de um amigo.
Plutarco elenca dois tipos de bajulador: o bajulador declarado e o
bajulador astuto. Segundo ele, deve-se tomar mais cuidado com o segundo
tipo. Afinal, o primeiro tipo, por ser mais bastante evidente, dispensa maiores
cuidados:
Portanto, de qual bajulador é preciso se proteger? Daquele que não aparenta
sê-lo, que nunca surpreendemos rodeando as cozinhas ou calculando no relógio a
hora do jantar, e que se nunca permite à mesa nenhum excesso, mas que, é sóbrio e
moderado, curioso para ver tudo e tudo ouvir, procura-se antes envolver-se nos
nossos negócios, penetrar em nossos segredos mais íntimos; enfim, aquele que, longe
de interpretar seu personagem bufão ou comediante, conserva na conduta ou caráter
sério e honesto (PLUTARCO, 1997: 16).
A astúcia do bajulador está exatamente no fato dele parecer amigo. Para
Plutarco, a única maneira de se desmascarar essa farsa é analisar a
semelhança entre os gostos, pois o que constitui, no seu entender, a essência
33
da amizade é exatamente o gosto pelas mesmas coisas que dividimos com
outra pessoa: “Primeiramente, examinemos se os gostos são realmente os
mesmos que os nossos, e se são duráveis; se ele gosta e aprova sempre as
mesmas coisas; se sua conduta caminha com uniformidade para o mesmo
objetivo, como convém a uma alma honesta cuja amizade está fundada na
conformidade dos costumes e dos caráteres, pois assim é um verdadeiro
amigo”(PLUTARCO, 1997: 20).
No entender de Plutarco, o bajulador é uma espécie de imitador barato.
Alguém que não possui nenhum posicionamento próprio, mas que segue
apenas aquele de quem deseja obter algum benefício:
Ele seguiria um jovem que aprecia as Ciências e as Letras? Ei-lo de súbito
mergulhado nos livros: deixa a barba crescer, veste a capa de filósofo e, esquecendo
todo cuidado com sua pessoa, só fala em números, ângulos retos e dos triângulos de
Platão. Faria a corte a um rico desocupado e libertino, que só gosta de vinho e boa
carne? Logo, de seus sujos farrapos Ulisses se despe. Ele abandona sua capa, corta
sua barba, como uma colheita perdida, e só fala de copos e garrafas: são apenas risos
nas caminhadas, troças contra os filósofos. Assim, contam que, quando Platão veio a
Siracusa, tendo Dênis a mania de filosofar, os assoalhos do palácio foram cobertos
com a areia que servia às demonstrações dos cortesãos, todos transformados em
geômetras. Mas quando Platão perdeu as boas graças de Dênis, e o tirano, dizendo
adeus à filosofia, entregou-se novamente ao vinho, às mulheres, à frivolidade e à
libertinagem, todos os seus aduladores, como que metamorfoseados por uma outra
Circe, esqueceram completamente as Letras, retornaram a sua primeira ignorância
(PLUTARCO, 1997: 22).
A primeira maneira pela qual se pode conhecer um bajulador é simular
uma mudança de opinião. Diante de tal ato, ele, invariavelmente, muda
também a sua posição, demonstrando, dessa forma, o quanto suas opiniões
são volúveis e interesseiras. A segunda maneira pela qual se conhece o
bajulador é fácil de perceber se notarmos que o amigo não é aquele que imita
34
tudo e nem mesmo aprova tudo aquilo que fazemos. O verdadeiro amigo
aprova apenas o bem no seu amigo. O mesmo não ocorre com o bajulador:
“Semelhante aos pintores ruins, cujo talento, muito fraco para exprimir os
traços mais belos, só representam a semelhança através das rugas, cicatrizes
e outras deformidades, ele só sabe imitar as nossas desordens, nossas
superstições, nossa cólera, nossa rigidez para com nossos escravos, nosso
desconfiança para com nossos parentes e nossos próximos” (PLUTARCO,
1997: 25).
Outra habilidade do bajulador é sempre tentar destacar, invariavelmente
em público, aquele a quem deseja agradar. É parte constitutiva da essência do
bajulador o excesso de exposição. Seu comportamento é sempre duplo, isto é,
ele sempre serve a quem pode lhe satisfazer os desejos. Ele não se importa
em ceder seu lugar a um poderoso, desde que este retribua dando-lhe, em
contrapartida, aquilo que é o seu objeto de desejo. A visão do bajulador está
sempre na aparência das coisas, na sua superfície. Ele jamais consegue
enxergar as coisas na sua totalidade ou em sua essência. No seu modo de
entender, bastam os detalhes. Um bajulador jamais será franco com alguém,
salvo se isso não desagradar a pessoa a quem deseja bajular.
Para Plutarco, o bajulador está sempre no encalço dos homens devido a
própria constituição da alma humana. No entender do pensador, a alma
humana possui duas faculdades: a intelectual (ligada à razão e às virtudes) e a
irracional (ligada aos erros e paixões). O bajulador atua sobre essa segunda
faculdade humana. Ele oferece o combustível à nossa segunda faculdade: “Ele
espreita, por assim dizer, o primeiro germe de nossas paixões, a fim de atiçar o
fogo, nutrir feridas perigosas, e entregar à corrupção essas partes viciadas de
nossa alma. Você está encolerizado? ‘Castigue’, ele lhe dirá. Você deseja
35
algo?
‘Desfrute’.
Você
tem
medo?
‘Fuja’.
Você
tem
suspeitas?
‘Acredite’”(PLUTARCO, 1997: 47-8).
A astúcia do bajulador é um dos motivos que dificultam distinguí-lo do
amigo, que possui uma linguagem simples e sem disfarces. Entretanto,
segundo Plutarco, há alguns indícios que podem nos revelar a presença de um
bajulador: “Às vezes, um amigo que nos encontra passa sem nada dizer e sem
nada escutar; ele se contenta em dar e receber, através de um olhar e um
sorriso agradável, o testemunho de uma estima recíproca. O bajulador
apresenta-se
com
pressa,
persegue-nos,
estende-nos
a
mão
de
longe”(PLUTARCO, 1997: 49).
Diferentemente do amigo, que nunca promete nada e sempre tenta, se
possível for, ajudar, o bajulador promete aquilo que não é capaz de fazer. O
bajulador necessita aparecer. Ele sempre deseja opinar, já o amigo só opina
em algo quando é solicitado a fazê-lo.
O bajulador sempre teme os verdadeiros amigos, pois esses sempre
tornam clara a sua falsidade. A bajulação sedutora é algo que mexe com os
orgulhosos e vaidosos. Por isso, segundo Plutarco, aquele que tem consciência
da sua finitude e dos seus limites não cai na armadilha dos bajuladores:
“Alexandre dizia que sua inclinação ao sono e às mulheres, pelos quais se
deixava dominar, faziam-no sentir que de fato não era um deus, ainda que
assim o nomeassem”(PLUTARCO, 1997: 59-60).
Segundo Plutarco, o amigo caracteriza-se exatamente pelo uso de sua
franqueza. Entretanto, não se deve aqui confundir franqueza com indelicadeza,
pois essa nada produz de frutífero numa relação de amizade:
Mas há poucos homens que têm a coragem de ser francos com seus amigos,
que não procuram ao invés disso bajulá-los. E mais raros ainda aqueles que sabem
empregar adequadamente a franqueza, não utilizando-a com amargor e censuras.
Acontece com a franqueza mal administrada o mesmo que com certos remédios: ele
aflige, atormenta inutilmente, e realiza dolorosamente o que a bajulação consegue
com agrados. As censuras, assim como os elogios inoportunos, são sempre nocivos, e
nada nos entrega mais facilmente aos bajuladores: nós mesmos estaremos nos
colocando à sua frente, como a água que corre naturalmente pelos locais difíceis e
36
escarpados, nos vales e planícies. Portanto, é preciso que a franqueza seja temperada
pela doçura, e que os termos por ela usados eliminem o que ela possui de mordaz,
assim como temos o cuidado de adoçar um dia duro demais; do contrário,
desencorajados por censores amargos, que tratam as menores coisas como um crime,
iremos nos lançar nos braços dos bajuladores para ali procurar uma sombra doce e
agradável (PLUTARCO, 1997: 60).
Há aqui dois tipos de excesso: o excesso da bajulação e o excesso da
franqueza destruidora. É instigante perceber que, no entender de Plutarco, o
amigo verdadeiro é como um médico, ou seja, alguém sabe a exata medida de
sua atuação. A antiga medicina grega afirmava que a saúde residia exatamente
no equilíbrio entre as coisas. Logo, há em todo o texto do pensador, reflexos de
uma tradição médica que vai de Hipócrates a Sócrates na história do
pensamento grego: “Um médico compassivo preferia curar seu paciente pela
dieta e pelo sono do que com castóreo e escamônea Do mesmo modo, um
amigo complacente, um pai terno, um mestre humano, quando nos corrigir,
preferirá sempre o elogio à reprovação”(PLUTARCO, 1997: 82).
Por isso, o amigo, que sempre deve ser franco, nunca deve repreender seu
amigo em público: “Evitemos ainda corrigir os nossos amigos em público, e lembremonos de Platão que, em uma refeição, vendo Sócrates reprimir muito energicamente um
dos seus discípulos disse: ‘Não seria melhor reprimi-lo em particular?- E você mesmo,
retrucou Sócrates, não poderia ter esperado que estivéssemos a sós para mo dizê-lo?”
(PLUTARCO, 1997: 73).
A correção de um amigo nunca deve ser confundida com uma
humilhação pública. Aquele que humilha não produz nada de bom na sua
relação de amizade e, pelo contrário, acaba por destruí-la. Ao agir de tal forma,
ele coloca o seu amigo na mão dos bajuladores: “Portanto, evitemos, com o
maior
cuidado,
quando
repreendemos
nossos
amigos,
abandoná-los
imediatamente, e terminar nossa conversa com palavras humilhantes que
possam feri-los”(PLUTARCO, 1997: 85).
37
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
PLUTARCO. 1997. Como distinguir o amigo do bajulador. Tradução de Célia
Gambini, São Paulo, Scrinium, 1997
∗
Tal trabalho foi apresentado, originalmente, no I Fórum de Filosofia do Ensino Médio. Tratouse de uma atividade ligada ao grupo Filosofia na Juventude, composto por professores e
alunos da rede estadual paulista. Maiores informações sobre o grupo podem ser obtidas no site
www.filosofianajuventude.cafe.pro.br
∗
O autor é doutor em filosofia pela UNICAMP e professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie
e-mail:[email protected]
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A REDUÇÃO EXPERIENCIAL NO UNIVERSO
NEOPENTECOSTAL BRASILEIRO.
Gerson Leite de Moraes
Doutorando em Ciências da Religião – PUCSP
I – INTRODUÇÃO
O tema da redução em ciências é um desafio para aqueles que aventuram-se no
campo da pesquisa acadêmica. Para falar sobre um tema tão complexo e passível de
tantos desencontros é mister trazer à lume a diferenciação entre reducionismo e
redução. O reducionismo é uma expressão “maldita” nos meios acadêmicos; soa como
algo de somenos importância. Como diz Richard Dawkins:
“...reducionismo é uma daquelas coisas, como o pecado, que apenas são mencionadas por aqueles que são contra elas.
Uma pessoa chamar-se-á a si própria reducionista soará, em alguns círculos, um pouco como a admissão de que se
comem criancinhas”. (DAWKINS, 1988, p.32)
O reducionista é visto como alguém de visão estreita e compreensão equivocada
sobre algum tema acadêmico. Por outro lado, a redução tem ganhado um espaço cada
vez mais significativo nos círculos do pensamento científico, principalmente por parte
daqueles que levam a sério as premissas da investigação científica. Vale ressaltar ainda,
que alguns desses pesquisadores sérios também utilizam em seus escritos a expressão
“reducionismo”, contudo quando há uma leitura atenta de seus trabalhos, percebe-se que
os mesmos estão falando de redução. Pode-se citar como exemplos, o próprio Richard
Dawkins que usa a expressão “reducionismo hierárquico” . Ele diz:
“Para aqueles que gostam de designações do gênero –ismo-, a designação mais apropriada à minha abordagem ao
entendimento de como funcionam as coisas é, provavelmente, -reducionismo hierárquico-“. (ibid, p.32).
Outro exemplo é o professor Francisco J. Ayala que utiliza na obra Estudios sobre la
Filosofia de la Biologia, o termo reducionismo como sinônimo de redução. Mas afinal
de contas, o que é redução? A redução tem por finalidade explicar entidades complexas
a um número mínimo de componentes. Sendo assim pode-se dizer que a boa redução
(trabalho anterior) determina a boa explicação (trabalho posterior).
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Ayala diz que:
“As questões sobre o reducionismo aparecem em três campos distintos: o ontológico, o metodológico e o
epistemológico. Nas discussões sobre o reducionismo tem que distinguir-se estes três campos para evitar malentendidos. As perguntas que aparecem, e as respostas que se dão, podem ser distintas nos distintos campos”.
(AYALA, p.10).
No nível ontológico, a redução acontece quando uma disciplina, ou uma teoria são
definidas em termos da expressão, “isso nada mais é que”. Percebe-se que quando essa
expressão, ou algo equivalente é usado, geralmente tem-se como objetivo reduzir a
questão ao nível ontológico.
No nível metodológico, a redução aparece quando busca-se as estratégias de
investigação ou a aquisição de conhecimento de uma determinada teoria.
Quanto ao nível epistemológico, a redução científica é percebida quando há a
necessidade de reduzir um grande número de fenômenos a um pouco de hipóteses, a um
número mínimo de elementos.
Percebe-se que a redução é de fundamental importância para a prática de qualquer
ciência que se preze. As ciências da religião não fogem desse pressuposto. Há várias
formas de redução do religioso, como por exemplo: redução historicizante,
antropológica, sociológica, moral, psicológica, biológica e experiencial.
Nesse trabalho, o objetivo é analisar a redução experiencial no universo
neopentecostal brasileiro. Antes de entrar na análise propriamente dita, é necessário
analisar o aparecimento da redução experiencial no campo religioso com Friedrich
Schleiermacher. No entanto, para que o pensamento de Schleiermacher se consolidasse
foi necessário um amplo debate com o pensamento e a obra de Immanuel Kant. E é
exatamente isso que será abordado no próximo tópico.
II – O Debate entre Kant e Schleiermacher
O grande mérito de Immanuel Kant (1724-1804) está no fato de ter revolucionado o
pensamento nas áreas da ciência, da moral e da arte. Sua obra foi tão impactante que
costumou-se dizer a partir de então, que ele produziu o chamado “giro copernicano” no
campo da teoria do conhecimento, fazendo referência é claro à revolução de Copérnico,
no contexto do Renascimento, quando substituiu-se o velho geocentrismo pelo
heliocentrismo. Kant era um homem ambientado com os problemas filosóficos do seu
40
tempo. Acreditava poder chegar a um acordo com as conquistas das ciências naturais na
exploração do mundo físico. Nunca questionou a importância da visão de mundo
newtoniana e nem procurou minimizar o alcance de suas implicações em futuras
investigações sistemáticas. Kant acreditava que seria possível dar à moral o mesmo
fundamento de certeza que possuíam as leis naturais, ou científicas.
Com uma vida extremamente metódica, Kant produziu várias obras de fôlego como a
Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e a Crítica do Juízo. Vale ressaltar
que em relação às duas primeiras existem obras que lhes permitem um acesso mais
fácil, respectivamente os Prolegômenos a toda metafísica futura que se queira como
ciência e Fundamentação da metafísica dos costumes.
Kant na Crítica da Razão Pura procurou demonstrar que nem a razão nem a
experiência sensorial seriam suficientes, por si sós, para a aquisição de conhecimento.
“Analisando a faculdade de conhecer, na Crítica da Razão Pura, Kant distingue duas formas de conhecimento: o
empírico (a posteriori) e o puro (a priori). O Conhecimento Empírico (a posteriori) reduz-se aos dados fornecidos
pelas experiências sensíveis. O Conhecimento Puro (a priori) pauta-se pela Universalidade e Necessidade”. (Os
Pensadores, 1999. p.7.)
Sobre este tema Patrick Gardiner diz o seguinte:
“De acordo com Kant, é verdade que a cognição humana necessariamente se sujeita a uma estrutura básica de formas
e conceitos apriorísticos que são impostos pela mente às informações impostas pelos sentidos; ao mesmo tempo, a
aplicação legítima disso estava confinada à esfera sensorial, e qualquer tentativa de usar esse conceito para
estabelecer verdades relativas ao que se obtinha fora dessa esfera seria sempre injustificada. À luz disso, Kant traçou
um limite rígido entre as hipóteses desse tipo, colocadas pelas ciências naturais, que eram suscetíveis a confirmação
por meio de experiências e observação, e as teorias que pretendiam fazer asserções cognitivas sobre uma ordem
supra-sensível ou transcendente das coisas que estavam além do alcance de tais procedimentos. Asserções desse tipo
pertenciam à metafísica especulativa ou “dogmática”, uma “pseudociência velha e sofista”, cujas pretensões – Kant
acreditava ter mostrado definitivamente – eram vazias e sem fundamento”. (GARDINER, 2001. p.p.25-26)
Conhecimento para Kant é a síntese entre experiência e entendimento pela intuição.
A tese desenvolvida por Kant refuta diretamente a tentativa da metafísica especulativa
de justificar proposições fundamentais à religião cristã, principalmente o que tange à
existência e à natureza de Deus. Sobre isto, Urbano Zilles diz:
“Para Kant, é impossível demonstrar racionalmente a existência de Deus. Somos incapazes de juízos
científicos sobre Deus porque ele não ocorre no espaço e no tempo. Juízos científicos devem dizer uma
verdade que é, ao mesmo tempo, necessária (a priori) e nova (sintética), ou seja, “juízos sintéticos a priori
que, embora fundados na experiência sensível (a priori), contudo ampliam nosso conhecimento
(sinteticamente) e não apenas explicam (analiticamente). Segundo Kant, apenas são possíveis na
matemática e na ciência natural e não na metafísica tradicional, que é apenas metafísica das aparências.
Negando as provas da existência de Deus, Kant afirma que Deus não existe? Absolutamente não. Kant
não quer firmar uma posição de agnóstico ou ateu. A crítica de Kant não significa resignação da razão, e
sim a convicção ético-religiosa de que devem ser respeitados os limites da razão. Assim as distinções das
provas da existência de Deus não destroem a fé em Deus nem fundam o ateísmo. Kant afirma que a
razão humana tem a tendência natural de ultrapassar esses limites. Em outras palavras, afirma uma
41
necessidade metafísica arraigada no ser do próprio homem. Nesta perspectiva, a idéia de Deus
permanece como ideal, como conceito teórico necessário e limite. Mas como pode corresponder a esta
idéia puramente reguladora de Deus uma realidade? Kant responde que pela razão prática, ou seja, não o
sei pela ciência, mas pela moral. Pela razão pura conheço o que é, pela razão prática o que deve ser. Diz
que moralmente é necessário aceitar a existência de Deus. Assim o que não se pode provar pela razão
pura torna-se um postulado da razão prática. Depois de eliminar Deus da ordem do pensamento e da
realidade, postula a existência de um Deus justo que fundamente a relação entre virtude e felicidade”.
(ZILLES, 1991. p.p.51-52)
Em função disso é que Nietzsche cunhou uma expressão muito interessante para
falar da relação entre Kant e Deus. Para Nietzsche: Kant expulsa Deus pela porta da
frente (razão) para reintroduzi-lo pela porta dos fundos (moral).
Sem sombra de dúvidas o pensamento kantiano é profícuo em muitas áreas, mas o
que interessa aqui é exatamente a atenção que Kant dá para a questão religiosa. José
Gómez Caffarena chega a dizer que devido aos trabalhos de Kant nessa área, em
especial no livro, A religião nos limites da simples razão, ele é “fundador” da filosofia
da religião, se bem que o próprio Kant não utilizou tal terminologia, ficando isso a
cargo de seus discípulos (CAFFARENA, 1994). Contudo, tal afirmação parece ter
muito fundamento quando se analisa algumas obras de Kant. A obra de Kant e o legado
do seu tempo deixaram marcas indeléveis no pensamento humano, mas houve quem se
levantasse contra tudo o que esse paradigma representava. O idealismo alemão é um
bom exemplo disso.
O idealismo alemão é a primeira grande corrente que abre a época contemporânea da
filosofia. Na base do Idealismo Alemão está o Romantismo (Die Romantik), um
movimento intelectual de difícil definição. F. Schlegel, o fundador do círculo dos
românticos, escrevendo ao seu irmão teria dito que não seria possível dar-lhe uma
definição da palavra “romântico”, porque essa definição tinha “125 folhas de extensão”.
Se no século XVIII, o século das Luzes, prevaleceu o racionalismo iluminista, pode-se
dizer que no século seguinte, encontra-se em alta conta o seu oposto, o idealismo; é o
chamado, reverso da moeda, a face oposta do Aufklarung. Uma síntese rápida sobre as
diferenças dos dois paradigmas pode ser observada na tabela abaixo:
Paradigma Clássico - Iluminista
Paradigma Idealista - Romântico
Monoteísmo Cultural
Politeísmo Cultural
Transcendência
Imanência
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Ordem
Irregularidade
Intemporalidade
Historicidade
Pensamento Sinótico
Pensamento Analógico
Mecanicismo
Organicismo
Explicação
Compreensão
Universo Galileiano
Universo Biológico
Não é o objetivo deste trabalho debater as diferenças entre os dois paradigmas acima
mencionados, mas tão somente cita-los para que haja um referencial de comparação. É
nesse contexto, de florescimento do romantismo que aparece a figura de Friedrich
Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834).
Arsenio Ginzo Fernandez em seu artigo sobre Schleiermacher, expõe algumas
influências que determinaram-lhe o pensamento. Entre essas influências, uma que
merece destaque porque acompanhará Schleiermacher em todas as suas ações, é o
chamado pietismo alemão. (FERNÁNDEZ, in: Religión. Madrid, Ed. Trotta. p.p.240241). Desenvolvido por Filipe Jacob Spener (1635-1705), autor da famosa obra Pia
Desideria (Desejos Piedosos), o pietismo é um movimento de reação espiritual ao
tradicionalismo luterano.
Para entender melhor o pietismo, observe o que diz Paul Tillich:
“Que é pietismo? O termo é menos respeitado na América do que na Europa. Na Europa, as palavras “piedoso” e
“pietista” podem ser usadas normalmente pelo povo. Mas não na América. Aqui, essas palavras conotam hipocrisia e
moralismo. Muito embora, pietismo não tenha necessariamente essas conotações. Pietismo é reação do lado subjetivo
da religião contra o lado objetivo”. (TILLICH, 2004, p.279).
Esse lado subjetivo do pietismo alemão acompanhará o desenvolvimento do
pensamento de Schleiermacher. Como foi dito acima, o idealismo alemão volta-se
contra o racionalismo iluminista e através de sua escola romântica também combaterá o
lado objetivo da religião. O racionalismo iluminista havia produzido um
desencantamento do mundo, e conseqüentemente da religião, com Schleiermacher e seu
pensamento romântico esse reencantamento do mundo e do religioso serão novamente
valorizados.
“...isto é válido tratando-se do enfoque que Schleiermacher tratou de imprimir à idéia de religião, pois foi
propriamente ele que nos deixou a versão romântica da religião, uma vez que se havia operado a “quebra da razão
43
ilustrada”, a qual, como é sabido, gira em boa medida em torno do projeto de desencantamento do mundo. Frente a
isso, e como movimento compensatório, o romantismo se encarrega num processo de reencantamento do mundo, de
reelaboração de uma “nova mitologia”, em definitivo de uma nova sensibilidade para o religioso”.
(FERNANDEZ, in: Religión. Madrid, Ed. Trotta. p.245)
A religião, na visão de Schleiermacher não podia ser reduzida ao plano moral como
fez Kant. Para Schleiermacher a religião é a relação do homem com a totalidade. Por
trás dessa postura há um debate de Schleiermacher com Kant. Se Kant havia promovido
uma redução moral em matéria de religião, para Schleiermacher, a redução a ser
realizada pode ser qualificada como redução experiencial, já que para o mesmo a
essência da religião não pode ser “nem pensamento, nem moral, mas intuição e
sentimento do infinito” (Schleiermacher, 2000). Para Schleiermacher a religião é algo
excêntrico, ou seja, algo que está fora do homem e concentra-se na relação deste com a
Totalidade (Infinito, Absoluto, Uno). O homem faz religião porque tem um sentimento
de infinita dependência do Absoluto. E essa idéia central vale para todas as religiões.
Pode-se dizer que com Schleiermacher, a religião ganha novas conotações no plano
sintético, estético e dinâmico.
Schleiermacher diz que a religião “não aspira a conhecer e explicar o universo em
sua natureza, como a metafísica, nem aspira a continuar o seu desenvolvimento e
aperfeiçoá-lo através da liberdade e da vontade divina do homem, como a Moral”. A sua
essência não está no pensamento nem na ação, mas sim na intuição e no sentimento.
Giovanni Reale comentando a obra e a vida de Schleiermacher faz a seguinte
observação sobre a essência da religião:
“Ela aspira a intuir o Universo; quer ficar contemplando-o piedosamente em suas manifestações e ações originais;
quer fazer-se penetrar e preencher por suas influências imediatas, com passividade infantil. Assim ela se opõe a
ambas em tudo o que constitui a sua essência e em tudo o que caracteriza os seus efeitos. Em todo o Universo, elas
não vêem nada, mais além do que o homem no centro de toda relação, como condição de todo ser e causa de todo o
devir, esta, porém, tende a ver finitas, o infinito: a imagem, a marca, a expressão do Infinito”. (REALE, 1991, p.32)
Portanto, em matéria de religião, no que concerne à redução experiencial, a partir de
Schleiermacher, pode-se observar que esta sustenta-se sobre dois pilares fundamentais,
a intuição e o sentimento. E estes dois elementos fazem parte da prática neopentecostal
brasileira.
44
III – A Redução experiencial no neopentecostalismo brasileiro
Antes de falar em neopentecostalismo é necessário enquadrá-lo num movimento
mais amplo, a saber, o pentecostalismo. Quando se analisa a dinâmica históricoinstitucional do pentecostalismo brasileiro, levando-se em conta as mudanças ocorridas
na mensagem religiosa, bem como o processo de aculturação das teologias importadas e
as adaptações que estas teologias sofreram em solo brasileiro, pode-se chegar às
tipologias mais aceitas entre os estudiosos do fenômeno supra-citado. As vertentes do
pentecostalismo brasileiro são classificadas em ondas pela maioria dos estudiosos
brasileiros, e essas ondas podem ser assim descritas: pentecostalismo clássico,
deuteropentecostalismo e o neopentecostalismo. (MARIANO, 1999).
A metáfora marinha das ondas surgiu nos EUA com David Martin para designar a
história mundial do protestantismo. Ele dizia que o protestantismo podia ser estudado
em três grandes ondas: a puritana, a metodista e a pentecostal.
No Brasil, o primeiro a valer-se da metáfora das ondas foi Paul Freston. (ibid, p.28).
Quando se começa a estudar o pentecostalismo brasileiro há a necessidade de uma
redução epistemológica e por mais que se tente é difícil fugir da metáfora das ondas.
Ricardo Mariano citando Paul Freston diz:
“O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a história de três ondas de implantação de igrejas. A
primeira onda é a década de 1910, com a chegada da Congregação Cristã (1910) e da Assembléia de Deus (1911) (...)
A segunda onda é dos anos 50 e início de 60, na qual o campo pentecostal se fragmenta, a relação com a sociedade se
dinamiza e três grandes grupos (em meio a dezenas de menores) surgem: Quadrangular (1951), Brasil para Cristo
(1955) e Deus é Amor (1962). O Contexto dessa pulverização é paulista. A terceira onda começa no final dos anos 70
e ganha força nos anos 80. Suas principais representantes são a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) e a Igreja
Internacional da Graça (1980) (...) O contexto é fundamentalmente carioca”. (ibid. p.p.28-29).
A terceira onda em especial, é a chamada onda neopentecostal. O que caracteriza
essa vertente do pentecostalismo brasileiro é a Teologia da Prosperidade. Importada
dos EUA; lá essa corrente teológica é chamada de diversas formas, entre as quais:
Health and Wealth Gospel, Faith Movement, Faith Prosperity Doctrines, Positive
Confession.
Esse movimento que apregoa cura, prosperidade e poder da fé surgiu nos Estados
Unidos na década de 40 e somente nos anos 70 ganhou forte impulso nos arraias
evangélicos norte-americanos. O Dictionary Of Pentecostal And Charismatic
Movements, o define da seguinte maneira:
45
“Confissão positiva é um título alternativo para a teologia da fórmula da fé ou da doutrina da prosperidade
promulgada por vários televangelistas contemporâneos, sob a liderança e inspiração de Essek William Kenyon. A
expressão “confissão positiva” pode ser legitimamente interpretada de várias maneiras. O mais significativo de tudo é
que a expressão “confissão positiva” se refere literalmente a trazer à existência o que declaramos com nossa boca,
uma vez que a fé é uma confissão”. “Dictionary Of Pentecostal And Charismatic Movements”. In: Supercrentes: O
Evangelho Segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Profetas da Prosperidade. São Paulo, Mundo Cristão,
1993, p.06.
Esse trazer “à existência o que se declara com a boca” é um forte indício da redução
experiencial nos grupos neopentecostais. Na redução experiencial, os dois pilares que
sustentam todo seu discurso são: intuição e sentimento. Ora, esses elementos são
facilmente percebidos no universo neopentecostal.
Nas igrejas neopentecostais, o espaço sagrado é o local da intuição, do encontro
direto entre os fiéis e a divindade. Nicola Abbagnano oferece uma definição muito
interessante de intuição em termos filosóficos:
“Intuição é a relação direta com um objeto qualquer; por isso, implica a presença efetiva do objeto”. “...nesse sentido,
a intuição é uma forma de conhecimento superior e privilegiado, pois para ela, assim como para a visão sensível em
que se molda, o objeto está imediatamente presente”. (ABBAGNANO, 2003, p.581).
É por isso que quem assiste a um programa televisivo ou ouve uma programação
radiofônica neopentecostal, o tempo todo é convidado para ir a um determinado
“templo” para participar daquilo que eles definem como “correntes” (da libertação de
demônios, da cura física, da luta contra o desemprego, do sal grosso, etc). Participando
destas correntes, o fiel pode intuir a divindade, ou seja, ter uma relação direta com ela,
ter uma forma de conhecimento superior e privilegiado de tudo aquilo que está se
passando ali.
Ao intuir; ter acesso direto e imediato à divindade é necessário, no momento
seguinte, sentir. O sentimento delineia o caráter subjetivo da religião; ele tira a
objetividade em matéria religiosa, pois que acentua a experiência individual. É o
sentimento de conquista daquilo que se foi buscar (bênçãos, cura, emprego, etc). É
mister dar o “passo de fé” (expressão muito usada nos meios neopentecostais), e só
pode fazer isso quem sentiu que a divindade já “amarrou o inimigo”. Numa luta titânica
entre bem e mal, sentir a vitória é o passo que precede a confissão positiva. Sentir
através da fé, confessando com a boca (confissão positiva) que a vitória já foi
conseguida. A confissão (enquanto palavra pronunciada) funciona tanto para o “bem”,
quanto para o “mal”. A história de uma mulher a seguir, contada pelo Bispo Edir
Macedo, exemplifica isso:
46
“Ela sentia dores atrozes em toda a extensão da coluna. Mal podia andar, sentar e até mesmo deitar-se (...) Foi quando
ela compareceu a uma Igreja Universal, recebeu a oração e poderosa e instantaneamente foram banidas todas as suas
dores (...) Um dia, resolveu voltar ao seu médico e procurar uma “explicação” para sua cura milagrosa. Quando o
médico de sua confiança lhe disse que não acreditava na cura, pois no seu caso era impossível, imediatamente, logo
após a “palavra do médico”, começou a sentir pequenas pontadas que foram aumentando até o ponto de sentir tudo de
novo, e até mais forte. Ora, por que isto? Qual a razão? O fato é que, assim como pela Palavra de Deus ela recebeu a
fé para ser curada, também pela palavra do diabo, usando seu médico, ela recebeu dúvida para voltar a sofrer como
antes. É assim que o diabo trabalha”. (MACEDO, 1989, p.p.19-20).
O relato acima enquadra-se na Definição 55 da obra de Rodney Stark, A Theory of
Religion, onde se lê:
“Bem e mal se referem às intenções dos deuses nas suas trocas com os humanos. O bem consiste pela virtude de
permitir que os humanos se beneficiem com as trocas. O mal consiste na intenção de infligir trocas coercitivas ou
decepções aos humanos, levando a perdas por parte deles”. (STARK, “Trazendo a Teoria de volta”, in: REVER –
Revista de Estudos da Religião, nº4/2004/ p.p.1-26 www.pucsp.br/rever/rv4 2004/p stark.pdf..
O sentimento é fundamental para entender-se o fenômeno neopentecostal brasileiro,
bem como a intuição. Por isso é que se pode dizer que há uma redução experiencial que
permeia todo universo neopentecostalismo brasileiro.
IV – Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. (2003). Dicionário de Filosofia, São Paulo, Martins Fontes.
AYALA, Francisco J. e DOBZHANSKY, Theodosius, orgs. Estudios sobre la Filosofia de la
Biología. Barcelona, Ariel.
CAFFARENA, José Gómez., ed. (1993). Religión. Madrid, Ed. Trotta.
Coleção: (1999) Os Pensadores, São Paulo, Ed. Nova Cultural.
DAWKINS, R. (1988). O relojoeiro cego. Lisboa, Edições 70.
GARDINER, Patrick. (2001). Kierkegaard. São Paulo, Loyola.
MARIANO, Ricardo. (1999). Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo do
Brasil.
São Paulo, Loyola.
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. (1991). História da Filosofia Vol III. São
Paulo, Paulus.
ROMEIRO, Paulo.(1993). Supercrentes: O Evangelho Segundo Kenneth Hagin,
Valnice
Milhomens e os Profetas da Prosperidade. São Paulo, Mundo Cristão.
SCHLEIERMACHER, Friedrich. D.F. (2000). Sobre a Religião, São Paulo, Novo Século.
47
STARK, Rodney. Trazendo a Teoria de volta, in: REVER – Revista de Estudos da Religião,
nº4/2004/ p.p.1-26 www.pucsp.br/rever/rv4 2004/p stark.pdf.
TILLICH, Paul. (2004). História do Pensamento Cristão. São Paulo, ASTE.
ZILLES, Urbano.(1991). Filosofia da Religião. São Paulo, Paulus.
48
A ESCOLHA: UM ESTUDO ÉTICO NA FILOSOFIA
DE KIERKEGAARD.
Prof. Mestrando Cristian R. de Oliveira
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
TEXTO
Introdução
Explanar sobre o conceito de escolha na Filosofia de Sören Kierkegaard
requer uma sensibilidade particular; exige uma percepção quanto à
problemática da liberdade, da relação do homem comprometido com a
existência, ainda, exigem um domínio de temas predecessores tais como o
desejo, o possível, a existência de esfera estética.
Antes, porém, pensemos acerca da verdade na existência segundo
Kierkegaard. Há verdades que são tão essenciais que a existência é
incompreensível sem elas; verdades sem as quais a vida não tem sentido;
há verdades que são como ventos a movimentar a barca da vida. Essas
verdades fornecem o sentido para a subjetividade, para a interioridade, para
o sujeito concreto que vive no presente e cuja alma é provocada pelas
escolhas diante das quais a existência o coloca. Essa existência coloca o
ser humano diante do possível, coloca-o em relação com o mundo, consigo
mesmo e com Deus; é nessa tríade de relações que eclodem sentimentos
de paixão, angústia, desespero e confiança. Assim, verificamos um teor
profundamente prático e singular ao qual só o conhecimento não se faz
suficiente, quiçá quando morre a pessoa amada e o alivio da dor não se
pazigua pelo ato de raciocinar.
49
Nas relações com o mundo, consigo mesmo e com Deus o indivíduo
depara-se com esferas fundamentais da existência, três formas de existir
nomeados por estádio estético, ético e religioso. Nos ateremos no estádio
ético, antes, porém precisamos buscar raízes no estádio estético, para o
bom entendimento da “escolha”.
Desenvolvimento
A escolha é característica primordial da vida ética, mas, antes de
adentrarmos no âmago do sujeito que vive nessa esfera da vida, nos
demoraremos na vida de prazer e sedução, ou seja, a vida estética. O
estádio da vida estético é protagonizado pelo sujeito denominado esteta; o
sedutor, o indivíduo que se relaciona com o mundo de forma contraditória.
Chamaremos a esse homem que existi em conformidade com o estádio
estético pela palavra composta: esteta – sedutor.
O esplendor e o ápice do esteta – sedutor é só se ligar ao que é belo: um
olhar travesso, um gesto comovente, um perfume atraente, um riso
fabuloso... O esteta – sedutor evita escolher: para ele é bem mais
interessante observar e permanecer flutuante entre todas as possibilidades
que a existência oferta. Tal como os versos de Neruda:
Sou o tigre.
Entre as folhas te espreito,
Largas como lingotes
De mineral molhado.
O rio branco cresce
Sob a neblina. Chegas.
Tu, desnuda, mergulhas.
Espero.
De repente num salto
De fogo, sangue, dentes,
De um só golpe derrubo... (Neruda: 2002, 30.)
50
Esse indivíduo, guiado por desejos, supõe sentir o domínio sobre o mundo
inteiro; ele crê que o fato de não escolher o coloca em um existir inigualável.
Pairar no possível, tornar tudo novo, o hábito não encontra guarita neste ser
de esteticismo e sedução; nem trabalho, nem família! Para o esteta –
sedutor não há compromisso com a vida. Esse sujeito de prazer constrói a
existência segundo sua vontade: sua vida é como um livro de ares
românticos que só a ele interessa.
Ele constrói e desmancha mundos segundo seus caprichos; alimenta
sonhos para logo depois liquida-los; ergue e faz cair os corações mais
inocentes, num movimento guiado pelo seu louco desejo de prazer. As
referências usadas por Kierkegaard para clarificar a figura do esteta –
sedutor é, em primeiro lugar, Don Juan. O sedutor espanhol de conquistas
várias, um pleno estrategista da arte da conquista, o ser que celebra a
infeliz espiritualização da carne. Nessa esfera da vida vive-se apenas para o
instante; no entanto o prazer é breve, o pesar longo, logo o esteta – sedutor
vê-se a procurar prazeres incessantemente.
Nessa exaltação o estádio estético faz do prazer a meta última da vida.
Em suma, a forma de vida estética nessa desvairada busca de prazer
carnal, leva ao vazio, ao tédio... Os prazeres repetem-se, são breves
demais! Simbolicamente, a beleza juvenil que os prazeres exalam dura o
tempo que dura o nascer do sol, uma manhã. O esteta – sedutor deve
contentar-se com essa manhã curta ou partir em busca de novas manhãs,
buscar sempre e incessantemente. Essa busca sem fim do prazer e da
satisfação é o objetivo da existência estética. Para o esteta – sedutor as
pessoas não são uma finalidade de vida, mas apenas uma oportunidade de
distração.
Mas, quem nada procura na vida além dessa satisfação egoísta, logo
sofre com a brevidade das horas diante do infinito dos desejos. E ei-lo
precipitado em angústia. Entretanto, o esteta – sedutor pode usar essa
angústia como guia; perceber que esse sufocamento acompanha uma
maneira determinada de ser no mundo, e que uma outra relação com o
mundo é concebível sem se sentir angústia: uma relação em que o indivíduo
51
não se coloca como o predador, mas como o construtor, em que não se
trata mais de se satisfazer, mas de inscrever os seus mais íntimos sonhos
no mundo exterior para nele realizar-se.
Kierkegaard compreende que a vida, ao contrário do que o esteta – sedutor
pretende, obriga mais cedo ou mais tarde à escolha; a existência nem sempre
permite manter abertas todas as possibilidades. A escolha: o que distingue o
estético do ético. Escolher aqui se entende ser a forma de encarar a escolha
como comprometimento. Escolhe-se a si mesmo e não criar-se a si mesmo.
A vida de desejos e prazeres imediatos é um fracasso, onde o sujeito
naufraga no recife do tempo. Na vida ética, entretanto, o existir é organizado. O
salto do estádio estético para o ético nasce da escolha (da escolha de se querer
realmente ser si mesmo). A maior missão do indivíduo do estádio ético é dar à
luz a si mesmo, é tonar-se aquilo que ele é em embrião. Enquanto na vida
estética prevalece só o instante, na vida ética há continuidade, o indivíduo ético
vive na infinidade do tempo e não na finitude do instante.
Enquanto o esteta – sedutor é imediatamente o que é, o sujeito ético
tornar-se o que se torna. O caminho do sujeito do estádio ético é o dever e a
fidelidade a si mesmo. O ético renuncia ao instante, ele prefere o tempo
duradouro, ele é comprometido, tal qual a figura do esposo no casamento.
Ele é aquele que escolhe, que decide, que se compromete na existência; a
característica do sujeito ético não é escolher isto ou aquilo, mas escolher o
fato de escolher, ou seja, comprometer-se concretamente perante a vida.
No ético o próximo é importantíssimo, é levado em conta. O ético realiza-se,
coloca ordem e continuidade na sua vida: vive, não no instante, mas na
duração do tempo. Se na vida estética Kierkegaard recorreu a Don Juan; na
esfera ética ele usa, como já foi citada, a figura do esposo. O casamento
encontra o seu lugar nessa moral do dever concreto; é a expressão ética
por excelência, pois, é sustentado pela vontade e, sobretudo é a escolha
que abrange todos os aspectos da vida humana. No ético – esposo não há
prazer, mas há fixação de limites: as normas morais.
Na vida ética, o homem escolhe a si, escolhe realizar os seus possíveis.
O ético – esposo é aquele ser que livremente quer e consegue conciliar sua
52
vontade com a vida social sob a forma do dever. O ético – esposo se casa,
mantém relações com a esposa, compromete-se com o estado, exerce uma
profissão, mas seus atos são a expressão maior da sua liberdade, pois,
foram livremente aceitos como a expressão da personalidade no que ela
tem de eterno.
O ético – esposo não é escravo do dever, pois, com o tempo as obrigações
tornar-se-iam hábito, e o hábito é a ausência da personalidade. O dever cumprido
apenas como uma tarefa “mecânica” é rechaçado; o ético não faz o bem por hábito,
não é justo por hábito; ele quer fazer o bem, ele escolheu ser justo, é este o valor
eterno da personalidade. Pela escolha o homem, livre do instante, interpreta sua
vida na duração do tempo; compreende que tem uma história pessoal, singular,
única. Ele assume o compromisso e clama ao teu próximo: eu escolho cuidar;
cuidar do seu céu e do seu mar, cuidar do teu lar e do teu jantar, cuidar dos vossos
filhos e de ti.
53
Referências bibliográficas
•
KIERKEGAARD, Soeren. Johannes Climacus ou é preciso duvidar de
tudo. Prefácio e notas de Jacques Lafarge. Tradução de Silvia Saviano
Sampaio. Revisão de Álvaro Valls e Else Hagelund. São Paulo, Martins
Fontes, 2003.
•
____________.
Kierkegaard.
Textos
selecionados
por
Ernani
Reichmann. Editora Universidade Federal do Paraná, s/d.
•
____________. Temor e Tremor/ O Desespero Humano/ Diário de
um Sedutor. Tradução: Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais
Monteiro. São Paulo, Nova Cultural, 1988(Os Pensadores).
•
MALANTSCHUCK, Gregor. Introdução à obra de Kierkegaard,
Distribuidora Nacional de Livros, Curitiba, 1961.
•
MARTINS, Geraldo Majela. A estética do sedutor – uma introdução a
Kierkegaard, Maza Edições, Belo Horizonte, 2000.
•
MESNARD, Pierre. Kierkegaard, tradução de Rosa Carreira, Edições
70, Lisboa, 1991.
54
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tica e Filosofia