A SUPERMODERNIDADE:
Cultura do Poder e do Consumismo
Georgina Amazonas Mandarino* (CEPADIC)
Resumo: O objetivo deste trabalho é examinar como a mass media contribui para a
construção identitária do sujeito. O corpus está nos símbolos da modernidade divulgados
pela publicidade em geral, abrindo novas perspectivas comportamentais perante o
mundo. A metodologia adotada é a qualitativa. Fairclough (2001) assinala a contribuição
das práticas discursivas em processos de transformação para mudanças na identidade
social. As posições teóricas de Stuart Hall (2004) e Marc Augé (2004) conduzem a
uma análise discursiva presente nos símbolos que comprovam identidade e autorizam
deslocamentos impessoais. Os resultados alcançados a partir do enfoque em alguns
símbolos da supermodernidade permitem a identificação de territórios em constante
transformação e a multiplicidade de identidades sociais e culturais.
Palavras-chave: Identidade; Supermodernidade; Discurso; Não-Lugar; Globalização.
Abstract: The objective of this work is to examine how mass media contributes to the
development of the individual identity. The corpus is in the modern symbols spread by
publicity in general, opening new behavioral perspectives to the world. The methodology
used is qualitative. Fairclough (2001) points out the contribution of the discursive practices
in transformation process for changes in the social identity. Stuart Hall (2004) and Marc
Auge´s (2004) theoretical positions lead to a discursive analysis that is present in the
symbols that prove identity and allow impersonal dislocation. The results reached from
the focus on some symbols of supermodernity permit the identification of territories that
are in constant transformation and the multiplicity of social and cultural identities.
Keywords: Identity; Supermodernity; Discourse; Non-Places; Globalization.
* Especialista em Língua Portuguesa (UniCEUB). Pesquisadora em Análise de Discurso Crítica e Membro
do Centro de Pesquisas em Análise Crítica de Discurso (CEPADIC) e da Asociación Latinoamericana de Estudios del Discurso (ALED) e da Associação Brasileira de Lingüística (ABRALIN). E-mail:
[email protected].
Parte II – Discurso e Identidade • A Supermodernidade: Cultura do Poder e do Consumismo
Introdução
A
naliso por meio deste trabalho as construções identitárias e a pretensa interação
social com base nas práticas sociais determinadas pelos símbolos da modernidade presentes nos estudos de Hall (2004) e nas considerações de Marc Augé
(2004) que chama de “não-lugar” aquele “espaço público de rápida circulação no
qual há relação contratual representada por símbolos da supermodernidade”, ou
aquele espaço sem raízes, em que interpretamos diferentes sujeitos, sem origem,
sem tradição.
Augé e Hall pregam a ocorrência de ruptura dos limites dos territórios, segundo
as mudanças sociais e os avanços tecnológicos diversos, fazendo com que outros surjam, moldados por novas práticas, e se construam novas identidades nacionais.
Nesse mundo em constante transformação, os limites territoriais expandem-se,
fazendo com que surja um grande território comumente denominado de aldeia global, segundo a chamada era dos media. Nessas aldeias globais, novas identidades
são construídas e novas práticas levam o indivíduo a abandonar sua história, suas
tradições, seus lugares.
Que símbolos da modernidade estão presentes no dia-a-dia da humanidade? Como
eles interferem nas relações sociais e que fenômenos sociais são desencadeados
pela tecnologização do indivíduo? Que discursos são produzidos na globalização?
Essas são algumas questões discutidas e que pretendo levar à reflexão.
Cartões de crédito, cheques, e-tickets, Internet, máquinas de acesso a estacionamentos, telefones celulares, e tantos outros símbolos da supermodernidade foram
instalados em nossas vidas e, conseqüentemente, influenciam nas identidades
sociais, criando o “eu múltiplo”.
Cultura e Consumismo
Segundo Hall (2004), identidade é “celebração móvel formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Isso significa que agimos de acordo
com o mundo que nos cerca, alterando nossa identidade, pois esta não é fixa, não é
estável, não é unificada e nem permanente. A identidade está sempre em construção
e mutação; é criação social e cultural. As práticas que as transformam são gradativamente absorvidas e, muitas vezes, não temos consciência dessa absorção.
Partindo da suposição de que “as identidades modernas estão sendo descentradas,
isto é, deslocadas ou fragmentadas” (Hall, 2004), tem sido identificada no sujeito
pós-moderno uma “crise de identidade” que abre campo para interpretações diversas.
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Ocorre deslocamento ou descentralização do sujeito do seu lugar no mundo social
e cultural e de si mesmo, com significativa alteração nos discursos ou uma nova
ordem dos discursos de caráter global, identificação feita por Fairclough (1997),
que acredita que a globalização econômica, política e cultural é responsável pelas
mudanças sociais contemporâneas.
O ritmo e o alcance das mudanças por que passam as sociedades redimensionam as idéias de tempo e de espaço, provocam rupturas e fragmentações no que
diz respeito aos símbolos e às tradições; criam pluralidade de centros de poder
e geram “desalojamento do sistema social”, ou seja, provocam descentralização
e descontinuidade no interior do sujeito e do próprio entendimento do que seja
identidade nacional.
Os fluxos culturais e o consumismo global, mediados pelas imagens da mídia,
que fazem apelo a diferentes partes de nós, criam possibilidades de “identidades
partilhadas” e de “supermercado cultural”: consumidores para os mesmos bens,
clientes para os mesmos serviços, público para as mesmas mensagens e imagens.
Com isso, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de “língua franca” internacional, fazendo
com que as identidades tornem-se cada vez mais desvinculadas, desalojadas de
tempos, lugares, histórias e tradições específicas.
Há alguns anos, os limites impostos ao homem significavam reconhecimento
do outro. Havia preocupação com cada membro da sociedade. O mundo, que se
limitava ao quintal de nossa casa e ao do vizinho, ampliou-se com as viagens
marítimas, cruzadas e inúmeras ações do homem, desejoso e curioso de conhecer
e se apoderar de mais espaços e bens.
Com a industrialização, com o comércio em expansão e finalmente com a globalização, o mundo ficou menor. Com a evolução da tecnologia, o homem pode, em
poucas horas, estar do outro lado do mundo, em terras nunca antes imaginadas,
e já não tão desconhecidas.
Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes.
As dimensões espaciais da vida social eram dominadas pela presença. “O lugar
era específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado, era o ponto de práticas
sociais específicas que moldavam e formavam a identidade cultural” (Giddens,
1990). Na modernidade, segundo Harvey (apud Hall, 2004), ocorre “a destruição
do espaço através do tempo”, em que os locais onde temos raízes permanecem
fixos, mas são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais e bastante
distantes deles. É a “compressão espaço-tempo”, quer dizer, o mundo encolheu
(aldeia global) e horizontes temporais se encurtaram.
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A modernidade separa o espaço do lugar, reforçando relações entre outros
“ausentes”, distantes, sem interação face a face. O partilhar, o desfrutar junto
com alguém, desaparece na Internet, pois há a fuga dos encontros pessoais e das
identidades (por que conhecer alguém que pode não ser aquele que imaginamos
e que pode não ter a identidade apresentada a nós?).
Atento a isso, Giddens (1990) diz que “nas sociedades tradicionais, o passado é venerado, e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a
experiência de gerações”. Hoje, com os avanços tecnológicos, as práticas sociais
são reformadas e surgem necessidades diferentes de acordo com as informações
recebidas, alterando, assim, o caráter dessas mesmas práticas. Os símbolos se
modificam. O idoso de hoje, ao utilizar a Internet, interage com a máquina na
resolução de problemas comuns do dia-a-dia, na diversão e entretenimento e no
relacionamento que, agora, passa a ser apenas virtual.
Pesquisa realizada pela revista Veja digital em 2000 mostra que usuários
acima de 50 anos estão entre os mais ativos na Internet. 100% acessam a rede
diariamente, 51% já fizeram compras pela rede e são os que têm equipamentos
melhores e mais atualizados. Para eles, a Internet é fonte de lazer e facilidades.
Assim, foram-se os momentos de integração social, presenciais, tão importantes
para todos e principalmente para o idoso.
Hall, ainda na mesma obra, atribui a desvinculação ou desalojamento das
identidades do tempo, lugares, histórias e tradições, à mediação da vida social
pelo mercado global de estilos, lugares, viagens internacionais, pela mídia e pelos
sistemas de comunicação.
Reportagem da revista Superinteressante (2002) acerca do desenvolvimento
científico experimentado pela humanidade, afirma que:
Nunca o conhecimento humano foi tão veloz em desbravar não só o mundo
– mas todo o Universo. Neste ritmo em que muralhas da ciência e da tecnologia são derrubadas todos os dias, estão a caminho inovações no estilo de vida
das pessoas comuns que lembram as aventuras de heróis em quadrinhos... As
descobertas do mundo da computação, dos eletrônicos, e da comunicação farão
a humanidade interagir ao máximo seus desejos com a tecnologia.
Como chegam ao homem essas descobertas? É quando entram a mídia e a propaganda, levando o homem a “interagir seus desejos com a tecnologia”. Para nós
ocorre uma suposta interação, pois é sabido que é a mídia quem cria as necessidades, impulsiona-nos os desejos.
As sociedades pós-modernas são o mundo do simulacro no qual imperam as
sensações: sensação de beleza, de prazer, de poder. Somos direcionados para o
que desejam que sintamos, e não por nossas próprias emoções. A mídia nos faz
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desejar sempre algo que foi determinado por terceiros. Ofertas de serviços e produtos e os não-lugares (Augé, 2004) como os shopping-centers, aliam prazer e
consumo, e são apresentados à exaustão. A disposição das mesas e cadeiras nas
áreas de refeição visa à utilização rápida e individual, sem interação dos usuários.
São cadeiras desconfortáveis, fixas (não podem ser alteradas para juntar mais as
pessoas) – você deve consumir imediatamente e dar lugar a outros.
A globalização, como fator preponderante no deslocamento das identidades
culturais nacionais, está relacionada, principalmente, à forma como a vida social
está ordenada ao longo do tempo e do espaço, isto é, de forma que o encurtamento
das distâncias e os acontecimentos ocorridos em um determinado lugar têm efeito
imediato sobre pessoas que estão distantes umas das outras.
Na cidade de Nova Mutum, interior do Mato Grosso, com densidade demográfica de 8.000 habitantes, muitas das transações financeiras são feitas via Internet,
inclusive no mercado internacional. Em Floriano, Piauí, apenas um provedor de
acesso à Internet tem oitenta assinantes e atende também a cidades vizinhas. Em
Oriximiná, a quatro dias e meio de barco a partir de Belém, com transporte feito
exclusivamente pela rede fluvial, foi criado um site para divulgação de informações
locais. Segundo um de seus moradores, “para a nossa pequena cidade, a Internet
abriu uma grande janela de onde podemos ver o mundo” (Veja, agosto de 2000).
Com o advento da Internet, em qualquer parte do mundo, o indivíduo tem
conhecimento do que se passa em outros lugares. É afetado, pois, pela cultura
consumista, e levado à homogeneização cultural. No interior do Brasil, encontramos jovens vestidos a exemplo das grandes cidades: tênis, calças jeans, blusas,
mochilas e bonés de grandes marcas, pois o consumo foi acirrado pela publicidade
na televisão ou mesmo facilitado pelas compras online, via Internet.
A rotina do indivíduo, hoje, é toda pautada pela máquina; utensílios domésticos
facilitam o trabalho, sem que tenha de depender de alguém. Pode sair de casa e
retornar do supermercado ou de uma grande viagem, interagindo o mínimo possível
com o outro. A máquina facilita sua vida: pelo computador ele pode adquirir bens,
pagar contas, estar ciente do que se passa ao redor do mundo, pode viajar retirar
as passagens (e-ticket) e fazer check-in em sua própria casa. Os estacionamentos
dispõem de equipamentos para ingresso, e o pagar, feito a pessoas que mantêm
rotina sem qualquer interação social ou emocional, configura-se como se feito
a uma máquina. Os saques bancários realizados nos equipamentos eletrônicos
demandam procedimentos como se fôssemos robôs: Insira o cartão/Aguarde/Bom
dia, fulano (a)/Você hoje só pode sacar R$.../Marque a opção desejada/Digite sua
senha/cartão mal introduzido/tente novamente/ Retire o seu cartão/Aguarde até
a finalização da operação.
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Para o comércio em geral, a identidade do consumidor está diretamente ligada
ao tipo de cartão que utiliza e, para as companhias aéreas, o cliente é identificado
como cliente ouro, prata, diamante – e nada mais que isso. Para manter-se no
patamar a que é alçado, conforme o número de viagens que faz, precisa manter
o padrão. Caso contrário é rebaixado e deixa de ter um cartão de maior status.
É, portanto, a cultura de poder: poder de conhecimento sobre os indivíduos
segundo as informações captadas e armazenadas pela máquina. A exemplo do
Panóptico descrito por Michael Foucault (2005), os poderes controladores mantém a disciplina por meio da ameaça de punição. A metáfora da vigilância aqui
se aplica, pois está presente em todas as áreas da nossa vida: nas informações
do cartão de crédito e seu uso, nos arquivos das companhias telefônicas, das
companhias aéreas, etc.
Mark Poster (2000), em ensaio sobre os bancos de dados eletrônicos, diz,
porém, que o armazenamento de informações, a cada ação do indivíduo, tem
grande diferença do Panóptico de Foulcaut, pois somos “voluntários da vigilância”,
buscando adquirir mais poder e, principalmente, a diferenciação dos demais.
Assim nossos discursos com a máquina são apenas de informação-ação ou
comando-ação: as máquinas de acesso ditam ordens e instruções; as estradas
comandam nossos procedimentos por meio de símbolos – é a semiose comandando os procedimentos (Reduza a velocidade, Curva perigosa à frente, Pista
escorregadia quando molhada...). Nossos atos deixam de nos oferecer prazer:
são racionais, práticos.
O computador leva o usuário a novos procedimentos, novas ações, comportamentos e, de acordo com a nova linguagem que se instaura com a sua utilização,
temos também novos discursos. Mais, acertadamente, o discurso do simulacro.
Nessa cultura do simulacro, a construção das identidades obedece a contextos
específicos dessa mesma cultura. No mundo mediado por computador, podemos
ter diferentes rotinas, diferentes amigos, diferentes nomes. O “eu” é múltiplo,
constituído na interação com a máquina e transformado pela linguagem dos diferentes “não-lugares” por onde passa cada uma de suas identidades.
Os ciberespaços, sem fronteiras, permitem que seja dada vazão às fantasias:
podemos falar, trocar idéias, assumir papéis e personalidades, fruto da criação
individual. Esses “não-lugares” constituem, hoje, parte da rotina da vida de cada
um. Neles, qualquer um participa de comunidades nas quais se encontram pessoas
de todo o mundo, cada uma deixando fluir toda a sua imaginação e criatividade
– é sua catarse pessoal e/ou social.
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O Discurso e suas Relações de Sentido e de Poder
As ideologias são a base das representações mentais utilizadas e modificadas
socialmente e são usadas para levar a cabo as práticas sociais cotidianas. São sistemas de crenças sociais estudados sob um marco cognitivo e abrangem experiências
pessoais, conhecimentos e opiniões de membros de grupos específicos, integrando
o cognitivo e o social.
Fairclough (2001) vê as ideologias como construções de realidades em variadas
formas de práticas discursivas que contribuem para as relações de dominação.
Para ele, as ideologias assumem status de “senso comum” quando naturalizadas.
Naturalizou-se o uso do computador, da Internet, do celular, dos cartões de crédito
e tantos outros símbolos da modernidade. A ideologia está presente no uso e na
produção de cada um deles, seja pelo poder de persuasão que leva à sua aquisição e ao seu uso, ou seja pelo controle exercido sobre o usuário nas informações
armazenadas nos centros de poder das empresas em geral.
Por adquirirmos o objeto novo cuja necessidade nos foi imposta, estamos
sujeitos à máquina estatal que pode gravar nossas conversas, ler nossas mensagens, capturar nossas imagens. As operadoras têm todo nosso arquivo. Sabem
quem somos, quando e aonde vamos, com quem falamos. E nos oferecem cada
vez mais poder e adquirem também mais poder sobre nós.
A produção do discurso vale-se cada vez mais de diferentes modos de representação do texto, que sempre é multimodal, e, segundo Kress (2000), deve
ser lido em conjunção com todos os outros modos semióticos do discurso. Cada
significado do discurso é representado de maneira diferente pelo produtor do
discurso, sendo que a ideologia é amplamente difundida pela mídia sem que
tenhamos a mínima percepção.
Para Jean Baudrillard (2002), os objetos não são apenas elementos de satisfação das necessidades primárias, mas signos que se adaptam a uma ordem ou
sistema, sendo a funcionalidade a capacidade de se integrar em um conjunto. É
o indivíduo quem vai determinar a multiplicidade de funções e as necessidades
por meio de novos objetos.
Atenta a essas necessidades, a propaganda evoluiu em todos os aspectos:
psicológico, cultural e político. Ela fala sobre o mundo dos consumidores, sobre
todos os elementos presentes em sua cultura: desejos são criados e espelham o
comportamento da sociedade e criam este mesmo comportamento. Ela referencia
o indivíduo para aspirações que nem ele mesmo sabia existirem.
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A linguagem da propaganda, tipo de discurso de persuasão, é centrada no outro. Entretanto, é importante não nos esquecermos da tipologia para discurso de
Bronckart (apud Brandão, 2000) que afirma não haver relação simples e direta
entre a coisa e a palavra; que devemos distinguir o sentido primeiro (denotativo)
do sentido segundo – ligado às condições de funcionamento extralingüísticos tais
como o contexto e condições de produção, pois, além do verbal utilizado, concentramos nossa atenção nos demais elementos semióticos do texto que integram o
processo comunicativo e são parte da construção dos sentidos.
A partir dos anos 1970, a atenção da Semiótica separou-se do conceito de signo descrito por Saussure e concentrou-se no texto passando a significação a ser o
objeto de análise da Semiótica. Assim, baseados nas concepções sociointeracionais
da linguagem, em que os sujeitos dialogam com o texto, com o contexto e com a
língua, os recursos multimodais são elementos de análise na busca de significados e na construção dos sentidos deles decorrentes de forma a responder nossas
questões.
Imagem 1 – Superinteressante, 2003.
Os discursos publicitários aqui examinados compõem o que a Semiótica chama de
textos sincréticos, pois articulam o sistema semiótico verbal com o sistema semiótico
plástico. Sendo que toda imagem é polissêmica, deixando antever significados que
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podem ser aceitos ou ignorados, a articulação da imagem com a palavra faz com
que as escolhas se voltem para a leitura do discurso em sua totalidade. Vejamos.
A imagem 1 (Superinteressante, 2003) mostra a publicidade de um modelo de
aparelho de telefone celular. O modelo do objeto tem a cor negra, tal como o fundo da imagem e se vê a maneira de utilização quando aberto e fechado. Ao lado,
a palavra-chave titânio, que representa o elemento químico de número atômico
22 e considerado metal leve. É a intertextualidade presente no discurso, pois nos
remete, pelo verbal, aos conhecimentos científicos adquiridos e pela imagem, ao
produto agora apresentado. Foi escolhida a cor preta tanto para o objeto ilustrativo
do produto quanto para o fundo da composição publicitária. A cor na mensagem
publicitária é recurso ou elemento do léxico visual de grande significação e ligada
a culturas e momentos históricos variados.
Há muito, a cor negra era associada a sentimentos desagradáveis: luto, tristeza,
problemas em geral. Na Idade Média, atribuía-se a cor negra às entranhas do indivíduo. Hoje, em nossa cultura, o negro é cor associada à formalidade, à padronização
que visa ao destaque. As mulheres vestem-se de negro como artifício de elegância:
jóias tais como relógios negros são alvo de cobiça; os carros das autoridades têm a
cor negra; os telefones – mesmo os antigos, com fio – tinham a cor negra.
O negro é usado em festas de gala; é também a cor da elegância, atributo apregoado nas relações sociais. Com o passar do tempo e em função de modificações
culturais, a cor negra passou a simbolizar status. Raros são os aparelhos celulares
negros. Assim o referente (coisa ou objeto extralingüístico caracterizado pela imagem)
simboliza algo novo, de classe, algo que destaca o seu possuidor dos demais.
À esquerda, temos dois textos, partes de discurso maior, em letras brancas: 1825:
o homem separa o titânio dos demais elementos; 2003: o titânio separa o homem
dos demais elementos. A idéia de separação está presente tanto no verbo separar,
conjugado duas vezes quanto na imagem visual, em que os textos são distintos. A
separação é evidenciada também na estrutura frasal segmentada.
O tempo histórico refere-se à descoberta do titânio como sendo 1825. O texto
verbal informa que, naquele ano, o homem separou, pelas suas pesquisas, o elemento titânio dos demais. Historicamente, o titânio é descoberta da modernidade;
é metal de alta resistência mecânica e térmica, é brilhante, leve e resistente à
corrosão. Essa parte do discurso utiliza-se de uma construção discursiva peculiar,
com três textos fragmentados, e o seu conteúdo é deixado à interpretação do interlocutor que precisa juntar todos os demais textos para compor os significados.
Mesmo assim, o discurso verbal deixa livre às inferências pessoais do interlocutor
que, somente após ler a imagem, conseguirá compor toda a significação presente
na peça publicitária.
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O mesmo texto mostra o seu uso, agora, de forma ambígua, pois o produto vira
produtor – o titânio age como sendo humano. É a personificação do elemento pela
atribuição de identidade. Temos uma metonímia, pois o titânio é componente do
celular. Valendo-se dessa informação, o agente produtor do discurso usa a parte que
compõe o todo para atingir o público. A função expressiva é intencionalmente colocada, pois dando o nome de Titânio ao novo aparelho, nos dá também a informação
de que ele se destaca dos demais por ser único, moderno, resistente e leve.
O termo elemento na segunda composição textual é aqui utilizado metaforicamente, fazendo com que consideremos o homem separado dos demais que participam de seu lugar social. Polissêmica, a palavra adquire múltiplas interpretações: o
titânio (celular) separa o homem dos demais? Ou dá a ele status, pois quem possui
o telefone com tal composição passa a ser alguém especial, diferente, raro? Creio
que as interpretações se completam reforçando nossa tese de que os símbolos da
modernidade levam o homem à solidão, para longe dos demais.
Não há, aparentemente, nenhum elemento ligando os três textos que compõem o
discurso maior. Veja-se, porém, que um fundo negro funde-os num só. Que relação
existe entre o texto escrito e a imagem? À direita, sobre a imagem, o terceiro texto
Nokia 8910i fala por você diz que não há necessidade de qualquer informação sobre o modelo apresentado pela imagem. Não há necessidade de situá-lo no tempo,
nem de falar sobre suas características, potência, alcance, tecnologia, estratégia tão
comum na publicidade do produto. Mas o “silêncio” que propõe a peça publicitária
é também informativo, pois nosso conhecimento de mundo e o contexto mostram
que é um telefone moderno, diferente dos primeiros aparelhos celulares, grandes,
pesados, sem contornos estéticos apreciáveis. A imagem do aparelho nos induz
a idéia de leveza oriunda do titânio que entra em sua composição, facilidade no
toque e, sendo que em nossa cultura, ter um porta-voz é símbolo de status e poder,
o aparelho funciona como tal, dando poder a quem o possui. É a ideologia caracterizada na significação contida na propaganda. Passemos à segunda imagem:
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Imagem 2 – Publicidade de uma universidade virtual.
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A imagem 2 mostra a publicidade de uma universidade virtual na qual encontramos, além da junção com os elementos visuais num processo de multimodalidade, uma dimensão intergenérica (Brandão, 2000) em que dois gêneros
discursivos, o bilhete e o texto publicitário, compartilham o mesmo espaço com
um mesmo objetivo.
Escrito em caracteres semelhantes à escrita manual, o bilhete mostra a coloquialidade, a informalidade da mensagem: fui ao curso e volto já; é a primeira voz
do discurso, a que chama mais atenção, centralizada no texto. Já os produtores
do texto publicitário se fazem presentes com a mensagem complementar: a vida
não pode parar para você estudar, dirigindo-se agora a qualquer leitor do discurso.
É um discurso amplo, dirigido a todos, também num processo de singularizarão
pelo uso do pronome você, coloquial.
A ambigüidade é demonstrada pela oposição vida x estudar. A vida está diretamente ligada ao jogo de futebol em que ocorreu a ausência; estudar, ao curso, em
que alguém está agora presente. Da fusão dos dois textos escritos, depreende-se
que houve a troca de uma atividade socialmente integrativa para uma atividade
solitária: o estudante deixou o futebol de lado, atividade prazerosa para tantos,
representados pela imagem de fundo, na qual os espectadores lotam os lugares
da assistência e foi sozinho, estudar na universidade virtual.
Com as mudanças estruturais e institucionais, o processo de identificação
por meio do qual projetamos nossas identidades culturais tornou-se provisório,
variável e problemático. Temos, então, um novo paradigma de ensino que tira
o indivíduo do social para levá-lo a interagir com a máquina. Ele passa a ser,
ali, um número e uma senha. É a troca do social pelo isolamento. Por último,
examinemos a imagem 3:
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Imagem 3 – Exemplo de crédito da CAIXA.
A imagem 3 nos traz exemplo da utilização de mais um símbolo da modernidade:
o cartão de crédito bancário, no exemplo examinado, da CAIXA. O verbal utiliza
a função apelativa, quando se refere ao “cantinho” – que nada tem de pequeno,
conforme o termo nos quer fazer supor, pois a imagem mostra uma profusão de
objetos os mais variados num amplo espaço. A função referencial evidencia-se pela
informação: Cartão de Crédito da CAIXA. É a apresentação do objeto que está sendo
vendido. E quais as vantagens que esse objeto oferece para que seja adquirido? A
aquisição ilimitada de bens, aqui representada pelo X. Sendo esse cartão de crédito
pertencente a uma empresa estatal, temos o poder do Estado levando o cidadão a
consumir indefinidamente, numa mudança de paradigma, pois ao Estado cabe educar
o cidadão, e não incitá-lo a práticas sociais que provoquem o consumo, haja vista
os altos custos dos produtos no mercado.
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Considerações Finais
O discurso da pós-modernidade reforça a posição dos autores diversos acerca
do conceito de identidade: a identidade social tem se multiplicado diariamente,
dependente da inserção do indivíduo nos diversos símbolos da modernidade.
Ao adquirir o computador e seus softwares, ao retirar o e-ticket, ao usar o cartão de crédito ou abrir uma conta bancária, o sujeito da pós-modernidade tem de
declinar sua identidade individual, fornecendo nome e demais dados pessoais. A
partir daí, passa a ser mais um dos inúmeros anônimos existentes em torno das
máquinas e a ser controlado pelos que gerenciam as práticas de que faz uso.
Esse anonimato é parte das relações sociais construídas na interação homemmáquina, mas é também parte das relações sociais construídas pelo homem-máquina-homem, nas quais, a partir da utilização de linguagem específica, criamos
discursos os mais variados visando acrescentar ao rol já disponível e utilizado,
inúmeras outras identidades.
As relações sociais hoje são relações de exploração, pois motivadas pelo capitalismo e seus símbolos, fruto do avanço tecnológico e dos meios de comunicação
que, além da função de entreter, divertir e informar inculcam também valores,
crenças e comportamentos de caráter eminentemente ideológico, desagregando o
homem de suas raízes e de seu lugar.
Temos presente uma linguagem própria num tempo também delimitado, pois,
conforme vemos nas chamadas salas de bate-papo, nos blogs ou quaisquer outros
locais de encontros cibernéticos, o que era verdadeiro hoje, já não é amanhã.
A violência e a morte, banalizadas na transmissão pela mídia, não provocam
emoções maiores do que a simples curiosidade. Seu compartilhamento nas páginas da Internet é exemplo da solidão que se instaurou no cotidiano do indivíduo
pós-moderno.
Com a indústria tecnológica moderna, o contexto em que se usa a máquina
mudou de configuração: esta é hoje usada apenas para o racional, o prático. Com
as máquinas modernas, busca-se a instauração de um novo tipo de necessidade:
aquela criada e imposta pelo poder vigente, ao tempo em que o indivíduo se desfigura continuamente.
Infelizmente, em que pese o fato do grande avanço do homem e facilidades
obtidas pelos símbolos da modernidade, resta-nos refletir sobre este novo sujeito
partilhando experiências com os demais, mas sem qualquer interação face a face
e buscar soluções para que o homem possa manter presentes suas emoções mais
íntimas, desvencilhando-se da máquina em que vem se transformando.
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Referências Bibliográficas
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Olhares em Análise de Discurso Crítica •
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A SUPERMODERNIDADE: CUltURA DO PODER E DO