A paz e a espada O combate espiritual segundo a espiritualidade Shalom Edinardo de Oliveira Júnior A pAz e A espAdA O combate espiritual segundo a espiritualidade Shalom coordenação geral Filipe Cabral coordenação editorial Carolina Fernandes assistente de edição Amanda Cividini revisão Eunice dos Santos Sousa Silvestre diagramação e capa Daniel Garcia da Silva Edições Shalom Estrada de Aquiraz – Lagoa do Junco CEP: 61.700-000 – Aquiraz/CE Tel.: (85) 3308.7405 | [email protected] www.edicoesshalom.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 978-85-7784-043-4 © Edições Shalom, Aquiraz, Brasil, 2012 (1ª edição) A todos meus irmãos da Comunidade Shalom, especialmente os da Comunidade de Vida, que todos os dias se levantam de seus leitos “com louvores do Senhor em sua boca e espadas de dois gumes em sua mão” (Sl 148,6). Sumário Apresentação.............................................................9 Prólogo....................................................................11 Capítulo 1: O que é o combate espiritual................15 Capítulo 2: Shalom: vocação de paz ou de guerra?................................................................27 2.1 As etapas da batalha espiritual segundo o Escrito Obra Nova................................................................31 2.2 O combate interior e a manifestação da glória de Deus no Escrito Pobreza..........................................38 2.3 O combate pela expansão do Reino no Escrito Shalom e no Histórico dos dois anos.........................41 2.4 A batalha espiritual e a vitória de Deus segundo a Carta à Comunidade 2005........................................45 Capítulo 3: Os inimigos contra os quais combatemos...................................................49 3.1 O mundo...........................................................55 3.2 Os demônios......................................................60 3.3 A carne..............................................................67 Capítulo 4: A luta contra Deus...............................73 Capítulo 5: A vitória que vem do alto......................87 Capítulo 6: Armados com a oração e o jejum........105 6.1 Oração.............................................................109 7 6.2 Jejum...............................................................117 Capítulo 7: Um povo de guerreiros.......................125 7.1 Uma mudança de postura................................128 7.2 A Eucaristia.....................................................131 7.3 A conversão do olhar.......................................135 7.4 O corpo compacto, a disposição ao sacrifício e a haste da Cruz...................................................137 Capítulo 8: “Vai a nossa frente a Rainha”..............143 8 A Paz e a Espada Apresentação E mbora o tema da Batalha Espiritual seja antigo e recorrente na espiritualidade católica, faltam-nos ainda bons livros católicos que nos orientem a vivê-la de acordo com o Magistério, com a teologia dos santos e com a experiência missionária frente aos desafios dos nossos dias. Este livro do Edinardo de Oliveira Júnior vem contribuir para suprir essa lacuna de forma simples e bem fundamentada na doutrina, na Palavra e na vivência missionária da Comunidade Católica Shalom. Quando o Senhor nos fez entender, no final de 2011, que estávamos em ferrenha batalha espiritual, vimos que nos seria muito útil entender melhor o que isso significava para podermos vivê-la na fidelidade à Igreja, segundo nossa vocação e em prol de toda a humanidade. Convidado a redigir um livro esclarecedor sobre o assunto, Edinardo generosamente não hesitou, ainda que em meio a inúmeros compromissos de estudo e apostolado. O resultado surpreendeu pela riqueza da pesquisa, apresentação didática e conteúdo basilar para os cristãos incitados a viver a batalha “que se trava nos ares”1 por amor a Deus e à humanidade que padece pelo desconhecimento do Seu eterno, terno e fiel amor. 1. Cf. Ef 6,12 9 A Assistência de Formação conta com a colaboração essencial de Edinardo há 3 anos. Sobre seus ombros, a responsabilidade de formar e treinar para todas as frentes de apostolado da Comunidade Shalom no mundo inteiro. Uma tremenda responsabilidade pastoral que se junta às suas atividades de pregador, conselheiro e formador pessoal. Filósofo pela Faculdade Católica do Ceará, Edinardo ingressou na Obra Shalom em 2003 quando era, ainda, estudante de Física. Em 2006, ingressou na Comunidade de Vida e, após o período de discipulado, disse “sim” à vocação sacerdotal para a qual se prepara. Nada disso, porém, o capacitaria a escrever este livro. Sua principal capacitação vem do testemunho de fidelidade à vida de oração, de santa vivência dos conselhos evangélicos, da saudável e alegre vida fraterna e da dedicação ao apostolado a ele confiado. É na vivência da oração, nas madrugadas passadas diante do Santíssimo e na inteira consagração a Deus que se trava, de fato, a batalha descrita aqui com a propriedade de quem a vive em primeira pessoa. Em nome da Assistência de Formação e de toda a Comunidade Shalom agradeço ao Edinardo sua disponibilidade e zelo apostólico, certa de que não somente nós como todos os que lerem sua obra seremos beneficiados pela beleza e poder da verdade e sabedoria que ela contém. Shalom! 10 Maria Emmir Oquendo Nogueira Cofundadora da Comunidade Católica Shalom A Paz e a Espada Prólogo “À tarde desse mesmo dia, o primeiro da semana, estando fechadas as portas onde se achavam os discípulos, por medo dos judeus, Jesus veio e, pondo-se no meio deles, lhes disse: ‘A paz esteja convosco!’ Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos, então, ficaram cheios de alegria por verem o Senhor. Ele lhes disse de novo: ‘A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, também eu vos envio’. Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo.’” ( Jo 20,19-22) Tarde de domingo do “mesmo dia”. Que dia é esse? O dia em que Cristo venceu a morte – o último dos inimigos – e reentra vitorioso no mundo dos vivos. Esse é o dia em que a Luz vence definitivamente as trevas e lança-as para sempre no exílio. O Cristo vencedor entra no lugar onde se encontravam os discípulos, por medo dos judeus, a portas fechadas. Estavam acabrunhados, dispersos, encurralados. Haviam sido vencidos e viram suas esperanças todas se perderem, se dissiparem como névoa ao vento. Cristo bem havia dito: “Feri o pastor e o rebanho se dispersará” (cf. Mt 26,31), e foi exatamente isso que aconteceu. Para os discípulos, a 11 batalha havia acabado e, eles, derrotados. Ergueram, então, uma muralha em torno deles para os defender e enchiamse de medo por aquilo que poderia lhes acontecer, qual soldados que veem ser preso seu general e passam a temer o que será feito com o resto do batalhão. Alguns já haviam desertado. Dentre os doze, dois não estavam lá: Judas, que se suicidara em seu desespero, e Tomé, que não cria mais naquela luta e havia se dado por vencido. Com ele, certamente muitos outros fugiram, como os discípulos de Emaús. Jesus entra naquela fortaleza e se põe “no meio deles”. Põe-se no meio, porque é Ele o pastor, o general, o Senhor. Põe-se no meio, no centro, não só da sala, mas também do coração deles. E lhes diz: “A paz esteja convosco!” Jesus declara aos seus discípulos quem havia de fato vencido a guerra. A paz é o troféu erguido pelos vencedores. Para estes, não há mais o que se temer, pois todos os inimigos foram vencidos. Cristo anuncia a paz conquistada e também a comunica. Esta paz, em Jesus, não é ausência de guerras, mas reconciliação com Deus, conversão, paz verdadeira e perene. É, enfim, toda sorte de bens espirituais e materiais trazidos pelo Messias. “Tendo dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado”. Jesus mostra aos seus as marcas do combate que Ele travou: suas “feridas de guerra”. É muito impressionante ver que Jesus quis que essas marcas permanecessem em seu corpo vitorioso. Ele o quis para nos mostrar que Ele havia lutado por nós e que essas chagas, porque vividas pelo amor e no amor, se tornam também gloriosas. Elas são Sua coroa, pérolas, joias preciosas a adornar o Seu corpo. Toda ferida 12 A Paz e a Espada adquirida em combate santo pode, pela graça da Ressurreição, ser glorificada, transformada em joias para adornar o nosso corpo e para bendizer Aquele que nos ama e nos escolhe. São os enfeites da esposa que a tornam mais bela e formosa para o seu Esposo. Há um ícone do Ressuscitado que carrega uma cruzcajado cravejada de pedras preciosas: é do Tesouro da Cruz que tiramos as gemas que nos adornam para os nossos esponsais. Ele quis também nos mostrar qual o caminho, encorajar-nos, pois ninguém pode nos ferir de morte: “Não tenhais medo dos que matam o corpo e depois disso nada mais podem fazer” (Lc 12,4b). Após verem o Senhor, a sala se enche de alegria. Não mais a tensão, mas agora eles são renovados na sua experiência com Jesus e recuperam o ânimo que haviam perdido. Jesus ministra mais uma vez a paz e envia-os, derramando sobre eles o Espírito Santo. Ele diz: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. Não é diferente o nosso caminho do de Cristo. Pelo contrário! Nosso caminho é o de Cristo, é igual ao dele. Assim como o dele, é caminho de Cruz, de lutas e combates, de fadigas e incompreensões. Mas assim como o dele, é caminho que não pode conduzir a outro lugar, senão à Ressurreição. É combate e só nos cabe perseverar, continuar lutando, pois a vitória é certa. Assim como Jesus fora enviado, nós também o somos. Esse envio é como uma investidura: os cavaleiros, ao serem investidos como tal, recebiam as armas e armaduras para combaterem (simbolizados pela entrega da espada). Recebiam o que precisavam para entrar no combate. Tam- 13 bém seus discípulos são investidos por Cristo, recebem dele armas e armaduras e não só isso, mas também a habilidade de manuseá-los, a sabedoria e o discernimento. Somos investidos com o Espírito, ungidos tal qual reis, e capacitados para a missão. A unção, que nos torna ágeis, que realça a nossa força, que nos torna fugidios aos inimigos, essa unção do Espírito nos dá a graça para perseverar. Investidos por Cristo, os discípulos vão. Não sabem o que encontrarão. Sabem somente que serão perseguidos. Jesus havia dito: “O servo não é maior do que o seu senhor. Se me perseguiram, também vos hão de perseguir” ( Jo 15,20). Mesmo assim eles vão, cheios da parresia dada pelo Espírito. Sem temer os que podem ferir o corpo, mas que não podem atingir a alma (cf. Mt 10,28). Esta pertence toda a Cristo, corpo e alma são dele. Ele é o único Rei, o único a quem servem, que vai à frente qual valente general. Com Ele nós também vamos. Avançamos. Alcançamos os confins da terra e lá fincamos a bandeira da paz. Levamo-la a cada coração. Formamos para Cristo e para a Igreja um povo santo, um novo exército e ansiamos pelo dia em que de nossas espadas forjaremos arados, e de nossas lanças, foices: dia em que não se levantará mais a espada e não nos exercitaremos mais para a guerra (cf. Mq 4,3), pois o Reino já terá sido instaurado plenamente e Deus será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28). 14 A Paz e a Espada Capítulo 1 O que é o combate espiritual “N ão julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada” (Mt 10,34). Essas palavras ditas por Jesus parecem transparecer algo de paradoxal. Como pode Jesus, que é o “Príncipe da Paz”, que não veio para ser servido, mas para servir, que ordenou a Pedro embainhar sua espada, pois “todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão” (Mt 26,52), como pode Ele dizer agora que veio trazer a espada à terra? O que isso significa? Dentro do contexto da passagem, Jesus fala da divisão que será causada por sua vinda, que haverá quem será contra Ele e quem será a favor e que mesmo no seio das famílias haverá divisões. Essa é, em primeiro lugar, a espada que Jesus veio trazer: a divisão entre os que creem Nele e os que não creem. Mas há outra espada que Jesus trouxe, uma que ele não quer que saia de nossas mãos. A espada que nos arma para o combate espiritual que travamos como cristãos. Essa espada ele pediu que Pedro a mantivesse: “Mas agora, disse-lhes ele, aquele que tem uma bolsa, tome-a; aquele que tem uma mochila, tome-a igualmente; e aquele que não tiver uma espada, venda sua capa para comprar uma” (Lc 22,36). Nossa vida é profundamente marcada pelo combate. Moysés Azevedo2, numa belíssima pregação sobre as pro- 2. Moysés Louro de Azevedo Filho é fundador e moderador geral da Comunidade Católica Shalom. 17 messas de Deus para a Comunidade Shalom no ano de 2012, disse-nos que “estamos sempre em batalha, com períodos mais fracos e outros mais intensos. A batalha é o ordinário da nossa vida”3. Trazemo-lo em nossa história, trazemo-lo em nosso próprio nome. Pois cristão é aquele que foi “ungido” e, segundo o Catecismo, a unção (no simbolismo bíblico e antigo) “torna ágil (unção dos atletas e lutadores), é sinal de cura, pois ameniza as contusões e as feridas, e faz irradiar beleza, saúde e força” (CIC 1293). A unção batismal é, assim, preparação para a luta. Tal como os lutadores antigos – lembremos aqui dos jogos olímpicos gregos – em que ungiam seus corpos, não só com uma finalidade estética, mas também para se tornarem mais difíceis de ser agarrados por seus adversários, também nós somos ungidos para o combate e essa nossa unção nos faz mais fugidios aos nossos inimigos, mais difíceis de ser apanhados por eles. A unção batismal nos faz “outro Cristo”, nos insere no seu Corpo Místico, que é a Igreja. Esta, desde o seu início, é também marcada pelas lutas. Desde os primórdios foi perseguida e ao longo de toda a sua história, até os dias de hoje, continua a combater contra diversos inimigos. Cumpre-se nela, de geração em geração, aquela profecia de João no Apocalipse: “Este (o Dragão), então, se irritou contra a Mulher (a Igreja) e foi fazer guerra ao resto de sua descendência, aos que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12,17). Por isso, nós, Igreja que 3. Palestra proferida por Moysés Louro de Azevedo Filho para o Retiro do Planejamento Estratégico do Governo Geral da Comunidade Shalom em 2012. 18 A Paz e a Espada caminha na terra, descendência da Mulher, que guarda os mandamentos e o testemunho de Jesus, somos chamados de “Igreja militante”, pois todo cristão é um soldado a combater por Cristo e por seu Reino. Mas na verdade, muito antes da Igreja, o povo hebreu era já marcado pela realidade combativa e por sua característica guerreira. A Bíblia nos dá inúmeros exemplos desses combates: já em Gênesis, quando se fala das guerras que os reis travavam (antes da formação de Israel, cf. Gn 14,2), as guerras no deserto, antes do ingresso na Terra Prometida, para entrar na terra, para se manter nela, e assim por diante. São, assim, inúmeras as passagens que nos remetem às lutas travadas pelo povo eleito, grandes lutas com diversos povos que o rodeavam. Mas os textos nos fazem entrever uma realidade de combate que vai além desse campo de guerra, além das areias do deserto daquela época. A Palavra de Deus nos remete a uma batalha que não é só travada no plano físico, como aquelas que os israelitas lutavam. Ela nos remete a um combate que não é travado com espadas, lanças ou cavalos, mas por meio da fé e da adesão incondicional a Deus. Tomemos, por exemplo, o seguinte texto do Deuteronômio: “Quando se aproximar o momento do combate, o sacerdote se adiantará para falar ao povo: ‘Ouve, Israel!’ Lhe dirá ele. Ides hoje combater contra os vossos inimigos: que vossa coragem não desfaleça! Não temais, nem vos perturbeis, nem vos deixeis amedrontar por eles. Porque o Senhor, vosso Deus, marcha convosco para combater contra os vossos inimigos e para vos dar a vitória” (Dt 20,2-4). O que é o combate espiritual 19 Maria Emmir Nogueira4, no seu livro Obra Nova – Caminho de e para a felicidade (cf. p. 175-183), já nos descreveu muito bem do que trata esta passagem: Moisés está dando ao seu povo as instruções de como combater no deserto. Sempre que eles encontrarem algum povo para guerrear, devem seguir essas instruções que, na continuação da passagem, são desenvolvidas. Essas instruções são para aqueles que não sabem combater, que não têm força bélica nenhuma (como era o povo de Israel), são instruções para o combate dos fracos. Mas o que mais chama atenção nesse trecho é que as instruções não falam de estratégias de combate, de como o exército deve se posicionar para encurralar seu inimigo ou qualquer outra coisa do tipo. O texto fala de fidelidade a Deus. O verdadeiro combate que os israelitas travam não é contra os filisteus, cananeus, moabitas, arameus ou nenhum dos outros povos contra os quais eles combateram. O verdadeiro combate deles é o da fé, o de se manterem fiéis ao Deus vivo, Aquele que os libertara do Egito e os fizera passar pelo mar Vermelho. É este o ponto decisivo, o centro do combate do povo eleito e do nosso combate espiritual. A luta decisiva que nós travamos é a luta pelo cumprimento da vontade de Deus. Essa é, na verdade, a única luta que vale à pena ser travada. Os homens se preocupam com tantas coisas, com quanto vão ganhar, com o que vão vestir, onde passarão suas férias. Brigam por tantas bobagens, matam-se uns aos outros por pouca coisa. Nações invadem outras nações buscando suas riquezas. Esses são os moti4. Maria Emmir Oquendo Nogueira é cofundadora e formadora geral da Comunidade Católica Shalom. 20 A Paz e a Espada vos do mundo para guerrear: riqueza, poder, prazer. Mas, para nós, há apenas um motivo para lutar, há apenas uma guerra digna de ser travada: a guerra pelo cumprimento da vontade de Deus em nós e no mundo inteiro. O homem foi criado por Deus e para Deus. Cumprir a Sua santíssima vontade é a sua mais plena realização, é ser plenamente feliz. E o que seria essa vontade de Deus? O Papa Bento XVI no-lo ensinou: “Esta vontade não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos tira a liberdade. Conhecer aquilo que Deus quer, conhecer qual é a via da vida (...) Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos aliena, nos purifica (...) e assim nos conduz a nós mesmos”5. Diz ainda na parte I do seu livro “Jesus de Nazaré”: “As Sagradas Escrituras partem do princípio de que o homem, no seu íntimo, conhece a vontade de Deus, que há um ‘saber com’ profundamente ancorado em nós, o qual chamamos ‘consciência’. (...) Deus nos falou de novo, em palavras históricas, que se dirigiram a nós de fora e para assim irem em ajuda do conhecimento interior, tornado sempre mais escondido”6. Assim, podemos entender que a vontade do Pai é, em poucas palavras, o que Deus quer de nós. Aquilo que Ele nos ensinou por meio dos patriarcas, reis, profetas e demais homens que nos falam por meio da Sua Palavra. Aquilo que Ele nos falou definitivamente em Seu Filho e que é conservado no tesouro da Tradição e do Magistério da Igreja. A vontade de Deus é que sigamos o Seu Filho, 5. Santa Missa no início do ministério petrino. Homilia do Papa Bento XVI. Basílica vaticana. 6. RATZINGER, Joseph. Papa Bento XVI. Jesus de Nazaré – Parte I. Ed. Planeta, 2007. O que é o combate espiritual 21 que vivamos o Evangelho, a caridade, a santidade. E isso é a nossa mais plena realização. O papa nos acena também que essa vontade não está fora de nós, mas foi posta no nosso mais profundo: é aquilo que chamamos de “consciência”. Se as coisas são assim, por que existe essa luta? Se a vontade de Deus é aquilo que todo homem almeja, por que é tão difícil realizá-la? Por que é tão difícil viver a caridade, os Mandamentos? Por que é tão difícil amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos? Por causa das marcas do pecado original em nós, daquele pecado cometido pelos nossos pais. Adão e Eva sucumbiram na primeira batalha que travaram, ainda no Paraíso. E sucumbiram, é importante dizer, por culpa própria! Não foi o demônio que os fez pecar, que os derrubou do elevado posto em que Deus os havia colocado. Eles mesmos de lá caíram (tal como Lúcifer, que se precipitou do mais alto dos Céus), vencidos pelo demônio, mas, sobretudo, vencidos por si mesmos e pelo orgulho que deixaram surgir dentro de si. Acho que não conseguimos imaginar quão grande foi o pecado de Adão e Eva. O “não” que eles deram a Deus não foi como os “nãos” que muitas vezes damos. Eles não tinham pecado algum. Não havia mal no coração do homem, pois Deus os criara perfeitos, puros, santos. Eles possuíam uma inteligência fora do comum e a sua vontade sempre se voltava para o seu Criador. Entretanto, após a tentação e a desobediência primeiras, Adão e Eva deixaram surgir dentro de si o orgulho e com ele toda sorte de pecados. Como pode isso ter acontecido? Não se sabe. Isso 22 A Paz e a Espada é o que a Igreja chama de “mistério da iniquidade”, pois de onde não havia mal ou imperfeição alguma, surgiu o pecado. Só sabemos que essa opção dramática de escolher o pecado – nossa perdição – nos é dada por conta da nossa liberdade. Ensina-nos sobre isso mais uma vez Bento XVI: “A liberdade do homem é sempre nova e deve sempre de novo tomar as suas decisões. Nunca aparecem simplesmente já tomadas em nossa vez por outros – neste caso, de fato, deixaríamos de ser livres. A liberdade pressupõe que, nas decisões fundamentais, cada homem, cada geração seja um novo início. Certamente as novas gerações, tal como podem construir sobre os conhecimentos e as experiências daqueles que as precederam, podem haurir do tesouro moral da humanidade inteira. Mas podem também recusá-lo, pois este não pode ter a mesma evidência das invenções materiais. O tesouro moral da humanidade não está presente como o estão os instrumentos que se usam; aquele existe como convite à liberdade e como sua possibilidade”7. Com o pecado dos nossos pais, toda a humanidade decaiu. Nossa condição natural é agora marcada pelo pecado. “Eis que nasci na culpa, minha mãe me concebeu no pecado” (Sl 50,7), diz Davi. Quando somos batizados e somos inseridos na Igreja, somos totalmente purificados das nossas culpas. O Catecismo nos diz que no Batismo “o perdão que recebemos é tão pleno e tão completo que não nos resta absolutamente nada a apagar, seja do pecado original, 7. Bento XVI, Carta Encíclica Spe salvi (30 de novembro de 2007), 24; cf. Concílio Ecumênico de Latrão IV, in DS 806. O que é o combate espiritual 23 seja dos pecados cometidos por nossa própria vontade, nem nenhuma pena a sofrer para expiá-los” (CIC 978). Mas o Batismo não retira de nós as consequências do Pecado, as marcas e inclinações ao mal – a que chamamos de concupiscências. Elas permanecem em nós e incitam em nós o combate.São, assim, as concupiscências, chamadas também pela Igreja, no Catecismo, de fomes peccati (incentivo ao pecado), deixadas em nós para que nós as combatamos. Deixadas em nós, sim, porque Deus, na sua Onipotência poderia nos ter livrado delas. Mas não o quis. Quis que nós lutássemos, que nós as enfrentássemos e, com a sua graça, as vencêssemos. E o mais fascinante nesse combate é que a vitória que alcançamos, ou melhor, que Deus alcança para nós, nos coloca num estágio superior ao que estávamos antes do pecado. Isso mesmo! Aquilo que era a nossa perdição se torna a nossa salvação, pela graça de Deus! Santo Tomás nos diz: “Nada obsta a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de São Paulo: ‘Onde abundou o pecado superabundou a graça (Rm 5,20)’ ”8. O Demônio queria nos derrubar, nos manchar como ele, mas o amor de Deus veio em nosso socorro e a Sua graça nos deu muito mais do que havíamos perdido. Tudo isso que falamos até aqui pode ser aplicado ao nível pessoal. Falamos sobre a luta espiritual que cada um de nós trava pela santidade, luta que cabe a cada um pessoalmente, auxiliados pela graça (sim, porque sem a graça de Deus, não vencemos e sequer conseguimos lutar). Mas 8. TOMÁS DE AQUINO, S. Th. III, 1.3. ad 3. 24 A Paz e a Espada há também uma dimensão que poderíamos chamar de “eclesial”, comunitária dessa luta. Nessa dimensão, somos chamados a lutar pela santidade da Igreja e para que Deus seja conhecido no mundo inteiro. É a luta pela evangelização, para que o nome de Jesus seja cada vez mais conhecido e que o Evangelho alcance mais e mais pessoas. É sobre essa outra dimensão do combate espiritual, profundamente ligada à primeira, que Paulo faz referência quando diz: “Tornei-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo custo. E, isto tudo, eu o faço por causa do Evangelho” (1Cor 9,22b-23a). Ele enfrenta os mais diversos inimigos, naturais, humanos e espirituais, em vista de proclamar o Evangelho e de ganhar almas para Cristo. No seu mesmo caminho foi a Igreja de todos os tempos, sempre animada pelo testemunho do apóstolo das nações e de tantos outros que se uniram a ele. Poderíamos nos recordar, para finalizar, do exemplo de santo Inácio de Loyola, que fundou a Companhia de Jesus num século tão cheio de tribulações para a Igreja, para que ela evangelizasse além-mar e expandisse o Reino de Cristo para todas as terras conhecidas. Não foram poucos os perigos, combates e martírios sofridos pelos jesuítas nesses primeiros tempos de evangelização. O que é o combate espiritual 25