Margarida
Maria
Lacombe
Camargo1
Prefácio
A Universidade Federal de Juiz de Fora traz ao
público mais um produto, oriundo agora do esforço
coletivo de um grupo de pesquisadores da sua Faculdade
de Direito. O livro, intitulado “Instituições de Direito”,
oferece, a partir de uma visão crítica, uma série de artigos
cujo foco não é propriamente a dogmática jurídica, mas
dimensões variadas do Direito, considerando o seu aspecto
teórico, enquanto disciplina específica do conhecimento,
e o seu aspecto prático de dimensão política e social.
Entendemos caber ao estudioso e profi ssional do
Direito avaliar não apenas as questões relativas a
problemas específicos da sua área de atuação, quando
discutida a melhor interpretação da lei para a solução
de um caso concreto, como também considerar a
relação e o impacto da prática jurídica no campo
político e social. Daí a importância de se perceber
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Professora Adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Instituições de Direito
como o movimento das relações sociais dá origem às instituições que
interferem na criação das normas jurídicas, bem como a percepção de
mundo que temos a partir dessas práticas.
O Direito oferece significado à vida e cria expectativas de
comportamento. A interpretação sobre o conteúdo da norma jurídica é
originária da pré-compreensão do sujeito situado historicamente. Inovações,
notadamente as de cunho tecnológico, provocam estranheza sobre o que já
é conhecido anteriormente. O esforço de conhecimento/interpretação
confunde-se, assim, com a compreensão que o sujeito tem de si mesmo.
Nesse sentido, o novo só é percebido e compreendido a partir das referências
de mundo já adquiridas pela experiência. Falo de uma visão de mundo
bastante alargada, se considerarmos as limitações conferidas pelos textos
legais, que procuram dar significado às nossas condutas ao descrevê-las
como regras. Portanto, o Direito deve ser estudado como fenômeno social,
econômico, político, institucional e humano.
Parece-me ser esta a contribuição principal do trabalho que a
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora apresenta.
A norma jurídica, ainda que vista como originária de um processo
social espontâneo, vale efetivamente, ou pode ser cobrada, quando
chancelada por um ato de autoridade. A autoridade competente cria regras,
ao mesmo tempo em que age de acordo com regras previamente estabelecidas,
que institucionalizam o exercício do poder. Mas a criação do Direito não
traduz mera abstração. Sua indissociabilidade com o meio social mostra que
o(s) movimento(s) social(ais) promovem uma série de manifestações que,
pela repetição e reconhecimento de obrigatoriedade geram expectativas de
comportamento, diminuindo o risco do conflito. Por isso são relações que
demandam estabilidade e garantia, a sugerir o amparo legal.
Mas apesar de incidir sobre práticas reiteradas, nada impede que o
legislador, o governo e o próprio Judiciário, nos limites de suas respectivas
competências, instituam parâmetros de atuação desejáveis, seja do ponto de
vista político, para alcançar um fim específico, seja do ponto de vista moral,
que almeja a conduta correta. Neste ponto cabe destacar a clássica distinção
encontrada na Teoria do Direito entre normas de competência e normas de
comportamento, denominadas por Hart respectivamente como normas
secundárias e normas primárias.2 As primeiras institucionalizam o exercício
2
Herbert L. A. Hart. O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1994, capítulo V.
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Hans-Georg Gadamer, “Sobre el círculo de la compreensión”, in Verdad y Método
II, p. 68: “El puesto enre extrañeza y familiaridad, que opcupa para nosostros la
tradición, ES, pues, el inter entre la objetividad distante contemplada en la
historia y la pertenecia a una tradición. En ese inter está el verdadero lugar de la
hermenêutica.”
Hans-Georg Gadamer. Verdad y Método I. Salamanca: Sígueme, 1993,p. 308:
“Toda vivencia implica horizontes anteriores y posteriores y se funde en última
instancia con el continuum de las vivencias presentes de antes y después, en la
unidad de la corriente vivencial”.
Margarida M. L. Camargo. Fundamentos teóricos do pragmatismo jurídico. In
Revista de Direito do Estado, n. 6, abr./jun. de 2007, p. 185 e segs.
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Prefácio
do poder, enquanto as demais, normas primárias, indicam uma obrigação
ou faculdade de fazer ou não fazer.
Vale perceber, entretanto, que a norma jurídica só pode ser
compreendida em função de uma prática e por isso vale quando aplicada. O
direito é interpretação, dado que a situação concreta é que irá definir o que,
na realidade, deve ser feito. A norma orienta a conduta à vista de uma
situação específica, e essa prática reflete a posição histórica do intérprete,
que se reconhece como um ser inserido numa tradição cultural. Uma
tradição que lhe oferece referências concretas. É, então, a partir das
referências obtidas pela experiência vivida que o sujeito tem condições de
compreender o que é posto diante de si. Refiro-me à pré-compreensão
apresentada teoricamente por Hans-Georg Gadamer, que apresenta um viés
pragmático bastante acentuado. Em que pese a dimensão ontológica da
compreensão, com o projetar do próprio sujeito, a pré-compreensão permite
o estranhamento entre o que já é conhecido, porque experimentado, e o que
é apresentado como novo.3 Daí decorre o esforço de interpretação. Gadamer
fala na fusão de horizontes entre passado e presente, a partir da posição do
intérprete.4 Posição histórica do ser em tradição.
O pragmatismo, corrente filosófica que aparece na segunda metade do
século XIX, nos Estados Unidos, também destaca o papel da experiência na
interpretação. A prática nos permite conhecer, e a partir da experiência prévia
distinguimos consequências que orientam nossa ação. As consequências
antevistas e o contexto permitem avaliar a decisão sobre o que fazer, não fazer
ou como fazer. O pensamento, dessa forma, está sempre sujeito à
verificabilidade. Novas vivências ocorrem e novas experiências somam-se às
antigas, ampliando o arcabouço de conhecimento.5 Podemos dizer que o
mesmo ocorre com a pré-compreensão de Gadamer, que dá origem ao círculo
Instituições de Direito
hermenêutico.6 Um círculo que se fecha em função de uma situação concreta,
mas segue em espiral à medida em que se abre para novas práticas.
Para o pragmatismo, o conhecimento serve de ponto de partida ao
pensamento; mas um pensamento que só adquire sentido jungido a uma
situação prática. Enquanto o fundamentalismo baseia-se em ideias
primeiras, ocupando-se da definição de conceitos aptos a conferir significado
à vida por meio da correspondência entre o real e seus registros nominais, o
pragmatismo abre-se à experiência prática. Não busca alcançar bens e
valores. Ocupa-se do que é possível de ser realizado. A interpretação, desta
forma, dá-se sempre diante de desafios concretos, dos quais, inclusive, se
extrai o conhecimento.
Tais considerações importam para percebermos o Direito a partir
das nossas instituições e experiências, notadamente aquelas que podem ser
compartilhadas histórica e socialmente.
A norma jurídica, vista como interpretação, volta-se à prática
constante. O texto estabelece limites, enquanto as palavras oferecem
compreensões distintas, a partir de pré-compreensões distintas. Se falamos,
por exemplo, em dignidade da pessoa, talvez seja difícil criar um conceito,
mas podemos dizer quando a dignidade é afetada pela experiência prática.
Somos capazes de reconhecer em um caso concreto, vivido diretamente ou
transmitido pela linguagem e com o qual nos identificamos, quando uma
injustiça é cometida ou quando a nossa liberdade é injustificadamente
cerceada. Como podemos definir dignidade humana sem relacionarmos
este termo à experiência? Como definir privacidade, um outro exemplo, se
não a partir do que a realidade nos oferece como possibilidade? Com isso
pretendo mostrar as insuficiências da dogmática jurídica.
A dogmática busca, a partir de conceitos extraídos da tradição e do
Direito codificado, oferecer um instrumental para o profissional do Direito
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Hans-Georg Gadamer, “Sobre el círculo de la compreensión”, in Verdad y Método
II, p. 66: “Lejos de la norma de que para escuchar a alguien o hacer una lectura
nos se puede acceder con prejuicios sobre ol contenido y es preciso olvidar todas
las opiniores propias, la apertura a al opinión del otro o del texto implicará simpre
ponerla en relación con el conjunto de las propias opiniones, o relacionarse con
ellas. Dicho en otros términos, ES cierto que las opiniores son una serie cambiante
de posibilidades; pero dentro de esta pluralidade de lo opinable, ES decir, de
aquello que un lector puede encontrar significativo y en ese sentido puede esperar,
noto todo es posible, y el pasa por alto lo que el otro dice realmente, a final
tampoco podrá integrarlo en la propia y plural expectativa de sentido.”
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O mesmo se dá no âmbito do conhecimento científico. Vide Agostinho Ramalho
Marques Neto. A Ciência do Direito, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
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Prefácio
atuar. Pretende abarcar a realidade pela correspondência entre o novo e o
antigo, de forma neutra, sem especial conflito ou tensão. Mas é justamente
na tensão entre o novo e o antigo, a partir da compreensão do próprio
intérprete, que a interpretação ocorre. Como diz Gadamer, é o estranhamento
que provoca a ação do intérprete. Com a correspondência entre o novo e o
antigo verifica-se o (re)conhecimento. Enquanto o novo, por ser novo, é de
certa maneira desconhecido. Digo “de certa maneira”, porque algum nível
de pré-compreensão é indispensável. Do contrário não conseguimos
problematizar a ponto de buscar solução; não conseguimos visualizar um
problema que demande solução e exigir daí a ação do intérprete.7
De forma também distinta da dogmática encontra-se o pragmatismo
jurídico. Para o pragmatismo o conhecimento não é fechado ou definido
anteriormente. Ele é aberto; é possível; é verificável, ainda que a partir do
que a dogmática apresenta. A percepção do contexto e o conhecimento
científico também são indispensáveis à visão pragmática do Direito, na
medida em que permitem ao intérprete considerar as consequências e o
impacto da decisão. Trata-se de mais uma nota distintiva do tradicional viés
dogmático que se ocupa basicamente de auxiliar a operação lógico-dedutiva
de subsunção do fato à lei, de maneira que o intérprete e aplicador da lei
delimite o alcance do texto à luz do caso concreto.
Nesse sentido, mais uma vez destaca-se a importância do livro em
comento. A necessidade de dimensionarmos o Direito a partir de suas
dimensões estruturais básicas, a começar pelas suas relações com o Estado,
a Política e a Moral, sua dimensão humana, passando pelas noções de pessoa
e obrigação, chegando à sua relação com outras disciplinas, como a
Criminologia e a Economia.
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