Moral, Ética, Lei.
“O destino do homem, quando fiel à sua situação, quer dizer, fiel a
seu destino concreto, é impor ao real seu projeto pessoal, dar sentido ao
que não o tem; extrair o Logos do inerte, brutal e ilógico, converter isso
que ‘há aí a seu redor’ em verdadeiro mundo, em vida humana pessoal”.
JuIián Marías
1. O desafio da humanização.
O ser humano é essencialmente incompleto. É um projeto, cuja existência é um
permanente processo de complementação. O humano no homem não é um dado biológico fixo,
mas um patamar de existência a ser conquistado.
A incompletude humana pode ser facilmente sentida. Não se encontram pessoas
completamente satisfeitas com seu estado atual ou situação de vida. A satisfação de uma
aspiração é o trampolim para o desejo de uma nova situação. É assim com o salário que se
recebe, com o circulo de relações que se cultiva, com a casa em que se vive, com os
conhecimentos que se têm. Até mesmo a extensão da vida humana biológica é insatisfatória:
aspira-se à eternidade...
A necessidade de complementação é parte congênita da natureza humana, pois está lá,
ainda que dela não se tenha consciência. Esse movimento inato é identificado como “impulso
de atualização de si”. Mohana o descreve como “energia que empurra todas as potências vitais
de dentro de nós, exprimindo-as em formas de vida. Essa energia que faz com que eu hoje
manifeste, sem precisar saber como, todos os sinais de vida que a pedra não manifesta”. 1
A humanização se faz na mudança para o crescimento. É pela negação do estado atuar de
coisas que cada individuo humano complementa-se e cresce. A humanização se dá pelo
suprimento de necessidades que sentimos, quando fazemos algo com nosso atual estado. Com
efeito, agimos de forma a suprir carências, necessidades sentidas, no nível biológico, social e
transcendental, os três componentes primários geradores de toda a atividade humana.
Caracterizado como animal racional, o ser humano é capaz de duas esferas de atividade:
prática (animal) e teórica (racional). Animais são capazes de dois mecanismos básicos para a
produção de respostas às suas necessidades: o mecanismo instintivo, que atua pela pura
utilização dos impulsos naturais de que é dotado; o mecanismo automático, uma “rotina” nele
incutida, geralmente pelo homem. Como para qualquer outro animal, para o homem a rotina é
um conjunto bem-vindo de atividades, escolhidas e mantidas, entre todas as outras atividades,
por demonstrar certo grau de eficiência/eficácia. Ações instintivas e/ou rotineiras constituem-se
no nível prático de atividade do ser humano, seu nível existencial de vida.
Seres racionais, entretanto, são capazes também de pensar, isto é, são capazes de
transformar necessidades sentidas em problemas e de gerar soluções para os problemas. Em
seguida, é capaz de escolher, pelo ato voluntário-racional do arbítrio, qual dentre as soluções
geradas lhe parece a melhor resposta a ser aplicada à necessidade geradora inicial. Ações
racionais constituem a atividade teórica do ser humano, o nível intelectual da vida.
Ação teórica e ação prática são indissociáveis no homem, como o são sua animalidade e
racionalidade. Na verdade, a função essencial da razão humana é melhorar a vida; da teoria,
aprimorar a prática; da racionalidade, melhorar o animal humano.
1
MOHANA, J. Padres e Bispos autoanalisados. Rio de janeiro. Livraria Agir Editora, 1967, p.16.
Dai o desafio maior da vida de cada indivíduo humano, que se apresenta como três
momentos: 1. conhecer as necessidades de que é portador, ou seja, ser capaz de responder à
pergunta: “De que preciso?” 2. conhecer as potencialidades, isto é, aquilo que pode ser
utilizado para suprir as necessidades. Deve ser capaz de responder à pergunta: ‘De que disponho?” 3. estabelecer, então, relações adequadas entre as necessidades e as potencialidades.
A satisfação individual garante-se pelo ajuste adequado entre necessidades e
potencialidades. Um conjunto significativo de satisfações garante a sensação de realização; um
conjunto significativo de realizações é aquilo que se denomina estado de felicidade.
Concomitantemente, necessidades podem não ser satisfeitas de forma adequada, o que gera
frustração. Um conjunto significativo de frustrações é aquilo que se denomina estado de
infelicidade. Importante ressaltar a presença dos dois estados finais na vida do ser humano. O
estado de felicidade não é incompatível com o estado de infelicidade no mesmo ser humano:
são momentos dialéticos do processo de realização.
2. Moral
A atividade humana, prática e teórica, se estabelece e permanece, naqueles seus aspectos
considerados válidos para a complementação do projeto humano. Ao conjunto escolhido e
organizado de problemas, soluções e respostas que a humanidade gerou para si dá-se o nome
de cultura humana.
Entre as várias possibilidades de atividade, apresentadas pela cultura humana, há aquelas
julgadas melhores e aquelas julgadas piores. As melhores são aquelas indicadas como mais
eficazes para a realização dos indivíduos; piores são aquelas menos eficazes ou,
eventualmente, ruinosas para a realização ou bem do homem. O julgamento e a consequente
indicação ou escolha das ações se faz pela noção de justiça, entendida como o critério
distributivo do bem (das possibilidades de realização). Uma ação é julgada boa, porque justa,
isto é, distribui o bem de maneira satisfatória; é má, porque injusta, isto é, distribui o bem de
maneira insatisfatória ou danosa à realização humana.
Moral é o conjunto de hábitos e costumes, efetivamente vivenciados por um grupo
humano. Nas culturas dos grupos humanos estão presentes hábitos e costumes considerados
válidos, porque bons; bons, porque justos; justos, porque contribuem para a realização dos
indivíduos. Atos gerados conforme esses hábitos serão julgados morais ou moralmente bons.
Por outro lado, há hábitos e costumes considerados inválidos, porque maus; maus, porque
injustos; injustos, porque atrapalham ou impedem a realização dos indivíduos. Os atos gerados
conforme esses hábitos serão julgados como imorais, ou moralmente maus. Por exemplo, o
casamento é um costume válido, pois, como ato constitutivo de uma família, é um mecanismo
importante para a procriação, cuidados biológicos iniciais, geração de afeto para os indivíduos.
Por isso, casar-se é considerado um ato moralmente bom. A propriedade privada é válida,
moralmente boa, porque a julgamos necessária para a manutenção de certa forma de
organização social, supostamente realizadora do homem.
Note-se que compete ao grupo em questão o estabelecimento de padrões para a utilização
desses e de outros hábitos/ costumes, bem como os limites para sua boa ou má utilização.
Julga-se, a partir dai moral a boa utilização e imoral a má utilização dos hábitos e costumes
disponíveis no meio cultural.
3. Lei
Hábitos e costumes relativos a conteúdos julgados fundamentais, indispensáveis para os
indivíduos, são consignados na forma de leis. Leis são acordos de caráter obrigatório,
estabelecidos entre pessoas de um grupo, para garantir justiça mínima, ou direitos mínimos de
ser. Por exemplo, é um costume, estabelecido a partir de certo modelo de produção, remunerar
trabalhos desenvolvidos através de salários. Considera-se justo e bom valorizar o trabalho
desenvolvido. Mas, qual é o limite financeiro de tal valorização? Quanto mais, melhor. Quanto
menos, pior. Torna-se necessário estabelecer, portanto, um salário mínimo, um acordo
financeiro que indique o indispensável para que se pratique justiça mínima...
É claro que, quanto maior o volume de indivíduos envolvidos nos acordos, maior a
complexidade do conjunto legal que produzem. Por isso, o sistema judiciário de um pais é
complexo: suas leis envolvem interesses tão variados quanto são variadas as necessidades dos
seus cidadãos.
Importante ressaltar que a lei não é a justiça, ou seja, o cumprimento da lei não é o
máximo que os indivíduos conseguem desenvolver em prol da própria realização. É apenas um
instrumento para fazer justiça, enquanto encarregada de garantir justiça mínima.
4. Moral e Lei: diferenças e semelhanças
Oriundas das mesmas necessidades, lei e moral assemelham-se e, ao mesmo tempo,
guardam entre si diferenças importantes. São, por um lado, semelhantes porque:
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lei e moral são ambas instrumentos de justiça;
lei e moral são humanas, pois se originam das necessidades humanas;
lei e moral são históricas, pois são estabelecidas a partir de necessidades historicamente
despertadas;
lei e moral são sociais, pois se apresentam como forma de organização da convivência
humana;
lei e moral são questionáveis, pois valem somente enquanto capazes de promover o
bem do homem;
lei e moral dependem de instituições sociais que cuidem de sua preservação.
Diferenciam-se, por outro lado, especialmente porque:
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a moral é um instrumento informal de justiça; a lei é um instrumento formal, escrito e
promulgado;
a moral apresenta-se com possibilidades de variações no âmbito de um mesmo grupo; a
lei apresenta-se como sistema jurídico único para um grupo, passível apenas de
interpretações variáveis;
a moral, ao ser rejeitada por um individuo, provoca apenas a equivalente rejeição do
grupo e o eventual mal-estar típico ao transgressor; a lei, ao ser rejeitada e transgredida,
impõe penalidades concretas ao transgressor;
a moral é indicada como conteúdo bom ou mau a ser escolhido pelos indivíduos do
grupo; a lei é imposta para o cumprimento obrigatório de todos os indivíduos do grupo.
5. Ética
A afirmação de que verdades e valores são relativos costuma assustar ou, no mínimo,
causar estranheza. Sem dúvida, o bem do homem é objetivo, absoluto em si mesmo. Assim
como a verdade sobre o homem. Porém, o que sabemos sobre o bem do homem, isto é, o
conhecimento que temos sobre ele, hoje, é relativo. Note-se que “relativo” não é sinônimo de
mentiroso, duvidoso. É apenas o antónimo de absoluto. Não está em questão, portanto, o bem
do homem, ou a verdade do homem, mas apenas a capacidade de indivíduos ou instituições de
proclamarem-se portadores incontestes da verdade final sobre o bem do homem, num dado
momento de sua história. Ao contrário, ao longo da história humana, inúmeros sábios (e por
isso foram sábios) mostraram-se dispostos a rever posições tidas como verdadeiras valores
tidos como válidos, diante de novas exigências da vida ou evidências da razão. A razão serve à
vida, e não o contrário,
Com efeito, hábitos/costumes e acordos, isto é, a moral e a lei de um grupo,
desenvolvem-se em função da interpretação do que é considerado verdadeiro e válido para esse
grupo. Moral e lei estabelecem-se como instrumentos auxiliares da realização individual,
limitados à dimensão de verdade de que certo grupo é histórica e socialmente portador. O agir
de um grupo segue seu modo de conhecer(ser) 2.
A dinâmica da vida de cada grupo humano irá gradativamente suprimir certas
necessidades, manter outras, criar outras tantas mais. Ou seja, novas exigências existenciais
sempre se apresentarão. Certas diretrizes contidas na moral e na lei poderão, então, se tornar
desnecessárias; outras continuarão válidas e outras ainda faltarão. É senhor que o grupo refaça,
periodicamente, o conjunto de diretrizes, para que a moral e a lei não se tornem inúteis ou
insuficientes, desgastadas pelo tempo. Por exemplo, ao promulgar a Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT) em 1942, a sociedade brasileira, através de seus representantes da época,
julgou que, pela realidade das relações de trabalho então vivenciadas, era necessária uma
diretriz legal que privilegiasse o operário mais do que o patrão. E hoje, após algumas décadas
de educação e organização de classes trabalhadoras em sindicatos, associações, etc., tal escopo
é ainda necessário às leis trabalhistas? Ou ainda, na época, microempresas não existam como
propriedade patronal. Esses pequenos empreendimentos produtivos, que hoje existem
abundantemente em nosso meio, conseguem sobreviver sob a mesma carga fiscal e social que
as grandes empresas?
É nesse contexto que se faz necessária a Ética. Ética é a reflexão sobre a ação humana,
para extrair dela o conjunto excelente de ações. É uma ciência (reflexão), que tem por objeto a
moral e a lei (referencial da ação humana), e pretende aprimorar as “atividades realizadoras de
si” desenvolvidas pelos indivíduos, pela busca do excelente. A excelência de uma ação é
julgada em função do conteúdo de justiça a que pode dar oportunidade. Por isso, ética não
impõe moral e lei, mas propõe rumos possíveis para o aperfeiçoamento de ambas.
Mesmo assim, a ética tem sido utilizada como fundamentação e como justificativa para
comportamentos morais desejados como úteis, ou convenientes. Sanchez Vázquez aponta que
por causa de seu caráter prático, enquanto disciplina teórica tentou-se ver na ética uma
disciplina normativa, cuja função principal seria a de indicar o comportamento melhor do
ponto de vista moral. Mas essa caracterização da ética como disciplina normativa pode levar —
e no passado frequentemente levou — a esquecer de seu caráter propriamente teórico. Certamente, muitas éticas tradicionais partem da ideia de que a missão do teórico, nesse campo, é
2
Justifica-se a expressão quando se considera o modo como se insere a Ética no quadro geral da
atividade humana. Pensada como ciência da ação, ligada ao desafio de promover relações adequadas
entre necessidades e potencialidades humanas, a reflexão ética depende do conhecimento disponível.
Depende de uma Gnosiologia (ou Teoria do Conhecimento) que lhe garanta a possibilidade e
capacidade do ato humano de conhecer. Admitido que o conhecimento, isto é, a posse de dados, seja
possível, abre-se a necessidade de uma Ontologia, uma ciência do ser, que responda a questão: “O
que pode Ser conhecido?” Ora, o ser, aquilo que é, pode ser, conhecido. A ação se desencadeia a
partir dessa base, do conhecimento disponível sobre o ser. O agir, portanto, não tem como seguir o
modo de ser, mas apenas o modo de conhecer o ser, (conhe(ser).
dizer aos homens o que devem fazer, ditando-lhes normas ou princípios pelos quais pautar seu
comportamento. O ético transforma-se assim numa espécie de Legislador do comportamento
moral dos indivíduos e da comunidade. Mas a função fundamental da ética é a mesma de toda
teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos
correspondentes. (...) A pretensão de formular princípios e normas universais, deixando de lado
a experiência moral histórica, afastaria da teoria precisamente a realidade que deveria
explicar".
Texto extraído de: SANTOS, Antônio Raimundo de. Moral, ética, lei. IN: _______ . Ética –
caminhos da realização humana. São Paulo: Ave Maria, 1997. Cap 1.
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