PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
Marcelle Machado de Souza
SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO
FILMADO:
a consolidação de uma sociedade
de controle sobre o direito
fundamental à privacidade e sobre
as formas de interação espontânea
e participação democrática nos
espaços públicos e privados
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Direito
Rio de Janeiro, abril de 2008.
Marcelle Machado de Souza
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO:
a consolidação de uma sociedade de controle
sobre o direito fundamental à privacidade e
sobre as formas de interação espontânea e
participação democrática nos espaços
públicos e privados
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Ciências Jurídicas da PUC-Rio e
Escola Superior Dom Hélder Câmara como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Ciências Jurídicas.
Orientador: Prof. José Ribas Vieira
Rio de Janeiro
Abril de 2008
Marcelle Machado de Souza
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO:
a consolidação de uma sociedade de
controle sobre o direito fundamental à
privacidade e sobre as formas de interação
espontânea e participação democrática
nos espaços públicos e privados
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre pelo
Programa de Pós-graduação em Direito do
Departamento de Direito da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. José Ribas Vieira
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. João Ricardo W. Dornelles
Departamento de Direito – PUC-Rio
Profª. Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista
UCAM
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 02 de abril de 2008.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da
universidade.
Marcelle Machado de Souza
Graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora –
UFJF. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade
Federal de Juiz de Fora – UFJF, em Convênio com a Escola Superior
de Advocacia de Minas Gerais. Especialista em Justiça
Constitucional: teoria e prática pela Universidad Castilla-La Mancha
Toledo/España). Professora de Teoria Geral do Estado e Direito
Constitucional.
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Ficha Catalográfica
Souza, Marcelle Machado
SORRIA
VOCÊ
ESTÁ
SENDO
FILMADO: a consolidação de uma sociedade de
controle sobre o direito fundamental à
privacidade e sobre as formas de interação
espontânea e participação democrática nos
espaços públicos e privados / Marcelle
Machado de Souza; orientador: José Ribas
Vieira. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de
Direito, 2008.
133 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Departamento de Direito.
Inclui bibliografia
1. Direito – Teses. 2. Violência. 3.
Sociedade de controle. 4. Videovigilância. 5.
Segurança pública. 6. Espaço público. 7.
Privacidade. 7. “Projeto Olho Vivo BH” – I.
Vieira, José Ribas. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Direito. III. Título.
CDD: 340
Agradecimentos
A Deus, porque “Tu fazes grandes planos e coisas maravilhosas. Tu vês tudo o que as
pessoas fazem e tratas cada uma de acordo com o seu modo de agir e de viver.”
(Bíblia Sagrada, Jeremias 32:19).
Aos meus pais, José Mário de Souza e Maria José Machado de Souza, pelos olhares
vigilantes e cuidadosos, pelo carinho, zelo e amor desde sempre. Amo vocês!
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Ao meu querido professor e orientador José Ribas Vieira, pela profunda atenção e
dedicação com as quais me acompanhou durante todos estes meses. A você professor,
toda a minha admiração e o meu muito obrigada! Sua generosidade e sua capacidade
vão muito além do mundo acadêmico!
Aos professores José Adércio Sampaio e Bethânia Assy, pela colaboração com textos,
indicações bibliográficas, questionamentos e reflexões que foram essenciais para a
construção desta pesquisa.
À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – Puc Rio e à Escola Superior
Dom Hélder Câmara, por serem instituições que me fizeram acreditar ainda mais, por
meio de seus professores, que a Ciência do Direito carece, neste século XXI, de um
estudo interdisciplinar; que o Direito terá muito mais a contribuir para a sociedade
contemporânea se aliado à Filosofia, às Ciências Sociais e aos demais ramos do
conhecimento.
À Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, pela cordialidade, pelos esclarecimentos
e pelas informações dispensadas sobre o “Projeto Olho Vivo BH”.
A você, minha cara amiga Daniela Mello, por estar ao meu lado nesta ao mesmo
tempo dura e doce caminhada da vida, por partilhar comigo o dia-a-dia de uma vida
profissional e nossas discussões jurídicas!
Às minhas divertidas e batalhadoras amigas Eliane Coelho Mendonça e Raquel de
Souza Lima pelas incansáveis leituras, críticas e comentários que fazem de todos os
meus textos! A vocês, minhas “companheiríssimas” desde os idos da Faculdade,
obrigada por estarem sempre na torcida organizada pelas minhas publicações!
Ao Maurício Trigueiro e a Vânia Amorim, pela amizade e confiança que sempre me
dedicaram nesta árdua tarefa do ensino da Teoria Geral do Estado e do Direito
Constitucional.
A você, Margarida Coutinho, pela paciência com que dedica seus fins de domingo
para corrigir as mazelas dos meus “abstracts” e por ter sido sempre testemunha ocular
da minha caminhada. “Thank you for all, baby face!”
Anne Torres, Virgínia Figueiredo e Graziela Reis, obrigada pelos telefonemas, pelo
apoio e pelo incondicional amor que me dedicaram nestes últimos (ufa!) apertados
meses de minha vida!
Aos meus tios, Vera Lúcia Machado Baeta e Francisco Saint´Yves Baeta, os
primeiros que me receberam de braços abertos neste grande e adorável centro urbano
que é Belo Horizonte, todo o meu amor e o meu muito obrigada!
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Ao Lucas Machado de Souza, não só pelo noticiário da sociedade “big brother” que
sempre me enviou, mas pela preciosa ajuda na formatação destas mais de cem
páginas! Mais do que um irmão, você é um grande amigo!
A vocês, amigos, primos e colegas de trabalho, que me emprestaram seus livros, me
ajudaram com as impressões e correções de inúmeros textos, que tiveram paciência
com a confecção de meus horários e com as minhas indisponibilidades, que me
enviaram reportagens, sites na internet, blogs, recortes de jornal, comentários e
notícias sobre esses inúmeros e incansáveis olhos que não param de nos vigiar, o meu
mais sincero agradecimento!
Aos meus colegas de mestrado, pelos bons tempos em que nos divertimos juntos!
Resumo
Souza, Marcelle Machado; Vieira, José Ribas. SORRIA VOCÊ ESTÁ
SENDO FILMADO: a consolidação de uma sociedade de controle sobre o
direito fundamental à privacidade e sobre as formas de interação
espontânea e participação democrática nos espaços públicos e privados.
Rio de Janeiro, 2008. 133p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
“Sorria você está sendo filmado” foi desenvolvido em uma perspectiva
interdisciplinar, valendo-se de fundamentos jurídicos, sociológicos e filosóficos com
o intuito de demonstrar, em uma análise global e também local (através do estudo
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sobre a implantação do “Projeto Olho Vivo BH”), que em decorrência da crescente
violência que assola a sociedade contemporânea, transformando-a em uma sociedade
de risco, o monitoramento através de câmeras em espaços públicos e privados vem
sendo largamente utilizado como instrumento para a garantia da segurança. A
implantação, no entanto, de uma política de videovigilância tanto pelas autoridades
públicas como também pelos particulares, lançando seus olhares sobre os indivíduos,
não leva em conta os riscos inerentes a tal sistema como, por exemplo, a consolidação
de uma sociedade de controle permanente sobre o comportamento dos cidadãos,
privando-os do exercício da privacidade, da liberdade e da espontaneidade na
interação democrática nesses espaços. A atual era do medo é, ainda, responsável pela
alteração do modo de viver das pessoas nos centros urbanos, pois os indivíduos
passam a viver em espaços vigiados e segregados ou passam a transitar nas ruas e
praças públicas permanentemente monitoradas por câmeras. Assim sendo, a cidade de
muros, enquadrada no que poderia ser conceituado como o panoptismo moderno ou
até mesmo no atento olhar de uma gama de “Big Brothers” sobre os indivíduos, sob o
fundamento da busca pela segurança, reproduz a desigualdade, o isolamento e a
fragmentação, corroendo a cidadania e o exercício do direito fundamental à
privacidade.
Palavras-chave
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Violência; sociedade de controle; videovigilância; segurança pública; espaço
público; privacidade.
Abstract
Souza, Marcelle Machado; Vieira, José Ribas (Advisor). SMILE YOU ARE
BEING WATCHED: the consolidation of a society of control over the
fundamental right of privacy and over the spontaneous ways of
interaction and democratic participation in public and private spaces. Rio
de Janeiro, 2008. 133p. MSc. Dissertation - Departamento de Direito,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
“Smile you are being watched” was developed under an interdisciplinary
perspective, making use of philosofical, sociological and judicial grounds, in order to
demonstrate, through a global and also a local analysis (taking into account the study
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about the implantation of “Projeto Olho Vivo BH”), that, as a consequence of the
ever rising violence, which permeates our present-day society, changing it into a risky
society, the video-camera surveillance, in either public or private spaces, has been
widely used as a necessary tool to ensure safety. However, the use of a videomonitoring policy either by the public authorities, or the private, casting their looks
over the individuals, do not take into account the common risks of such a system as,
for example, the consolidation of a society in permanent control of its citizens’
behavior, depriving them the use of privacy, freedom and spontaneity in the
democratic interaction of these spaces. The present age of fear is still responsible for
the alteration in the way of people’s living in urban centers, since the individuals start
living in monitored and segregated areas or they start walking on streets and squares
which are permanently watched by video-cameras. This time, the city of walls,
pictured through the concept of the modern panoptism, or even under the keen eyes of
a score of “Big Brothers”, in order to justify a search for safety, reproduces the
inequality, the isolation and the fragmentation, corroding the idea of citizenship and
the free exercise of the fundamental right to privacy.
Keywords
Violence; society of control; videosurveillance; public security; public space;
privacy.
Sumário
1. Introdução ________________________________________________ 12
2. Sociedade de risco / Sociedade de controle ______________________ 16
2.1. Sociedade de risco: violência / insegurança _____________________16
2.2. Sociedade de controle: a videovigilância _______________________ 21
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3. Enclaves fortificados / Bolhas de segurança _____________________ 34
3.1. Espaço Público / Espaço Privado ____________________________ 44
4. Privacidade _______________________________________________ 50
4.1. Marcos doutrinários e jurisprudenciais sobre a intimidade e a
vida privada ________________________________________________ 51
4.2. Os termos intimidade, vida privada, privacidade e a busca
por seu significado e conceituação ______________________________ 59
4.3. Nova abordagem sobre a privacidade sob o olhar de SOLOVE _____ 72
4.3.1. Privacidade e práticas sociais ______________________________ 73
4.4. A privacidade sob o olhar de WHITMAN _______________________ 81
4.5. Um olhar atual sobre a privacidade ___________________________ 85
4.5.1. Privacidade versus Segurança _____________________________ 95
5. “Projeto Olho Vivo BH”: monitoramento e controle permanente nas
ruas de Belo Horizonte – MG _________________________________ 100
5.1. O processo legislativo ____________________________________ 14
5.2. Resultados e análise do “Projeto Olho Vivo BH” ________________ 106
6. Conclusão _______________________________________________ 117
7. Referências bibliográficas ___________________________________ 127
Lista de Ilustrações
Figura 01: Ciclo do atendimento do "OLHO VIVO"
103
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Tabela 02: Crimes violentos na área de monitoramento
do “OLHO VIVO”
107
Quadro 03: Resultado da Instalação das câmeras de segurança
109
Quadro 04: Problemas anteriores à instalação das câmeras
109
Quadro 05: Índice de redução da criminalidade
109
Quadro 06: Benefícios com a instalação das câmeras
110
Quadro 07: Criminalidade após a instalação das câmeras
110
Quadro 08: Avaliação sobre a instalação das câmeras
110
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“Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara.”
Livro dos Conselhos
(Ensaio sobre a Cegueira – José Saramago)
1
Introdução
Na era atual da alta modernidade (GIDDENS,1991) ou como enfatiza
BAUMAN (2001) a era da modernidade líquida1, a sociedade se vê perplexa
diante do medo da violência que assola a todos, principalmente nos grandes
centros urbanos. Diante de uma realidade cada vez mais violenta e, por
conseguinte, uma incessante busca pela segurança pública aliada aos novos
instrumentos disponibilizados pela Era da Tecnologia (ROSA, 2006), a forma de
uso e ocupação dos espaços públicos vem sofrendo uma considerável alteração de
paradigma, assim como a alteração também é sentida no tocante ao direito à
privacidade, sempre passível de restrições nesta busca pela segurança.
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Desse modo, as políticas de prevenção e repressão à violência adotadas
tanto pelo Poder Público como também pelos próprios indivíduos instituíram
como uma de suas medidas o monitoramento através de câmeras – a
videovigilância, a filmagem permanente das pessoas nas ruas, avenidas, parques,
praças,
supermercados,
elevadores,
lojas
de
departamentos,
empresas,
consultórios, escritórios, entre outros, no intuito de coibir a prática de atividades
ilícitas.
O medo de se tornarem vítimas da violência fez, ainda, com que os
indivíduos construíssem para si o que o presente trabalho aborda como enclaves
fortificados e bolhas de segurança, vivendo cada vez mais em condomínios
fechados, “shopping centers”, clubes fechados de recreação, carros blindados e
outros, alheios a uma convivência social mais dinâmica e de interação entre todos.
No primeiro caso há um risco real de invasão à privacidade daqueles que
se encontram permanentemente controlados pelas câmeras de vigilância e no
segundo, um esvaziamento dos espaços públicos de interação democrática entre os
1
“A sociedade que entra no século XXI não é menos moderna que a que entrou no século XX; o
máximo que se pode dizer é que ela é moderna de um modo diferente. O que a faz tão moderna
como era mais ou menos há um século é o que distingue a modernidade de todas as outras formas
históricas de convívio humano: a compulsiva e obsessiva, contínua e irrefreável e sempre
incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de
criatividade destrutiva, se for o caso: de “limpar o lugar” em nome de um “novo e aperfeiçoado”
projeto; de “desmantelar”, “cortar”, “defasar”, “reunir” ou “reduzir”, tudo isso em nome da
produtividade ou da competitividade)”. (BAUMAN, 2001:36)
13
cidadãos. Mascarada pela busca da segurança, a sociedade contemporânea põe em
risco a sua própria privacidade e o projeto de construção e consolidação de uma
democracia através da espontaneidade da interação nos espaços públicos.
Frente a tais fatos e considerando que o Direito é um produto da atividade
humana que se expressa por determinadas formas normativas que regulam o
desenvolvimento da convivência social, que o Direito tem um caráter onipresente
em quase todas as esferas do viver social (PEREZ LUÑO, 2005:20), o presente
trabalho parte de uma metodologia que vai da experiência social para a construção
da experiência do Direito, adotando um caráter exploratório sobre o cotidiano da
sociedade contemporânea, buscando um retrato desta sociedade também por um
viés filosófico e sociológico, com enfoque especial para os grandes centros
urbanos brasileiros, principalmente para a cidade de Belo Horizonte – MG, em
seu combate e prevenção à violência através da videovigilância em espaços
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públicos e privados, preocupando-se com a essência do que é viver e conviver
com a violência que assola este início de século XXI, com a essência da realidade
social. E, a partir daí, busca fundamentos teóricos para caracterizar a própria
violência e as conseqüências na ocupação dos espaços públicos, na interação
democrática entre os cidadãos e na proteção ao direito fundamental à privacidade.
É com essa preocupação que este trabalho busca demonstrar, em seu
Capítulo 02, que em decorrência da crescente violência que assola a sociedade
contemporânea, transformando-a cada vez mais em uma sociedade de risco, a
vigilância através de câmeras em espaços públicos e privados vem sendo
largamente utilizada como importante instrumento de prevenção e combate à
violência. No entanto, a implantação de uma vigilância permanente por câmeras
não considera a fundo os riscos inerentes a tal sistema como, por exemplo, a
consolidação de uma sociedade de controle permanente sobre o comportamento
dos cidadãos, privando-os da liberdade, privacidade e espontaneidade em espaços
públicos e privados. Surgem riscos permanentes como o do controle do homem
sobre o próprio homem, como o do homem vigiado todo o tempo, como o daquele
que não vê, mas é permanentemente visto pelas câmeras, como a sociedade
panóptica contemporânea (FOUCAULT, 2006).
No capítulo 03, a discussão está focada no fato de que a atual era do medo
e da violência vem mudando a forma de viver das pessoas nos grandes centros
urbanos e a forma de aproveitamento de um espaço público urbano moderno e
14
democrático. A construção de fronteiras fixas e espaços de acesso restrito e
controlado como um instrumento de combate e prevenção à violência deprecia o
ideal do que seria uma cidade aberta capaz de promover a interação entre as
pessoas; elimina a rua como aspecto central da vida pública moderna. Os
moradores das cidades passam a construir hierarquias, privilégios, espaços
exclusivos e rituais de segregação em seus condomínios fechados, em suas casas
construídas com cercas e muros, em seus “shopping centers” e espaços privados
de lazer gerando, assim, o seu próprio afastamento da esfera política. A cidade de
muros, portanto, reproduz desigualdade, isolamento e fragmentação, corrói a
cidadania e se opõe a quaisquer possibilidades democráticas, reforçando, assim, a
existência de uma sociedade com menos vida associativa, menos atuação cívica,
menos solidariedade e conseqüente vulnerabilidade e exposição aos desmandos de
uma violência gratuita.
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Já o capítulo 04 aborda o direito à privacidade, seu marco teórico e a
construção do seu conceito fundada nas doutrinas nacional e estrangeira. Focaliza,
principalmente, a construção de um olhar sobre a privacidade na sociedade
contemporânea, a adequação de uma visão sobre a privacidade inserida em uma
sociedade de controle que seja capaz de melhor proteger este direito fundamental;
a dualidade entre o público e o privado; os riscos de uma videovigilância
permanente sobre a privacidade e, por fim, a dualidade entre esta e a busca pela
segurança pública.
Partindo do global para o local, o capítulo 05 perfaz uma análise de caso
sobre o “Projeto Olho Vivo BH” implantado na cidade de Belo Horizonte – MG.
É a violência nesse grande centro urbano que gera a adoção de uma série de
políticas de combate e prevenção à essa, entre elas este projeto de permanente
vigilância por câmeras nas principais ruas e bairros da cidade. O estudo contempla
o processo legislativo de elaboração da lei que rege o mencionado projeto, sua
justificativa e seus objetivos e, ainda, os resultados por ele alcançados, aplicando a
linha de raciocínio e as conclusões geradas nos capítulos anteriores sobre a análise
local do “Projeto Olho Vivo BH”. É importante ressaltar que para o
desenvolvimento do estudo sobre o mencionado projeto foram realizadas visitas,
pesquisas e entrevistas periódicas junto à Polícia Militar do Estado de Minas
Gerais em seu Comando do Policiamento da Capital (Belo Horizonte – MG) e no
Centro de Monitoramento do “Projeto Olho Vivo BH”.
15
E, ao final, o capítulo 06 desenvolve a conclusão do presente trabalho
buscando teorizar toda a vivência e realidade social abordadas no texto, todo o
retrato da sociedade contemporânea no aspecto da sociedade de risco e da
sociedade de controle, focalizando os riscos que possivelmente uma
videovigilância pode trazer para a ocupação espontânea e criativa dos espaços
públicos, para a construção de um Estado Democrático de Direito e para a
efetivação do direito fundamental à privacidade.
É válido ressaltar, ainda, que as idéias desenvolvidas pela autora no
presente trabalho, principalmente o enfoque sobre a sociedade de risco, a
sociedade de controle e as conseqüências de uma videovigilância permanente
sobre os indivíduos, já foram objeto de discussão e apresentação do artigo “Sorria
você está sendo filmado – videovigilância e sociedade de controle” no XVI
Congresso Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e PósPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
Graduação em Direito, cujo tema foi “Pensar Globalmente: Agir Localmente”,
realizado em novembro de 2007 na cidade de Belo Horizonte – MG, com a sua
conseqüente publicação nos Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI.
2
Sociedade de risco / Sociedade de controle
2.1
Sociedade de risco: violência / insegurança
Vislumbrando o processo histórico brasileiro em meados da década de 80,
século XX, tem-se que o processo de redemocratização e a volta ao exercício de
um Poder Civil gerou grandes expectativas no tocante à efetividade da proteção
aos direitos humanos e ao verdadeiro exercício de uma cidadania plena a todos os
brasileiros. Prevaleceu, nesse momento, a ilusão de que o fim do regime militar,
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somado à reconstrução de instituições políticas e, ainda, a vitalidade dos
movimentos sociais seriam fatores capazes de controlar e extinguir as
incivilidades, o arbítrio e o autoritarismo com os quais a sociedade brasileira já há
muito estava acostumada a conviver.
A ordem constitucional democrática brasileira, no entanto, não assegurou
cidadania tampouco a plenitude das práticas democráticas para grande parte da
população brasileira, permitindo, ao contrário, que prevalecesse a violência física,
a discriminação, a corrupção, o crescimento da criminalidade e das brutalidades
policiais, os maus-tratos, a tortura e um sistema penal que acaba por centrar sua
atuação na significativa maioria dos casos contra uma população pobre e
miserável1.
É exatamente nessas duas últimas décadas do século XX que o discurso
sobre o medo da violência2 e do crime passa a fazer parte da vida social e política
trazendo conseqüências como a legitimação das transformações das relações
1
Neste aspecto, consoante o disposto por ZALUAR (2006:210), “[...] o processo de
redemocratização coincidiu com a dramática transformação na organização transnacional do
crime, que afetou principalmente as regiões metropolitanas e, nelas, os bairros populares e as
favelas. A entrada dos cartéis colombianos e das máfias ligadas ao narcotráfico, principalmente o
da cocaína, trouxe para o país as mais modernas armas de fogo, que foram distribuídas entre os
jovens traficantes e ‘ aviões’ [...]”. Além disso, segundo a mesma autora, as pessoas
consequentemente ficaram “[...] mais isoladas dentro de suas casas e de suas famílias devido à
falta de previsibilidade e segurança, causada não só pela crise econômica e a inflação, mas também
pela desconfiança, o medo e a violência.” (ZALUAR, 2006:219)
2
O medo segundo MALAGUTI BATISTA (2003,20), “[...] corrói a alma” e a difusão deste tornase “[...] mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social” (MALAGUTI
BATISTA, 2003,51)
17
sociais para com os espaços públicos e estruturação de padrões de segregação
espacial.3
O medo da sociedade contemporânea, segundo SOARES (2003), não é
ilusório. Diferentes razões levam a um quadro nacional de insegurança
extremamente grave, como por exemplo,
(a) a magnitude das taxas de criminalidade e a intensidade da violência
envolvida; (b) a exclusão de setores significativos da sociedade brasileira, que
permanecem sem acesso aos benefícios mais elementares proporcionados pelo
Estado Democrático de Direito, como liberdade de expressão e organização, e o
direito trivial de ir e vir. (c) a degradação institucional a que se tem vinculado o
crescimento da criminalidade: o crime se organiza, isto é, penetra cada vez mais
nas instituições públicas, corrompendo-as, e as práticas policiais continuam
marcadas pelos estigmas de classe, cor e sexo. (SOARES, 2003)
Tais padrões de violência, crime e pânico generalizado podem ser vistos
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claramente neste início do século XXI, principalmente nos grandes centros
urbanos, como os ataques do PCC que vitimaram São Paulo, em maio de 20064, o
brutal assassinato do menino João Hélio Fernandes na cidade do Rio de Janeiro,
em fevereiro de 20075 e o terror espalhado pelas brigas de gangue pelas ruas da
Savassi6, em Belo Horizonte – MG, também no início de 2007, citando poucos
dos muitos exemplos reais que são, a cada dia, divulgados pelos meios de
comunicação.
Além disso, é importante ressaltar que a violência na sociedade
contemporânea, não só nas grandes capitais brasileiras, mas em todo o mundo, se
apresenta como uma realidade presente, passando a atuar como um conceito
central no que tange ao entendimento de relações sócio-políticas, da vida social e
cultural7. A violência deixa de ser, como em meados da década de 70 do século
3
Ainda sobre o medo, ALVES (2007) dispõe que “na era da globalização, também o medo foi
difundido no seio das nações, de um modo geral, passando a participar do espetáculo diário, nos
jornais e na televisão, seja nas ruas de Bagdá, nos trens de Madrid, nas escolas de Beslan ou nas
favelas do Rio de Janeiro. Todos os homens temem e muitos são os motivos dos medos de hoje.
Embora o medo primordial seja o medo da morte, também tememos a violência, as guerras, as
doenças, o terror, o outro, o conhecido e o desconhecido.”
4
DAMIANI (2006)
5
FOLHA DE SÃO PAULO. Criança morre depois de ser arrastada por carro durante assalto. 08
de
fevereiro
de
2007.
Disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u131469.shtml. Acesso em: 31 mai. 2007.
6
FURTADO (2007)
7
“[...] assaltante já se tornou um nome comum e popular para o medo ambiente que assola nossos
contemporâneos; e assim a presença ubíqua dos assaltantes tornou-se crível e o temor de ser
assaltado, amplamente compartilhado.” (BAUMAN, 2001:109)
18
XX, um conjunto de códigos esperados, utilizados para o alcance de uma
finalidade específica. Não há mais a ligação entre ação violenta e consecução de
objetivos determinados uma vez que, já na década de 90, a violência passa a se
expressar sem objetivos aparentes8.
Dessa forma, a violência se generaliza sem balizamentos conhecidos,
expande-se por muitos espaços da sociedade sem uma causa determinada ou
aparente. E, assim, pode-se dizer que a violência hoje penetra de forma latente os
meios de comunicação em massa, os espaços públicos e privados, os bairros
periféricos das grandes cidades, as instituições educacionais, os transportes
(DORNELLES, 1999: 42)9, toda a vida cotidiana das sociedades contemporâneas,
trazendo uma era de insegurança e de medo.
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Assim, segundo ZALUAR (2006, 214),
[...] o crime nas ruas, especialmente o crime violento, é hoje uma das
preocupações centrais das populações metropolitanas brasileiras. A generalização
de imagens da cidade como um ambiente violento e os sentimentos de medo e
insegurança daí decorrentes têm implicações relevantes para as novas imagens da
cidade, não mais associadas à utopia liberal da liberdade e da segurança, no Rio
de Janeiro ou em Nova York, nem às velhas virtudes cívicas, como civilidade,
segurança, trato e confiança. As cidades têm hoje suas imagens tomadas pela
deterioração da qualidade de vida urbana [...]
Como resposta a tamanha e desmesurada violência, a sociedade atual não
tem outra solução que não clamar pela segurança e pela paz10, o que tem como
forte exemplo o movimento “Conquiste a Paz”11 lançado em ato público na Praça
8
“Em qualquer pesquisa de opinião pública realizada atualmente no país, o quesito segurança
recebe a maior votação, o que mostra que a população brasileira está não só preocupada, mas
angustiada com o problema que, se antes ficava restrito aos becos das favelas e aglomerados e à
periferia menos assistida pelo poder público, hoje já bate à porta de quem vive até mesmo em
pequenos municípios e no meio rural, independentemente de classe social ou poder aquisitivo. A
criminalidade e a violência - muitas vezes, gratuita – estão tornando a vida uma mercadoria que se
leiloa ao bel-prazer da bandidagem.” (ESTADO DE MINAS. Conquiste a Paz. Belo Horizonte, n.
23.890, p. 1, 03 jun. 2007.)
9
DORNELLES (1999)
10
“Afirmações mais desesperadas, pedindo por socorro, exigindo medidas imediatas para terminar
com a situação de insegurança, encontram-se na seção de cartas dos leitores de jornais, em geral
pessoas da classe média que vivem atrás das grades de suas casas e condomínios ou dos vidros
fechados de seus carros, mas não escapam das balas perdidas nem dos assaltos à mão armada.”
(ZALUAR, 2006:216)
11
“Conquiste a Paz. Atitude, já! Executivos da indústria e do comércio de mãos dados com
educadores, religiosos, artistas, esportistas, intelectuais, profissionais liberais e trabalhadores.
Enfim, toda a sociedade estará representada hoje, na Praça do Papa, no ato público que marca o
lançamento da campanha Conquiste a Paz, promovida pelos Associados Minas – Estado de Minas,
TV Alterosa, Rádio Guarani, Portal UAI, Diário da Tarde, Aqui, Teatro Alterosa e Alterosa
Cinevídeo. É o marco de uma atitude arrojada contra os níveis intoleráveis da violência e da
corrupção. O movimento, sem data para terminar, parte de mudanças na cobertura da
19
do Papa, em Belo Horizonte – MG, pelos Associados Minas, em data de 17 de
junho de 2007, com a seguinte preocupação:
No dia-a-dia do país, a questão da segurança pública ocupa amplo espaço na
cartilha que trata da qualidade de vida da população. No espectro social
desenhado hoje, a violência – que traz no seu bojo a banalização da vida – assusta
até mesmo os mais experientes policiais, levando a todos inconformismo, revolta
e clamor de justiça. Diariamente, a mídia registra crimes de todas as estirpes, atos
bruscos e fatos em que se sobressaem a agressão ao direito de ir e vir e às pessoas
de viverem em paz.12 (ESTADO DE MINAS)
O exemplo não é o único. Em Brasília, no primeiro semestre de 2007, a
ONG Rio de Paz, fundada no início do ano de 2007, logo após os ataques do
crime organizado que assolaram a cidade do Rio de Janeiro deixando 19 mortos13,
realizou um protesto silencioso pendurando 15 milhões de lenços na Esplanada
dos Ministérios. No gramado em frente ao Congresso Nacional, cada pedaço de
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pano branco simbolizava a morte de uma pessoa assassinada no Brasil, nos
primeiros quatro meses do ano. Além desse, a ONG Rio de Paz já realizou outros
protestos de grande repercussão, colocando 700 cruzes na praia de Copacabana,
na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, mil corpos no calçadão e, ainda, 1,3 mil
rosas enterradas na areia dessa mesma praia.14
Assim, no limiar entre o século XX e o XXI, o medo não se reduz a uma
mera conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, mas pode
sim ser visto como um projeto estético, que entra pelos olhos, pelos ouvidos e
pelo coração. (MALAGUTI BATISTA, 2003:75)
E é esse medo, que atinge a sociedade contemporânea e que a consolida
como uma sociedade de risco, que faz com que esta, conhecida como a sociedade
da tecnologia, a sociedade da informação15, acabe lançando mão de todo um
criminalidade e vai dar suporte à população na reivindicação de programas concretos de combate
ao crime, para devolver às praças e ruas sua destinação cidadã e para que Minas volte a respirar
sem medo (...)”(ESTADO DE MINAS. Conquiste a Paz. Belo Horizonte, 17 jun. 2007. Caderno
Gerais. p. 25.)
12
ESTADO DE MINAS. Conquiste a Paz. Belo Horizonte, n. 23.904, p. 1, 17 jun. 2007.
13
De acordo com SALLES (2007), “(...) a segurança pública no Rio de Janeiro voltou a ser
discutida nacionalmente na virada do ano, quando dezenove pessoas morreram e dezesseis ônibus
foram incendiados em ataques atribuídos a traficantes. Também foram alvejadas cabines da Polícia
Militar e delegacias de Polícia. (...)”
14
MARIZ, Renata. Protesto silencioso pela paz – ONG pendura 15 mil lenços na Esplanada dos
Ministérios. Estado de Minas, Belo Horizonte, 31 mai. 2007. Nacional. p. 13.
15
Segundo GIDDENS (1991:11), “[...] no final do século XX, muita gente argumenta que estamos
no limiar de uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos levando para
além da modernidade. Uma estonteante variedade de termos tem sido sugerida para esta transição,
20
aparato tecnológico e instalando o que de mais comum se tem visto atualmente, o
monitoramento dos cidadãos por câmeras, a videovigilância.
A vigilância eletrônica 24 horas por dia está longe de ser um simples
objeto de ficção científica como no passado. A realidade demonstra um arsenal
tecnológico de controle que inclui radares utilizados para flagrar motoristas
desrespeitando as regras de trânsito, sensores capazes de apontar furtos de
mercadorias em lojas, leitores digitais e de íris com senhas para abertura de portas,
cruzamento de informações bancárias e fiscais que denunciam sonegação de
impostos, identificação biométrica de suspeito de crimes e, ainda, monitoramento
via satélite de presos em liberdade condicional. Além disso, cidadãos,
principalmente dos grandes centros urbanos, vêem-se permanentemente cercados
por câmeras nas ruas das cidades, em elevadores, portarias de prédios, bancos,
padarias, locais de trabalho, supermercados e estações de metrô, apenas para citar
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alguns exemplos.
2.2
Sociedade de controle: a videovigilância
Os sistemas de vigilância eletrônica têm demonstrado um significativo
crescimento em escala global nos últimos vinte anos, fato que representa uma
mudança nas formas de organização social (BOTELLO, 2006:35). Até o final do
século XX, um simples passeio pelas ruas da cidade, pelos parques, praças,
calçadões, galerias, avenidas, poderia ser considerado algo extremamente trivial e
de cunho eminentemente pessoal. Encontrar os amigos nesses espaços, caminhar
aleatoriamente, apreciar vitrines e optar por fazer umas compras no shopping, no
supermercado ou na padaria eram fatores comuns, momentos que permaneceriam
intocados na esfera da vida privada. Já, agora, no início do século XXI, percorrer
o mesmo trajeto expõe a imagem de cada um aos olhos atentos e vigilantes de
centenas de câmeras, como bem expõe ROSA em sua pesquisa:
7 milhões de olhos ... É a estimativa de quantas câmeras de circuito fechado
vigiam os espaços públicos no mundo. Na conta não estão incluídos os espaços
privados. Só na Inglaterra, o país campeão absoluto da vigilância, são 4,2 milhões
alguns dos quais se referem positivamente à emergência de um novo tipo de sistema social (tal
como a ‘sociedade de informação’ ou a ‘sociedade de consumo’) [...]”
21
de câmeras. Cada habitante de Londres é flagrado pelo menos 300 vezes por dia
por esses artefatos. (ROSA, 2006:32)16
Seja no calçadão da praia, em uma praça, seja dentro de um elevador, de
um banco ou de uma loja de departamentos, não importa, as pessoas estão
envolvidas em uma teia de tecnologia tão disseminada que ainda não se deram
conta ou não pararam para refletir que os hábitos mais banais do dia-a-dia são
captados constantemente por lentes poderosas e vigilantes, ainda não se deram
conta de que estão mais expostas do que nunca, que o mundo mudou e que muito
mais do que uma virada de século estão vivendo uma mudança de Era, estão
diante de uma nova unidade histórica: a Era da Tecnologia17, uma realidade que
impõe um novo ambiente social.
Em muitos países europeus, por exemplo, o sistema público de
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videovigilância é o primeiro instrumento empregado para o monitoramento da
população e como prevenção ao terrorismo, em especial pelo Reino Unido18.
(NIETO, 1997)
Já nos Estados Unidos da América do Norte, enquanto na década de 90, no
século passado, um grande número de jurisdições rejeitaram a instalação de um
sistema de câmeras ou decidiram remover sistemas de vigilância já existentes, a
orientação nacional no tocante às preocupações com privacidade e segurança
enfrentou mudanças radicais neste país, em especial após os ataques terroristas de
11 de setembro de 2001, levando a uma total reformulação nos sistemas de
16
Corroborando as informações apresentadas por ROSA (2006), um estudo do Comissariado de
Informação do Reino Unido mostrou que o país está se transformando em uma verdadeira
‘sociedade de vigilância’, com cada habitante sendo filmado por cerca de 300 câmeras todos os
dias. (RT INFORMA, 2006)
17
A tão conclamada Era da Tecnologia, esta Revolução Tecnológica, é muito bem descrita por
ROSA (2006:95-96) quando observa que “(...) não é preciso ir muito longe. Olhe para frente, no
teclado que você usa todos os dias, e tente avaliar a extensão da colossal explosão da internet. Olhe
para cima e tente se lembrar da constelação impressionante de satélites em órbita sobre nossas
cabeças, levando informações em escala cada vez maior de um lado para o outro do universo. Olhe
para o chão e imagine a complexa trama de cabos e fibras óticas, onde trafegam mensagens de
todo lugar para todo lugar. Olhe então à sua volta e constate que há centenas de milhões de
câmeras, webcans, handcans, câmeras de vídeo profissionais e domésticas, com lentes instaladas
em lugares antes improváveis que vão desde avenidas e túneis a recepções e elevadores. Isso sem
contar a legião de microfones com ou sem fio, os celulares com ou sem máquina de fotografar ou
filmar. (...)”
18
De acordo com um jornal inglês, se uma pessoa vai ao shopping, pega um trem, compra
gasolina, vai ao correio ou ao banco, vai ao um jogo de futebol, entra em algum prédio, ou
simplesmente caminha aleatoriamente pelas ruas da cidade, há uma grande chance de sua imagem
ter sido gravada por inúmeras câmeras. Aparentemente, as pessoas notam a presença das câmeras,
mas não demonstram preocupação quanto a elas. (NIETO, 1997)
22
segurança e, por conseguinte, a um aumento da videovigilância (SCHLOSBERG,
OZER).
Na última década, segundo trabalho de NIETO (1997), a Grã Bretanha, a
França, o Principado de Mônaco, a Espanha e outros países vêm cada vez mais
depositando nos circuitos fechados de televisão (a videovigilância) a confiança
para o alcance da segurança pública.
Segundo ROSA (2006:51), “(...) devido ao aumento da criminalidade, a
Polícia do Rio de Janeiro instalou 16 câmeras em pontos estratégicos da orla. Elas
são dotadas de alta definição e de lentes em zoom capazes de identificar e
monitorar os transeuntes detalhadamente.”
E, ainda, apenas para considerar mais um exemplo, conforme atestado em
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reportagem divulgada pela Revista RT Informa,
(...) recentemente, a prefeitura de São Paulo – a exemplo do que vêm fazendo
outras cidades de vários países – instalou um conjunto de 35 câmeras eletrônicas
na região central da capital. Os equipamentos permitem captar detalhes de
diversas ocorrências cotidianas. De acordo com as informações da administração
municipal, a escolha dos locais para instalação das câmeras obedeceu a critérios
que levam em conta fatores como a grande movimentação das pessoas, número
de incidentes registrados e o fato de o lugar ser um ponto histórico ou turístico.
Tudo em nome da segurança. (...) A intenção das autoridades paulistanas é fazer
do sistema uma referência para outras cidades do Brasil, pela cobertura da área
observada, qualidade das imagens, capacidade de aproximação para ver detalhes
das cenas e intervenção imediata. Além das ruas, os cidadãos modernos vivem
cercados de câmeras em muitos outros lugares, como elevadores, portarias de
prédios, bancos, supermercados e estações de metrô, para citar alguns exemplos
bastante conhecidos. Trata-se de uma tendência mundial. (...) (RT Informa, 2006)
A tecnologia é produto do homem e da sua cultura, portanto destinada a
relacionar-se com ele. Como enfatizado por ROSA (2006:54), “... não estamos
vivendo uma revolução qualquer nesses primórdios do século XXI: vivemos uma
revolução que se autoproclama Revolução Tecnológica”. Sendo assim, o
desenvolvimento da tecnologia e, nesta discussão, o monitoramento dos cidadãos
através de câmeras, a videovigilância, geram uma sociedade de controle criando
novas relações a serem reguladas pelo Direito. A influência tecnológica é certa, é
fato! E, tantas mudanças acabam por refletir-se nos eixos de equilíbrio na equação
poder – informação – pessoa – controle, o que implica dizer que o problema passa
a ser não o advento da tecnologia, mas, sim, se ela surge para garantir a segurança,
a forma como ela impacta sobre os direitos fundamentais, especialmente sobre a
privacidade, e como o direito a absorve.
23
As tecnologias desenvolvidas na segunda metade do século XX
representam atualmente um papel de peso na construção de novas formas de
controle social, o que poderia ser denominado de uma “revolução do controle”, na
qual principalmente há um incremento na capacidade de coleta de informação
com seu conseqüente processamento e manejo. (BOTELLO, 2006:36)
Torna-se imprescindível, portanto, no momento atual, a manutenção de
certa distância dos acontecimentos diários a fim de perceber neles o quanto o
modo de ver e ser visto pelas pessoas sofreu uma grande transformação nos
últimos anos em decorrência da disseminação da tecnologia. Faz-se mister
perceber o quanto a realidade concreta, objetiva e diária, lança sobre todos novos
desafios e impõe novos perigos e riscos, além de impor também uma nova forma
de percepção e de atitude do homem diante desta Revolução Tecnológica, uma
vez que não faz dez anos que o mundo passou a viver de uma forma
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preponderantemente diferente, em uma nova Era (ROSA, 2006).
Mais do que um “Gran Hermano”, um “Big Brother”, um “Grande Irmão”,
com seu permanente olhar vigilante sobre a sociedade, percebe-se a existência de
“pequenos irmãos” que crescem a cada dia associando-se e comunicando-se entre
si, uma vez que os sistemas atuais de vigilância estão cada vez mais conectados e
coordenados entre si. (BOTELLO, 2006:37)
A inovação está avançando em uma velocidade tão avassaladora que
obriga os operadores das Ciências Sociais, do Direito, da Filosofia e outras
ciências afins a imprimirem uma velocidade ainda maior no intuito de reavaliar e
renovar os condicionamentos dos indivíduos19, a fim de evitar desdobramentos
ainda mais surpreendentes e potencialmente mais devastadores20.
19
No texto de PIERET sobre a sociedade de risco, por exemplo, o autor ressalta a necessidade
cada vez maior de uma exigência reflexiva no futuro da regulação jurídica, de uma renovação das
formas e da natureza da regulação jurídica, menos adstrita a um direito substancial e mais adstrita
a um direito institucional, pois em certas situações torna-se impossível a previsão de uma
regulação definitiva. O Direito, enquanto uma única ciência, não terá êxito em dar respostas
satisfatórias ao tratamento dos riscos que se desdobram dos instrumentos de transparência e de
democracia no cotidiano da sociedade, devendo, pois, desenvolver mecanismos que permitirão
melhor acolher as exigências da população e refletir os conhecimentos das demais Ciências.
20
Ressaltando a velocidade avassaladora das mudanças no atual processo histórico, GIDDENS
(1991:14-15) dispõe que “os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de
todos os tipos tradicionais de ordem social de uma maneira que não tem precedentes. Tanto em sua
extensionalidade quanto em sua intencionalidade, as transformações envolvidas na modernidade
são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos
precedentes.[...] As civilizações tradicionais podem ter sido consideravelmente mais dinâmicas
24
A insegurança e violência constante e, por conseguinte, a videovigilância
permanente e o controle sobre os cidadãos são fatores que devem levar à Ciência
os questionamentos ora levantados:
Será que as vidas humanas passarão a fazer parte de um permanente
“Show de Truman”21, onde os espaços urbanos acabam sendo convertidos
sistematicamente em territórios de observação e vigilância, em um contínuo
programa de televisão no qual a cidade é um enorme cenário com câmeras por
todas as partes?
Em 1949, George Orwell escreveu uma novela futurista chamada
“1984”, na qual desenhou um mundo sem privacidade, onde as autoridades
governamentais monitoravam as atividades dos cidadãos valendo-se de um vasto
aparato tecnológico. A perda da privacidade moldou esta sociedade, permitindo ao
governo o exercício do controle sobre todos os aspectos da vida individual. Será
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que a sociedade vigiada e monitorada de ORWELL22-23 passará de mera ficção
para realidade?
Segundo BAUMAN (2001:34-35), no momento em que foi escrito, o
livro de Orwell era o mais completo e canônico inventário dos medos e
apreensões que pairavam sobre a modernidade em seu estágio sólido, seu estágio
inicial e hoje seus presságios e diagnósticos trazem um “1984” real para a
sociedade contemporânea, para a modernidade que ele ressalta como líquida, com
a necessidade de um debate público amplamente considerado.
E mais, buscando, ainda, exemplos na ficção científica, em “Minority
Report”24, filme exibido em 2002, três humanos adquirem a capacidade de ver o
que outros sistemas pré-modernos, mas a rapidez da mudança em condições de modernidade é
extrema”. E, ainda, segundo o mesmo autor “o mundo moderno é um ‘mundo em disparada’: não
só o ritmo da mudança social é muito mais rápido que em qualquer sistema anterior; também a
amplitude e a profundidade com que ela afeta práticas sociais e modos de comportamento
preexistentes são maiores”. (GIDDENS, 2002:22)
21
Truman é o personagem de Jim Carrey, no filme de Peter Weir, “O show de Truman”, de 1998.
Funcionário público de uma pequena cidade norte-americana, Truman “descobre ser o herói de um
programa de televisão permanente e de 24 horas por dia: a cidade em que vive é na verdade um
enorme cenário em que as câmeras o seguem por toda parte.” (ZIZEK, 2003:27)
22
ORWELL, George. 1984. [Tradução de Wilson Velloso]. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2004.
23
“There was of course, no way of knowing whether you were being watched at any given
moment ... you had to live, did live, from habit that became instinct, in the assumption that every
sound you made was overheard, and, except in darkness, every movement scrutinized.”
(ORWELL, 2004)
24
“Minority Report” é um filme de Steven Spielberg, exibido em 2002, baseado em um conto de
Philip K. Dick (ZIZEK, 2003:9)
25
futuro e prever seus atos levando uma sociedade a prender seus criminosos antes
mesmo que cometam qualquer tipo de crime. Será que a sociedade atual está tão
distante assim deste tipo de controle estatal?
Já “Matrix”, filme exibido em 1999, consegue chegar ao ponto máximo de
uma realidade virtual. A realidade material vista e sentida por todos é de fato
gerada e coordenada por um megacomputador ao qual todos estão conectados. No
desenrolar da trama, o herói acorda na realidade real e se vê diante de uma
paisagem desolada e cheia de ruínas carbonizadas, sendo aquilo tudo o que sobrou
de Chicago após uma guerra mundial. Nesse momento, um outro personagem, o
líder da resistência, apresenta-lhe uma saudação: “Bem-vindo ao deserto do real”.
(ZIZEK, 2003:29) Será que está tão distante assim essa realidade virtual?
Claro está que a construção de um pensamento científico não pode estar
fundada em suposições oriundas da ficção científica. Não há como retirar das telas
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de cinema ou das páginas de um romance um fundamento jurídico, político ou
mesmo social para demonstrar os riscos inerentes a uma sociedade de controle. No
entanto, não há como negar que, apesar de ainda não existir uma sociedade
completamente privada de seu direito à intimidade ou vida privada e um Estado
com o total controle sobre a vida individual de seus cidadãos, o aparato
tecnológico imaginado por ORWELL (2004) já está impregnado no dia-a-dia de
todos, nesta nova Era Tecnológica.
Não há, ainda, como fechar os olhos à catástrofe gerada pelo ataque
terrorista às torres gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque na agora
inesquecível data de 11 de setembro de 2001! Fazendo coro ao pensamento de
ZIZEK (2003:31): “(...) o que devíamos ter-nos perguntado enquanto olhávamos
para os televisores no dia 11 de setembro é simplesmente: onde já vimos esta
mesma coisa repetida vezes sem conta?” Resposta: nas telas de cinema
transmitidas ao mundo pelas fantásticas lentes de Hollywood que, entretanto e
infelizmente, dessa vez era real. Tão real e tão fantástico ao mesmo tempo que o
próprio Pentágono, após os ataques terroristas de 11 de setembro, decidiu
convocar um grupo de autores e diretores de Hollywood, especialistas em filmescatástrofe, para colaborarem com o governo americano na então incipiente guerra
contra o terrorismo, imaginando possíveis cenários de ataques terroristas e a
forma de lutar contra eles. (ZIZEK, 2003:30)
26
Desta maneira, não há como desprezar por completo os enredos
virtuais que chegam às telas de cinema ou ao mundo da ficção, sendo que um
olhar cauteloso sobre o real hoje se torna imprescindível a fim de evitar a
experiência de um universo cada vez mais virtualmente construído e
permanentemente controlado.
E assim, a expansão de sistemas eletrônicos de vigilância, principalmente
a videovigilância, não pode ser relegada a um mero acostumar-se com a sua
existência e presença constante. De acordo com o posicionamento de BOTELLO
(2006:37), a vigilância pode ser vista de duas formas: por um lado há uma busca
na redução dos riscos de roubo, fraude, seqüestros e acidentes, no entanto, ao
mesmo tempo, é permitida a organização de informação sobre certos grupos
sociais e também dos indivíduos que pode, por fim, ser utilizada justamente com o
intuito de controlar e administrar esses próprios indivíduos e grupos. Assim, é
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fundamental observar como esses riscos são definidos e pensados por parte das
autoridades governamentais, dos setores sociais e privados porque, por trás de um
controle dos riscos da violência e de uma busca da redução da insegurança, os
sistemas de vigilância estão relacionados com um controle social25.
Analisando esta aclamada Revolução Tecnológica, e ainda os sistemas de
vigilância dela decorrentes, ROSA (2006:88) acaba fazendo referência a um
Homo Bytens, dando a ele as boas vindas ao ecossistema digital. Esse Homo
Bytens, assim, que vive em uma sociedade de risco e violenta, lança mão de toda a
tecnologia e implanta milhões de olhos vigilantes (câmeras) no intuito de garantir
a segurança e o bem-estar de cada um no âmbito de sua vida individual e na
convivência com a coletividade. No entanto, ao fazer isso, aproxima-se ou mesmo
incorpora a visão de ZIZEK (2003: 90,103) sobre um Homo Otarius que, ao tentar
manipular os outros, acaba ele próprio sendo o verdadeiro explorado; ao começar
uma luta contra a Igreja em nome da liberdade e da humanidade, acaba por abrir
mão da própria liberdade e da humanidade para que possa, enfim, lutar contra a
Igreja.
25
Tanto é assim que é preocupante verificar que, longe da discussão sobre o combate à violência
que atinge as ruas e espaços públicos dos grandes centros urbanos, a videovigilância já vem sendo
utilizada também para outras finalidades como, por exemplo, no Colégio Santa Tereza, no bairro
Santa Tereza, na região leste de Belo Horizonte – MG. Esta escola está sendo equipada com
câmeras de vídeo, sendo que, no total, serão instaladas 34 câmeras em todas as suas salas e
cômodos. Os pais receberão login e senha, e poderão acompanhar a sala de aula do filho e as áreas
comuns da escola, como os pátios. A novidade das câmeras vigiando crianças de zero a dez anos
de idade na sala de aula já começa a vigorar a partir de março de 2008 (PENA, 2008).
27
Este Homo Otarius, buscando um paralelo em ARENDT (2007:164), por
sua vez se assemelha ao Homo Faber. É este Homo Faber, fazedor de
instrumentos, inventor de utensílios e ferramentas para a construção do mundo,
inserido em um sistema capitalista e bem no início da era moderna, com o intuito
de servir ao processo vital humano, que depara com a seguinte questão: são os
homens senhores ou escravos de suas máquinas? E, ainda, as máquinas criadas
para servir ao mundo e às coisas do mundo de fato cumprem a sua finalidade ou
essas mesmas máquinas e seus processos automáticos passaram a dominar e
destruir o mundo e suas coisas? Ele cria instrumentos para servi-lo e acaba sendo
escravo de seu próprio instrumento. Ele inventa máquinas para construção do
mundo e suas coisas, no entanto, passam a ser instrumentos de destruição e
dominação.
Traçados estes paralelos tem-se que o Homo Bytens (ROSA, 2006),
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portanto, deve estar atento para não agir como os guerreiros liberais que, ansiosos
para lutar contra o fundamentalismo antidemocrático, são capazes de eliminar os
próprios valores democráticos e sacrificar a liberdade caso seja necessário para
lutar contra o terrorismo (ZIZEK, 2003:104). Se o Homo Bytens para controlar
uma sociedade de risco e garantir segurança aos cidadãos acabar controlando a si
próprio através de uma sociedade de controle e vigilância que ele mesmo instituiu,
acabar entregando a sua privacidade, a sua liberdade de atuação espontânea em
espaços públicos ao olhar vigilante de milhares de câmeras, ele nada mais será do
que um autêntico Homo Otarius, ou nada mais fará do que repetir em pleno século
XXI, a realidade do Homo Faber dos séculos XIX e XX.
O cotidiano urbano atual criado pelo Homo Bytens, repleto de câmeras em
seus espaços públicos, reflete de certa forma o sistema panóptico de
BENTHAM26, muito bem explorado por FOUCAULT27, no qual os indivíduos
não vêem, mas têm a sensação de estarem permanentemente sendo vistos,
vigiados e controlados. Assim, algumas características do poder disciplinar, que
desde o começo do século XIX foi regularmente utilizado como processo de
26
BENTHAM, Jeremy. O Panótico. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
27
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir.[tradução: Raquel Ramalhete]. 31. ed. Petrópolis: Vozes,
2006.
28
individualização para marcar exclusões, pode ser identificado neste início do
século XXI.
Nos séculos XVII e XVIII, um fenômeno importante, qual seja, o poder
disciplinar, surge com a invenção de uma nova mecânica de poder com
procedimentos
e
instrumentos
específicos
e
totalmente
novos,
sendo
absolutamente incompatível com as relações de soberania. Surge um outro tipo de
poder, desta vez exercido continuamente através da vigilância, supondo um
sistema minucioso de coerções materiais, e não a existência física do soberano.
Esse novo poder é, portanto, uma das grandes invenções da sociedade burguesa,
sendo instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do
tipo de sociedade que lhe corresponde.
Assim, para GIDDENS (2002:139-140) na fase de decolagem do período
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moderno, surgem diversos conjuntos de influências, das quais a aceleração dos
processos de vigilância, de certa forma, se torna o mais importante,
principalmente com a radicalização e globalização das instituições modernas,
valendo observar que o crescimento das capacidades de vigilância é o principal
instrumento de controle da atividade social por meios sociais e que, onde a
vigilância é altamente desenvolvida, as condições de reprodução social tornam-se
cada vez mais automobilizadas.
O poder disciplinar, dessa forma, acaba sendo um investimento político e
detalhado do corpo, uma nova microfísica do poder que, a partir do século XVII,
não cessa de ganhar mais e mais espaço. As disciplinas são métodos que permitem
o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças, impondo-lhe uma relação de docilidade-utilidade, uma verdadeira
relação de dominação. Trata-se aqui de impor ao corpo limitações, proibições e
obrigações, trabalhando-o detalhadamente e exercendo sobre ele uma coerção sem
folga sobre movimentos, gestos, atitude e rapidez.
Esse poder foi instalado no asilo psiquiátrico, na penitenciária, na casa de
correção, no estabelecimento de educação vigiada e nos hospitais de um duplo
modo: com a divisão binária e a marcação de louco - não louco, perigoso inofensivo, normal - anormal e também com a repartição diferencial e a
determinação coercitiva de “quem é”, “onde deve estar”, “como caracterizar”,
“como reconhecer” e, principalmente, “como exercer de maneira individual uma
29
vigilância constante”. Nesse sentido, a figura arquitetural dessa composição é o
Panóptico de Bentham, princípio conhecido por uma construção em anel na
periferia e uma torre no centro, vazada de largas janelas que se abrem sobre a face
interna do anel. Nesse sistema disciplinar, a construção periférica é dividida em
celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção, sendo que essas
celas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre, e
outra para o exterior, permitindo que a luz atravesse a cela de lado a lado. Dessa
forma, a vigilância se torna fácil, pois basta colocar um vigia na torre central e em
cada cela trancar um louco, ou um doente, ou um condenado, um operário ou um
escolar, que, pelo efeito da contraluz, esse vigia poderá perceber, sem sequer se
deslocar da torre, os movimentos e comportamento de cada um em suas
respectivas celas. A visibilidade acaba sendo uma armadilha. (FOUCAULT,
2006:165-166)28
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O Panóptico surge para dissociar o entendimento do que seja “ver - ser
visto”, pois no anel periférico o indivíduo sempre é visto, sem nunca poder ver, e
já na torre central vê-se tudo, sem nunca ser visto. Há que se ressaltar que esse
indivíduo que não é capaz de ver, mesmo que não esteja sendo observado em um
determinado momento, sempre tem a certeza de que ao menos pode estar sendo
visto, portanto a vigilância será permanente em seus efeitos, apesar de poder ser
descontínua em sua ação e essa, segundo FOUCAULT (2006:166), é a garantia da
ordem. Para ele, no panoptismo os condenados não se rebelam, não há perigo de
complô nem de tentativa de evasão coletiva; não há risco de contágio entre os
doentes; não há violências recíprocas entre os loucos, nem cola, barulho ou
conversa entre as crianças na escola; entre os operários não há roubos nem
conluios e tudo isso graças aos mecanismos de observação e vigilância
implantados como uma espécie de laboratório do poder, intensificando qualquer
aparelho de poder.
As disciplinas, ou melhor, o poder disciplinar permite o controle
minucioso das operações do corpo impondo-lhe uma relação de docilidade28
Assim, de acordo com as colocações de BAUMAN (2001:16), Foucault se valeu muito bem do
panóptico de Bentham como uma arquimetáfora do poder moderno, deixando os internos “[...]
presos ao lugar e impedidos de qualquer movimento, confinados entre muros grossos, densos e
bem-guardados, e fixados a suas camas, celas ou bancadas. Eles não podiam se mover porque
estavam sob vigilância; tinham que se ater aos lugares indicados sempre porque não sabiam, e nem
tinham como saber, onde estavam no momento seus vigias, livres para mover-se à vontade.”
30
utilidade, tornando-se, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, uma fórmula geral
de dominação apta a fabricar corpos submissos. A disciplina fabrica, pois,
indivíduos perfazendo uma técnica específica de poder que os toma como objetos
e, ao mesmo tempo, como instrumentos de seu exercício. Tal exercício pressupõe
um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar, um instrumento através do qual as
técnicas que permitem ver conduzam a efeitos de poder e, em contrapartida, os
meios de coerção tornam visíveis aqueles sobre quem se aplicam. (FOUCAULT,
2006:117-119,143)
Pode-se observar que as estruturas panópticas são leves, sem grades, sem
correntes, sem estruturas pesadas, sem o recurso à força para obrigar o detento ao
bom comportamento. Não há armas, violência física ou coação material, pois no
panóptico bastam separações bem nítidas e aberturas bem distribuídas que
permitam levar o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o
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doente à observância das receitas e agora, na sociedade contemporânea, o
transeunte ao controle do seu comportamento pela simples sujeição a um sistema
constante de vigilância e isolamento.
BAUMAN (2001:17-18), analisando o panoptismo, apresenta uma série de
desvantagens e anuncia o fim desse sistema na sociedade que ele denomina de
pós-moderna, ou que vive uma segunda modernidade, a sobremodernidade, ou
conforme GIDDENS (2002), a alta modernidade. Alega traduzir este sistema em
uma estratégia cara em decorrência da conquista do espaço e sua manutenção,
com a manutenção dos edifícios em bom estado, contratação e remuneração de
vigias profissionais, assim como a manutenção dos internos em seus espaços
vigiados, abarcando a necessidade de execução de uma série de tarefas
administrativas custosas e complicadas. Anuncia, ainda, o fim do panoptismo
como o fim da era do engajamento mútuo entre supervisores e supervisados,
capital e trabalho, líderes e seguidores ou exércitos em guerra, pois o poder se
tornou de fato extraterritorial, não mais limitado pelo espaço e apto a se mover
com a velocidade de um sinal eletrônico. Não importa mais quem dá a ordem,
haja vista que a diferença entre próximo e distante está prestes a desaparecer, e os
detentores do poder podem agora se livrar dos aspectos irritantes e atrasados da
técnica do poder do Panóptico.
No entanto, o presente trabalho busca demonstrar que não há de se falar
em fim do panoptismo. Pode-se até afirmar que o panoptismo nos exatos moldes
31
dispostos por FOUCAULT (2006) pode até ter encontrado o seu fim, sendo válida
a crítica de BAUMAN (2001), mas a sua essência permanece. A essência de uma
vigilância permanente encontra-se cada vez mais presente na sociedade
contemporânea e agora não mais restrita a espaços como escolas, hospícios e
penitenciárias, mas sim abrangendo diversos espaços públicos e privados por onde
circulam os indivíduos que têm a sensação de estarem constantemente vigiados,
de estarem sendo vistos, sem que possam ver29.
Para tanto, é válido observar um exemplo citado pelo próprio BAUMAN
(2001:133-134) acerca da planta de “Willow Run” da General Motors em
Michigan, tida como um lugar no qual a lógica do poder e a lógica do controle
baseavam-se na estrita separação entre o que está dentro e o que está fora, com
uma vigilante defesa da fronteira entre eles. Um local onde a rotinização do tempo
era capaz de mantê-lo como um todo compacto e sujeito a uma lógica homogênea.
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Um tempo rotinizado que se aliava aos altos muros de tijolos arrematados por
arame farpado ou cacos de vidro e portões bem-guardados com o intuito de
proteger o local contra intrusos. Esse modelo se aplica bem ao que poderia ser
chamado de “fábrica fordista”, um modelo cobiçado e avidamente seguido da
racionalidade planejada no tempo da modernidade pesada.
O início da era moderna, portanto, foi impregnado de uma tendência ao
totalitarismo, criando uma modernidade pesada, sólida, condensada, sistêmica,
uma sociedade totalitária com uma homogeneidade compulsória, imposta e
onipresente. Tal modernidade era contrária à contingência, à variedade e à
ambigüidade, tendo como um dos seus principais ícones a mencionada “fábrica
fordista” capaz de reduzir as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros
29
Dentro de um panoptismo que poderia se enquadrar na alta modernidade é válido mencionar, a
título de exemplificação, a atual discussão pela busca de soluções no sistema prisional brasileiro.
Desta feita, o Ministério da Justiça formou uma comissão ligada ao Departamento Penitenciário
Nacional - DEPEN que está percorrendo cadeias de todo o país com o objetivo de elaborar um
Plano Diretor do Sistema Penitenciário, na tentativa de encontrar soluções para uma melhor gestão
do mesmo. Encontra-se em estudo, além da construção de novos estabelecimentos prisionais, a
liberação de presos cujos crimes são considerados menos graves. Isso, no entanto, exigiria um
acompanhamento e fiscalização dos detentos, mas como não há funcionários suficientes, a
sugestão levantada é a de que os condenados usem pulseiras eletrônicas e sejam fiscalizados
“eletronicamente” enquanto estiverem em liberdade. No Estado de Minas Gerais a idéia é a mesma
só que no lugar de pulseiras, está sendo testado o monitoramento eletrônico através de
tornozeleiras que, uma vez presas aos pés dos presos do regime semi-aberto, permitem que a
direção do presídio saiba, através de ondas de rádio, onde ele está quando fora da unidade. (Em
busca de soluções. Disponível em: http://pessoas.hsw.uol.com.br/prisoes8.htm. Acesso em
02/02/08) (grifos nossos)
32
e predeterminados, movimentos que refletiam obediência e que eram
mecanicamente seguidos, excluindo toda manifestação espontânea e iniciativa
individual. (BAUMAN, 2001:34)
A sociedade contemporânea não vive mais o modelo fordista como um
modo de produção, não vive mais a era da modernidade pesada, o trabalho de fato
se livrou do panóptico, desta vigilância com muros, arame farpado e cacos de
vidro. A vida das gerações de hoje está enquadrada em uma modernidade leve, a
modernidade contemporânea é fluída, líquida ou liquefeita, difusa. No entanto,
esta mesma sociedade contemporânea, apesar de estar diante de uma modernidade
leve, caracterizada pela fluidez das relações capital e trabalho, supervisores e
supervisionados, tempo e espaço (BAUMAN, 2001), não está livre do
panoptismo, ou pelo menos não está livre de um panoptismo redesenhado,
repaginado, uma vez que a vigilância, aplicada agora por outras razões (garantia
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da segurança) e com outros mecanismos (a videovigilância), é de igual forma
capaz de proporcionar a rotinização e homogeneização do comportamento dos
indivíduos, não só dentro dos muros de uma determinada indústria, mas em
diferentes espaços públicos e privados. Quando BAUMAN (2001:34) cita, na
modernidade sólida, o panóptico com suas torres de controle e com os internos
que nunca podem contar com os lapsos de vigilância dos supervisores e, ainda, o
Grande Irmão que não cochila e está sempre atento, sendo rápido e eficiente em
premiar os fiéis e punir os infiéis, tal realidade está de forma intensa inserida na
fluida modernidade contemporânea.
Assim, pode-se afirmar, segundo ALVES (2007) que a sociedade
disciplinar, fundada na organização dos grandes meios de confinamento como a
família, a escola, a caserna, a fábrica, o hospital e a prisão, passou por uma crise.
Desta feita, tais sociedades disciplinares, logo após a Segunda Grande Guerra
Mundial, foram substituídas por um novo modelo, sendo constituídas novas
formas de sociabilidade e de subjetividade que marcaram a passagem para uma
sociedade de controle. Nesta, surgem novos mecanismos de vigilância com poder
suficiente para tornar o indivíduo incapaz de esboçar qualquer reação.
O sistema panóptico, com seu controle feito por meio de uma visibilidade
total e permanente dos indivíduos é vivido de forma plenamente ativa pelas
sociedades contemporâneas, no entanto, existem atualmente novas formas de
controle implementadas pelas novas tecnologias, incluindo neste raciocínio a
33
utilização de sistemas de patrulhamento vídeo-monitorados, ou seja, a
videovigilância generalizada em espaços públicos e privados. Sendo assim,
enquanto na sociedade disciplinar o observador encontra-se presente em tempo
real, observando e vigiando os indivíduos, na sociedade de controle a vigilância
torna-se rarefeita e virtual. Todavia, tanto em uma quanto em outra o efeito
causado nos indivíduos parece o mesmo, pois são ao mesmo tempo visíveis e
incapazes de serem vistos, sentindo-se controlados pela força penetrante do olhar.
(ALVES, 2007)
Desta feita, atentos à realidade material, ao “deserto do real” de uma
videovigilância permanente em pleno século XXI, em uma sociedade que vem se
estruturando como uma sociedade de controle, é válido mencionar as colocações
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do próprio FOUCAULT quando esclarece que
Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses “observatórios”
da multiplicidade humana para as quais a história das ciências guardou tão
poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes
luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas
técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver
sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um
saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para
utilizá-lo. (FOUCAULT, 2006:143-144)
Se, como colocado por FOUCAULT, a história das ciências guardou tão
poucos elogios para os observatórios da época clássica, imagine os perigos que
não escondem agora os observatórios da Era da Tecnologia com seus mais de sete
milhões de olhos plantados permanentemente sobre o comportamento humano.
Ao aplicar à multiplicidade de indivíduos que transitam pelos espaços públicos e
também privados o sistema panóptico, a fim de garantir um comportamento que
possa minar a sociedade de risco e trazer de volta a segurança ou ao menos uma
sensação de segurança, esta multidão que funciona como um local de múltiplas
trocas, de individualidades que se fundem, de efeito coletivo, acaba sendo tolhida
e, na pior hipótese, abolida.30
30
Fazendo um paralelo entre o sistema panóptico e as constantes placas de aviso “Sorria você está
sendo filmado”, é válido mencionar o posicionamento de SAYÃO (2007), ao dizer que “(...) bem,
os tempos mudaram. As placas com o citado aviso se multiplicaram e as câmeras também, como
um sinal visível de que vivemos numa sociedade de controle. Entretanto, as câmeras registram
também o descontrole das pessoas e a desorganização do espaço social compartilhado. (...)”
3
Enclaves fortificados / Bolhas de segurança
É exatamente nas duas últimas décadas do século XX que o discurso sobre o
medo da violência e do crime passa a fazer parte da vida social e política, com a
gritante insegurança da atual era do medo, trazendo conseqüências como a
legitimação das transformações das relações sociais para com os espaços públicos e
estruturação de padrões de segregação espacial.
Tais padrões de segregação podem ser vistos claramente na cidade de São
Paulo, por exemplo, onde o discurso do medo acaba por servir de argumento
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motivador para as transformações na forma de ocupação dos espaços públicos, com o
deslocamento das classes mais altas, com a redefinição de espaço público que vem
reforçar a exclusão social, a discriminação, os preconceitos de classe e raça, a
estigmatização e um olhar cada vez mais diferenciado e negativo para as classes mais
pobres e vulneráveis da sociedade paulistana.
A estrutura que vem se configurando em São Paulo desde a década de 80, no
século passado, e alterando a vida na cidade e em sua região metropolitana é a de
criação de espaços onde diferentes grupos sociais encontram-se extremamente
próximos, mas separados por muros e tecnologias de segurança, por barreiras físicas e
sistemas de identificação e controle, que geram uma ausência de circulação ou
interação em áreas comuns1. Como classificado por CALDEIRA (2003: 211), o
principal instrumento deste novo padrão de segregação espacial que surge nos anos
80 são os “enclaves fortificados” – espaços privatizados, fechados e monitorados para
residência, consumo, lazer e trabalho.
Entendem-se por enclaves fortificados não apenas os grandes condomínios
fechados das classes mais altas, mas ainda conjuntos de escritórios, prédios de
apartamentos, shopping centers, escolas, hospitais, centros de lazer, parques
1
“Em São Paulo, a tendência segregacionista e exclusivista se apresenta da forma mais brutal,
inescrupulosa e desavergonhada. Mas pode-se sentir seu impacto, embora de maneira um tanto
atenuada, na maioria das metrópoles. [...] Os moradores dos condomínios cercam-se para ficar ‘fora’
da excludente, desconfortável, vagamente ameaçadora e dura vida da cidade – e ‘dentro’ do oásis de
calma e segurança.” (BAUMAN, 2004:131)
35
temáticos, todos os que vêm sendo adaptados para mudar o panorama da cidade, seu
padrão de segregação espacial e o caráter de espaço público até então capaz de gerar
interações públicas entre as classes. Todos os enclaves fortificados partilham
características básicas como demarcação física, isolamento por muros, grades,
espaços vazios e detalhes arquitetônicos; são propriedade privada para uso coletivo,
dão ênfase ao valor do que é restrito e privado, desvalorizando o que é público e
aberto na cidade.
A consolidação de fronteiras vigiadas de perto, que buscam alcançar a defesa
da comunidade, que empregam guardiões armados para o controle da entrada, que
promovem assaltantes e vagabundos à condição de inimigos número um, que
compartimentam áreas públicas em enclaves defensáveis dotados de acesso seletivo,
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que promovem a separação em detrimento do lugar da vida em comum, todas essas
são as principais dimensões da evolução da vida urbana contemporânea. (BAUMAN,
2001:111)
Assim, tais enclaves estão mudando as maneiras de viver, consumir, trabalhar
e usufruir de um pouco de lazer das classes média e alta e, mais, cultivam um
relacionamento de negação e ruptura com o resto da cidade, gerando uma distância
cada vez maior com o que se pode chamar de um modelo ideal de cidade, de um
espaço público moderno e democrático, o espaço das cidades modernas, com
circulação livre, primazia e abertura de ruas, uso espontâneo de praças e ruas,
encontros impessoais.2
Para CALDEIRA (2003:307), um espaço público moderno e democrático
promove a interação de pessoas, incorporando um ideal de cidade aberta, tolerante às
diferenças sociais e à negociação de encontros anônimos. É um espaço no qual
2
Nesta mesma linha dos enclaves fortificados, em “Modernidade Líquida”, BAUMAN (2001:107108) aborda o exemplo do Heritage Park de George Hazeldon, um arquiteto inglês estabelecido na
África do Sul, que sonha com uma cidade diferente das cidades comuns, onde você possa se dar ao
luxo de comprar uma casa e “passar boa parte da sua vida afastado dos riscos e perigos da turbulenta,
hostil e assustadora selva que começa logo que terminam os portões da cidade. Tudo o que uma vida
agradável requer está lá: Heritage Park terá suas próprias lojas, igrejas, restaurantes, teatros, áreas de
lazer, florestas, um parque central, lagos com salmões, playgrounds, pistas de corrida, campos de
esportes e quadras de tênis – e área livre o suficiente para se acrescentar o que quer que a moda de uma
vida decente possa demandar no futuro.”, ressaltando, ainda, que o grande objetivo do local é a
garantia de segurança. No entanto, o preço por uma tão sonhada pureza nesta comunidade, onde os
passantes poderiam falar livremente uns com os outros, é o desengajamento e a ruptura dos laços.
(BAUMAN, 2001:127)
36
diferentes cidadãos negociam os termos de sua interação e interagem socialmente a
despeito de suas desigualdades.
No entanto, cidades como a São Paulo contemporânea representam um tipo
totalmente distinto de espaço público urbano, em decorrência exatamente de seus
enclaves fortificados, suas fronteiras fixas e seus espaços de acesso restrito e
controlado. Os pedestres e suas interações anônimas foram retirados das ruas! A rua,
como elemento central da vida pública moderna, foi eliminada! E assim, segundo
ZALUAR (2006:216), esse tipo de postura leva à modificação do aspecto das
residências nos centros urbanos que passam a exibir seus “muros altos, grades,
fechaduras, alarmes e cadeados, e principalmente o descrédito da participação em
espaços públicos, com a evidente negação da civilidade no trato com estranhos como
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parte da cidadania.”
A própria CALDEIRA (2003: 316) dá um testemunho pessoal vivido no
bairro de Sumaré em São Paulo ao relatar que,
Por muitos anos, a casa de minha família teve um muro baixo. O portão permanecia
aberto o dia todo e só era fechado à noite. Quando o bairro se desenvolveu, as
calçadas se encheram de gente e o tráfego aumentou consideravelmente nos anos 70,
meus pais subiram o muro e começaram a fechar o portão durante o dia. [...] No
começo dos anos 80, a casa de meu pai foi assaltada e o portão passou a ser trancado.
Hoje meu pai tem um guarda particular dentro dos muros durante a noite e o portão
fica trancado 24 horas por dia. Ele nos pede para avisá-lo por telefone quando vamos
visitá-lo à noite, para que o guarda possa estar preparado para abrir o portão e não
precisemos esperar do lado de fora. Todas as casas e prédios ao redor foram
reformados e acrescentaram portões e muros.
Depoimento semelhante foi dado pela geógrafa Vânia Ceccato ao proferir as
seguintes afirmações:
As cidades se transformaram. Cada vez que volto à minha cidade natal, vejo que os
muros que rodeiam as casas estão mais altos e, as fachadas das casas,
hermeticamente fechadas. Fios elétricos, cães de guarda, guardas-noturnos, cadeados,
grades, alarmes, porteiros [...] (VICTOR, 2006: 6)
[...] as classes mais abastadas no Brasil vivem em bolhas de segurança, o que é um
sinal de status. Carros saem de manhã dos condomínios fechados (bolha 1) em
direção a escolas privadas, com guardas nos portões (bolha 2) e, mais tarde, seguem a
áreas de diversão ou áreas privadas de lazer (bolha 3). O conceito básico de cidade,
‘urbis’, ‘lugar de convívio coletivo’, tem desaparecido [...] (VICTOR, 2006: 6)
37
Sendo assim, percebe-se claramente, como bem ressaltado na abordagem
sobre a sociedade de vigilância e controle, o aumento da indústria da segurança e de
um novo conceito de moradia com cercas e muros, guardas privados, infindáveis
tecnologias, como guaritas com banheiro e telefone, portas duplas na garagem,
monitoramento por circuito fechado de vídeo, demonstrando cada vez mais que
segurança e controle são as condições para manter os outros de fora, para assegurar a
exclusão e ao mesmo tempo liberdade, felicidade e harmonia. A questão da segurança
encontra-se largamente relacionada ao crime, à violência, ao medo e à insegurança
que geram o enclausuramento, mas também possui significados diversos como a
criação de espaços segregados que venham garantir aos indivíduos o direito de não
serem incomodados por outras pessoas, como, por exemplo, por outros grupos
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sociais, por mendigos, sem-teto.
Importante ressaltar, ainda, que enclaves privados, não tão suntuosos e
fortificados como os das classes alta e média, também foram criados pelas classes
baixas, pelos moradores das favelas. As favelas certamente são espaços para se andar,
mas apenas seus moradores conhecem e se aventuram a entrar nesses espaços, que
passam a ser espaços privadamente apropriados como exclusivos desse segmento da
sociedade. Assim, a fragmentação sócio-cultural acaba por repetir-se junto às classes
menos abastadas.
Desse modo, quando tanto moradores ricos como pobres vivem em enclaves,
um simples cruzar de muros passa a ser uma atividade policiada, na qual os sinais de
classe são reveladores de níveis de suspeita. Essa contínua construção de todo tipo de
muros e controles nos espaços das cidades é limitadora da democratização. Os
moradores passam a construir hierarquias, privilégios, espaços exclusivos e rituais de
segregação que geram o seu próprio afastamento da esfera política. Assim, uma
cidade de muros reproduz desigualdade, isolamento e fragmentação, corrói a
cidadania e se opõe a quaisquer possibilidades democráticas.
Dessa forma, o processo que se completa com a construção de espaços
segregados, com os “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2003), transmuda o espaço
público em privado, as classes mais altas afastam-se da heterogeneidade de bairros
tradicionais, sentindo-se ameaçadas pela diferença, tudo isso reforçando a existência
38
de uma sociedade com menos vida associativa, menos atuação cívica, menos
solidariedade e conseqüente vulnerabilidade e exposição aos desmandos de uma
violência gratuita que, apesar de todo o aparato de controle construído pela sociedade
de vigilância, ainda continua a ocorrer.
A título de exemplificação e fundamentação no sentido de que todo o aparato
de controle e vigilância, aliado à formação cada vez maior de enclaves fortificados,
não é capaz de conter a violência, observa-se a realidade vivida pela cidade São
Paulo, assim como por algumas outras cidades brasileiras, a partir da noite de sextafeira, dia 12 de maio de 2006, que se viram reféns da atuação violenta e impiedosa da
maior facção criminosa do Estado, o Primeiro Comando da Capital - PCC, que
controla os presídios e estende seu poder sobre o tráfico de drogas, armas e
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contrabando.
Como forma de represália pela transferência de 765 presos ligados ao PCC
para a penitenciária de Presidente Bernardes (presídio de segurança máxima), o líder
da facção, Marcos Williams Herbas Camacho – “Marcola”, também recluso em
regime disciplinar diferenciado (RDD) nessa penitenciária, disparou ordens, via
celular, para o início de rebeliões simultâneas em 73 presídios paulistas, bem como
ataques a delegacias e a policiais.3
Por todos estes fatos e, ainda, pela omissão das autoridades, pelo despreparo
da mídia para com situações de emergência, pela onda de boatos sobre novos
possíveis ataques deflagrada via Internet, o medo tomou conta da população, e a
segunda-feira, 15 de maio de 2006, entrou para a história como o dia em que São
Paulo entrou em pânico e parou!
Como reflexo do medo, 5.100 ônibus pararam de circular, deixando 5 milhões
de pessoas sem transporte; 40% das escolas particulares e públicas de ensino
fundamental e médio suspenderam as aulas na capital, assim como 12 Universidades;
12 shopping centers fecharam as portas; as 3.000 lojas da 25 de Março encerraram
3
Segundo dados divulgados pela Revista Época (AZEVEDO, 2006: 29), em seis dias de confrontos as
ações do PCC e a tardia, lenta e desgovernada ação das autoridades resultaram em 162 pessoas mortas,
sendo 107 suspeitos, 41 agentes da lei, 18 detentos e 4 civis inocentes. Apenas entre a noite de sexta–
feira e a madrugada de segunda, criminosos a mando do PCC assassinaram 39 agentes, entre policiais
militares, policiais civis, guardas municipais e guardas penitenciários, além de quatro cidadãos
comuns. E, ainda, incendiaram 56 ônibus e metralharam oito agências bancárias.
39
seu expediente no meio da tarde e também centros de comércio importantes como as
ruas Teodoro Sampaio e Oscar Freire; o aeroporto Santos Dumont no Rio de Janeiro
cancelou vôos para São Paulo alegando falta de segurança. Toda a população correu
para casa! Às 17h30 o congestionamento na cidade era quatro vezes maior do que o
normal, chegando a 195 quilômetros. (CARNEIRO, 2006: 46)
Um congestionamento diferente se instaurou, então, em São Paulo,
[...] os motoristas não buzinavam nem xingavam. Pairava uma espécie de
solidariedade dos oprimidos. E as ruas não tinham ônibus. Nas calçadas, milhões de
pessoas caminhavam numa temperatura perto de 15 graus, caladas, com passos
apertados [...] (NOGUEIRA, 2006: 49)
E, às 22 horas, já não se viam carros nem pedestres nas ruas!4-5-6
A grande ironia da história, no entanto, é que o isolamento dos ricos em suas
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“bolhas de segurança” e a construção de um espaço vigiado, repleto de enclaves
fortificados, tanto entre as classes mais altas como também entre a população de
baixa classe, não protegeram ninguém do caos instaurado na cidade em decorrência
dos ataques do PCC. O medo, o desespero, o horror e a insegurança fugiram não só
ao controle das autoridades públicas, como também ao controle de toda a parafernália
de segurança privada desenvolvida pelos cidadãos, ou seja, fugiram ao controle da
própria sociedade de controle! O choque diante da tamanha brutalidade e violência
atingiu indistintamente todas as classes sociais. Toda a população foi tomada de
assalto pelo medo e de nada adiantou a sociedade de vigilância instaurada.
Neste momento vem à tona uma dura realidade: com a total ausência do
Estado, o medo não escolheu classe social, a insegurança não se fez presente de
forma segregada, o perigo não se limitou ao lado de fora dos muros ou das bolhas de
segurança e muito menos se incomodou com os espaços vigiados. E mais, tantos
muros não foram capazes de esconder a imensa vulnerabilidade de toda uma cidade.
De nada adiantaram tantos enclaves, para nada serviram tantas câmeras espalhadas
4
“[...] Vergonha – com táticas de guerrilha e logística sofisticada, o crime organizado mostrou toda a
sua força, traumatizou a população e deixou o Estado refém.” (DAMIANI, 2006: 36)
5
“Acuada por ameaças, boatos, tiros e incêndios, a cidade parou. As autoridades não souberam reagir
às ameaças. Comércio e indústria tiveram prejuízos imensos. Cidadãos se sentiram à mercê dos
bandidos e o medo ainda não passou.” (NOGUEIRA, 2006: 48)
6
“Insegurança: mais de 160 mortos, uma metrópole em pânico, acordo de bastidores [...] A crise em
São Paulo expõe a precariedade do Estado de Direito e da ordem pública no Brasil.” (LOBO, 2006: 8)
40
pelo “Grande Irmão”, uma vez que uma cidade inteira, com seus ricos e pobres, se
viu parada e sobressaltada com boatos e rumores em conseqüência dos ataques.
Suas lojas (desde as populares da 25 de março às mais sofisticadas da Oscar
Freire) foram fechadas, assim como escolas e órgãos públicos, enquanto a população,
toda a população que antes vivia segregada, se encontrou silenciosa e atônita no
mesmo engarrafamento na volta para casa no dia 15 de maio de 2006. O Primeiro
Comando da Capital fez a todos reféns!7
Aliada ao exemplo de São Paulo, a violência persiste em outros grandes
centros urbanos como Rio de Janeiro – RJ e Belo Horizonte – MG.
A região mais charmosa da cidade de Belo Horizonte – MG, a Savassi,
tradicional ponto de encontro da intelectualidade, que já sofria com os assaltos e com
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a agressividade de moradores de rua, passou a ser aterrorizada por quase 30 gangues
de adolescentes no primeiro semestre de 2007, que levaram terror e violência para
suas ruas e avenidas8.
É válido pontuar que a Savassi foi uma das mais importantes regiões da
cidade a fazer parte do projeto de videovigilância implantado pelo “Projeto Olho
Vivo BH”, através da Lei Estadual 15.435/20059, objetivando o combate à
criminalidade, a redução da violência e o resgate do glamouroso comércio local, o
que será objeto de estudo mais detalhado no capítulo 05.
No entanto, seus moradores, comerciantes e turistas, que antes já tinham do
que reclamar (como dos assaltantes e moradores de rua), agora se vêem estarrecidos
com os novos personagens que entraram em cena, quais sejam os jovens bem
vestidos, estudantes de escolas particulares e de escolas de idiomas, que andam em
grupos, adoram pancadaria e vandalismo e agem imitando facções do crime
organizado, desafiando até mesmo as lentes vigilantes do “Projeto Olho Vivo BH”.10
7
ADORNO, analisando estes ataques do PCC, enfatiza que “o mais surpreendente foi a paralisação
temporária das atividades na maior cidade do país, São Paulo, contribuindo, com impressionante
rapidez, para exacerbar sentimentos de medo e insegurança que há muito se encontram disseminados
entre seus habitantes.” (ADORNO, 2007)
8
FURTADO (2007)
9
MINAS GERAIS. Lei 15.435, de 12 de jan. 2005. Disciplina a utilização de câmeras de vídeo para
fins de segurança. Diário Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte. 12 de jan. 2005.
10
Como noticiado pelo Jornal Estado de Minas, “(...) as gangues que agem na Região da Savassi, uma
das áreas mais nobres de Belo Horizonte, imitam facções do crime organizado. O Bonde do Arrastão,
ou simplesmente BA para seus integrantes, um dos bandos mais perigosos, tem até um código de
41
A cidade do Rio de Janeiro, por sua vez, em uma madrugada de dezembro de
2006, foi vítima de uma série de ações violentas que se espalhou por diferentes
pontos e levou pânico à população. Delegacias, carros e cabines da Polícia Militar
foram alvos de tiros, ônibus foram incendiados, com um saldo de 19 pessoas mortas.
Tais ataques criminosos foram, inclusive, duramente condenados pela Anistia
Internacional (AI), entidade de direitos humanos, que emitiu comunicado criticando
os governos estadual e federal por estarem alimentando a crescente violência, em
razão do fracasso na implementação de políticas públicas eficientes de segurança11.
O mais chocante, no entanto, e que seria hilário caso não fosse a dura e crua
realidade, é o golpe do falso seqüestro aplicado normalmente pelos detentos que
portam telefones celulares em suas celas nas penitenciárias brasileiras, em todo o
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território nacional12. Esses golpistas ensaiam uma espécie de dramatização no intuito
de extorquir dinheiro de suas vítimas, fingindo ser um parente seqüestrado ao telefone
e implorando, aos gritos de pavor, que a vítima atenda às exigências do “falso
seqüestrador”. E, consoante informações divulgadas pelo Jornal Folha de São Paulo,
segue um triste relato:
(...) Foi exatamente a uma ligação com esse tipo de "dramatização" que, na noite da
última segunda-feira, a aposentada Mércia Mendes de Barros, 67, atendeu em sua
casa, em São Caetano do Sul (ABC), por volta das 19h, o telefone. Na outra ponta da
linha, um golpista dizia estar com o filho da aposentada seqüestrado. Mércia era mãe
de três filhos e acreditou que um deles, o gerente de posto de gasolina Luciano
Mendes
de
Barros,
31,
estivesse
nas
mãos
de
criminosos.
Logo depois das primeiras palavras com o criminoso, uma segunda pessoa foi
colocada ao telefone e, aos "prantos", pedia para que a aposentada seguisse todas as
exigências da pessoa que havia ligado. Desesperada, Mércia gritou para o marido,
José Pereira de Barros, 65: "Eles pegaram o Luciano!" e começou a passar mal. Ela
sofria de problemas cardíacos havia quase dez anos. Barros pegou o telefone e ainda
ouviu o que acreditou ser a voz do filho pedindo ajuda. Logo em seguida, uma outra
voz voltou, tomou a ligação e passou a exigir R$ 60 mil para que o filho do casal não
fosse morto. Barros deixou uma vizinha cuidando da mulher e partiu para o banco,
onde conseguiu sacar apenas R$800,00. Ao retornar para casa, ele ficou sabendo que
comportamento baseado em estatutos de organizações criminosas de São Paulo e do Rio de Janeiro,
como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) (...)” (FURTADO, 2007)
11
FOLHA DE SÃO PAULO. Anistia condena atentados no Rio e critica Governo. 31 de fevereiro de
2006. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u129942.shtml. Acesso em:
28 ago. 2007.
12
Segundo o Jornal Estado de Minas, “(...) além de presidiários, quadrilhas de estelionatários estão se
espalhando por todos os Estados, devido ao elevado grau de sucesso do golpe. O pânico produzido
pelo clima da violência do país favorece os bandidos. (...)” (ESTADO DE MINAS, 2007)
42
Mércia havia sido levada para o hospital justamente por Luciano, o filho que o casal
acreditava ter sido seqüestrado. O golpe fora descoberto, mas foi fatal para Mércia,
que sofreu um infarto.(...)13
Assim, em meio a tantos fatos, mencionados em um rol meramente
exemplificativo, tem-se que, diante da violência e perplexo de medo, o cidadão
brasileiro comum toma a mesma e recorrente decisão: constrói um muro em frente à
sua casa ou ao seu prédio como uma política própria de aferição de segurança, depois
acaba aumentando um pouco mais e mais esse muro porque seu medo também
aumentou, uma vez que a violência ainda continua a atormentar a sua vida.
Posteriormente, como não consegue solucionar o problema, lança mão de aparatos
tecnológicos e instala um interfone, uma cerca elétrica, câmeras de vigilância,
contrata segurança privada. No entanto, percebe que a questão da violência não é
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resolvida. Decide, então, colocar mais câmeras, mais segurança, mais vigilância.
E, apesar de tudo isso, o que pode acontecer com esse cidadão? Pode ser
vítima, dentro de sua própria casa (teoricamente superprotegida por equipamentos e
tecnologia de segurança), de um falso seqüestro, via telefone, comandado por um
criminoso que, ironicamente, já está preso. Ou pode ser vítima, mesmo voltando para
casa em seu carro blindado, com várias câmeras vigilantes captando sua imagem, de
um ataque realizado por uma facção criminosa, comandado e organizado, também
ironicamente, de dentro dos próprios presídios. Assim, o problema da violência não
só persiste, como se torna mais grave a cada dia! O cidadão pode, enfim, até adquirir
uma certa sensação de segurança mantida por seus aparatos tecnológicos, mas a
segurança de fato ele não consegue alcançar.
Não consegue e não irá alcançar, porquanto o problema da segurança é
público e não privado14. O Estado deve tomar as rédeas da situação, mas, mesmo
13
FOLHA DE SÃO PAULO. Golpe do seqüestro agora usa “dramatização”. 17 de fevereiro de 2007.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1702200727.htm. Acesso em 28 ago.
2007.
14
Em entrevista concedida à Revista Caros Amigos, Ana Paula Miranda, Presidente do Instituto de
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, afirmou que: “(...) a questão da segurança pública é
chave hoje no Brasil. Para pensar: o que fez a classe média quando teve a crise da educação? Põe na
escola particular. E a saúde? Plano de saúde. Com segurança pública não dá pra fazer isso. Não adianta
contratar segurança particular, não dá para ter uma sociedade policial. Dentro das ações estruturais do
43
assim, sem a adoção pura e simples de todo aparato tecnológico na instauração de
uma sociedade de controle, na prevenção e repressão da prática de crimes. O uso
intenso da tecnologia de segurança não está resolvendo o problema da segurança nem
para o cidadão, nem para o próprio Estado. E mesmo que na melhor das hipóteses, na
qual a sociedade de vigilância e controle consiga levar a zero o índice de violência,
ela também levará a zero as espontâneas e democráticas atuações no espaço público,
rompendo os laços entre os cidadãos. O preço por essa segurança, obtida pelos olhos
vigilantes de uma cidade panóptica, pelo controle permanente do Grande Irmão, seria
alto demais, visto que seria capaz de criar um mundo seguro, no entanto, tecnificado,
precarizado, engessado e desprovido de quaisquer manifestações espontâneas em
espaços públicos.
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Desta maneira, a ausência de uma interatividade no meio urbano, aliada à
construção de uma cidade de muros, de uma vida em bolhas de segurança e,
principalmente, de uma cidade vigiada, contribui para o enfraquecimento e corrosão
da cidadania. A atual organização urbana do medo dá formatação às novas
desigualdades, mantendo grupos separados e inscrevendo uma nova sociabilidade que
contradiz os ideais de liberdade democrática.
Torna-se importante ressaltar que quando o espaço social, bem como a
cidadania, que deveriam ter sido ampliados com a chegada de uma Constituição
Democrática, não o são, a cidade deixa de viver o espaço da política e se transforma
em espaço privatizado. Não há mais como falar em sociedade civil organizada, mas
em uma sociedade civil gelatinosa e frágil, sem qualquer autonomia política ou
ideológica (DORNELLES, 2003: 129).
Diante disso, faz-se imprescindível o resgate de um espaço público
significativo, no qual exista troca, interação. Um espaço onde seja construída uma
sociabilidade, um intercâmbio nas calçadas, uma circulação nas ruas e praças, o
reconhecimento do outro como peça essencial na articulação e formação
democráticas.
Estado, a segurança pega todo mundo. Se eu botar meu filho numa escola particular, ele vai continuar
tendo educação. Na segurança pública, ou é pública ou não é segurança. (...)” (SALLES, 2007)
44
Caso contrário, a população que, iludida, se sente protegida e isenta de todos
os males dentro de seus enclaves fortificados, dentro de um mundo controlado por
câmeras atentas e permanentemente vigilantes, na verdade nunca estará a salvo da
violência e, pior, sempre demonstrará um despreparo absoluto para enfrentar
momentos de medo e pavor como os impostos pelo Primeiro Comando da Capital à
população de São Paulo.
Um dos primeiros passos para a construção de uma sociedade menos violenta
e mais segura não é a videovigilância, que precariza e tecnifica o espaço público, não
é a segregação em enclaves fortificados, mas sim a democratização política da polis e
a recuperação da cidade como espaço de atuação das liberdades públicas e efetivação
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do bem comum.
3.1
Espaço Público / Espaço Privado
Uma das conseqüências mais próximas e imediatas que pode ser percebida
neste novo início de Era é uma alteração profunda entre a noção de público e privado
e, ainda, entre o que se entende por privacidade e exposição. Desta forma, tal noção
de público e privado se torna cada vez mais abstrata diante do impacto da tecnologia
em uma sociedade em que os passos de todos podem ser cada vez mais monitorados
onde quer que estejam, uma vez que nunca a vida privada foi tão pública como nos
tempos atuais. O avanço tecnológico derrubou fronteiras e tornou o mundo cada vez
menor, possibilitando, por exemplo, que câmeras nas ruas ou nos elevadores, muitas
vezes nem notadas, estejam ali vigilantes e atentas e, ao menos potencialmente,
levando qualquer atitude de qualquer cidadão para qualquer lugar do mundo.
Segundo ROSA (2006:104),
No tempo dos nossos avós, era relativamente bem mais fácil diferenciar a esfera
pública do universo privado. Público era aquilo que acontecia provavelmente num
espaço aberto e na presença de uma certa audiência. Já os domínios do privado
pressupunham um acontecimento provavelmente confinado, em um ambiente
fechado, na presença de poucos. A imagem de um casamento é nitidamente diferente
de uma lua-de-mel. O primeiro é um acontecimento público; o outro não. A
visibilidade pública, antigamente, era mais ou menos binária assim.
45
Analisando a esfera pública nos períodos históricos da Antiguidade e da Idade
Média, ARENDT (2007:173) argumenta que na Antiguidade o conteúdo da esfera
pública não era determinado nem pelo cidadão da polis, tampouco pela res publica
em si. Nesse tipo de comunidade, a vida pública do homem comum era limitada ao
trabalho em benefício dos outros, do povo, ou então limitada ao trabalho doméstico,
portanto escravo. O logradouro público nessas comunidades apolíticas, a ágora, não
era tido como um local de encontro entre os cidadãos, mas tão somente como um
mercado no qual os artífices poderiam exibir e trocar seus produtos. A intenção era
fazer desse espaço um simples conjunto de lojas, um mercado, característica
semelhante aos bairros comerciais e artesanais das cidades da Idade Média. Desta
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feita, o espaço público é retratado apenas como um mercado de trocas, no qual os
indivíduos exibem os produtos de suas mãos e recebem a contrapartida e estima que
merecem.
No entanto, na visão da autora (ARENDT, 2007), uma ágora que não abre
espaço para o encontro entre os seus cidadãos, que não abre espaço para o discurso e
a ação15-16, está morta para o mundo, deixa de refletir a vida humana, pois não é de
fato vivida entre os homens. A ação e o discurso são os instrumentos através dos
quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como simples objetos
15
Analisando as atividades humanas fundamentais que correspondem às condições básicas pelas quais
a vida foi dada ao homem na Terra, ARENDT (2007:15) ressalta o labor, o trabalho e a ação,
correspondendo cada um deles, respectivamente, às condições humanas da vida, da mundanidade e da
pluralidade. O labor diz respeito ao processo biológico do corpo humano, com seu crescimento
espontâneo, metabolismo e eventual declínio, tratando-se de uma atividade na qual o homem não
convive nem com o mundo nem com os outros, ele está a sós com o seu corpo diante da real
necessidade de manter-se vivo, enquanto o trabalho corresponde ao artificialismo da existência
humana, posto que produz um mundo artificial de coisas bem distintas do ambiente natural. O trabalho
habita cada vida individual, apesar de sobreviver e transcender todas estas. Já a ação é exercida
diretamente entre os homens, sem qualquer mediação das coisas ou da matéria. É correspondente à
condição humana da pluralidade, pois se vincula ao fato de que homens habitam a Terra e não apenas o
Homem habita e vive no mundo e, ainda, ao fato de sermos todos os mesmos, ou seja, humanos, no
entanto ninguém é exatamente igual a qualquer outra pessoa que venha a existir ou que acaso tenha
existido. Na vita activa abordada por ARENDT (2007), é a ação a atividade humana por excelência
caracterizada pelo fato de que os homens vivem juntos sendo, portanto, a única das três que não pode
ser vista ou analisada fora das relações humanas.
16
“Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação, e só a
ação depende inteiramente da constante presença dos outros.” (ARENDT, 2007:31)
46
físicos, mas verdadeiramente como homens, e só vêm à tona quando as pessoas estão
com as outras (nem contra, nem a favor) no pleno gozo da convivência humana.
A ausência da ação para pôr o mundo em movimento, trazendo um novo
começo do qual cada homem é capaz pelo simples fato de ter nascido, faz com que
não haja nada de novo debaixo do sol; a falta do discurso para materialização e
celebração das coisas novas traz a ausência de memória; sem o permanente artifício
humano não há recordação das coisas que têm que suceder a cada indivíduo e, sendo
assim, o espaço de aparência, que é a esfera pública, produzido pela ação e pelo
discurso, é fadado ao desaparecimento. Como as calamidades da ação resultam da
condição humana da pluralidade, que é condição essencial do espaço de aparência,
toda tentativa de eliminação da pluralidade se torna sempre uma supressão da esfera
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púbica (ARENDT, 2007:216/233).
Assim, a polis para ARENDT,
[...] não é a cidade-estado em sua localização física; é a organização da comunidade
que resulta do agir e falar em conjunto, e o seu verdadeiro espaço situa-se entre as
pessoas que vivem juntas com tal propósito, não importa onde estejam. “Onde quer
que vás, serás uma polis” [...]. Trata-se do espaço da aparência, no mais amplo
sentido da palavra, ou seja, o espaço no qual eu apareço aos outros e os outros a mim;
onde os homens assumem uma aparência explícita, ao invés de se contentar em
existir meramente como coisas vivas ou inanimadas. (ARENDT, 2007:211)
Neste sentido de agir e falar em conjunto, é válido ressaltar em HABERMAS
(2003:92) que a esfera pública, ou o espaço público, pode ser caracterizada como um
fenômeno social elementar do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a
coletividade. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a
comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões. É nesta esfera que os
fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em
opiniões públicas sobre temas específicos, sendo, pois, uma estrutura comunicacional
do agir orientado pelo entendimento. Segundo o autor, qualquer encontro, que não se
limite a contatos de observação mútua e que se alimente da liberdade comunicativa
que uns concedem aos outros, é um encontro que se movimenta em um espaço
público constituído através da linguagem.
Os canais de comunicação de uma esfera pública são engatados, pois, nos da
esfera da vida privada, como as redes de interação familiar, os amigos, os contatos de
47
trabalho, os vizinhos, entre outros, sendo tais estruturas espaciais caracterizadas como
de interações simples. Há, ainda, as estruturas que se desenvolvem de forma
complexa e ramificada, em amplas distâncias como, por exemplo, a comunicação
entre estranhos17. O limiar entre ambas as esferas, privada e pública, no entanto, não
se define através dos temas ou das relações fixas, mas sim através de condições de
comunicação modificadas, que buscam modificar a questão do acesso, assegurando
por um lado a intimidade e, por outro, a publicidade (que serão oportunamente
trabalhadas no capítulo 04), sem no entanto isolar a esfera pública da privada
(HABERMAS, 2003:98).
BAUMAN (2001:48), observando a esfera pública que envolve a vida da
sociedade contemporânea, dispõe que esta envolve um tempo de cadeados, cercas de
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arame farpado, ronda nos bairros e vigilância (como abordado neste capítulo), isso
sem levar em conta o grande número de jornalistas especializados em trabalhos para
tablóides investigativos que buscam informações para povoar de fantasmas o espaço
público já há muito vazio de atores, conspirações estas responsáveis pelo
desenvolvimento de um pânico moral, liberando os medos e ódios reprimidos entre os
indivíduos.
Tomando a visão de ZUKIN (1995:39), para esses mesmos espaços da
sociedade contemporânea, o perigo mais latente para os espaços públicos encontra-se
na política do medo cotidiano, com o espectro apavorante de ruas que refletem
insegurança e mantêm os indivíduos afastados destes espaços e, principalmente,
afastados da busca pela arte e pelas habilidades necessárias a fim de partilhar uma
vida pública. Diante do medo, são adotadas rapidamente políticas de endurecimento
contra o crime, sendo uma delas a privatização e a militarização do espaço público,
fazendo das ruas, lojas e parques lugares mais seguros e, no entanto, menos livres.
17
De acordo com BAUMAN (2004:127-129), “é comum definir as cidades como lugares onde
estranhos se encontram, permanecem próximos uns dos outros e interagem por longo tempo sem
deixarem de ser estranhos. [...] qualquer que seja a história das cidades, e independentemente das
drásticas mudanças que possam ter afetado sua estrutura espacial, aparência e estilo ao longo dos anos
e dos séculos, uma característica se mantém constante: são espaços em que estranhos permanecem e se
movimentam em íntima e recíproca proximidade.” No entanto, é esse encontro e interação, a recíproca
proximidade no âmbito da pólis que podem estar sendo ameaçados pela construção de espaços cada
vez mais segregados e vigiados.
48
Assim, segundo BAUMAN (2001:51), nessa constituição de espaços
segregados e vigiados não é válido dizer que o público está colonizando o privado,
mas sim que o privado coloniza o espaço público18, passando este a ser para os
indivíduos não muito mais do que uma tela na qual suas aflições privadas são
projetadas sem cessar, o espaço público passa a ser o local onde se faz a confissão dos
segredos e intimidades privadas.
O espaço público deixa, portanto, no entender de BAUMAN (2001:49), de
desempenhar sua função de encontro e diálogo sobre questões privadas e públicas
(deixa de alimentar a liberdade comunicativa que, segundo HABERMAS [2003],
movimenta-se no espaço público), fazendo com que os indivíduos se vejam
desprovidos da capa protetora que se perfaz na cidadania19, assim como desprovidos
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de suas capacidades e interesses enquanto cidadãos. E é diante disso que se faz mister
redesenhar e repovoar esta praticamente vazia ágora, resgatando o lugar de encontro,
debate e negociação entre o indivíduo e o bem comum, repovoando, assim, o espaço
público.
Assim, por exemplo, as associações só poderão afirmar a sua autonomia e
conservar a sua espontaneidade na medida em que puderem apoiar-se em um
pluralismo de formas de vida, subculturas e credos religiosos. Ainda, a proteção dessa
cidadania autônoma, de uma esfera privada, através de direitos fundamentais, serve à
incolumidade de domínios vitais privados, caracterizando, pois, os direitos da
personalidade, da liberdade de crença e de consciência, o sigilo da correspondência e
do telefone, a inviolabilidade da residência, bem como a proteção da família, uma
18
“Muito menos atenção [...] foi dada aos perigos que se ocultavam no estreitamento e esvaziamento
do espaço público e à possibilidade da invasão inversa: a colonização da esfera pública pela privada. E
no entanto essa eventualidade subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à
emancipação, que em seu estágio presente só pode ser descrita como a tarefa de transformar a
autonomia individual de jure numa autonomia de facto.” (BAUMAN, 2001:62)
19
E quando o espaço público deixa de desempenhar sua função de encontro e diálogo, quando se está
diante da ausência de interação nos espaços públicos, o prejuízo para a consolidação de uma
democracia é latente, pois esta é uma condição necessária para a livre discussão pública de certos
temas como a justiça social e o caráter ético dos assuntos públicos. Assim, no entender de BAUMAN
(1998:83), “[...] sem democracia, com a sua liberdade de expressão e franca controvérsia, é difícil
imaginar qualquer abordagem séria da configuração de uma sociedade satisfatória, dos objetivos totais
que a tomada política de decisões deveria promover, dos princípios pelos quais os seus efeitos
deveriam ser criticamente avaliados, ou a madura percepção pública dos riscos subseqüentes e das
possibilidades de sua prevenção.”
49
zona inviolável da integridade pessoal e da formação do juízo e da consciência
autônoma (HABERMAS, 2003:101).
A incapacidade de conceber o outro em sua autonomia e conviver com a
pluralidade e ambivalência nos espaços públicos, portanto, corre o risco de acabar se
tornando uma patologia social, ou melhor, uma patologia do espaço público, uma
patologia da política com o conseqüente esvaziamento e a decadência da arte do
diálogo, da negociação, colocando técnicas de desvio e evasão no lugar de
engajamento mútuo e comprometimento (BAUMAN, 2001:127). E, assim, segundo
este autor, “o projeto de esconder-se do impacto enervante da multivocalidade urbana
nos abrigos da conformidade, monotonia e repetitividade comunitárias é um projeto
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que se auto-alimenta, mas que está fadado à derrota.”(BAUMAN, 2001:123)
4
Privacidade
A captação de imagens é um fator que sempre virá de encontro ao direito
fundamental à privacidade, sendo também um constante perigo de violação a esta.
A busca pela segurança pode acabar gerando, ou pode mesmo estar próxima de
gerar um monitoramento sem limites das vidas das pessoas, um constante controle
de suas imagens. Os sistemas de vigilância podem ser freqüentemente uma
solução intuitiva no combate à criminalidade, mas pouco se considera sobre o
impacto e as implicações incidentes no direito à privacidade1.
O cotidiano das sociedades contemporâneas acabou se transformando em
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um transitar contínuo entre aparatos tecnológicos capazes de registrar a entrada e
saída das pessoas seja de centros comerciais, de instituições bancárias, estádios de
futebol, escolas, estações de metrô, ônibus e inclusive o registro do trânsito em
lugares públicos como parques e avenidas fazendo, dessa forma, com que a
videovigilância passe a ser um lugar comum na vida de todos.
Esse “Grande Irmão”, ou “pequenos irmãos” (BOTELLO, 2006:37), que
estabelece uma vigilância sistemática sobre os indivíduos, organizações privadas e
públicas, em distintos níveis e diferentes escalas com a finalidade de controlar a
atual sociedade de risco e violência, de igual forma pode acabar atravessando a
intimidade das pessoas e dos grupos sociais, consolidando uma espécie de relação
de poder que não existia anteriormente.
Assim, neste momento, levanta-se mais um problema: a
permanente vigilância e o controle atingem ou violam a privacidade? Para tanto,
faz-se mister a conceituação de privacidade2 no momento histórico atual da alta
1
Esta preocupação foi também levantada em reportagem divulgada pela Revista RT Informa ao
dispor que “(...) introduzidas com grande expectativa como armas para aplacar a crescente
violência urbana, as tecnologias de monitoramento também podem revelar um lado muito
negativo, segundo a análise de alguns especialistas. Do ponto de vista jurídico, a preocupação é
evitar que os métodos de controle se expandam a tal ponto que possam comprometer liberdades
individuais e garantias asseguradas constitucionalmente. (...)” (RT INFORMA, 2006)
2
A doutrina brasileira se vale de uma profusão de termos para tratar deste assunto, pois além de
privacidade, menciona-se, ainda, a vida privada, o segredo, o sigilo, o recato, a reserva, a
intimidade e a vida privada e também alguns pouco comuns como privatividade e privaticidade.
No entanto, a ausência de uma definição padrão capaz de consolidar um tratamento semântico não
51
modernidade (GIDDENS, 1991)3 observando que, no entanto, diversos filósofos,
estudiosos, doutrinadores e juristas vêm encontrando grandes dificuldades no
alcance de um conceito, de uma definição satisfatória para esse direito
fundamental. Há toda uma teoria tradicional na conceituação de tais direitos que,
no entanto, às vezes se demonstra extremamente restrita e em outros momentos
muito vaga e abstrata. Não obstante, há também uma tentativa de reconstrução
deste conceito que busca demonstrar como as práticas envolvendo a privacidade, a
intimidade e a vida privada mudam ao longo da história e desenvolver um novo e
apropriado caminho para valorá-las.
4.1
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Marcos doutrinários e jurisprudenciais sobre a intimidade e a vida
privada
Ao vislumbrar a história do homem em busca da realização da sua
dignidade, a história de suas lutas contra a opressão, contra a atuação arbitrária do
Estado, em prol da defesa de sua liberdade, tem-se nesse início a história dos
direitos fundamentais à intimidade e à vida privada.
Como marco dessa história torna-se importante ressaltar o famoso
precedente “Price v. Strange” sobre a intimidade e a vida privada, ocorrido em
1849:
A rainha Vitória da Inglaterra e seu consorte Príncipe Albert se haviam dedicado
à pintura, retratando em seus trabalhos, com mais freqüência, membros da família
é característica típica da doutrina brasileira, pois, por exemplo, a própria doutrina norte-americana
mesmo tendo consolidado o uso do vocábulo privacy, enfatizado com o reconhecimento do right
to privacy, este abrange inúmeras situações e não uma única situação padrão. Desta forma,
tamanha diversidade de opiniões e tentativas de definição da privacidade passam a se avolumar
devido à dificuldade metodológica em alcançar um ponto de vista comum, assim como devido à
elaboração de conceitos que abrangem um campo demasiadamente amplo de situações.
3
Para GIDDENS (1991,12), mais do que denominar a era atual de pós-modernidade, melhor seria
tratá-la como alta modernidade, uma vez que “[...] a desorientação que se expressa na sensação de
que não se pode obter conhecimento sistemático sobre a organização social, [...], resulta, em
primeiro lugar, da sensação de que muitos de nós temos sido apanhados num universo de eventos
que não compreendemos plenamente, e que parecem em grande parte estar fora de nosso controle.
Para analisar como isto veio a ocorrer, não basta meramente inventar novos termos, como pósmodernidade e o resto. Ao invés disso, temos que olhar novamente para a natureza da própria
modernidade a qual, por certas razões bem específicas, tem sido insuficientemente abrangida, até
agora, pelas ciências sociais. Em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade,
estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais
radicalizadas e universalizadas do que antes. [...]”
52
real, os amigos mais próximos e seus animais favoritos. Apenas as pessoas dos
círculos íntimos da realeza tinham o privilégio de conhecer as obras e alguns,
ainda mais restritos, de serem com elas presenteados. Ocorre que um desses
privilegiados, Sr. Judge, repassou a William Strange as informações sobre o
acervo da produção real que possuía, permitindo-lhe a confecção de um catálogo
dos trabalhos e sua imediata publicação, com a promessa de entregar, a cada
comprador, fac-símile com a assinatura da rainha ou do príncipe consorte, feito
das peças originais. Inconformado com essa atitude, o príncipe ingressou em
juízo contra o impressor do catálogo e outros envolvidos. (SAMPAIO, 1998:44)
O juiz, diante de tal fato, reconheceu a tese da defesa no tocante ao direito
de propriedade, no entanto o proprietário não poderia valer-se desse direito para
possibilitar a confecção de catálogos e publicação destes com real prejuízo a
direitos alheios. Por fim, concedeu ao príncipe uma injunction proibindo a
exposição e venda dos respectivos catálogos, delineando, de forma incipiente, um
espaço para o que ainda seria conhecido como vida privada.
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A possibilidade reconhecida judicialmente de ingresso com ação de perdas
e danos para casos de invasão de intimidade e vida privada tornou-se ainda mais
concreta a partir do reconhecimento do direito à imagem, como proteção da
própria individualidade, por uma exigência moral e psicológica. Assim, data da
segunda metade do século XIX, início do século XX, principalmente na França,
Alemanha, Itália e Estados Unidos a incipiente elaboração jurisprudencial e
doutrinária do direito à imagem, tomando como base uma proteção mais geral no
tocante à propriedade, para então resguardar, de forma reflexa, a imagem e a
intimidade. Como precedente, é válido citar o caso Doyen v. Parnaland, no qual
Doyen era um médico-cirugião que havia tido a idéia de filmar algumas de suas
intervenções cirúrgicas, para fins didáticos. Ocorreu que o Sr. Parnaland,
encarregado de fazer algumas filmagens, vendera cópias da película à Société dês
Phonographes et des Cinématographes que, por seu turno, fez ampla divulgação
do filme, com exibições em salas de cinema e em feiras de diversos países.
Inconformado, o Dr. Doyen ingressou com pedido de perdas e danos contra Sr.
Parnaland, obtendo do Tribunal Civil de Seine, em 10 de fevereiro de 1905,
sentença favorável. (SAMPAIO, 1998:46)
A consideração da intimidade e da vida privada como objetos específicos
de um direito, reconhecidos efetivamente como um direito autônomo, só se dará
de modo mais preciso a partir do final do século XIX com a proteção do que seria
considerado como patrimônio moral do homem ou personalidade humana
inviolável, pois até então, inclusive nos precedentes examinados, a proteção à
intimidade e à vida privada ocorria de forma reflexa sob o fundamento do direito à
53
propriedade, do direito contratual, da honra, liberdade, inviolabilidade de
domicílio e de correspondência.
Assim, por exemplo, no pensamento anglo-saxão o conceito de
privacidade teve um pressuposto teórico imediato na idéia de liberdade, como
autonomia individual, defendida por John Stuart Mill, em 1859, em seu trabalho
“On Liberty”. O mencionado estudo baseia-se no fato de que os aspectos que
dizem respeito apenas ao indivíduo são dotados de absoluta independência, sendo
que os únicos aspectos da conduta humana que geram deveres e responsabilidades
sociais são aqueles que afetam a terceiros. Dessa forma, conclui que sobre si
mesmo, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano (“over himself,
over his own body and mind the individual is sovereign”). (PEREZ LUÑO,
2005:329)
O primeiro sentido adotado na construção dos direitos à intimidade e à
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vida privada foi o do direito de ser deixado em paz, tanto pela Alemanha, como
também pela França e Estados Unidos.
Na Alemanha, a publicação por David Augusto Roder, em 1846, do
trabalho Grundzuge des natrurrechts define que o ato de incomodar alguém com
perguntas indiscretas ou a conduta de entrar em um aposento sem se fazer
anunciar caracterizavam violação ao direito natural à vida privada. (PEREZ
LUÑO, 2005:328).
Na França, uma famosa atriz do teatro clássico francês do século XIX,
Rachel, foi fotografada a seu próprio pedido em seu leito de morte. Os fotógrafos,
no entanto, apesar de alertados de que o retrato não deveria ser reproduzido por
motivo algum, possibilitaram a cópia e publicação da fotografia que possuíam.
Diante de tal fato, a irmã de Rachel ajuizou uma ação contra a desenhista Felix C.
O’Connell, julgada pelo Tribunal Civil de Sena em 16 de junho de 1858, cuja
decisão dispôs o seguinte: “[...] a ninguém seria dado o direito de, sem
consentimento formal da família, reproduzir e dar publicidade a traços de uma
pessoa em seu leito de morte, por maior que tivesse sido sua celebridade e a
publicidade ligada aos atos de sua vida.” (SAMPAIO, 1998:56), tornando-se um
marco de proteção ao direito à imagem em um campo mais amplo configurado
como vida privada.
Já nos Estados Unidos, no final do século XIX, surge um artigo na
Harvard Law Review, da autoria de Samuel Warren e Louis Brandeis, com o
54
título “Right to Privacy” (a formulação do direito a estar só), caracterizando um
marco inicial da reforma do direito à intimidade e à vida privada, apresentando,
assim, os contornos do novo direito, demonstrando uma acentuada preocupação
com as práticas de invasão da tranqüilidade individual e familiar. (SAMPAIO,
1998:57).
Esse então intitulado “right to privacy” teria como traços distintivos os
seguintes: o direito de estar só, compreendido nos pensamentos, emoções e
sentimentos do indivíduo, não importando a forma de sua manifestação; o
sentimento íntimo das pessoas, inclusive contra a imputação de fatos verdadeiros,
com intuito malicioso ou não de quem anuncia os fatos; não se confundia com o
direito de propriedade intelectual ou artística; suas formas de violação poderiam
ser várias, implicando um revelar e uma publicidade indesejados pelo sujeito; um
dos aspectos do direito à personalidade do indivíduo. (SAMPAIO, 1998: 59-60)
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Todavia, este “right to be let alone” não poderia ser caracterizado como
um direito absoluto, por não ser capaz de impedir a publicação de matéria de
interesse geral ou público; também não proíbe a publicação de certos fatos
autorizados por lei, mesmo que de cunho particular; não protege invasões a esta
privacidade quando as conseqüências não tenham trazido nenhum dano especial e
não impede a divulgação de informações pessoais pelo próprio indivíduo ou
através de seu consentimento.
O artigo, segundo DONEDA (2006:136), referência praticamente unânime
em todos os trabalhos sobre privacidade e marco do início do moderno debate
sobre o tema, reflete uma tendência a fundamentar de forma diversa o direito à
privacidade, desvinculando-a da visão sobre o direito à propriedade. Um dos
fundamentos que passa a ser observado é que o princípio da proteção à
privacidade não passa mais pela propriedade privada, mas sim pela chamada
“inviolate personality”, evocando, portanto, um direito de natureza pessoal,
baseado na proteção da pessoa humana, o que se torna determinante na proteção
da privacidade no próximo século.
O ineditismo do artigo está em propor uma força ao novo “right to
privacy”, sendo mais do que mero reflexo de uma época e fazendo estender sua
influência por algumas de suas características, tais como
55
(i) partia-se de um novo fato social, que eram as mudanças trazidas para a
sociedade pelas tecnologias de informação (jornais, fotografias) e a comunicação
de massa, fenômeno que se renova e continua moldando a sociedade futura; (ii) o
novo “direito à privacidade” era de natureza pessoal, e não se aproveitava da
estrutura da tutela da propriedade para proteger aspectos da privacidade; (iii) no
que interessa somente aos EUA, o artigo abriu o caminho para o reconhecimento
(que porém ainda tardaria décadas) do direito à privacidade como um direito
constitucionalmente garantido. (DONEDA, 2006:139)
O sucesso do artigo de Warren e Brandeis no final do século XIX, assim,
despertou grande interesse de teóricos e juízes na descoberta e aplicação dos
direitos à intimidade e à vida privada, não só nos Estados Unidos, como também
na Europa (SAMPAIO, 1998:63), mas de um modo geral, até meados do século
passado não haviam despertado interesse suficiente dos juristas a ponto de se
caracterizarem como direito autônomo.
No entanto, o reconhecimento dado pela Declaração Universal dos
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Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, aos direitos da intimidade e da
vida privada acabou por fornecer ao homem a tutela necessária, expressa em um
direito autônomo, frente aos riscos de um acelerado avanço tecnológico,
despertando agora, ainda mais, o interesse dos estudiosos do Direito na elaboração
de uma doutrina própria para a intimidade e a vida privada. Nesta construção
doutrinária e jurisprudencial, tais direitos passam a ser reconhecidos com a
estatura de direitos humanos em seu processo de internacionalização e com a
estatura de direitos fundamentais, em decorrência de sua constitucionalização.
(SAMPAIO, 1998:80-81)
Assim, a incorporação do direito à honra, à intimidade e à própria imagem
a um sistema de direitos fundamentais implica uma importante mutação em seu
fundamento, seu alcance e seu estatuto jurídico, observando que as novas
condições que marcam a passagem destes direitos de um enfoque tradicional,
enquanto direitos da personalidade para um enfoque atual, enquanto estatuto
jurídico de direitos fundamentais, conformam uma premissa básica para a
abordagem de sua nova significação.
56
4.2
Os termos intimidade, vida privada, privacidade e a busca por seu
significado e conceituação
As noções de privacidade, intimidade e vida privada trazem consigo uma
forte carga emotiva capaz de gerar conceitos equivocados, ambíguos e que
dificultam a precisão de seu significado. As inúmeras definições legais, aliadas a
um conjunto de decisões jurisprudenciais que buscam tutelar estes direitos não
chegam a uma definição unívoca e precisa deles. Mesmo assim, passa-se abaixo a
enumerar uma série de conceitos e significados adotados pelo Direito em
diferentes Estados.
Em análise do Direito norte-americano, assim como da tradição de língua
inglesa, observa-se o emprego da palavra privacy (privacidade ou privaticidade),
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ou mesmo a expressão right to/of privacy como referência ao direito de ser
deixado só, de ser deixado em paz, protegendo a individualidade das próprias
pessoas, a obtenção e disseminação de informações pessoais, a liberdade de
pensamento e a solitude de cada um, ao passo que a expressão intimacy
(intimidade) configura um sentido mais ordinário, referente a relações íntimas
entre as pessoas, especialmente as de natureza sexual. (SAMPAIO, 1998:270)
No entender de HOLTZMAN (2006:04), o termo privacy engloba três
significados básicos: seclusion, como o direito de se esconder das percepções de
terceiros; solitude, como o direito de ser deixado a sós e self-determination, como
o direito de controlar as informações sobre si mesmo.
Considerando os esforços da doutrina e jurisprudência norte-americanas e,
em especial, o trabalho de Willian L. Prosser, são classificados como agressão à
privacidade quatro tipos de ilícitos: a intromissão sobre a esfera privada alheia; a
divulgação pública de fatos embaraçosos de caráter privado; a divulgação de fatos
capazes de levar à formação de uma imagem falsa do interessado frente à opinião
pública e, enfim, a apropriação indevida do nome e imagem alheios para a
obtenção de vantagens individuais. No entanto, a doutrina insistiu em valer-se
desta tipologia apenas como uma classificação aberta, configurando a noção de
privacidade como uma categoria ampla e flexível, apta a ser aplicada a uma série
de problemas conexos. (PEREZ LUÑO, 2005:335)
57
O Direito europeu, seguindo a mesma linha de pensamento, garante o
direito ao respeito da vida privada como o right to privacy norte-americano, com a
conseqüente proteção à correspondência, ao domicílio, à liberdade e
inviolabilidade de comunicações em geral, aos dados pessoais, à liberdade e
identidade sexual e à liberdade da vida familiar. (SAMPAIO, 1998:271)
A Alemanha considera a vida individual como aquilo que é íntimo,
secreto, privado, social e público, bem como um direito geral da personalidade e
um direito geral da liberdade, com uma especial proteção ao indivíduo no que
tange ao seu direito a uma esfera íntima, privada e secreta e à autodeterminação
informacional. (SAMPAIO, 1998:271).
Ressalta-se, desse modo, que a doutrina alemã, ao tentar delimitar o
conteúdo da intimidade, apresenta as seguintes distinções: a “intimsphäre”, que
corresponde à esfera do segredo, cuja violação se dá quando são comunicados
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acontecimentos, propagandas ou notícias que deveriam permanecer ignorados; a
“privatsphäre”, que equivale à noção espanhola do íntimo e protege o âmbito da
vida pessoal e familiar que se pretende manter distante da ingerência de terceiros
ou de qualquer publicidade e, por último, a “individualsphäre”, que diz respeito a
tudo que é inerente ou peculiar à individualidade da pessoa, como, por exemplo,
sua honra, seu nome, sua imagem. (PEREZ LUÑO, 2005:334)
Perfazendo uma análise sobre o público e o privado tem-se que, para
ARENDT (2007:59), o termo público denota dois fenômenos correlatos, no
entanto não perfeitamente idênticos, quais sejam: público é aquilo que vem a
público, podendo ser visto e ouvido por todos, pelos outros e pelos próprios
indivíduos, com a maior divulgação possível, trazendo para todos a aparência,
aquilo que constitui a realidade, diferentemente das paixões do coração, dos
pensamentos da mente e dos deleites dos sentidos, que são dotados de um tipo de
existência incerta e obscura, até o momento no qual porventura venham a ser
desprivatizadas e desindividualizadas, tornando-se adequadas a uma aparição
pública. O entendimento sobre o público seria, ainda, o próprio mundo, comum a
todos, mas diferente do lugar que cabe a cada um dos indivíduos isoladamente.
Não um mundo no sentido de planeta Terra ou da natureza condicionante da vida
orgânica do homem, mas sim um mundo atrelado ao artefato humano, como o
produto das mãos humanas, relacionado aos negócios realizados pelos homens
58
que juntos habitam este mundo. Neste aspecto de mundo comum, a esfera pública
reúne uns na companhia dos outros, evitando a colisão entre todos.
Devido à importância atrelada à esfera pública, o termo privado, dentro de
sua acepção original, a privação, significa, na visão de ARENDT (2007:68), um
indivíduo que vive uma vida inteiramente privada, privado de ser visto e ouvido
por outros, privado de uma relação objetiva com os outros, decorrente do fato de
ligar-se e separar-se deles, destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente
humana, o que, em circunstâncias modernas, transmudou-se em um fenômeno de
massa da solidão.
Para ARENDT (2007:47-48), hoje não há que se falar, como os gregos,
que a vida vivida na privatividade, à parte do mundo, é por si só idiota, tampouco
pode-se afirmar, como os romanos, que a privatividade oferece um refúgio apenas
temporário contra os negócios da res publica. O que se tem como privado na era
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moderna é um círculo de intimidade com variedade e peculiar multiformidade em
muito desconhecidas de qualquer período histórico anterior. Somente na era
moderna é que a discussão entre a esfera pública e a esfera privada do ponto de
vista da privatividade – equivalendo à diferença entre o que deve ser exibido e o
que deve ser ocultado - foi capaz de descobrir a riqueza e a variedade que envolve
a esfera do oculto nas condições da intimidade.4
Considera, ainda, a autora, que o conflito típico do início da era moderna
entre o público e o privado caracterizou-se como um fenômeno temporário,
trazendo uma total extinção da diferença entre a esfera pública e a privada,
transcendendo ambas para a esfera do social, na qual, por conseguinte, a esfera
pública se tornou uma função da esfera privada e a privada, por sua vez, se tornou
a única preocupação comum sobrevivente. (ARENDT, 2007:79)5
4
“Embora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição entre a necessidade e a
liberdade, entre a futilidade e a realização e, finalmente, entre a vergonha e a honra, não é de
forma alguma verdadeiro que somente o necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar
adequado na esfera privada. O significado mais elementar das duas esferas indica que há coisas
que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam adquirir
alguma forma de existência. Se examinarmos essas coisas, independentemente de onde as
encontramos em qualquer civilização, veremos que cada atividade humana converge para sua
localização adequada no mundo.” (ARENDT, 2007:83-84)
5
“O fato histórico decisivo é que a privatividade moderna, em sua função mais relevante –
proteger aquilo que é íntimo – foi descoberta não como o oposto da esfera política, mas da esfera
social, com a qual, portanto, tem laços ainda mais estreitos e mais autênticos.” (ARENDT,
2007:48)
59
A legislação francesa, por sua vez, diferencia o direito ao respeito da vida
privada do direito à intimidade da vida privada, caracterizando uma vida privada
íntima e uma vida privada ordinária, cujas eventuais violações trazem
conseqüências jurídicas diferentes.(SAMPAIO, 1998:272)
A Itália, consoante o pensamento de Vittorio Frosini abordado por PEREZ
LUÑO (2005:334), caracteriza a vida privada como um retiro voluntário e
temporal de um indivíduo que, por meios físicos ou psicológicos, se isola da
sociedade, buscando uma determinada solidão ou o estabelecimento de um
anonimato ou de uma situação de reserva. Para Frosini, há quatro possíveis
modalidades de isolamento, quais sejam, a solidão, que traz a impossibilidade
física de contatos materiais; a intimidade, na qual o indivíduo se encontra em um
grupo reduzido onde ocorrem relações especiais, como as relações conjugais ou
familiares; o anonimato, no qual o indivíduo mesmo estando exposto a contato
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com uma multiplicidade de pessoas, mantém a liberdade de identificação
individual e, ainda, a reserva, que se caracteriza pela criação de barreiras
psicológicas para fazer frente a intromissões não desejadas.
Já nos países de língua espanhola, embora utilizem os dois termos,
intimidade e vida privada, na aplicação de fato ambos produzem as mesmas
conseqüências e podem ser utilizados para designar a mesma coisa, apesar de no
plano abstrato terem significados diferentes. (SAMPAIO, 1998:273)
DESANTES (1991:271), em sua conferência sobre o direito fundamental à
intimidade, considera que não existe um conceito claro sobre esse direito,
tampouco definições doutrinárias suficientes, portanto preocupa-se com a
necessidade de definir e delimitar o que deve ser entendido como vida púbica,
vida privada e intimidade, observando que teoricamente é mais fácil fazer a
distinção entre as duas primeiras, sendo de fato mais difícil chegar à conceituação
do direito à intimidade.
Para o autor, a vida privada se constitui em uma esfera reduzida e
delimitada, diferentemente da vida pública, e sua proteção consiste na proteção da
pessoa e da família, assim como de tudo o que está em seu interior, sendo que no
interior dessa esfera ainda há um núcleo menor que perfaz a intimidade. Observa,
por conseguinte, que tudo o que diz respeito à vida pública, enquanto vida
pública, poderia ser objeto de informação e divulgação, sendo que as questões
relativas à vida privada não deveriam ser difundidas. (DESANTES, 1991:270)
60
Assume, ainda, que não existe um conceito perfeitamente apurado que
comprove a importância do direito à intimidade, diferentemente do que ocorre
com outros direitos fundados na natureza do homem, sendo que essa dificuldade
não se encontra fundada no caráter de direito natural que corresponde à
intimidade, mas na natureza de seu próprio objeto, no conceito extrajurídico do
que na verdade pode ser considerado como íntimo. A definição padrão da
intimidade, que permite chegar a uma acepção jurídica tão somente, não é
suficiente para interpretar a realidade dos fatos, sendo necessária uma busca
conceitual além do que é formalmente previsto em lei. (DESANTES, 1991:271)
Nessa busca conceitual, observa o autor que em um sentido etimológico a
palavra íntimo procede de intimus, que é uma variação de intumus, forma
superlativa do advérbio intus, que quer dizer dentro. Íntimo, portanto, quer dizer o
que está mais dentro possível, bem no interior do homem. (DESANTES,
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1991:274) Já em uma das acepções do dicionário de língua espanhola, intimidade
significa a zona espiritual íntima e reservada de uma pessoa ou de um grupo,
especialmente de uma família. (DESANTES, 1991:272)
E quando, enfim, se pergunta o que é na essência a intimidade, chega a
dizer que:
De ella hemos aprendido que se da únicamente en el hombre; que se refiere a su
mundo interior y a la parte más interna de su personalidad; que tiene lugar en la
medida en que el hombre la conoce y es consciente de ella; que es susceptible de
profundización sin límites teóricos porque la va escavando en su personalidad el
propio hombre; que es genuina e incapaz de ficción o dramatización; que
constituye el punto de apoyo para la proyección del individuo en la vida social;
que es el oculto manantial del pensamiento del que brota la corriente da la
comunicación; que representa el baluarte frente al avasallamiento de las
influencias externas en la medida en que la persona no las acepte
voluntariamente; que se puede definir de una manera ontológica como la
genuinidad, como el ser lo que se es. (DESANTES, 1991:284-285)
Assim, pleiteia que a intimidade pode ser a zona espiritual que envolve o
homem, distinta de qualquer outra, que pertence exclusivamente a ele e só por ele
pode ser revelada. Dessa forma, apenas a vontade do próprio indivíduo poderia
decidir sobre o seu limite, sendo que qualquer intromissão externa representaria a
destruição da intimidade, a usurpação desse direito, fato este que não poderia ser
justificado nem legitimado por nenhum ponto de vista.
61
OLIVARES (2000:304) reconhece também que não é fácil estabelecer um
conceito pontual de intimidade e fixar seus limites, uma vez que tais acepções
variam dependendo do país, do nível sócio-cultural e, ainda, dependendo da
própria pessoa. Leva em conta a mesma definição de intimidade mencionada por
DESANTES (1991:272) e retirada do Diccionario de La Real Academia como
uma zona íntima, espiritual e reservada a uma pessoa ou a um grupo e
especialmente a uma família, trazendo, assim, uma idéia de segredo, de
confidencialidade de uma pessoa ou de um grupo, com especial caráter familiar.
No entanto, ressalta a incompletude de tal conceito, sustentando que a intimidade
também se configura na faculdade concedida a cada um para determinar como,
quando e que tipo de informação pessoal pode ser passada aos outros, a fim de
proteger a pessoa de eventuais danos morais ou patrimoniais.
Aponta, ainda, que a doutrina alude indistintamente aos direitos à
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intimidade, vida privada ou privacidade, que o dicionário de língua espanhola não
contempla o termo privacidade e que a lei fundamental de seu país emprega a
expressão vida privada. Todavia, em termos de considerações práticas, tais
distinções terminológicas não acarretam maiores conseqüências. Apesar de para
alguns a vida privada constituir-se em gênero, que compreende o núcleo central e
menor que é a intimidade e, para outros, a vida privada ser uma das facetas que
integram o direito à intimidade, tais diferenças não produzem quaisquer efeitos
jurídicos no ordenamento e o emprego do termo vida privada não exclui a
intimidade e vice versa.
PEREZ LUÑO (2005:356) também aborda a raiz etimológica do vocábulo
intimidade, oriundo do latim intimus, invocando a idéia do mais interno ou
recôndito. Para o autor, intimidade corresponde à interioridade da pessoa, que é
peculiar ao ser humano, como a introspecção, o recôndito e o secreto. O termo
germano geheim também está relacionado ao secreto ou ao reservado e, ainda,
apresenta um correlato na expressão “my home is my castle”6. Com base nessas
premissas chega-se, inevitavelmente, à identificação da intimidade como solidão e
isolamento.
6
Aproveitando a expressão “my home is my castle”, é válido ressaltar em ARENDT (2007:81)
que “as quatro paredes da propriedade particular de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro
contra o mundo público comum – não só contra o que nele ocorre mas também contra a sua
própria publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido. [...] O único modo eficaz de garantir a
sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a propriedade privada – um lugar
só nosso, no qual podemos nos esconder.”
62
Ressalta, ainda, que a visão da intimidade já passou desde uma concepção
fechada e estática para uma outra aberta e dinâmica, sendo a primeira identificada
como o “ius solitudinis”, que dispõe sobre um âmbito de vida pessoal alheio a
intromissões perturbadoras e indesejadas, e a segunda, que abrange a
possibilidade dada a cada um de conhecer, ter acesso e controlar as informações
divulgadas sobre si mesmo.
A doutrina brasileira, atenta ao status constitucional concedido aos
direitos à intimidade e à vida privada, conceitua-os da seguinte forma. Segundo
MORAES (2003:135):
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Os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande
interligação, podendo porém ser diferenciados por meio da menor amplitude do
primeiro que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, o conceito
de intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa
humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida
privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais
como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc.
Já em BULOS (2003,144), considera-se que a atual Constituição da
República Federativa do Brasil, seguindo o exemplo de países como a Alemanha,
a Argentina, o Chile e os Estados Unidos da América e percebendo que a
evolução tecnológica possibilita uma devassa na vida particular dos indivíduos,
prescreveu como sendo invioláveis a intimidade e a vida privada. No entanto, o
autor contempla a intimidade e a vida privada como sinônimos, como conceitos
que não podem ser vistos apartados ou de forma dissociada, devendo ambos ser
considerados como valores humanos supremos, conexos ao direito de ficar
tranqüilo, em paz, de estar só.
E, ainda, especificando tais conceitos, dispõe que a intimidade é o modo
de ser do indivíduo, que exclui do conhecimento de terceiros o que diz respeito ao
próprio indivíduo, revelando sua reserva de vida, sua esfera secreta de atuação.
Menciona também o termo privacidade, em uma acepção mais ampla, que contém
as manifestações da esfera íntima do indivíduo, como o seu modo de viver, suas
relações em família, seus laços afetivos, seus hábitos, suas particularidades,
pensamentos, segredos e planos futuros. E, no que tange à vida privada,
considera-a um termo decorrente da ampla expressão privacidade, englobando o
campo de intimidades do indivíduo, seu foro moral e interior, sua vida íntima, em
contraposição a uma vida exterior que seria delineada com a divulgação da vida
63
humana para um número irrestrito de pessoas, com exposição de acontecimentos
familiares e próprios do indivíduo. (BULOS, 2003:145)
TAVARES (2007:587) reconhece a dificuldade na diferenciação entre
intimidade e vida privada, ressaltando que a expressão direito à privacidade
engloba os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas,
sendo que intimidade é tudo o que diga respeito, de maneira única e exclusiva, à
pessoa em si mesma, seu modo de ser e agir e a vida privada garante a cada um o
direito ao seu próprio estilo de vida, ou seja, seu próprio modo de ser e agir.
Em SILVA (2003:205), utiliza-se a expressão direito à privacidade em um
sentido genérico e amplo, capaz de englobar todas as manifestações da esfera
íntima, privada e da personalidade, com todas as informações do indivíduo
mantidas sob o seu exclusivo controle. Com a proteção à privacidade tornam-se
invioláveis a vida doméstica, as relações familiares e afetivas em geral, fatos,
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nomes, hábitos, pensamentos, segredos do indivíduo e seus planos para o futuro.
No entanto, como a CF/88 trata a intimidade como um direito diverso da
vida privada, o autor faz também considerações em separado sobre ambos,
dispondo que
Segundo René Ariel Dotti a intimidade se caracteriza como “a esfera secreta da
vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”, o que é
semelhante ao conceito de Adriano de Cupis que define a intimidade
(riservatezza) como o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do
conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma. Abrange, nesse
sentido mais restrito, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência,
o segredo profissional. (SILVA, 2003:206)
E, no tocante à vida privada, dispõe que a CF/88 deu destaque ao conceito
considerando-o mais abrangente do que a intimidade, perfazendo um
conjunto do modo de ser e viver, como direito de o indivíduo viver sua própria
vida. Parte da constatação de que a vida das pessoas compreende dois aspectos:
um voltado para o exterior e outro para o interior. A vida exterior, que envolve a
pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das
pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública. A vida interior, que se
debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus
amigos, é a que integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da
Constituição. (SILVA, 2003:207)
Para SAMPAIO (1998:273), no Brasil, assim como nos países de língua
espanhola, há uma tendência de utilização dos termos intimidade e vida privada
em um mesmo sentido, com uma mesma aplicação prática, no entanto não se deve
64
olvidar que o próprio dispositivo constitucional dispôs os dois conceitos em
separado, sendo o direito geral à vida privada mais amplo e vinculado a uma idéia
de autonomia privada e livre desenvolvimento da personalidade.
Sendo assim, pode-se perceber que a doutrina brasileira se vale de uma
profusão de termos para tratar do presente assunto, pois além de privacidade,
menciona-se, ainda, a vida privada, o segredo, o sigilo, o recato, a reserva, a
intimidade e também alguns pouco comuns como privatividade e privaticidade.
No entanto é claro também que essa ausência de uma definição padrão capaz de
consolidar um tratamento semântico não é característica típica da doutrina
brasileira, pois, por exemplo, a própria doutrina norte-americana, mesmo tendo
consolidado o uso do vocábulo privacy, enfatizado com o reconhecimento do right
to privacy, este abrange inúmeras situações e não uma única situação padrão.
Dessa forma, tamanha diversidade de opiniões e tentativas de definição da
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privacidade passam a se avolumar devido à dificuldade metodológica em alcançar
um ponto de vista comum, assim como devido à elaboração de conceitos que
abrangem um campo demasiadamente amplo de situações.
Nesse aspecto, DONEDA (2006:101) reflete muito bem esta profusão de
termos doutrinários quando menciona
A privacy norte-americana, o droit au secret de l avie privée ou simplesmente la
protection de la vie privée na França; o diritto allá riservatezza (ou a segretezza)
na Itália (ou mesmo a privacy, termo usado no país); a reserva da intimidade da
vida privada (Portugal); o Derecho a la intimidad na Espanha; a noção da Die
Privatsphäre, que divide a autonomia individual e a vida social, presente na
doutrina da Alemanha; a integritet da Suécia, que compreende a noção pela qual
as pessoas têm direito de serem julgadas de acordo com um perfil completo e fiel
de suas personalidades; são algumas das designações utilizadas para se referir ao
complexo de interesses que remetem ao termo privacidade.
No entanto, para o autor, com tantos conceitos e definições citadas, o
contexto no qual se tenta definir a privacidade acaba sendo reduzido a uma
perspectiva epistemológica conceitualista que almeja uma coesão do sistema,
mediante um processo de generalização, cujo ápice seria a individuação de um
conceito dogmático, mas, na verdade, o problema deveria residir menos na
definição e mais naquilo que se pretende alcançar com ela. E, concluindo, o autor
aponta que essa indefinição do tema deve ser tida muito mais como característica
intrínseca da matéria do que como um defeito ou um obstáculo propriamente dito,
65
não sendo a exata definição de privacidade o primeiro ponto que obrigatoriamente
deva ser enfrentado (DONEDA, 2006:106).
Atento para previsão constitucional brasileira, na qual o art. 5˚, X assegura
os direitos à intimidade e vida privada, DONEDA (2006:109) argumenta que a
terminologia então adotada deve ser analisada em função do contexto no qual
estão inseridos os direitos fundamentais que devem ser protegidos, não sendo
frutífera a busca de conceitos que intensifiquem as conotações e diferenças
semânticas entre ambos os termos.
No campo semântico da vida privada tem-se o discurso da distinção entre
as coisas da vida pública e as coisas da vida privada, do estabelecimento de
limites em uma lógica que também seria de exclusão. No campo da intimidade,
esta abrange eventos mais particulares e pessoais, um ambiente de confiança, mais
ligado ao direito à tranqüilidade, ao right to be let alone. Sendo assim, a doutrina
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reconhece a diversidade dos dois termos e a atuação de suas particularidades, mas
a questão proposta pelo autor é saber se tal exegese é realmente necessária. Se
foram apresentados dois termos constitucionais, está-se, portanto, diante de duas
hipóteses diversas que devem ser valoradas por modos também diversos?
A resposta é não! Para o DONEDA (2006), a falta de uma terminologia
específica na doutrina e na jurisprudência, aliada ao fato de que se trata da
primeira vez na qual o tema foi inserido no âmbito constitucional, podem ter
levado o legislador a optar pelo excesso na disposição das palavras, evitando,
assim, qualquer hipótese de redução de aplicabilidade da norma. E, mais, fechar a
discussão nos limites entre ambos os conceitos, considerando o alto grau de
subjetividade que os envolve, acabaria por desviar a atenção do problema
principal, qual seja, a efetiva aplicação do direito fundamental da pessoa humana.
Sendo assim, DONEDA (2006:111) opta pela adoção do termo
privacidade por lhe parecer a opção mais razoável diante do fato de que o termo é
específico o suficiente e, portanto, não se confunde com outras locuções como
imagem, honra e identidade pessoal, além de ser um termo claro o bastante para
especificar o seu próprio conteúdo e unificar os valores expressos nos termos
intimidade e vida privada. Tal opção, segundo o autor, pode ser constatada entre
os juristas brasileiros na doutrina e jurisprudência recentes, considerando,
inclusive, que, mesmo havendo diferença entre os dois termos dispostos na
Constituição Federal de 1988, tal diferença seria de importância reduzida, uma
66
vez que a possível violação tanto da intimidade como da vida privada resultaria
em efeitos jurídicos idênticos.
Uma vez adotado o termo privacidade, DONEDA (2006:114) se atém à
idéia de que a privacidade é uma noção cultural induzida no decurso do tempo por
fatores sociais, políticos e econômicos, sendo assim, para sua contextualização
jurídica faz-se mister também uma justificativa processada no plano histórico. A
fim de alcançar um bom resultado nesta tarefa é importante esboçar a formação da
esfera privada do ser humano fundada em suas bases sociais, culturais e políticas.
O autor ressalta, ainda, que a privacidade nas últimas décadas passou a
relacionar-se com uma série de interesses, o que acabou modificando de forma
substancial o seu perfil e, citando Stefano Rodotá, afirma que “o direito à
privacidade não se estrutura mais em torno do eixo ‘pessoa-informação-segredo’,
no paradigma da zero- relationship, mas sim em um eixo ‘pessoa-informaçãoPUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
circulação-controle’”. (DONEDA, 2006:23) Nessa mudança, a proteção da
privacidade acompanha a consolidação da própria teoria dos direitos da
personalidade, passando a garantir ao indivíduo não só o isolamento e a
tranqüilidade, mas em primeiro lugar proporcionando a ele os meios necessários
para a construção e consolidação de uma esfera privada própria e desempenhando
um papel positivo na sua comunicação e relacionamento com os demais.
Diante de tantos conceitos e entendimentos, o que importa de fato é que,
seja sob a forma mais ampla considerada privacidade ou sob as divisões pontuais
feitas pela atual Constituição Brasileira em intimidade e vida privada, o indivíduo
deve ter garantida a realização da sua vida sem ser molestado por terceiros, sem
ser agredido em seu foro íntimo e pessoal tanto pela sociedade como também pelo
Poder Público. É imprescindível a proteção do aspecto privado da vida do
indivíduo, a fim de que esse direito não seja minado face à enorme disseminação
de tecnologia, com a instalação de aparelhos registradores de imagens, dados e,
inclusive, sons pelos setores público e privado.
Sendo assim, essa necessidade da busca por um mínimo conteúdo comum
para o direito à privacidade, que seja apto a satisfazer a diversas sociedades,
ultrapassa as questões meramente acadêmicas, pois se torna uma necessidade real
diante do avanço da tecnologia e do aumento do fluxo de informações nos últimos
anos. Atualmente, está-se diante de uma preocupação não só com a divulgação de
notícias indiscretas sobre festas familiares, mas também com informações que
67
uma determinada empresa de assistência médica porventura possa ter em bancos
de dados de Hong Kong, por exemplo, sobre questões genéticas e hábitos
alimentares que digam respeito aos indivíduos.
Por mais que sejam passíveis de determinação em certo tempo e lugar, seja
a privacidade em geral, ou os pontuais conceitos de vida privada e intimidade,
estes sempre estarão sujeitos a novas interpretações e entendimentos, pois
encontram-se extremamente vinculados à própria história da evolução humana.
Mesmo que cada país consiga precisar tais conceitos, estes não serão estáveis ou
imutáveis, uma vez que possuem uma natureza dinâmica, própria para
acompanhar a dinâmica da vida humana e as mutações dos hábitos e costumes
sobre o que corresponde ou não ao foro íntimo de cada um.
No entanto, em razão dos riscos citados acima, capazes de gerar violações
e conseqüências extremamente graves e perigosas à privacidade, há uma tendência
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cada vez maior de harmonização do tratamento deste conceito. A preocupação em
torno da proteção à privacidade não passa mais apenas pelo direito de manter em
caráter confidencial os fatos pessoais, mas ainda pelo direito de saber quais
informações sobre si próprio estão sendo armazenadas e utilizadas por terceiros,
como e com qual finalidade estão sendo utilizadas e no direito de manter essas
informações atualizadas e verdadeiras.
4.3
Nova abordagem sobre a privacidade sob o olhar de SOLOVE7
Para SOLOVE (2002:1092), a abordagem sobre a privacidade deve ser
divergente da tradicional, trazendo uma visão conceitual de baixo para cima, e não
o contrário, de cima, da abstração, para baixo. A conceituação deve partir de
contextos particulares e específicos e não de abstrações e generalidades.
Explorando a conceituação atual e tradicional de uma vasta gama de
juristas, filósofos, psicólogos, sociólogos, dentre outros, SOLOVE (2002:1092)
resume em seis tópicos gerais o que poderia ser tido como privacidade, que
7
SOLOVE (2002)
68
refletem, de certa forma, a abordagem de acepções realizada acima: o direito de
estar sozinho; o limite de acesso ao indivíduo, protegendo cada um de acessos não
desejados por parte de outros; o sigilo; o controle sobre informações pessoais; a
proteção da personalidade, da individualidade e da dignidade e, ao final, a
intimidade.
Diante disso, o autor dispõe (SOLOVE, 2002:1093) que a privacidade é
um termo genérico que se refere a condutas que desejamos ver protegidas contra
possíveis violações e sugere que o foco para o real alcance do conceito de
privacidade deve deixar de ser a busca e localização de um denominador comum
para tais condutas e passar a ser, sim, o foco nos tipos específicos de violação e
nas condutas especificamente violadas, chegando a um entendimento sobre como
a privacidade pode ser valorada, uma vez que o conceito de privacidade vai
depender da importância social da conduta analisada em um contexto específico,
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não sendo possível alcançar um mesmo e universal valor para todos os contextos.
Sendo assim, e considerando que as tradicionais definições sobre a
privacidade acabam chegando a um denominador comum extremamente genérico
e abstrato ou muito específico e restrito, sendo todas não satisfatórias, SOLOVE
(2002:1126) recomenda uma abordagem pragmática para a conceituação de
privacidade pautada no reconhecimento do contexto e contingências, na rejeição
de conhecimentos anteriores ou pré-determinados e um foco nas práticas
concretas e reais. O pragmatismo caminha, então, ao encontro do que é adequado
e concreto, aos fatos, à ação, à força real, alcançando o conhecimento através da
experiência e deixando para trás a abstração e a insuficiência fundadas em
sistemas fechados e pretensas verdades absolutas.
Uma abordagem pragmática tem uma atitude única em direção ao alcance
de um conceito. Um conceito é uma hipótese trabalhada e não uma entidade fixa,
é criado com base em situações concretas, sendo constantemente testado e
formatado. Não há uma busca por uma descrição sumária ou substancial, não se
trata do alcance de uma fórmula para a privacidade, no entanto trata-se de uma
abordagem que proporciona os passos a serem seguidos para identificação e
análise das várias dimensões das práticas apresentadas.
69
4.3.1
Privacidade e práticas sociais
Os problemas da privacidade envolvem violações a algumas práticas e tais
podem ser entendidas como uma série de atividades, costumes, normas e
tradições, tais como o ato de escrever cartas, de conversar com o psicoterapeuta,
tomar algumas decisões e outras mais, observando que a privacidade consiste na
dimensão dessas práticas, devendo ser entendida como parte delas e não como um
conceito abstrato e separado, que vai ajudar na solução de determinados
problemas.
A privacidade é uma parte constitutiva de condutas específicas, e entendê-
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la requer um olhar para as formas pontuais de manifestação dessa privacidade.
Privacidade é a dimensão de condutas, práticas e aspectos da vida. Quando se diz
que a privacidade está sendo protegida, o que se busca na verdade é uma proteção
contra violações de condutas, de aspectos da vida. A violação da privacidade
geralmente traz um aniquilamento completo dessas condutas e tal pode ocorrer
por meio da invasão do espaço de solidão do indivíduo, da perda de controle sobre
a divulgação de fatos particulares, da busca e apreensão da propriedade particular,
das ameaças de violência à segurança particular, da vigilância permanente, da
destruição da reputação, dentre outras formas.
Há algumas semelhanças nos tipos de violação a privacidade, assim como
nas condutas que são normalmente violadas, apesar de também haver algumas
diferenças dentre elas. Sendo assim, a busca por um conceito de privacidade deve
ser centrada justamente nesses tipos pontuais de violação e nas condutas
tipicamente violadas, e não na busca por um denominador comum que vincule
tudo isso. Se a privacidade pode ser vista como uma gama de tipos pontuais de
violação a condutas específicas, então o conceito de privacidade é alcançado por
meio do mapeamento dessa rede de conexões.
Na busca incessante por esse conceito ressalta-se, também, que as
violações ocorridas são violações sobre o âmbito privado da vida do indivíduo.
No entanto, há muito tempo filósofos vêm discutindo o que na verdade se
caracteriza como uma esfera privada e o que seria a esfera pública. A análise dos
70
limites entre o público e o privado é o que cria condições para o desenvolvimento
e expressão de vários aspectos do indivíduo, capazes de estruturar suas relações
interpessoais, encontrando-se a privacidade de certa forma relacionada ao que é
considerado o âmbito espacial do indivíduo.
No entanto, deve-se observar que a questão do que é considerado âmbito
privado, pessoal, particular sofre uma série de modificações ao longo do tempo,
então o simples estabelecimento da diferença entre o que pode ser visto como
esfera pública e o que representa a esfera privada, localizando a privacidade
dentro desta, não pode ser visto de forma absoluta ou estanque, ou como a solução
sobre o conceito da privacidade.
Apesar de uma certa dicotomia entre o púbico e o privado ter sido mantida
ao longo da história da civilização ocidental, a questão da determinação das
esferas pública e privada vem sofrendo uma série de modificações ao longo da
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história fundadas nas mudanças de atitudes, das instituições, das condições de
vida, do desenvolvimento tecnológico, trazendo à baila o fato de que a
consideração do privado é moldada de acordo com a cultura e a história de uma
sociedade em um determinado momento sendo, portanto, passível de modificação
entre diferentes culturas e períodos históricos.
Atualmente, pode-se considerar o acesso ao número de um seguro social,
um comportamento sexual, um diário, uma casa como espaços privados, mas nem
todos consideram tais questões como privadas de uma mesma forma. Alguns
aspectos da vida, tais como a família, o corpo, a casa, são comumente vistos como
esferas privadas, porém tal afirmação, tão simples e taxativa hoje, nem sempre foi
considerada com este mesmo ângulo no passado.
A família, por exemplo, hoje considerada o núcleo de uma esfera privada,
nem sempre foi um santuário de privacidade. Atualmente, ela é vista como uma
instituição que reflete a intimidade, na qual o núcleo familiar vive junto em um
mesmo lar, provendo uma realização pessoal e o enlace de relações amorosas
entre seus membros.
No entanto, na história ocidental e ainda hoje em algumas culturas, o
matrimônio e a constituição de uma família não eram vistos como uma decisão
individual e autônoma. O matrimônio, em um primeiro momento, era controlado
pelos pais e pelo governo, todos vinculados a objetivos econômicos capazes de
firmar relações estratégicas, não sendo fundados nem no amor e muito menos em
71
uma livre escolha. Também não era visto como uma instituição que
proporcionasse um desenvolvimento pessoal por intermédio de uma convivência
familiar, mas sim como um conjunto de responsabilidades sociais e impedimentos
para o crescimento individual.
O mundo familiar era regulado por diferentes formas de autoridade,
caracterizando-se principalmente por um autoritarismo sobre as mulheres, para
quem o matrimônio trazia uma vida de submissão e obediência irrestrita, sem
qualquer sinal de liberdade. De fato, o seio familiar era visto como um núcleo de
controle social, uma espécie de pequena monarquia, comandada por um sistema
patriarcal. No momento histórico da expansão da burguesia, por exemplo, a vida e
a convivência familiar eram fatores extremamente vinculados à vida profissional.
A família refletia um negócio que visava muito mais ao atendimento às normas
sociais, ao alcance de uma sociabilidade do que à garantia de uma privacidade.
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No início do século XIX, esse quadro familiar começa a sofrer alterações
adentrando em uma transformação gradual do que se considerava uma instituição
econômica para um espaço de intimidade e de realização pessoal, tornando-se
cada vez mais um espaço privado para a vida do indivíduo. De uma forma
gradual, a família começa a se desenvolver enquanto entidade privada focada em
si mesma, transformando o casamento em uma instituição cuja formação seria
decorrente de uma escolha pessoal e não mais de matrimônios arranjados com
base em possíveis ganhos econômicos. O espaço da casa, do lar e o espaço do
trabalho passam a existir em locais separados fisicamente, dando origem a um
mundo público do trabalho, a um mundo essencialmente de negócios e a locais
mais íntimos e privados para exclusiva convivência familiar.
Analisando a questão da privacidade no seio familiar, pode-se dizer que
com o desenvolvimento e a transformação sofridas por esta instituição a família
chegou a espelhar a total ausência de interferência estatal nas relações afetivas.
Todavia, tal fato não leva necessariamente à afirmação de que a partir de então e
ainda na sociedade contemporânea, como, por exemplo, a norte-americana, não
exista qualquer tipo de interferência estatal sobre a família. Na verdade, existe sim
uma grande intervenção estatal sobre as relações conjugais, principalmente na
regulação desse instituto, assim como interferência sobre a educação e criação dos
filhos, mas o Estado pode e de fato atua também como provedor e garantidor dos
72
atributos familiares, tais como a independência, a liberdade de pensamento,
liberdade contra coerção, dentre outros.
O estudo das atitudes relacionadas ao corpo também é importante para
uma visão da privacidade. O corpo durante muito tempo foi visto como uma das
chaves mestras da privacidade, não havendo nada mais sagrado ou
cuidadosamente guardado do que o direito individual de ser possuidor e
controlador de si mesmo. A privacidade do corpo envolve a privacidade de certas
práticas referentes a ele, tais como o sigilo sobre algumas doenças, sobre
condições físicas, normas de aproximação corporal, de contato interpessoal e o
controle e domínio individuais sobre as decisões referentes ao corpo.
Para se ter uma idéia de como a relação com o corpo e sua privacidade
mudam ao longo do tempo, na história antiga de Atenas o aparecimento de uma
pessoa com seu corpo nu era uma demonstração da dignidade do cidadão, era
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comum que as pessoas se banhassem juntas e tal fato era visto como parte
integrante de celebrações e eventos sociais. Já durante o período da Renascença,
dentre as classes mais abastadas, as pessoas começavam a ter um comportamento
de maior proteção em relação aos seus corpos, buscando cada um afastar o seu
corpo do corpo do outro. Homens e mulheres se tornaram mais reservados e
passaram a não adotar mais determinadas condutas como dividir a cama com
estranhos e visitantes em sua própria casa, comer e beber nos mesmos talheres.
Mesmo assim, apesar de no século XVI as pessoas, principalmente da
classe burguesa em ascensão, começarem uma busca por maior reserva no
tratamento de seus corpos, ainda no século XVII não era anormal as pessoas
conversarem com seus amigos enquanto faziam suas necessidades físicas em um
mesmo ambiente. Dentre as famílias mais pobres da Inglaterra, por exemplo, que
possuíam apenas um cômodo em suas casas, era comum que urinassem,
defecassem e praticassem a cópula aos olhos uns dos outros.8
Como ressalta DONEDA (2006:126), exemplificando a presente questão
apresentada por SOLOVE (2002), a vida pública da monarquia francesa, no início
dos anos de vida no palácio, era tal que atos como o sono, o vestir-se, a higiene e
8
Neste sentido, segundo GIDDENS (2002:151), “[...] há evidência suficiente que indica que, em
muitas culturas não-modernas, assim como na Europa pré-moderna, a atividade sexual não era
mantida estritamente oculta dos olhos dos outros. Em parte, tal visibilidade era inevitável: nos
grupos socioeconômicos mais baixos era prática normal que pais e filhos dormissem no mesmo
cômodo, muitas vezes junto com outros parentes.”
73
outros que seriam para a sociedade contemporânea apanágios da individualidade
eram realizados publicamente, sendo que a consideração dessa vida pública da
monarquia centrada exclusivamente em festas e recepções oficiais se deu apenas
em um momento posterior.
Vislumbrando a privacidade no tocante à casa, ao lar do indivíduo,
atualmente ela é considerada a essência da privacidade, não sendo utilizada para
qualquer finalidade pública. O lar é considerado um local onde os indivíduos
encontram paz de espírito e cultivam suas mais íntimas relações, longe da vida
pública e de possíveis intervenções e violações estatais. No entanto, durante
muitos anos o lar não foi visto assim como um paraíso doméstico.
Até o século XVII, as casas dos indivíduos eram na verdade construídas e
consideradas como espaços múltiplos. Para a emergente burguesia, seus lares
eram dedicados primeiramente ao trabalho, com apenas pequenos espaços atrás ou
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acima para a alimentação ou para dormir. As casas eram locais cheios,
barulhentos, tumultuados e normalmente alojavam muitas famílias, onde um casal
tinha de dividir a mesma cama com seus filhos ou às vezes também com estranhos
e visitas. No entanto, já no início do século XVII, as casas passaram a ser
construídas com uma divisão de quartos e espaços com diferentes finalidades,
passando a haver, então, uma distinção entre os quartos, destinados a momentos
íntimos de solidão e quietude, e os espaços públicos.
Nesse mesmo sentido, segundo DONEDA (2006:127), a partir do século
XVI começa-se a observar uma incipiente mudança de costumes no tocante à vida
cotidiana, com uma nova disposição arquitetônica das casas e das cidades,
tornando-as mais propícias à separação por classes e categorias, por conseguinte,
ao isolamento das pessoas. Desde então, com essa nova posição do homem diante
da sociedade, com um individualismo cada vez mais exacerbado, começa a ser
delineada a atual visão de privacidade e um enriquecimento da esfera privada.
Para o autor,
Qualquer noção de privacidade deve fundar-se em uma percepção da relação do
indivíduo com a sociedade, e a gênese de atual concepção remonta a duas causas
principais: a emergência do estado-nação, da sociedade civil e das teorias de sua
soberania nos séculos XVI e XVII, que formaram a noção moderna de ente
público; e também o estabelecimento de uma esfera privada livre das ingerências
deste ente público, como reação ao absolutismo, tendências aceleradas pelo fim
74
da sociedade feudal e, posteriormente, pela eclosão da Revolução Industrial.
(DONEDA, 2006:128)
Assim, sobretudo quando o modo de produção deixa de ser essencialmente
baseado na agricultura e surge o desenvolvimento industrial através das fábricas e
o fenômeno da urbanização, principalmente já no final do século XIX, tem-se uma
real separação física entre os locais destinados à moradia e os locais destinados ao
trabalho. A vida profissional do indivíduo passa a ser vista como uma esfera
separada da vida em seu próprio lar, onde ele pode atualmente usufruir de um
espaço de maior privacidade e tranqüilidade.
Como ressalta também PEREZ LUÑO (2005:327), coadunando as
colocações de SOLOVE (2002), a aparição de um conceito de intimidade
encontra-se intimamente relacionada ao nascimento da burguesia, visto que no
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período medieval o isolamento era privilégio das esferas mais altas da nobreza ou
de quem, por livre escolha ou necessidade, renunciava a essa convivência
comunitária, tais como os monges, pastores e bandidos. Na medida em que as
condições sociais e econômicas levam ao desenvolvimento dos núcleos urbanos e
surgem formas de divisão do trabalho que delimitam com uma clara diferença o
lugar onde se vive (a casa) e o lugar onde se trabalha, a possibilidade de o
indivíduo manter-se isolado torna-se cada vez mais real. A intimidade, nesse
momento, configura-se como uma aspiração da burguesia de alcançar o que até
havia pouco era apenas privilégio de alguns e tudo isso devido à aparição das
novas condições de vida. O homem burguês, enclausurado em seu isolamento,
constitui-se no protótipo do sujeito ativo titular do direito à intimidade, figurando
a vida privada como um direito à solidão, à reserva e ao isolamento, refletido, sem
dúvida, pela máxima inglesa my home is my castle. Este nascimento da intimidade
dentro de uma sociedade burguesa, no entanto, que coincide cronologicamente
com a afirmação revolucionária dos direitos do homem, não proporcionou a
realização desse direito como uma exigência natural de todos os homens, mas tão
somente como um privilégio de uma única classe, qual seja, a própria classe
burguesa.9
9
Assim, vale ressaltar que a preocupação com o indivíduo em seu foro íntimo, na sua esfera
privada se torna latente com o surgimento das sociedades modernas e, segundo GIDDENS
(2002:74), em especial com a diferenciação da divisão do trabalho, momento no qual o indivíduo
se torna um ponto separado de atenção.
75
Importante observar que o breve processo histórico relatado segundo o
pensamento de SOLOVE (2002) no tocante à família, ao corpo e ao lar é dotado
de uma grande generalidade, pois, se analisado de uma forma mais detalhada,
constatar-se-á uma variação entre as práticas e condutas mencionadas dependendo
de fatores como a urbanização, o status e a classe social à qual pertence o
indivíduo, a origem étnica e religiosa, dentre outros. Mas, o que de fato merece
ser constatado é que certas atitudes, práticas e condutas não são universais e
estáticas ao longo do tempo e entre as diferentes sociedades, justamente porque
são moldadas de acordo com a realidade pontual do período histórico ao qual
pertencem. Mesmo que seja possível determinar um padrão em torno de um
conceito de privacidade, qualquer padrão encontrado está fadado a diferir de
outras visões da privacidade adotadas ao longo da história e das civilizações.
Nesta problemática da privacidade, nesta busca de um padrão em torno de
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um conceito de privacidade, DONEDA (2006:60), de certa forma seguindo o
raciocínio de SOLOVE (2002), constata que a privacidade sempre foi diretamente
condicionada pelo estado da tecnologia em cada época e sociedade e o advento de
estruturas jurídicas e sociais que tratam do problema da privacidade são, de fato,
respostas diretas a uma nova condição de informação, determinada pela
tecnologia. Dessa forma, as primeiras discussões, em sede jurídica ou não, sobre
uma possível violação de privacidade fundada na divulgação de correspondência
privada só poderiam ter ocorrido em sociedades que desenvolveram tecnologias
que tornaram o correio um meio eficiente e ao alcance de um número considerável
de pessoas.
Todavia, para SOLOVE (2002) a privacidade não pode ser tida apenas
como uma questão histórica ou como algo empiricamente constatado como o
senso coletivo de uma determinada sociedade do que deve ou não ser considerado
como espaço de privacidade. É imprescindível que um componente normativo
faça parte do conceito de privacidade, de forma que a sociedade possa ter
parâmetros para moldar suas leis, normas e políticas futuras de privacidade. A
proteção à privacidade não pode se tornar simplesmente parte das expectativas
gerais de uma sociedade, mas sim deve ser uma expressão de poder contra
intervenções estatais desmedidas e também contra a invasão causada pela
vigilância permanente do mundo moderno sobre o âmbito individual.
76
No entanto, a construção de uma proteção legal para a privacidade
depende de uma análise normativa que requer o exame do valor deste direito
fundamental em contextos específicos. Assim, o valor e o discernimento em torno
deste são os mais importantes aspectos da privacidade, uma vez que são capazes
de deixar claro o que é a privacidade e permitir uma análise de peso e contrapeso
entre esta e demais valores conflitantes em uma determinada sociedade. A
privacidade afeta o comportamento das pessoas, suas escolhas, suas ações e tais
práticas merecem ser protegidas na exata medida de sua importância.
A maneira pela qual são moldadas as práticas e condutas sociais depende
da visão sobre aquilo que é considerado bom pela própria sociedade e de como
esta deseja estruturar o poder em seu seio para a proteção do indivíduo em seu
âmbito de privacidade. Isso não quer dizer que é vedado à lei qualquer tipo de
restrição às condutas e práticas sociais de privacidade, no entanto as decisões
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políticas neste sentido devem levar em conta os efeitos dessas intervenções sobre
o bem-estar psicológico dos indivíduos. As violações a algumas práticas devem
ser muito bem analisadas e sopesadas, pois podem em muitos casos acabar
afetando e prejudicando outras práticas como o bem-estar e a liberdade
individuais ou o equilíbrio psicológico dos indivíduos.
A valoração da privacidade deve, assim, ser instrumental, contextualizada,
sem contar com qualquer valoração genérica e abstrata. Desta forma, o que vale
ressaltar é que na verdade a formatação do conceito de privacidade difere quando
analisados diferentes contextos. Assim, o foco para os moldes de um conceito de
privacidade deve estar fundado em práticas pontuais e específicas.
4.4
A privacidade sob o olhar de WHITMAN10
Nesta mesma preocupação de caracterização da privacidade, WHITMAN
busca um paralelo entre duas culturas ocidentais universais, a americana e a
10
WHITMAN, James Q. The two western cultures of privacy: dignity versus liberty. Yale Law
School. Public Law and Legal Theory Research Paper Series. v. 64, p. 01- 94.
77
européia, constatando que em cada contexto específico, em cada cultura, a análise
normativa
muda
consideravelmente.
Apesar
de
as
culturas
ocidentais
considerarem a privacidade como um valor de suprema importância e de alguma
forma essencial para o desenvolvimento da personalidade, a maneira de lidar com
esta privacidade, o enquadramento legal e o comportamento das pessoas são
díspares de lugar para lugar.
Na análise do mundo ocidental desenvolvida pelo autor, este reconhece o
imenso valor dispensado à privacidade, a obrigação universal de toda sociedade
civilizada em proteger a privacidade e, ainda, a real preocupação com sua
constante invasão pelas novas tecnologias de vigilância da sociedade moderna. No
entanto, é forçado a admitir que apesar de a normatização e a proteção serem
imprescindíveis, a definição de privacidade se torna extremamente difícil, não há
uma clareza para tal conceito.
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Dizer exatamente o que deve ser mantido em segredo, o que deve ser
escondido, o que deve ser mantido fora dos olhares de terceiros, são questões
escorregadias e que mudam de tempos em tempos, de sociedade para sociedade.
Como explorado acima pelo próprio SOLOVE (2002), há registro de sociedades
nas quais as pessoas faziam suas necessidades físicas diárias na frente de outras,
às vezes muitas outras pessoas, ou, ainda, praticavam suas relações sexuais no
mesmo ambiente no qual se encontravam outras várias pessoas, sem que isso
fosse ultrajante, ou significasse qualquer tipo de violação à privacidade. Eram
simplesmente hábitos, atitudes e comportamentos comuns no dia-a-dia, o que
demonstra como, ao longo dos tempos, tem-se uma significativa mutação do que
se entende por privacidade.
WHITMAN aborda dois discursos sobre os que advogam a proteção à
privacidade: um primeiro fundado em argumentos intuitivos, que partem de um
pressuposto de que os seres humanos têm uma visão direta do que é certo ou
errado e de que todos consideram que as violações à privacidade devem ser
rechaçadas e que, portanto, a proteção legal à privacidade se torna tão imperativa
quanto a proteção à propriedade e aos contratos.
Todavia, esse primeiro discurso só poderia ter um peso real se de fato as
mesmas intuições fossem compartilhadas de igual forma por todos os seres
humanos. Mas o que as evidências demonstram é que as intuições e ansiedades do
homem sobre a privacidade diferem não só nas práticas exóticas de sociedades
78
antigas ou mesmo nas culturas modernas, mas inclusive entre as sociedades
familiares do mundo ocidental. Assim, ressalta o autor um significativo conflito
entre os Estados Unidos e os países da Europa ocidental, revelando diferenças
sobre o que deve ser protegido sob o olhar da privacidade.
Para os europeus é de fato claro como os americanos não entendem as
demandas de proteção à privacidade e como a legislação americana parece tolerar
graves violações à privacidade. Turistas europeus, por exemplo, quando em visita
à América, são previamente avisados para que não se espantem tanto com as
discussões e exposição pública como a do caso Mônica Lewinsky11, da maneira
aberta como os americanos conversam e perguntam sobre salários, como
estranhos partilham facilmente informações sobre atividades privadas, como a
intimidade do consumidor é devassada, a facilidade com que circulam fotos de
pessoas comuns ou famosas nuas pela internet. Assim, pelo padrão europeu de
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proteção à privacidade as leis americanas falharam para esta mesma proteção.
No entanto, seria simplesmente falso dizer que os americanos não se
importam com a privacidade, muito pelo contrário eles são tão obcecados pela
proteção à privacidade quanto os europeus. Mas, do ponto de vista americano, por
exemplo, quando os europeus casualmente tiram suas roupas e ficam nus nas
praias, quando as mulheres, para um banho de sol, fazem um “topless”, ou quando
o Governo tem ingerência suficiente na vida privada para determinar inclusive
quais são os nomes que os pais estão autorizados a dar a seus filhos, tais fatos
configuram uma agressão à privacidade. Assim, não só o comportamento dos
europeus em determinadas situações, como também as próprias leis européias, em
muitos aspectos parecem ridículos e em alguns casos até chocam os americanos.
Dessas divergências o que se pode concluir, segundo o autor, é que o
clamor por uma proteção à privacidade é de fato universal, porém a maneira pela
qual os americanos e os europeus ocidentais percebem essa privacidade é dada por
culturas diferentes, por formas de sensibilidade e intuição diferentes, enquadrados
em um sistema legal também diferenciado, formando, então, uma base legal de
valores para cada cultura. Mas, questiona, agora, o autor por que essas
sensibilidades são tão diferentes? Por que os franceses não se sentem à vontade
11
Mônica Lewinsky foi estagiária da Casa Branca nos anos de 1995 e 1996, quando Bill Clinton
era o então Presidente dos Estados Unidos da América do Norte, tendo mantido com o mesmo
relações íntimas e sexuais neste período e sendo responsável por um dos maiores escândalos
políticos da história norte-americana, divulgado e comentado em detalhes pelo mundo todo.
79
para falar sobre seus salários, mas passeiam nus pelas praias com a maior
tranqüilidade? Porque os europeus não se rebelam contra a ingerência estatal na
escolha dos nomes de seus filhos? Porque americanos se recusam a andar com
suas carteiras de identidade, mas não se rebelam contras as várias e comuns
inspeções sobre suas contas correntes, suas informações bancárias e suas relações
de consumo?
Tantas diferenças sobre a concepção de uma privacidade podem estar
fundadas no fato de que a visão européia preza pelo aspecto da dignidade, pela
proteção do direito ao respeito e à dignidade pessoal e, por conseguinte, os
direitos à imagem, ao nome e à reputação, perfazendo, assim, um controle da
imagem pública que garante ao indivíduo ser visto da maneira pela qual gostaria.
Já a visão americana é mais orientada pelo valor da liberdade, principalmente
contra a interferência estatal na casa e no lar de cada um. Assim, por exemplo, a
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liberdade de expressão nos Estados Unidos tem grande valor e proteção
constitucional e normalmente acaba sobreposta a proteção da honra de cada um,
enquanto pela visão européia a liberdade de expressão é sempre exercida de uma
forma balanceada aos direitos à honra, dignidade e personalidade dos indivíduos.
Ainda a título de exemplificação, a abertura de crédito ao consumidor é de
mais fácil acesso e muito mais comum entre os americanos do que entre os
europeus e as normas acerca da privacidade em muito contribuíram para um lento
progresso dos cartões de crédito entre estes, uma vez que para os europeus mais
do que um mercado eficiente, mais do que crédito para o consumidor, o que
importa é a imagem, a dignidade do consumidor, sendo assim, a idéia de que
qualquer comerciante poderia ter acesso ao histórico financeiro do consumidor é
de fato insuportável para os europeus.
Para os americanos, o uso do crédito e o tráfico de informações sobre os
consumidores são extremamente difundidos e estimulados, com a teoria de que se
os comerciantes sabem as preferências do consumidor, podem oferecer
exatamente os serviços desejados e com maior qualidade. Desse modo, enquanto
as leis européias aprovam a circulação e abertura de informações sobre o
consumidor apenas para finalidades específicas e durante período limitado e,
ainda, mediante consentimento expresso do indivíduo afetado e sob supervisão do
Estado, os americanos têm uma tendência maior para aceitar a auto-regulação do
mercado.
80
Tais considerações, no entanto, não podem ser vistas como absolutas,
como divisões extremas entre o pensamento europeu ocidental e o americano, pois
em alguns momentos eles são coincidentes. Nenhuma generalização absoluta de
qualquer sistema legal pode estar correta. Assim, não é correto afirmar que a lei
americana é completamente diferente da lei européia, mas sim que as diferenças
apontadas foram apenas a título de comparação, e não como o estabelecimento de
uma linha divisória absoluta entre ambos os sistemas.
De toda forma, para WHITMAN a ênfase dada ao caráter liberdade pela
sociedade americana e a ênfase à dignidade na qual encontra-se fundada a
sociedade européia não são produtos que têm uma lógica exata, mas sim produtos
formatados pelas idéias e ansiedades locais. O apelo às intuições individuais, às
questões morais sobre o que é bom ou ruim, certo ou errado, para determinar os
aspectos legais de proteção à privacidade é um erro primário. O trabalho para
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identificação do que seja uma violação à privacidade vai muito além de uma
simples intuição ou de um conceito moral, ele está embasado na identificação dos
valores fundamentais que se encontram vinculados à questão da privacidade em
uma dada sociedade, e tais valores fundamentais podem simplesmente ser
diferentes.
4.5
Um olhar atual sobre a privacidade
Diante de tamanha profusão de termos como privacidade, intimidade, vida
privada, privaticidade, privatividade, reserva, segredo, sigilo, recato, entre outros,
para a definição de um direito fundamental e da dificuldade de filósofos,
estudiosos, doutrinadores e juristas para alcançar um conceito, uma definição
satisfatória para este direito, uma vez que não existe um conceito claro nem
tampouco definições doutrinárias suficientes, torna-se necessária a busca por um
olhar atual sobre tal direito. E, para tanto, apesar de a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 fazer menção expressa aos termos intimidade e vida
privada, em seu artigo 5º, X, seguindo a doutrina de SILVA (2003:205) e também
de DONEDA (2006:111), adota-se para o presente trabalho uma padronização
desses variados termos em torno de uma única reflexão sobre a privacidade, por
81
ser este um termo mais específico e suficiente e por poder ser visto em um sentido
mais genérico e amplo, capaz de englobar as manifestações da esfera íntima,
privada e da personalidade, com todas as informações do indivíduo mantidas sob
seu controle.
Sendo assim, é válido reforçar a idéia de que diante da diversidade
terminológica pacifica-se esta em torno de um único termo, qual seja, privacidade,
observando, ainda, que as distinções terminológicas não acarretam maiores
conseqüências em termos de considerações práticas e, seguindo orientação de
DONEDA (2006:106), o que mais importa não é a exata definição do termo, mas
sim o que se pretende alcançar com ela. Dessa forma, a busca em questão não gira
em torno da construção de um conceito sólido, exato e absoluto sobre o direito
fundamental à privacidade, até porque diante de todo o exposto não seria possível
tal conceituação, mas em torno de um enquadramento contemporâneo do termo e
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em uma melhor e mais segura proteção a esse direito fundamental.
Não há, ainda, como alcançar um mesmo e universal valor para a
privacidade em todos os contextos (SOLOVE, 2002:1093) porque tal valor está
vinculado a uma noção cultural induzida no decurso do tempo por fatores
políticos, econômicos e sociais (DONEDA, 2006:114), estando sua justificação
jurídica atrelada a um processo histórico. No entanto, apesar de ser árdua a
valoração da privacidade e o alcance de uma definição do que deve ser mantido
em segredo e fora dos olhares de terceiros, pois essas questões são, segundo
WHITMAN, escorregadias, mudam de tempos em tempos e variam de sociedade
para sociedade, sofrem influências das idéias e ansiedades locais, é imprescindível
centrar o pensamento sobre a proteção deste direito fundamental, sob pena de vêlo abolido na sociedade contemporânea.
Como visto anteriormente na análise de ARENDT (2007:59), o
entendimento sobre o público seria o de um mundo comum a todos, onde os
homens estão juntos, uns na companhia dos outros em uma esfera comum,
estando o termo privado relacionado pela autora (ARENDT, 2007:68) com o
indivíduo que vive uma vida inteiramente privado de ser visto e ouvido por
outros, tendo como único lugar para o seu refúgio seguro contra o mundo público
comum as quatro paredes de sua propriedade particular. Essa alusão à máxima
inglesa “my home is my castle” como sendo a propriedade privada o único meio
eficaz de garantir a sombra daquilo que deve ser escondido contra a luz da
82
publicidade (ARENDT, 2007:81), como sendo o meio de garantir o direito à
solidão, à reserva e ao isolamento precisa agora ser enquadrada, revista e
repaginada à luz da sociedade contemporânea que vive a sua alta modernidade
(GIDDENS, 1991) e sofre as conseqüências profundas impostas pela Era da
Tecnologia (ROSA, 2006).
A privacidade, pois, é diretamente condicionada pelo estado da tecnologia
em cada época e ao processo histórico vivido em cada sociedade (DONEDA,
2006:60) e, assim, para que seja garantida uma proteção a esse direito
fundamental é imprescindível repensar o que se entende por privacidade nos dias
atuais. Em uma sociedade tão globalizada e em um mundo excessivamente
exposto, será que há algo que ainda possa ser considerado como privado? Em
virtude disso, passa-se à análise de alguns exemplos contemporâneos que
certamente vieram mudar o olhar sobre o que é o público e o que é o privado.
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Abordado por ROSA (2006:152) como a globalização da gafe e, ainda, por
SOLOVE (2007:2), a história de uma moça da Coréia do Sul tomou proporções
inimagináveis antes da Era da Tecnologia. Essa moça encontrava-se com seu
cachorro em um dos vagões do metrô em Seul e em um determinado momento ele
fez suas necessidades no chão do vagão. A moça, por sua vez, não só não limpou
as necessidades de seu cachorro como respondeu com arrogância e desrespeito
àqueles que lhe pediram que o fizesse. Alguns passageiros registraram esse
episódio com as câmeras de seus celulares e disponibilizaram o material em
“blogs” na internet. Em questão de horas ela já estava sendo chamada de “dog shit
girl”, suas fotos estavam multiplicadas em diversos terminais e em alguns dias sua
identidade, onde morava, o que fazia, onde estudava e seu passado já tinham sido
revelados ao público. Seus vizinhos, tomando conhecimento do fato pela internet,
colaram cartazes em frente à sua casa como forma de repreensão. O episódio se
transformou em noticiário nacional e internacional, chegando inclusive ao
“Washington Post” e ao Jornal Estado de São Paulo. E, como resultado dessa
vergonha pública, a moça teve de deixar a Universidade.
O episódio acima vem demonstrar, assim como foi discutido no tópico
sobre espaço público e espaço privado (item 3.1), que a vida privada nunca foi tão
pública quanto nos dias de hoje, que o chamado cidadão comum não existe mais,
pois estão todos potencialmente expostos uns aos outros (ROSA, 2006:152), há
uma constante publicização do que deveria ser resguardado ao âmbito privado.
83
Sem discutir o mérito sobre do erro cometido pela jovem coreana, o que de fato é
assustador foi a proporção globalizada que tomou um acontecimento tão pontual e
local, levantando questionamentos sobre as normas de circulação de informação
na internet, a privacidade e a vida nesta Era da Tecnologia, nesta Era da
Informação. E, ainda, levando a um questionamento crucial de que talvez quanto
maior seja a liberdade de circulação de informação, fatos e imagens na internet,
menos livres serão os indivíduos.
Um fenômeno semelhante ao caso da jovem coreana, de globalização de
um fato pontual e local, foi a divulgação das imagens da modelo brasileira
Daniella Cicarelli e Tato Malzoni enquanto namoravam na badalada praia de
Tarifa, no Município de Cádiz, Costa da Andaluzia - Espanha12. A modelo e
apresentadora de TV Daniella Cicarelli foi filmada por um paparazzo enquanto
protagonizava cenas de cálida paixão com seu namorado nessa praia espanhola. O
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vídeo, exibido em um canal pago de televisão na Espanha, rapidamente espalhouse pela internet e se transformou em um sucesso mundial.13
A título de exemplificação e comentário, neste caso específico, a modelo e
seu namorado ingressaram com Ação Inibitória com o propósito de suspender a
exibição do filme e das fotos do casal, que foram captadas de forma clandestina,
sem consentimento, em um momento de lazer do casal, e estavam sendo exibidas
em web-sites das empresas Internet Group do Brasil Ltda, Organizações Globo de
12
O namoro do ano! Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/48727,1. Acesso em:
27/12/2007.
13
O caso Cicarelli não foi o único e acabou sendo reproduzido em diversos outros casos pelo
Brasil como, por exemplo, o da “Cicarelli de Viçosa”, em novembro de 2007, com a exibição em
diversos sites na internet, principalmente no You Tube, de um vídeo de um casal praticando
relações sexuais dentro de um elevador na cidade de Viçosa – Minas Gerais, além da exibição e
comentários sobre a identidade e vida particular do casal (onde moram, onde estudam, entre outros
detalhes), ressaltando, ainda, o fato de que a moça era noiva e o rapaz tinha uma namorada.
(Disponível em: http://hot.trankera.org/video-com-casal-transando-em-elevador-na-cidade-devicosamg-video-cicarelli-de-vicosa/. Acesso em 02/02/2008 e disponível também em
http://imperador.org/video-de-casal-fazendo-sexo-em-elevador-cicarelli-de-vicosa/. Acesso em
02/02/2008
e
http://enciclopediadaputaria.blogspot.com/2007/11/fotos-sexo-no-elevador-nacidade-de.html. Acesso em 03/02/2008. Outros episódios semelhantes como “Transando em
público”; “Flagra no estacionamento! Casal transando entre carros”; “Flagra de motoboy transando
com atendente no escritório” e “Flagra: casal transando em estádio de futebol” estão disponíveis
na rede mundial de computadores, demonstrando como os milhares de olhos do “Big Brother”
estão permanentemente atentos a todos os fatos, a fim de que com um pequeno “click” a vida
cotidiana do cidadão comum, inclusive suas mazelas, estejam disseminadas por todo o mundo em
uma
questão
de
segundos.
(Disponível
em:
http://enciclopediadaputaria.blogspot.com/search/label/flagras. Acesso em 04/02/2008.)
84
Comunicação e You Tube Inc. A ação judicial foi proposta perante a 23ª Vara
Cível da Comarca de São Paulo Capital e julgada improcedente a tutela inibitória,
sendo, ainda, objeto de análise do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
através do Agravo de Instrumento 472.738-4, julgado procedente pela 4ª Câmara
de Direito Privado deste Tribunal, tendo como Relator o Desembargador Ênio
Santarelli Zuliani14.
A tese que prevaleceu, portanto, no julgamento de 28 de setembro de 2006
perante a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo foi a
de que a modelo Daniella Cicarelli e seu namorado têm sim o direito de
resguardar suas imagens e privacidade. Por maioria dos votos, a Turma julgadora
deu provimento ao recurso apresentado pelos Agravantes para que os Agravados
retirassem do ar as cenas de namoro do casal15.
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14
Voto: 10448; Agravo: 472.738-4; Comarca: São Paulo; Relator Desembargador Ênio Santarelli
Zuliani (4ª Câmara Direito Privado); Agravantes: Renato Aufiero Malzoni Filho e Daniella
Cicarelli Lemos; Agravados: Internet Group do Brasil Ltda, Oranizações Globo de Comunicação e
You Tube Inc. Ementa: Pedido de antecipação de sentença por violação do direito à imagem,
privacidade, intimidade e honra de pessoas fotografadas e filmadas em posições amorosas em areia
e mar espanhóis – Tutela inibitória que se revela adequada para fazer cessar a exposição dos
filmes e fotografias em web-sites, por ser verossímil a presunção de falta de consentimento
para a publicação [art. 273, do CPC] – Interpretação do art. 461, do CPC e 12 e 21, do CC –
Provimento, com cominação de multa diária de R$ 250.000,00, para inibir transgressão ao
comando de abstenção. (grifos nossos)
15
É válido ressaltar, no entanto, o voto divergente do Revisor Desembargador Maia da Cunha que
defendeu tese contrária afirmando não ter havido, por parte do casal flagrado, a menor
preocupação em preservar o direito de imagem, considerando, portanto, que os agravantes, como
pessoas públicas, ao resolverem agir como agiram, abriram mão da intimidade e da privacidade,
uma vez que sabiam que em uma praia, com tanta gente, corriam o risco de não terem a sua
imagem preservada. Assim, nos próprios termos expostos em seu voto divergente, tem-se que:
“[...] Não encontro a prova da verossimilhança das alegações que se destinam a obrigar as
agravadas a retirar das suas páginas eletrônicas o filme em que estão retratados alguns minutos de
gravação contendo os autores em apaixonada troca de carícias, beijos e abraços que terminaram
num sensual banho de mar. Cabe lembrar que os temas de direito não podem ser discutidos sob
ótica que não seja absolutamente contemporânea aos tempos vividos, em que a velocidade da
internet se somou aos demais meios de comunicação social, e, inegavelmente, pela velocidade,
com grande supremacia em termos de veiculação de fatos de interesse geral da coletividade. A
rede mundial que compõe a internet traz a lume toda a modernidade dos novos tempos, mostrando
instantaneamente os fatos e os acontecimentos públicos havidos em qualquer parte do planeta, na
mais perfeita demonstração de que o homem, no que se refere à informação avançou de modo
inexorável para o Século XXI. A análise de qualquer direito fundamental que não considere este
novo veículo de comunicação será inadequada como forma de traduzir o também novo sentimento
jurídico acerca de qualquer tipo de censura ligado às empresas nacionais que mantêm páginas na
internet, esta maravilhosa rede de computadores que encurtou todas as distâncias, que fez o tempo
passar tão velozmente a ponto de o furo de reportagem da manhã estar envelhecido no começo da
tarde, e em que o mundo, com os seus fatos importantes e de interesse geral da sociedade, aparece
a um clique na tela do computador pessoal de cada cidadão. [...] Nesse contexto novo, não se pode
cogitar de direito à privacidade ou à intimidade quando os autores, apesar de conscientes de serem
figuras públicas, em especial a modelo Daniela Cicarelli (e quem a acompanha evidentemente não
ignora o fato), se dispõem a protagonizar cenas de sensualidade explícita em local público e
85
Neste ponto é interessante observar alguns argumentos levantados pelo
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Relator em seu voto dando provimento ao pedido dos Agravantes:
[...] não custa realçar a importância dos direitos da personalidade no estágio atual
do Direito. O direito à imagem, antes do Código Civil, era protegido graças ao
empenho dos doutrinadores, como CARLOS ALBERTO BITTAR, que sempre
defendeu o conceito de resguardo da intimidade e da imagem retrato, ainda que
em se cuidando de pessoas famosas, como artistas, que, igualmente, não merecem
testemunhar agressões de sua imagem em revistas de sexo, de pornografia e
ilustrações de textos indecorosos [Os Direitos da Personalidade, 2ª edição,
Forense Universitária, 1995, p. 91]. Aliás, sobre essa circunstância e devido ao
fato de a questão atingir pessoa conhecida, como Daniela Cicarelli, é de rigor
mensurar se a informação que está sendo transmitida caracteriza adequada
utilidade de conhecimento, isto é, se é bom para a sociedade insistir na
transmissão do vídeo em que os dois cometem excessos à beira-mar. Não soa
razoável supor que a divulgação cumpre funções de cidadania; ao contrário,
satisfaz a curiosidade mórbida, fontes para mexericos e “desejo de conhecer o
que é dos outros, sem conteúdo ou serventia socialmente justificáveis”
[GILBERTO HADDAD JABUR, “A dignidade e o rompimento da privacidade”,
in Direito à Privacidade, Idéias e Letras, 2005, p. 99]. [...] O direito à imagem
sofre, não se discute, temperamentos. Não é absoluto, embora de cunho
potestativo [somente o titular poderá dele dispor, mediante consentimento] cede
frente ao interesse público preponderante. A pessoa não poderá se opor, por
exemplo, que sua imagem-retrato seja incluída como parte de um cenário público,
como quando é fotografada participando de um evento público, de uma festa
popular, de um jogo esportivo, etc. Alguns segredos de pessoa notória podem ser
contados e não filmados, com a discrição necessária, em obras biográficas, como
anota, na Itália, LUIGI GAUDINO [La responsabilità extracontrattuale, Giuffrè,
Milano; 1994, p 248]: “sarà cioè lecita la narrazione della biografia, nom già la
traspozione cinematográfica di e episodi della sfera intima di una persona
riproposti esclusivamente per appagare la curiosità altrui”. Contudo, como
adverte a Professora MARIA HELENA DINIZ [“Direito à imagem e sua tutela”,
in Estudos de Direito de Autor, Forense Universitária, 2002, p. 101], essa
restrição é legítima quando a figura da pessoa não é destacada com insistência,
pois o objeto da licença é o de divulgar uma cena em que a imagem da pessoa
seja parte integrante [secundária]; aqui, no entanto, o que se verifica é a
exploração das imagens das pessoas na praia e não o contrário. Ficou conhecida,
na Itália, a sentença que responsabilizou o conhecido canal RAI de televisão, por
reproduzir imagem ridícula de torcedor de futebol, captada em pleno estádio
“precisamente con un dito infilato nella boca” [GIOVANNA VISITINI, Trattato
breve della responsabilità civile, Cedam, Milano; 2005, p. 468]. [...] Não é
permitido afirmar, de forma categórica, no intróito da lide, que os jovens que
protagonizaram cenas picantes não possuem direito de preservar valores morais,
como o de impedir que esses vídeos continuem sendo acessados por milhares de
badalado como é a praia em que estavam, uma das que compõem o que se poderia chamar de
riviera espanhola, situada na Costa da Andaluzia, no município de Cádiz. Pessoas públicas, cuja
popularidade atrai normalmente turistas e profissionais da imprensa em geral, particularmente os
conhecidíssimos “paparazzi” da Europa, não podem se dar ao desfrute de aparecer em lugares
públicos expondo abertamente suas sensualidades sem ter a consciência plena de que estão sendo
olhados, gravados e fotografados, até porque ninguém ignora, como não ignoravam os autores, que
hoje qualquer celular grava um filme de vários minutos com razoável qualidade.” (grifos nossos)
86
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internautas, porque isso constrange e perturba a vida dos envolvidos, como
relatado nos autos. E, na dúvida sobre o direito preponderante, “o privilégio
sempre há de ser da vida privada. Isso por uma razão óbvia: esse direito, se
lesado, jamais poderá ser recomposto em forma específica: ao contrário, o
exercício do direito à informação sempre será possível a posteriore, ainda que,
então, a notícia não tenha mais o mesmo impacto” [SÉRGIO CRUZ
ARENHART, A tutela inibitória da vida privada, RT, 2000, p. 95]. No caso em
apreço, segundo consta dos autos, a exposição da imagem dos autores é do tipo
que causa depreciação, com ofensa ao resguardo e a reserva, porque são
filmagens que estão sendo transmitidas como forte apelo sexual e com sentido
obsceno. Nessa situação, lembra ADRIANO DE CUPIS, o consentimento da
pessoa, com a exposição de imagem lesiva à honra, é obrigatoriamente expresso e
específico [Os Direitos da Personalidade, Lisboa, 1961, p. 140], conceito que se
aplica à hipótese, pois, ainda que eles não proibissem a indiscrição dos paparazzi,
como se aventou, deveria existir concordância deles para a publicação dos lances
íntimos, porque depõem contra o resguardo da privacidade. [...] os autores da
ação querem preservar direitos tutelados pela Constituição Federal, de modo que
as cenas de suas vidas privadas não podem ser mais veiculadas. O interesse do
público não é mais importante que a evolução do Direito da intimidade e da
privacidade e que estão sendo séria e gravemente afetados pela exploração da
imagem. [...] (grifos nossos)16
Considerando os exemplos mencionados (o caso da jovem coreana e o de
Daniella Cicarelli), assim como os fundamentos da citada decisão judicial em
contraposição a uma visão tradicional e binária sobre a privacidade, esta divide o
mundo em duas realidades bem distintas, o público e o privado. De acordo com
uma visão tradicional, se uma pessoa se encontra em um local público ou aberto
ao público, como em um vagão de metrô ou em uma praia, por exemplo, ela não
pode mais ter qualquer expectativa de privacidade. Se o indivíduo está em
público, está se expondo aos demais indivíduos e não pode esperar qualquer
privacidade nesse momento. Caso realmente ele deseje a privacidade, deve se
refugiar em seu lar (SOLOVE, 2007:163), como a máxima inglesa “my home is
my castle”. Todavia, a moderna tecnologia impõe um severo desafio a essa visão
tradicional e binária que se estabeleceu sobre a privacidade. Em uma sociedade
repleta de câmeras de vigilância nos espaços públicos e privados, muitas delas
permanentemente conectadas a sites na internet, o conceito do que seria uma
exposição pública já não pode ser mais o mesmo.17
16
Voto: 10448; Agravo: 472.738-4; Comarca: São Paulo; Relator Desembargador Ênio Santarelli
Zuliani (4ª Câmara Direito Privado).
17
Uma sociedade que conhece o fenômeno “You Tube”, um site que tem a liderança na internet
com a exposição de vídeos enviados pelos internautas, no qual pessoas do mundo inteiro estão
acessando mais de cem mil vídeos por dia, no qual existe uma base diária onde as pessoas
87
Nas suas atividades diárias e comuns, os indivíduos têm uma certa
expectativa de anonimato. Ao fazer compras em um supermercado, em uma loja
de departamentos ou em uma farmácia, ao caminhar pelas ruas ou passear pelas
praias e praças da cidade, os indivíduos trazem consigo uma sensação de
anonimato, a sensação de serem mais um em uma multidão. Mesmo nesses
ambientes de vida em público, os indivíduos praticam suas condutas diárias e
comuns como se fosse em um contexto particular, diante de um pequeno grupo de
pessoas.
No entanto, na Era da Tecnologia as informações sobre o que o indivíduo
comprou, em quais estabelecimentos esteve, o que estava fazendo em uma
farmácia, quais eram os remédios indicados em sua receita médica, qual a sua
doença, qual o seu nome, endereço, características físicas, entre outros dados,
podem ser coletados através de câmeras e sensores e divulgados imediatamente
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através de celulares e, principalmente, pela rede mundial de computadores. Assim,
uma fotografia, por exemplo, permite a disseminação de uma imagem não apenas
para um número maior de pessoas em um mesmo contexto ou em uma mesma
comunidade, mas também a divulgação entre públicos diferentes, entre aldeias
diferentes ao redor do mundo.
E desta forma, uma conduta que muitas vezes seria apropriada em um
determinado ambiente pode ser inadequada e incompreensível em outro ambiente,
gerando, por conseguinte, situações embaraçosas para aquele cuja imagem foi
divulgada. Há diferentes normas sociais para diferentes situações e a divulgação
instantânea de dados e imagens fora de seu contexto original representa um
grande risco à proteção da privacidade.
Neste aspecto, segundo SOLOVE (2007:166), a privacidade é um
complexo de normas, expectativas e desejos, que vai muito além da simples
colocação de que, se o indivíduo encontra-se em público, ele abre mão do direito à
privacidade.
Muitos indivíduos, mesmo os artistas e celebridades, quando estão em
público não desejam ser fotografados ou ao menos não desejam que sua imagem
seja divulgada para milhões de outras pessoas pela internet. Muitos não desejam
que suas conversas tidas em espaços públicos com mais uma ou duas pessoas
adicionam mais de sessenta e cinco mil vídeos (SOLOVE, 2007:164), não pode mais separar em
mundos absolutamente distintos o público e o privado.
88
sejam gravadas e se tornem de conhecimento de outras milhares de pessoas após
divulgadas pelos meios de comunicação. Antes da Era da Tecnologia, o transitar
de uma pessoa por espaços públicos poderia fazer com que sua imagem e suas
conversas fossem vistas e ouvidas por terceiros, mas por uma quantidade bem
pequena de terceiros, apenas por aqueles que estivessem fisicamente mais
próximos.
Atualmente, diante de todo potencial tecnológico que envolve a sociedade,
os passos mais banais do dia-a-dia de um indivíduo podem instantaneamente ser
divulgados para milhares de outras pessoas no mundo inteiro. Sendo assim, o
entendimento de que a privacidade deve ser garantida tão somente entre as quatro
paredes da propriedade de um indivíduo, apenas no recanto do seu lar não deve
mais subsistir. Há que se falar também em privacidade nos espaços públicos. A
proteção ao indivíduo, a suas características íntimas e pessoais, a suas condutas
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particulares, não pode ser totalmente desconsiderada pelo simples fato de o
indivíduo estar exposto em um ambiente público. O indivíduo carrega consigo, e
não só em seu lar, o seu direito à privacidade. O fato de o local ser aberto ao
público não elimina a expectativa de privacidade do indivíduo.
No entanto, quando se passa a reconhecer a privacidade em público, surge,
segundo SOLOVE (2007:169), o seguinte questionamento, em qual proporção?
Aquilo que é feito em público é de fato público, então, em qual proporção deve-se
garantir neste ponto a privacidade? Não há uma resposta pronta nem tampouco
uma regra pré-estabelecida a ser aplicada e a expectativa de resolução desta
questão depende de cada circunstância em particular. O que não pode mais ocorrer
é a aplicação da tradicional divisão binária entre o público e o privado, pois apesar
de coadunar uma regra clara e de fácil resolução, a simplicidade dessa visão é
atualmente incompatível com a Era da Tecnologia. Assim, para o autor
(SOLOVE, 2007:187-191), a privacidade deve ser reconhecida em público, assim
como deve ser reconhecido que a privacidade envolve o respeito ao acesso, ao
segredo e ao controle, abandonando, pois, o arcaísmo da aplicação da regra
binária.
Desse modo, aliado ao pensamento de DONEDA (2006) de que a
justificação jurídica do direito à privacidade deve estar atrelada a um processo
histórico, a um enquadramento espacial desse direito fundamental e, ainda, ao
pensamento de WHITMAN, quando afirma serem escorregadias as questões que
89
envolvem a privacidade, mudando de tempos em tempos, sofrendo influências das
idéias e ansiedades locais de sociedade em sociedade, pode-se concluir que a
privacidade tem um caráter espacial, histórico e, por mais que não se consiga
obter um conceito absoluto e universal sobre esse direito, é possível contextualizálo de maneira a melhor protegê-lo em cada sociedade.
Sendo assim, para a sociedade contemporânea, em sua Era da Tecnologia,
com a demasiada exposição da imagem e vida privada dos indivíduos às câmeras
de vigilância, sensores, gravadores, entre outros, em todos os espaços, o direito
fundamental à privacidade deve ser garantido não só nos limites das quatro
paredes de um lar, onde há recato e segredo, mas também nos espaços públicos ou
abertos ao público, nos quais os indivíduos se encontram permanentemente em
contato e expostos uns aos outros, uma vez que cada um carrega consigo a sua
privacidade e não vincula esta proteção apenas ao espaço do seu lar. A máxima
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“my home is my castle” pode e deve ser repensada, evoluindo quem sabe talvez
para uma máxima “I am my castle”18.
4.5.1
Privacidade versus Segurança
Até o presente momento a abordagem deste capítulo foi no sentido de
buscar fundamentos para a construção de uma visão sobre a privacidade aplicada
à sociedade contemporânea. A partir de agora, busca-se uma análise do direito
fundamental à privacidade contraposto ao direito fundamental à segurança, tendo
como base a realidade fática de que, em decorrência da crescente violência nos
grandes centros urbanos, o monitoramento através de câmeras, que capta
diuturnamente a imagem das pessoas, vem sendo adotado em larga escala, em
espaços públicos e privados, como política de prevenção e combate à violência.
Busca-se, então, saber até que ponto pode-se restringir a privacidade dos
indivíduos em prol da segurança da população nas cidades.
18
A proteção ao direito fundamental a privacidade, nos moldes previstos na Constituição da
República Federativa do Brasil, deve, pois, se preocupar com o olhar atual sobre esse direito ora
abordado, sob pena de transformar a Constituição Brasileira de uma constituição escrita em uma
mera constituição de papel (LASSALE, 2001), mascarando a vontade da Constituição e sua força
normativa (HESSE, 1991).
90
Para este debate e como especial exemplo tem-se a discussão atual sobre a
implantação do SINIAV (Sistema Nacional de Identificação Automática de
Veículos) na cidade de São Paulo, uma boa e atual demonstração do conflito entre
privacidade e segurança.
A Prefeitura do Município de São Paulo será a primeira a implantar o
SINIAV (Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos), exigido
pelo Código de Trânsito Brasileiro, com a instalação gratuita de chips para
identificação eletrônica dos veículos da capital paulista, visando aumentar a
segurança da população e possibilitar planejamento e controle de tráfego mais
inteligentes. Esse Sistema deve entrar em vigor em maio de 2008 implantando
etiquetas eletrônicas nos veículos, nas quais serão gravados o código de
identificação e dados do automóvel (placa, número do chassi e código Renavam)
e, ainda, implantando antenas dotadas de sensores capazes de captar os dados
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dessas etiquetas pelas ruas da cidade. Haverá uma estação informatizada para
receber e gerenciar as informações enviadas por essas antenas. Assim, as
informações do veículo serão detectadas e retransmitidas para a estação de
gerenciamento, que as armazenará em um sistema criptografado (código secreto),
garantindo seu absoluto sigilo19.
No entanto, com a implantação do mencionado sistema torna-se legítima a
preocupação com a preservação do direito à privacidade, uma vez que a
multiplicação de tecnologias de identificação eletrônica, apesar dos efeitos
benéficos para o controle do tráfego e da segurança, aumenta os riscos de violação
aos direitos fundamentais da intimidade e da vida privada.
Para MORAES (2007),
O Siniav respeita a Constituição Federal e a razoabilidade, pois observa a
proporcionalidade, a justiça e a adequação entre os meios utilizados pelo poder
público (obtenção dos dados) no exercício de suas atividades administrativas
(autoridade de trânsito) e os fins almejados (segurança da população e
planejamento do trânsito), levando em conta critérios racionais e coerentes
(instalação gratuita de chips).
E isso porque, segundo o mesmo autor, essas informações sobre os dados
do veículo e o local, o dia e a hora em que trafegou, somente poderão ser
utilizadas para as finalidades previstas em lei, ou seja, somente para possibilitar às
19
FOLHA DE SÃO PAULO. O chip e a privacidade. 07 de outubro de 2007. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0710200702.htm. Acesso em: 18 out. 2007.
91
autoridades de trânsito a identificação de veículos irregulares (falta de
licenciamento, dívida de IPVA, multas não pagas), a localização de veículos
furtados, roubados ou utilizados em seqüestros-relâmpago, além de garantir a
otimização de gestão no tráfego, pois as informações recebidas permitirão a
criação de rotas alternativas, a reprogramação de semáforos e, ainda, algumas
outras
medidas
de
engenharia
de
trânsito.
Em hipótese alguma haverá a possibilidade de utilização dos dados para fins não
previstos no Código Brasileiro de Trânsito ou sua divulgação, em respeito ao
sigilo garantido pela Constituição e à proteção legal ao direito à intimidade e à
vida privada. (MORAES, 2007)
Já COSTA (2007) ressalta que, no caso do chip para os carros, as
autoridades estaduais e municipais confirmam que podem armazenar o número de
série do veículo, a placa, o chassi e o código Renavam e que têm capacidade de
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mapear o trajeto realizado, trazendo tal fato a preocupação de que, neste primeiro
momento, a captura e o armazenamento de dados pode acabar expondo a
privacidade das pessoas. Uma vez armazenados os dados, estes podem vir a sofrer
tratamento automatizado com resultados devastadores sobre a privacidade do
motorista. Aliado a isso, se a tecnologia permite a transmissão de informações
entre o chip e as antenas, há a preocupação de que terceiros possam interceptar a
comunicação, apropriando-se dos dados, inclusive para monitoramento das vias
por onde um determinado veículo costuma passar, podendo levar, assim, ao
atendimento de interesses escusos.
Dessa forma, hoje o sistema é empregado para ações vinculadas ao
trânsito, mas uma vez instalada a infra-estrutura, quem é capaz de assegurar que
dentro em breve, em torno de dois ou três anos, seu uso não será destinado a
objetivos diversos dos iniciais? Esta deve ser uma preocupação legítima de todos
os cidadãos que passam a ser cada vez mais vigiados pelo Estado.
Fazendo um paralelo com a sociedade imaginada por ORWELL (2004)
com o seu sistema onipresente que tudo vê e tudo controla, COSTA (2007) alerta
que atualmente a segurança eletrônica junto à adoção de determinadas leis podem
tornar o fenômeno “Big Brother” uma realidade às vezes não tão desejada assim e
ressalta, ainda, que o importante a toda tecnologia é servir a seus propósitos sem
constituir uma ameaça aos direitos fundamentais dos cidadãos, como a
privacidade e a intimidade.
92
Neste viés, para HOLTZMAN (2006) a privacidade vem diminuindo, vem
sofrendo uma rápida retração frente às inovações tecnológicas atuais. A tecnologia
tem provocado uma erosão mais ágil sobre a privacidade do que o sistema legal é
capaz de protegê-la. E, para o autor, essa tendência não é reversível por nenhum
caminho mais óbvio e o direito fundamental à privacidade tal qual era conhecido
até então está perdido!
Ainda segundo a opinião do autor (HOLTZMAN, 2006), a questão bipolar
entre a garantia da segurança pública e a proteção à privacidade pode ser a mais
importante do século XXI dentro da elaboração de políticas públicas. Ressalta que
as pesquisas de opinião indicam que as pessoas encontram-se ansiosas para
abrirem mão do seu direito à privacidade desde que em troca possam usufruir de
segurança no seu dia-a-dia e se verem livres da sensação de medo que as
acompanha constantemente. No entanto, adverte que os danos causados pela perda
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da privacidade podem alcançar outras áreas de extrema importância para o
indivíduo que não apenas a privacidade em si. Por exemplo, comenta o autor que
a habilidade de guardar para si os próprios pensamentos e opiniões é o que
permite ao indivíduo expressá-las em público sem medo de repreensões e é o
direito à privacidade o responsável por garantir aos indivíduos o exercício pacífico
de direitos como a liberdade de expressão e a liberdade de religião.
Assim, analisando não só a questão do SINIAV (Sistema Nacional de
Identificação Automática de Veículos), mas focalizando no tema do presente
trabalho, qual seja, o crescente monitoramento através de câmeras sobre os
indivíduos nos espaços públicos e privados a fim de garantir a segurança e coibir
as práticas de violência nos grandes centros urbanos ao redor do mundo, perguntase: o direito fundamental à segurança não estaria se contrapondo ao direito
fundamental à privacidade? A busca por uma segurança cada vez maior não
estaria colidindo com a privacidade dos indivíduos, lesando-a e restringindo-a?
Neste ponto, valendo-se de uma análise constitucional dos direitos fundamentais à
privacidade e à segurança, é possível afirmar que existe um conflito? E, existindo,
qual a melhor maneira para a solução dele?
Diante do fato de que segurança e privacidade são ambos direitos
fundamentais e especialmente na Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 estão protegidos de forma expressa (artigo 5º, caput; artigo 5º, X e artigo
6º) e considerando ainda que não são intocáveis e absolutos, principalmente
93
porque o homem vive em sociedade e em permanente contato com outros sujeitos
que gozam das respectivas garantias e prerrogativas que defluem do Estado
Democrático de Direito (VIZZOTTO, 2006:135), torna-se evidente a hipótese de
conflito e eventual choque entre esses direitos.
É importante, pois, observar que para a Teoria dos Direitos Fundamentais
a chave para a solução dos problemas centrais da dogmática dos direitos
fundamentais (principalmente choque e conflito entre direitos) é a diferenciação
entre regras e princípios. Trata-se aqui de uma distinção entre dois tipos de
normas, pois ambos, princípios e regras, são normas no sentido de que dispõem
sobre o que “deve ser”, são razões para juízos concretos do “dever ser”, ainda que
sejam razões um tanto ou quanto diferentes (ALEXY, 2002:81).
Princípios são, portanto, normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e reais
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existentes. São mandatos de otimização, e não mandatos definitivos,
caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e a exata
medida desse cumprimento depende, pois, não só das possibilidades reais como
também das possibilidades jurídicas em questão. O fato de que um princípio vale
e deve ser aplicado para um caso concreto não significa que o exigido por esse
princípio para este caso concreto possa valer como resultado definitivo para outros
casos, pois os princípios podem apresentar razões que serão, em dado caso,
desconsideradas por razões opostas. As regras, por sua vez, são normas que
podem ser cumpridas ou não, são válidas ou inválidas. Elas possuem
determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível e, sendo uma
regra válida, deve-se fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Isso
significa que a diferença entre princípios e regras é qualitativa e não de grau,
sendo que toda norma ou é uma regra ou é um princípio. (ALEXY, 2002:86-87)
A distinção entre princípios e regras se dá de forma mais clara quando se
observa a colisão entre princípios e os conflitos de regras, sendo comum a ambos
os casos o fato de que duas normas aplicadas de forma independente conduzem a
resultados distintos e incompatíveis, ou seja, conduzem a dois juízos de “dever
ser” juridicamente contraditórios. A forma de solução destes conflitos, porém, é
diferente. Para efeito desse trabalho os direitos fundamentais são concebidos
primordialmente como princípios e não regras, portanto será aplicada, no caso da
colisão entre o direito fundamental à privacidade e o direito fundamental à
94
segurança, a Teoria dos Princípios e a ponderação que são instrumentos capazes
de impedir o esvaziamento dos direitos fundamentais sem, no entanto, introduzir
uma rigidez excessiva20.
Assim, quando, consoante o que dispõe um princípio, ‘algo’ é permitido e,
de acordo com um outro princípio, esse mesmo ‘algo’ está proibido, ambos
entram em colisão e um dos dois terá que ceder perante o outro. No entanto, isso
não significa que o princípio desconsiderado será declarado inválido ou que será
introduzida para ele uma cláusula de exceção, mas sim que, diante destas
circunstâncias, a aplicação de um princípio deve preceder à aplicação do outro e,
quando as circunstâncias que envolverem o caso forem outras, a solução poderá
ser dada de maneira inversa. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que nos
casos concretos os princípios são dotados de diferentes pesos e que a solução para
a colisão de princípios deve primar pela aplicação do de maior peso. Desta forma,
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enquanto os conflitos de regra são levados a cabo pela dimensão da validez, a
colisão de princípios leva em conta a dimensão de peso (ALEXY, 2002:89).
Portanto, quando se está diante de princípios que possuem abstratamente o mesmo
nível, o mesmo nível constitucional como, por exemplo, a segurança e a
privacidade, entre os quais não existe uma relação absoluta de precedência, deve
ser aplicado aquele direito fundamental que, no caso concreto, naquele caso em
especial, possui o maior peso, levando em conta, ainda, as condições mediante as
quais um princípio precederá o outro, sendo este instrumento conhecido como
ponderação21.
20
Consoante o proferido por Alexy em conferência realizada no Rio de Janeiro e citada por
MENDES (2004:26), a diferença entre princípios e regras se dá de acordo com a Teoria dos
Princípios, observando que “[...] princípios são normas que permitem que algo seja realizado da
maneira mais completa possível, tanto no que diz respeito à possibilidade jurídica quanto à
possibilidade fática. Princípios são, nesses termos, mandatos de otimização e [...] podem ser
satisfeitos em diferentes graus. A medida adequada de satisfação depende não apenas de
possibilidades fáticas, mas também de possibilidades jurídicas. Essas possibilidades são
determinadas por regras e sobretudo por princípios. As colisões dos direitos fundamentais devem
ser consideradas segundo a teoria dos princípios, como uma colisão de princípios. O processo para
a solução de colisões de princípios é a ponderação. [...] Outra é a dimensão do problema no plano
das regras. Regras são normas que são aplicáveis ou não-aplicáveis. Se uma regra está em vigor, é
determinante que se faça exatamente o que ela exige: nem mais e nem menos. Regras contêm,
portanto, determinações no contexto do fático e juridicamente possível. São postulados definitivos.
A forma de aplicação das regras não é a ponderação, mas a subsunção.” (grifos nossos)
21
Não há que se falar, portanto, em resolução de conflitos entre direitos fundamentais através da
aplicação de um critério hierárquico entre os mesmos, uma vez que a imposição de uma rigorosa
hierarquia entre diferentes direitos fundamentais acabaria por desnaturá-los por completo,
desconfigurando a própria Constituição enquanto complexo normativo unitário e harmônico.
(MENDES, 2004:80)
95
Na busca pela solução de uma colisão de princípios, segundo ALEXY
(2002:111), não deve ser deixada de lado a máxima da proporcionalidade,
diretamente conectada à Teoria dos Princípios, e suas três máximas parciais: a
adequação (relação entre os meios utilizados e os fins almejados), a necessidade
(postulado do meio mais benigno, mais suave e menos restritivo) e a
proporcionalidade em sentido estrito (postulado da ponderação propriamente dita).
A aplicação do princípio da proporcionalidade, pois, é a alternativa mais adequada
para que se efetue esta ponderação no caso concreto e essencial para que se possa
alcançar um resultado equilibrado e coerente com o Estado Democrático de
Direito (VIZZOTTO, 2006:141), uma vez que quando dois princípios entram em
colisão, a aplicação de um implica a redução no campo de aplicação do outro.
A adoção cada vez em maior escala de um monitoramento dos indivíduos
através de câmeras em espaços públicos e privados com o intuito de garantir a
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segurança nestes espaços e coibir as práticas de violência e de atividades ilícitas
demonstra, portanto, uma clara colisão de princípios, uma colisão de direitos
fundamentais em sentido amplo (MENDES, 2004:78), na qual as medidas
tomadas para a consecução do direito fundamental à segurança afetam o âmbito
da proteção ao direito fundamental à privacidade. Sendo assim, passa-se agora a
uma reflexão sobre ambos os direitos e, enfim, por uma análise sob a ótica da
ponderação segundo os critérios aventados por ALEXY (2002).
Observa-se, pois, que um perigo a longo prazo que pode atingir uma
sociedade que se vê diante de uma perda total da privacidade é o império da
mediocridade, com o fim de uma cultura fundada na criatividade e na liberdade de
pensamento. O simples fato de existir uma tecnologia que permite o controle
permanente da sociedade através do monitoramento por câmeras ou mesmo por
chips, a fim de garantir a segurança, não significa que ela deva ser aplicada em
todo o seu potencial. Não é porque a tecnologia diz que um controle pode ser feito
que ele necessariamente tem de ser feito, porque diante disso há o risco de que a
utilização de um padrão de comportamentos contínuos de erosão da privacidade
gere danos à cultura que envolve os indivíduos, limitando-os enquanto sociedade.
(HOLTZMAN, 2006:37-39)
Independente do conceito ou da visão adotados para a caracterização da
privacidade, é pacífico afirmar que a violação à privacidade é uma violação a um
direito das pessoas consideradas individualmente, mas HOLTZMAN (2006:41)
96
ressalta, de forma válida e coerente, que tal violação também é capaz de afetar a
sociedade em si e isso porque quando um indivíduo perde o controle sobre as
informações a seu respeito, ele muda o seu modo de agir e se torna mais
cuidadoso. O efeito cumulativo deste ‘tornar-se mais cuidadoso’ no plano
individual leva a uma mudança de comportamento da sociedade em geral.
A sociedade como um todo se beneficia quando existe um exercício de
uma cidadania segura, uma vez que neste momento as pessoas são mais criativas e
mais produtivas e não estão preocupadas em prestar atenção e olhar por sobre seus
próprios ombros. É difícil se sentir seguro quando há a real percepção de que algo
pode acontecer a qualquer momento, é difícil ser criativo quando se tem medo de
que esta criatividade seja mal interpretada por terceiros em algum momento futuro
e se volte de forma danosa contra você mesmo. Quando a pessoa não sabe se está
sendo observada ou quando está sendo observada, ou mesmo quando tem a
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certeza de estar sendo observada a todo tempo, tais situações são dignas de
insegurança e enervantes para o indivíduo. A ausência de privacidade leva a um
risco reverso para a cultura de uma sociedade. (HOLTZMAN, 2006: 42-43)
Na opinião proferida por HOLTZMAN (2006:48), quando é dado à
tecnologia o poder de tomar decisões que levem à violação da privacidade dos
indivíduos, a sociedade sofre duplamente as conseqüências. Em um primeiro
momento porque as pessoas são rotuladas pelas máquinas que as observam e
controlam. As informações pessoais captadas pela tecnologia são analisadas por
este mesmo sistema de tecnologia e não por seres humanos. E, em um segundo
momento, quando as pessoas têm a certeza de que se encontram permanentemente
vigiadas pela tecnologia e que esta tecnologia é capaz de rotulá-las, elas passam a
agir com cautela e em conformidade com as regras impostas pelo próprio padrão
tecnológico adotado. Sendo assim, estas violações à privacidade que de fato levam
à perda da própria privacidade, corroem também a criatividade e a inovação que
fazem uma sociedade vibrar.
As pessoas passam a agir de forma diferente quando têm a consciência de
que estão sendo filmadas e vigiadas. Dessa forma, o destino deste tipo de
sociedade seria viver em um mundo no qual os indivíduos caminham pela vida
prestando estrita atenção aos seus próprios passos, contando e analisando tais
passos no intuito de atender aos rótulos esperados e impostos institucionalmente
por esse sistema de vigilância, esquecendo por completo como os seres humanos
97
deveriam tomar suas próprias e autênticas decisões. O resultado dessa sociedade
seria, na melhor hipótese, o de uma sociedade de cautela, avessa ao risco e, na
pior hipótese, o de uma sociedade completamente conformada. E uma sociedade
que perde seus membros mais especiais, aqueles de maiores dons de criatividade e
inovação, ainda seria uma sociedade capaz de crescer e se desenvolver?
(HOLTZMAN, 2006:50-53)
O maior prejuízo quando se abre mão do direito à privacidade é
certamente o efeito colateral que tal fato pode gerar, pois a ausência de
privacidade resulta também na ausência de dignidade e respeito pelos cidadãos e,
se todas as condutas destes cidadãos são gravadas, julgadas e talvez utilizadas
contra eles mesmos, neste momento não há mais o que se intitula como liberdade.
E neste ponto encontra-se o maior risco da bipolaridade entre segurança pública e
privacidade! Optar por uma aplicação em maior grau, em maior peso, do direito à
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segurança (opção claramente plausível em uma sociedade inserida na era do
medo, que vive uma sensação permanente de insegurança) significa não só a
depreciação da privacidade, ou melhor dizendo, sua aplicação em menor
proporção, uma vez que os direitos fundamentais não são excludentes nem
tampouco diretamente conflituosos, como também a depreciação da liberdade em
todos os seus sentidos.
Portanto, é válido ressaltar a análise de MENDES (2004:03),
Tal como observado por Hesse, a garantia de liberdade do indivíduo, que os
direitos fundamentais pretendem assegurar, somente é exitosa no contexto de
uma sociedade livre. Por outro lado, uma sociedade livre pressupõe a liberdade
dos indivíduos e cidadãos, aptos a decidir sobre as questões de seu interesse e
responsáveis pelas questões centrais de interesse da comunidade. Essas
características condicionam e tipificam, segundo Hesse, a estrutura e a função dos
direitos fundamentais. Estes asseguram não apenas direitos subjetivos, mas
também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática.
Assim, não há que se falar apenas em bipolaridade, uma vez que a disputa
real envolve não só segurança, não só privacidade, mas também e principalmente
a liberdade. Não se trata de uma colisão entre dois direitos fundamentais, e sim de
uma colisão na proporção de aplicação de um (segurança) em contraposição a
outros (privacidade, liberdade, dignidade). Sendo assim, a identificação precisa do
âmbito de proteção de um determinado direito fundamental, no caso a
privacidade, exige um renovado e constante esforço hermenêutico.
98
Desta feita, questiona-se, o instrumento que vem sendo adotado para a
consecução da segurança, qual seja, a videovigilância, é um instrumento
adequado?
Não há como negar a alta intensidade no uso da videovigilância e, ainda, a
sua intervenção constante sobre o comportamento e a vida cotidiana dos
indivíduos. O alto índice de instalação de câmeras nos espaços públicos e privados
contribui para a consolidação de uma sociedade vigiada, de uma sociedade de
controle, desprovida cada vez mais das manifestações espontâneas de seus
membros e, portanto, mesmo que se pudesse afirmar que a videovigilância é capaz
de reestabelecer de forma eficiente e completa a segurança da população (e não só
um simples reestabelecimento de uma sensação de segurança) e levar ao fim a era
do medo, o que é passível de questionamento e de fato não é a realidade atual,
mesmo assim este não seria o meio mais adequado para o alcance do fim
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desejado, ou seja, para o alcance da segurança, pois a videovigilância contribui em
larga escala para a consolidação de uma sociedade civil gelatinosa e frágil, como a
sociedade abordada por DORNELLES (2003: 129) e o fator insegurança estará
sempre presente nessas sociedades.
Ainda, a restrição que a videovigilância gera sobre o direito à privacidade
é necessária? Existiriam outros meios menos gravosos?
Quanto maior o uso da videovigilância mais incisiva deve ser a
fundamentação sobre a sua necessidade, mas uma fundamentação plausível é
difícil de ser encontrada nesse caso, uma vez que outros meios e instrumentos
poderiam ser desenvolvidos, inclusive dentro das próprias políticas públicas de
segurança e até de educação com o intuito de coibir a insegurança sem que a
sociedade precisasse ser transformada em uma sociedade de controle, sem que os
indivíduos fossem obrigados a subjugar sua privacidade, sua liberdade e sua
dignidade ao permanente olhar de um ‘Big Brother’. Outros meios que
conseguissem conjugar a construção de uma sociedade mais livre, mais justa e
mais espontânea e democrática a uma sociedade ao mesmo tempo segura seriam
por certo mais benéficos e menos gravosos à proteção dos direitos fundamentais.
E mais, a restrição à privacidade obedece à proporcionalidade em sentido
estrito?
Para responder a tal questionamento faz-se necessária a estrita ponderação
entre a garantia da segurança ou a proteção à privacidade e, se como exposto
99
acima, a aplicação em maior grau do direito à segurança é capaz de ferir não só a
privacidade mas também, como efeito colateral, a liberdade e a dignidade do
indivíduo, não é razoável que a segurança prepondere neste caso concreto da
discussão sobre a videovigilância. O maior peso de aplicação deveria ser o do
direito à privacidade, pois uma sociedade que preserva o íntimo, a liberdade e a
dignidade de seus indivíduos acaba sendo uma sociedade muito mais sólida e
responsável por uma interação espontânea e democrática entre seus membros
sendo, por conseguinte, mais preparada e capaz de desenvolver instrumentos para
a realização da segurança.
Além de todo o exposto e enfatizando o entendimento do presente trabalho
pela aplicação de uma ponderação em prol do direito fundamental à privacidade, é
válido ressaltar o disposto por MENDES (2004:95) ao analisar a questão da
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colisão de direitos:
Embora o texto constitucional brasileiro não tenha privilegiado especificamente
determinado direito, na fixação de cláusulas pétreas (CF, art. 60, parágrafo 4),
não há dúvida de que, também entre nós, os valores vinculados ao princípio da
dignidade da pessoa humana assumem peculiar relevo (CF, art 1, III). Assim,
devem ser levados em conta, em eventual juízo de ponderação, os valores que
constituem inequívoca expressão desse princípio (inviolabilidade de pessoa
humana, respeito à sua integridade física e moral, inviolabilidade do direito de
imagem e da intimidade).
E mais, considerando o mencionado por VIZZOTTO (2006), sobre a busca
de uma solução para o caso concreto de uma colisão de princípios, tem-se que, a
melhor resposta possível é o princípio da proporcionalidade e, ainda,
Não podemos nos esquecer da frase de Thomas Jefferson, em correspondência
enviada a James Madison, no sentido de que ‘uma sociedade que troca um pouco
de liberdade por um pouco de ordem acabará por perder ambas, e não merece
qualquer delas’. A manutenção dos direitos e garantias fundamentais, dentro de
um dado ordenamento jurídico, evidentes que consideradas as características de
cada caso concreto que se apresenta ao operador do direito, é a certeza de que a
democracia e a dignidade humana não serão atingidas de modo fatal e
irreversível.
5
“Projeto Olho Vivo BH”: monitoramento e controle
permanente nas ruas de Belo Horizonte - MG
A partir da década de 80, o hipercentro da cidade de Belo Horizonte - MG
e a região da Savassi, principalmente, antes considerados como uma zona
comercial de elegância, começaram a ser degradados e a se tornarem alvo de uma
violência crescente, fazendo com que um seleto grupo de consumidores de alta
renda migrasse para espaços privados de consumo como os “shopping centers”,
que oferecem monitoramento e segurança permanentes e, ainda, estacionamento
privativo e todo conforto no atendimento, ou com que os próprios comerciantes
fechassem suas portas e alguns se dirigissem também aos “shopping centers”,
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provocando, por conseguinte, uma queda no espaço das vendas da região centrosul e causando prejuízos generalizados. (PEIXOTO, 2005)
Assim, partindo do aspecto global da vigilância por câmeras na sociedade
contemporânea para o aspecto local da cidade de Belo Horizonte - MG1, seus
cidadãos
além
de
serem
permanentemente
vigiados
em
elevadores,
supermercados, padarias, bancos, entre outros, passaram a conviver diariamente
com um projeto de vigilância por câmeras e monitoramento, conhecido como
“Projeto Olho Vivo BH”, que nasceu de uma parceria público-privada entre o
Município de Belo Horizonte, por intermédio da Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte – PBH e da Empresa de Informática e Informação do Município de
Belo Horizonte S/A - PRODABEL, o governo do Estado de Minas Gerais, com a
participação da Secretaria de Estado de Defesa Social - SEDS e da Polícia Militar
do Estado de Minas Gerais – PMMG e a Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo
Horizonte – CDL/ BH, dando origem ao Convênio nº: 15/20042 e, por
conseguinte, à Lei Estadual 15.435, de 12 de janeiro de 20053.
1
A videovigilância é hoje um fenômeno ao mesmo tempo global e local. Isso é possível diante do
fato de que, segundo GIDDENS (1991:28), “as organizações modernas são capazes de conectar o
local e o global de formas que seriam impensáveis em sociedades mais tradicionais, e, assim
fazendo, afetam rotineiramente a vida de milhões de pessoas.”
2
Convênio nº: 15/2004, registrado no livro 68, fls. 104 //, em 23/07/04, Procuradoria Geral do
Município - PBH
3
MINAS GERAIS. Lei 15.435, de 12 de jan. 2005. Disciplina a utilização de câmeras de vídeo
para fins de segurança. Diário Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte. 12 de jan. 2005.
101
Diante disso, e fundadas na necessidade de aumentar a segurança objetiva
e subjetiva do Município de Belo Horizonte, tais instituições firmaram o
mencionado Convênio, com a duração de cinquenta anos (julho de 2004 a julho de
2054), objetivando,
[...] a cooperação entre os partícipes visando a aquisição, desenvolvimento,
implantação e manutenção do Sistema de Monitoramento Urbano por meio de
câmeras de vídeo, denominado Projeto Olho Vivo BH, no Município de Belo
Horizonte, com a utilização de moderna tecnologia de transporte de imagem, para
uso dos órgãos integrantes do Sistema de Defesa Social do Estado e do Município
de Belo Horizonte, agregando a operacionalidade: integração, agilização e
coordenação de procedimentos dos convenentes. (CONVÊNIO nº: 15/2004)
Para assegurar o fiel cumprimento do referido Convênio ficou estabelecido
em sua Cláusula Terceira que os partícipes se responsabilizam por manter corpo
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técnico com a incumbência de zelar pelo seu fiel cumprimento, ficando a CDL –
BH designada como responsável pela Coordenação da implantação da infraestrutura do “Projeto Olho Vivo BH”, enquanto o Estado e o Município se
encarregam de designar pessoal capacitado para a coordenação da execução e
manutenção do Projeto.
Dessa forma, esse Sistema de Patrulhamento Vídeo Monitorado (SPVM),
conhecido comumente como “Projeto Olho Vivo BH”4, iniciou suas atividades no
dia 13 de dezembro de 2004, com a finalidade precípua de dar apoio às ações e
operações da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais – PMMG e demais órgãos
do Sistema de Defesa Social, na prevenção e combate à criminalidade no
hipercentro5 da cidade de Belo Horizonte, potencializando, assim, o policiamento
preventivo nos principais locais de concentração de delitos, denominados zonas
quentes de criminalidade (ZQC). Ele é tido como o maior projeto de
monitoramento por câmeras de vigilância do país, tendo instalado, em princípio,
72 câmeras monitorando 24 horas por dia as regiões do Barro Preto, Savassi e
hipercentro, com o intuito de prevenir a violência e garantir tranqüilidade e
4
“O SPVM é tomado como um processo oriundo da tecnologia da informação e tem como
essência a prevenção da criminalidade por meio de dispositivos capazes de promover a vigilância
das pessoas que circulam nas ruas monitoradas.” (ALVES, 2007)
5
A região escolhida para o início da instalação do “Projeto Olho Vivo BH” foi o hipercentro, pois
trata-se do coração econômico da cidade, uma vez que nele estão funcionando a maioria das lojas
comerciais, havendo um grande fluxo de pessoas transitando para realização de compras ou se
locomoverem de um ponto a outro da cidade, utilizando os meios de transporte disponíveis neste
local. (ALVES, 2007)
102
segurança para que a população recupere o seu direito de ir e vir e, ainda, de
freqüentar as regiões tradicionais do comércio. (PEIXOTO, 2005)
Já em 2007, mais 72 câmeras de vigilância foram instaladas nas ruas e
praças de Belo Horizonte - MG, dobrando para 144 o número de equipamentos
monitorados pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, sendo seis câmeras
na Praça da Liberdade e outras 66 distribuídas em bairros da região noroeste,
principalmente no Caiçara, Padre Eustáquio, Carlos Prates, Coração Eucarístico e
Calafate. Para o período entre 2008 a 2010 está prevista a instalação de mais 30
câmeras para a vigilância de um trecho da linha verde, que vai da Avenida
Cristiano Machado ao Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, na
região Metropolitana. Além disso, há um estudo sobre a viabilidade da expansão
do projeto para cidades do interior do Estado.6
Tantas câmeras garantem a presença ocular da Polícia Militar do Estado de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
Minas Gerais (PMMG) em pontos estratégicos de grande incidência criminal. São
olhos eletrônicos que giram 360 graus e enviam as imagens para um complexo de
telas e monitores da central de monitoramento coordenada pelo Sistema Integrado
de Defesa Social (SIDS), na sede do Comando Geral da Polícia Militar (PMMG).
Sendo detectada alguma conduta suspeita, uma mensagem é dirigida para a equipe
policial mais próxima, que é encarregada de investigar o fator e tomar as
providências necessárias, observando, ainda, que as imagens captadas são
gravadas em CD e podem ser utilizadas em investigações e processos judiciais.
No entanto, buscando a preservação da privacidade, não podem ser divulgadas ao
público. (PEIXOTO, 2005)
Para um melhor entendimento sobre o funcionamento do “Projeto Olho
Vivo BH”, segue figura abaixo7:
6
ESTADO DE MINAS. Olho Vivo dobra número de câmeras. Belo Horizonte, 12 jun. 2007.
Caderno Gerais. p. 23.
7
Fonte: Sistema COPOM
103
Ciclo do atendimento do “OLHO VIVO”
OPERADORES
DO “OLHO VIVO”
(MONITORAMENTO DA
IMAGEM)
SUPERVISOR DO
“OLHO VIVO”
(MONITORAMENTO DA IMAGEM E
INFORMAÇÃO PARA O
DESPACHANTE E VIATURA)
P
M
DESPACHANTE
(MONITORAMENTO DA
VIATURA E INFORMAÇÃO)
M MG
VIATURA POLICIAL
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
(INFORMAÇÃO E
MONITORAMENTO DO SUSPEITO
OU Sistema
MELIANTE)
Fonte:
COPOM
Figura 01: Ciclo do atendimento do "OLHO VIVO"
Assim, de acordo com a figura e como mencionado acima, cada câmera
envia à central de monitoramento do “Projeto Olho Vivo BH” as imagens das
ruas, por meio de 50 quilômetros de rede subterrânea de cabos de fibra ótica. Se
for detectado algo suspeito pela central de monitoramento, uma mensagem é
dirigida para a equipe policial mais próxima, que investiga o fato e toma as
providências necessárias. (PEIXOTO, 2005)
5.1
O processo legislativo
O Projeto “Olho Vivo” tem origem no projeto de lei - PL 311/2003,
apresentado pelo então Deputado Estadual Célio Moreira à Assembléia
Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALEMG), com o intuito de disciplinar a
utilização de câmeras de vídeo como medida de segurança nos imóveis estaduais e
passou pela análise e aprovação das seguintes Comissões internas da Casa:
Comissão de Constituição e Justiça, Comissão de Segurança Pública, Comissão de
Fiscalização Financeira e Orçamentária e, ainda, pela Comissão de Redação Final.
Antes da deliberação pelo plenário da Casa, portanto, o processo
legislativo passou pelas seguintes fases: proposição, parecer de 1º turno na
104
Comissão de Fiscalização Financeira e Orçamentária, parecer de 1º turno na
Comissão de Constituição e Justiça, parecer de 1º turno na Comissão de
Segurança Pública, parecer de 2º turno na Comissão de Segurança Pública,
emenda ou substitutivo, parecer sobre a emenda ou substitutivo no 2º turno da
Comissão de Segurança Pública e parecer de redação final pela Comissão de
Redação, cujos fundamentos principais são dispostos a seguir.
Como justificativa para a apresentação do projeto, apresenta-se agora na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
íntegra a exposição de motivos do Deputado Estadual Célio Moreira:
O monitoramento por câmeras é um eficaz instrumento de prevenção e combate à
criminalidade. Como medida preventiva, a câmera intimida o agente criminoso.
Além disso, a câmera contém o registro da atitude criminosa, o que facilita as
investigações e a posterior condenação do acusado. Por essas vantagens e devido
ao aumento da criminalidade, o monitoramento por câmeras tem sido implantado
em vários lugares – até no Palácio da Inconfidência. Mas daí decorre uma
preocupação: não estaria havendo uma violação à intimidade e à imagem das
pessoas filmadas? Que garantia tem o cidadão de que a sua imagem não estará
amanhã nas primeiras páginas de um jornal? Entendendo que, por ora, não
podemos desprezar a eficácia das câmeras no combate à criminalidade, vimos por
meio deste projeto de lei estabelecer regras que permitam o uso harmônico das
câmeras nos imóveis estaduais. Estabelecemos, por exemplo, que as imagens só
poderão ser exibidas às autoridades judicial e policial, o que dá ao cidadão a
garantia de que sua imagem não será usada indevidamente. Entendemos ser
importante proteger os bens públicos de uso comum, pois são nesses locais que o
cidadão precisa da maior liberdade possível. Assim, exigimos que a instalação de
câmeras seja precedida de licenciamento. No intuito de estar contribuindo para o
bem-estar dos cidadãos, submetemos este projeto de lei ao juízo desta Douta Casa
Legislativa.8
Em análise pela Comissão de Constituição e Justiça, esta emitiu parecer
concluindo pela juridicidade, legalidade e constitucionalidade do PL 311/2003,
assegurando em seu relatório, entre outros aspectos, que
[...] não há como negar a importância do monitoramento por câmeras para a
prevenção e combate à criminalidade. De fato, câmeras de vídeo estrategicamente
colocadas exercem forte efeito intimidativo sobre marginais, demovendo-os da
prática de atos infracionais. Além dessa função preventiva, os vídeos representam
instrumento de grande valia para a persecução criminal, pois captam imagens de
atos delituosos, auxiliando, assim, a elucidação da materialidade e da autoria dos
crimes praticados. De outra parte, a proposição busca preservar a intimidade e a
imagem das pessoas, na medida em que proíbe a exibição dos filmes a terceiros,
exceto na hipótese de instrução de processo administrativo ou judicial[...].9
8
9
Proposição publicada no Diário do Legislativo em 29/03/2003 (PL 311/2003)
Parecer de 1º turno da Comissão de Constituição e Justiça, publicado no Diário do Legislativo
em 01/07/2003 (PL 311/2003)
105
A Comissão de Segurança Pública, por sua vez, emitiu parecer favorável
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
já em 1º turno à aprovação do PL 311/2003, considerando que
[...] a fome, a criminalidade, a corrupção, o desemprego, a permanência do
trabalho forçado e da exploração do trabalho infantil, além da perversa
desigualdade social são manifestações da violência que assola o país. Para se
combater essa violência deve-se buscar combinar programas sociais com aqueles
de caráter preventivo e repressivo. O uso de câmeras de vídeo para vigilância dos
bens de domínio público do Estado reveste-se de uma dupla dimensão: favorece a
prevenção, por intimidar a ação delituosa, e auxilia os procedimentos repressivos,
por facilitar o reconhecimento de seus autores e possibilitar um mapeamento de
áreas vulneráveis à sua ação. O acompanhamento em tempo real de bens de
domínio público do Estado por meio de filmagem por câmeras de vídeo, cumpre
a função de proteção dos cidadãos que por eles transitam: funcionários públicos
no exercício de suas funções, os que buscam serviços, os que estejam em trânsito
pela malha viária estadual, os que se encontrem sob tutela do Estado em
estabelecimentos prisionais. Esse mesmo acompanhamento possibilita, ainda, a
vigilância patrimonial das instituições públicas do Estado. Importa salientar que o
projeto de lei em pauta preocupa-se com a preservação da integridade e da
imagem das pessoas, ao determinar a identificação dos locais de instalação das
câmeras para conhecimento de todos, o que por si só já intimida a prática de atos
delituosos, e, ainda, ao restringir o acesso às imagens apenas para a instrução de
processo administrativo ou criminal. [...]10
O PL 311/2003 passou, ainda, pela análise e aprovação da Comissão de
Fiscalização Financeira e Orçamentária e da Comissão de Redação. Com a
conseqüente aprovação na votação em Plenário e com a devida sanção do
Governador do Estado de Minas Gerais, o projeto deu origem à Lei
15.435/200511, passando esta a disciplinar a “utilização de câmeras de vídeo para
fins de segurança”, com um caráter mais abrangente e não apenas “como medida
de segurança nos imóveis estaduais” como proposto inicialmente. É válido
ressaltar que não houve, na tramitação legislativa, nenhuma audiência pública.
Não foi realizada nenhuma consulta popular para a aprovação deste projeto.
5.2
Resultados e análise do “Projeto Olho Vivo BH”
10
Parecer de 1º turno da Comissão de Segurança Pública, publicado no Diário do Legislativo em
15/10/2003 (PL 311/2003)
11
MINAS GERAIS. Lei 15.435, de 12 de jan. 2005. Disciplina a utilização de câmeras de vídeo
para fins de segurança. Diário Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte. 12 de jan. 2005.
106
No desenvolvimento desta parceria público-privada na instalação da
videovigilância nas ruas de Belo Horizonte, é válido ressaltar e comentar algumas
afirmações de pessoas e autoridades públicas no tocante ao projeto.
Segundo o Presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte
(CDL/BH), Roberto Alfeu, quando da instalação do “Projeto Olho Vivo BH”, este
é mais um resultado da ação da entidade dos dirigentes lojistas da capital no
combate à criminalidade e na valorização da cidadania dos belo-horizontinos e
dos turistas que visitam a cidade, sendo que o projeto “vai tornar a cidade mais
segura, vai estimular o turismo, revitalizar o comércio e gerar postos de trabalho.
[...]” (PEIXOTO, 2005:26)
Para o Prefeito, Fernando Pimentel, o projeto mostra a importância da
união de forças em torno do interesse comum, observando que “aqui trabalham
em parceria a iniciativa pública e a privada. É esta a maneira de combater a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
criminalidade: unindo forças [...]” (PEIXOTO, 2005:26)
O Governador do Estado de Minas Gerais, Aécio Neves, quando do
lançamento do projeto, também considerou importante a parceria público-privada
ressaltando que, “o Projeto Olho Vivo BH” é uma forma de combater a falta de
segurança. Não existe mágica – existe uma série de medidas que estão sendo
postas em prática, depois de muito debate, trabalho, investimento e consolidação
de parcerias.” (PEIXOTO, 2005:26)
Quanto aos resultados, o Major Pinheiro, Comandante da 6ª Cia da Polícia
Militar do Estado de Minas Gerais (PMMG), logo no início da implantação do
projeto enfatizou que já sentia os seus efeitos “[...] com a facilitação do trabalho
de identificação dos criminosos. Já são vários os exemplos de tentativas de assalto
não concretizadas e de prisão de criminosos graças às câmeras e à ação ágil da
polícia.” (PEIXOTO, 2005:27)
Além das opiniões ora apresentadas foram colhidas algumas informações
sobre o índice de desempenho do “Projeto Olho Vivo BH” junto à Polícia Militar
do Estado de Minas Gerais12, que demonstram o seguinte:
12
Fonte: CICOp
107
Crimes violentos na área de monitoramento do OLHO VIVO
Naturezas
B04001 - HOMICIDIO TENTADO
2004
2005
2006
2007
2
3
2
1
Var
2005
% Var
2006
-33.33
%
-50.00
300.00
B04002 - HOMICIDIO CONSUMADO
1
0
1
4
B05000 - SEQUESTRO E CARCERE PRIVADO
1
0
0
2
C05001 - ROUBO CONSUMADO A RESIDENCIA URBANA
0
0
1
0
-100.00
C05004 - ROUBO CONSUMADO A ONIBUS/COLETIVO
1
0
1
1
0.00
C05010 - ROUBO CONSUMADO A PREDIO COMERCIAL
2
7
1
4
-85.71
300.00
-10.26
C05018 - ROUBO CONSUMADO DE VEICULO AUTOMOTOR
0
0
0
1
C05019 - ROUBO CONSUMADO A PASSAGEIRO DE ONIBUS/COLETIVO
3
0
0
0
140
160
117
105
-26.88
C05031 - ROUBO CONSUMADO A POSTO DE COMBUSTIVEIS
0
1
0
0
-100.00
C05099 - ROUBO CONSUMADO OUTROS
6
7
3
0
-57.14
C09001 - ASSALTO A RESIDENCIA URBANA
0
0
1
0
C05027 - ROUBO CONSUMADO A TRANSEUNTE
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
Maio
-100.00
-100.00
C09003 - ASSALTO A JOALHEIRA/RELOJOARIA
0
0
1
0
C09004 - ASSALTO A ONIBUS/COLETIVO
7
4
3
3
-25.00
-100.00
C09005 - ASSALTO A CASA LOTERICA
1
1
0
1
C09006 - ASSALTO A PREDIO DE HABITACAO COLETIVA
1
0
0
0
C09007 - ASSALTO A DROGARIA/FARMACIA
1
2
0
0
C09008 - ASSALTO A PADARIA
1
0
0
0
C09009 - ASSALTO A SUPERMERCADO/MERCEARIA
0
0
0
1
C09010 - ASSALTO A PREDIO COMERCIAL
20
30
20
17
C09015 - ASSALTO A ESTABELECIMENTO PUBLICO
0
0
0
1
C09018 - ASSALTO DE VEICULO AUTOMOTOR
1
5
1
0
C09019 - ASSALTO A PASSAGEIRO DE ONIBUS / COLETIVO
1
0
1
0
-33.33
-15.00
-80.00
-100.00
-100.00
61
66
70
59
6.06
1
3
0
2
-100.00
C09032 - ASSALTO COM RESTRICAO DE LIBERDADE DA VITIMA
0
0
1
1
C09035 - ASSALTO A INST FINANC DE VALOR
0
0
0
1
9
7
4
2
-42.86
C17000 - EXTORSAO MEDIANTE SEQUESTRO
0
1
0
0
-100.00
D04001 - ESTUPRO TENTADO
0
2
0
0
-100.00
D04002 - ESTUPRO CONSUMADO
0
1
0
0
-100.00
260
300
228
206
-24.00
Fonte: CICOp
Tabela 02: Crimes violentos na área de monitoramento do OLHO VIVO
Observando a incidência de crimes violentos na área de monitoramento do
“Projeto Olho Vivo BH” nos meses de maio dos anos 2004 a 2007, tem-se que
com exceção do homicídio consumado que apresentou um considerável aumento,
sem um fundamento ou justificação específica para tanto, apesar de o espaço ser
monitorado, os demais crimes citados sofreram significativa redução, chegando
em alguns casos, como, por exemplo, nos de assalto a drogarias e farmácias e
-15.71
0.00
C09099 - ASSALTO OUTROS
TOTAL
0.00
-100.00
C09031 - ASSALTO A POSTO DE COMBUSTIVEL
C09027 - ASSALTO A TRANSEUNTE
-100.00
-50.00
-9.65
108
roubo consumado a passageiro de ônibus/coletivo, à redução total, ou seja, à
inocorrência.
Considerando, ainda, os mesmos crimes violentos monitorados na área do
“Projeto Olho Vivo BH” no período de 2004 a 2007, pode-se observar que eles
passaram de uma freqüência de 390 em janeiro de 2004 para 206 em maio de
2007 (Fonte CICOp).
Para a criminalidade geral (crimes contra a pessoa, contra a Administração
Pública, contra o patrimônio, contra os costumes, contra a incolumidade pública e
referentes a drogas), a queda na freqüência também pode ser observada nessa
mesma área de monitoramento. As ocorrências partem de 3189 em janeiro de
2004 para 2112 em maio de 2007 (Fonte CICOp).
E mais, de acordo com os dados apurados por ALVES (2007),
comparando a disposição espacial do delito de roubo a transeuntes, por exemplo,
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antes da instalação das câmeras do “Olho Vivo” (2003 e 2004) com o período
posterior a essa instalação (2005 e 2006), foi identificada a redução da
criminalidade e que a distância de influência efetiva de cada câmera está limitada
a um raio de 20 (vinte) metros a partir do local de instalação. Ficou constatado
também que a prevenção da criminalidade produzida pelo “Projeto Olho Vivo
BH” melhorou a sensação de segurança na região de intervenção do projeto.
Passando, no entanto, a observar os índices de criminalidade nas áreas da
Capital não monitoradas pelo “Projeto Olho Vivo BH”, no período entre 2003 e
2006, tem-se também uma redução no total de crimes violentos registrados
(ALVES, 2007), ou seja, a redução do índice de criminalidade não é prerrogativa
exclusiva dos espaços monitorados.
E, ainda, em pesquisa realizada pela Câmara de Dirigentes Lojistas –
CDL-BH junto aos lojistas na área de monitoramento do “Projeto Olho Vivo BH”,
no período de 24 a 28 de janeiro de 2005, foram apurados os seguintes dados13:
13
Pesquisa quantitativa aplicada a uma amostra de 254 estabelecimentos comerciais localizados no
hipercentro de Belo Horizonte, com uma margem de erro de 5%. É válido ressaltar que não são
feitas pesquisas de opinião periódicas, tendo sido esta a única realizada durante toda a vigência do
“Projeto Olho Vivo BH” e mesmo assim apenas os lojistas foram entrevistados e não a população
como um todo. Sendo os lojistas os maiores interessados na manutenção da segurança para um
maior fortalecimento do comércio nessas regiões monitoradas é muito provável (como constatado)
que sua opinião seja favorável à instalação das câmeras e, por certo, têm uma plena satisfação com
os procedimentos da videovigilância.
109
Conhecimento dos Resultados alcançados
com a Instalação das câmeras de segurança
z
Já conhece os resultados
Não
Sim
NS/NR
z
63,72%
36,28%
0,00%
Como estão sendo os resultados
Muito Bom
Ótimo
Excelente
Regular
Indiferente
NS/NR
73,81%
16,67%
4,76%
4,76%
0,00%
0,00%
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Quadro 03: Resultado da Instalação das câmeras de segurança
Principais problemas relacionados à
segurança enfrentados antes da instalação
das câmeras
z
z
z
z
z
z
z
z
Presença de pivetes
Furtos e roubos
Assaltos
Falta de policiamento
Arrombamentos
Sensação de insegurança
Nenhum problema
NS/NR
34,93%
20,09%
18,78%
10,04%
7,86%
5,68%
1,31%
1,31%
Quadro 04: Problemas anteriores à instalação das câmeras
Após a instalação das câmeras de segurança
a criminalidade na região central diminuiu ou
aumentou?
z
z
z
z
Diminuiu
Não alterou
NS/NR
Aumentou
61,06%
35,40%
3,54%
0,00%
Quadro 05: Índice de redução da criminalidade
110
Principais benefícios trazidos com a
instalação das câmeras de segurança
z
z
z
z
z
z
z
Redução da violência
Sensação de segurança
Nenhum
Aumento do número de clientes
Valorização dos imóveis
NS/NR
Aumento expressivo das vendas
37,30%
32,54%
12,70%
7,94%
3,97%
3,17%
2,38%
Quadro 06: Benefícios com a instalação das câmeras
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
Após a instalação das câmeras o estabelecimento foi
alvo da ação de bandidos, ladrões, assaltantes e/ou
pivetes?
z
z
z
Não
Sim
NS/NR
77,88%
22,12%
0,00%
Quadro 07: Criminalidade após a instalação das câmeras
Avaliação da iniciativa do governo estadual,
PBH e CDL/BH em implantar câmeras na
região central de Belo Horizonte
z
z
z
z
z
z
z
Excelente
Boa
Muito boa
Ótima
Regular
Indiferente
NS/NR
23,01%
23,01%
22,12%
15,93%
8,85%
3,54%
3,54%
Quadro 08: Avaliação sobre a instalação das câmeras
Diante dos dados levantados, é válido ressaltar que, no momento da
realização da pesquisa, apenas 36,28% das pessoas tinham conhecimento dos
resultados do “Projeto Olho Vivo BH”. No entanto, apesar de ser pequena a
111
parcela da população com conhecimento sobre o projeto, a parcela que tinha
conhecimento dos resultados aprovou-o com uma percentagem de 73,81% como
“muito bom”. E, ainda, 61,06% consideraram que a criminalidade diminuiu e
32,54% ressaltaram que o principal benefício trazido pelo “Projeto” foi o aumento
da sensação de segurança. Quanto à iniciativa da implantação do “Projeto” pela
Prefeitura de Belo Horizonte em parceria com o governo do Estado de Minas
Gerais e a Câmara de Dirigentes Lojistas - CDL, tal iniciativa foi aprovada por
aproximadamente 70% dos entrevistados.
Portanto, em uma análise pontual do “Projeto Olho Vivo BH”, centrada
em seus objetivos, pode-se afirmar, diante dos dados apresentados, que ele é sim
eficiente e que vem conseguindo prevenir e reduzir a ocorrência de alguns delitos
nos espaços monitorados. Apesar de a redução da criminalidade não ser
característica típica do hipercentro de Belo Horizonte e dos demais espaços
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0613184/CA
monitorados, mas sim um fenômeno que vem ocorrendo na cidade como um todo,
pelas pesquisas realizadas pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais –
PMMG, a redução nos pontos vigiados pelas câmeras é consideravelmente bem
maior (ALVES, 2007). Se o objetivo do “Projeto” foi garantir a segurança da
população que transita nesses locais e, principalmente, aumentar sua sensação de
segurança, sem deixar de lado, é claro, o objetivo da revitalização do comércio
nessas regiões, esses objetivos estão sendo cumpridos. Não só o índice de algumas
práticas delitivas vem sendo reduzido, como também a população aumentou a sua
sensação de segurança, passando a viver e trafegar de forma mais tranqüila nesses
espaços.
No entanto, a videovigilância nesses espaços não é o único instrumento
que vem colaborando para a redução da criminalidade, conforme o disposto por
ALVES (2007), uma vez que a Prefeitura de Belo Horizonte, preocupada com a
degradação do centro da cidade, deu início à implementação do “Programa Centro
Vivo”, a partir de janeiro de 2004, sendo este definido como um conjunto de obras
que visam à recuperação da área central, dividido em três linhas principais de
atuação, quais sejam: a inclusão social e a revitalização econômica; a revitalização
urbanística, ambiental e cultural e a segurança. O “Programa Centro Vivo” tem
como escopo criar condições para reforçar o papel do hipercentro como centro
simbólico de Belo Horizonte e inclusive de Minas Gerais, valorizando a
diversidade de suas atividades e a consolidação do espaço como um local de
112
encontro, transformando-o em um bom lugar para morar, trabalhar, passear,
aprender, enfim, conviver em sociedade. Sendo assim, apesar da grande
importância do “Projeto Olho Vivo BH” para o aumento da sensação de segurança
da população, o mérito pela redução da criminalidade não pode ser concedido
apenas a ele.
Além do “Programa Centro Vivo”, outros fatores também contribuíram
para a redução da criminalidade nesses espaços como, por exemplo, o fato de a
Polícia Militar ter adotado uma nova forma de gerenciamento dos problemas
afetos à segurança pública através das reuniões de integração da gestão em
Segurança Pública (IGESP). Sendo assim, pode-se concluir, conforme o disposto
por ALVES (2007), que o ambiente urbano é complexo e não há como tratar todas
as variáveis que contribuíram para a redução da criminalidade, mas fato é que o
“Projeto Olho Vivo” não foi o único responsável pela redução da violência.
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(ALVES, 2007)
Ainda em uma análise pontual sobre o “Projeto Olho Vivo BH”, podem
ser observados alguns aspectos positivos dispostos expressamente na Lei
15.435/05 como a obrigatoriedade de afixação de aviso de existência das câmeras
de vídeo para segurança nos locais vigiados; a proibição de instalação dessas
câmeras em locais de uso íntimo como vestiários, banheiros e provadores e o fato
de que as imagens produzidas por tais câmeras não podem ser exibidas a terceiros,
exceto para instrução de processo administrativo ou judicial, o que demonstra que
de alguma forma há uma preocupação com a preservação do direito fundamental à
privacidade dos indivíduos.
Todavia, a discussão sobre o “Projeto Olho Vivo BH” não pode se
restringir apenas ao aspecto pontual, mas deve levar em conta o aspecto geral da
vida na cidade e as conseqüências que esse sistema de patrulhamento vídeo
monitorado pode gerar sobre as formas de ocupação do centro urbano e sobre o
exercício do direito fundamental à privacidade.
Sendo assim, analisando a posição do Deputado Estadual Célio Moreira,
quando da exposição de motivos pela aprovação do projeto de lei sobre o “Olho
Vivo”, no sentido de que o monitoramento através de câmeras é um eficaz
instrumento de prevenção e combate à criminalidade e considerando que em um
primeiro momento esse sistema de monitoramento foi implantado nos pontos mais
glamourosos do comércio de Belo Horizonte, não estaria sendo construído nesse
113
ponto o que, segundo BAUMAN (2001:114), poderia ser chamado de um “templo
de consumo bem supervisionado, apropriadamente vigiado e guardado”, dando
origem, portanto, a uma “ilha de ordem, livre de mendigos, desocupados,
assaltantes e traficantes”?
Pode-se acreditar que sim, pois, se por um lado há uma busca constante
pela redução e combate à violência, por outro a videovigilância permite a
organização de informação sobre os grupos sociais, além do controle sobre os
indivíduos. Sendo assim, sob o pretexto de controlar a violência, o “Projeto Olho
Vivo BH” pode fazer com que os indivíduos na cidade de Belo Horizonte acabem
de fato sendo os próprios controlados estando, pois, enquadrados na visão do que
ZIZEK (2003:90) conceitua como Homo Otarius, ou até mesmo repetindo a
conduta do Homo Faber, ou seja, aquele que, na visão de ARENDT (2007:164), é
capaz de inventar máquinas para a construção do mundo e, no entanto, estas
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passam a ser instrumentos de destruição e dominação, consoante o analisado no
item 2.2.
Desta feita, essa parceria público-privada que instituiu o olhar vigilante do
“Projeto Olho Vivo BH” sobre os indivíduos pode ser responsável pelo
estabelecimento de uma sociedade de controle na qual todos são vistos e
monitorados permanentemente e na qual passa a existir um movimento de
rotinização e homogeneização do comportamento dos indivíduos, que passam a
ser privados de uma convivência livre, espontânea e democrática pelas ruas de
Belo Horizonte. Nesta visão, o “Projeto Olho Vivo BH” estaria contribuindo para
a construção de uma cidade vigiada e, por conseguinte, para a redução da
interatividade no meio urbano, bem como para o enfraquecimento e corrosão da
cidadania, pois tecnifica e precariza a interação dos indivíduos nesse centro
urbano.
Além disso, é importante ressaltar o disposto por ADORNO (2007), no
sentido de que o cenário da violência no Brasil é
[...] ademais agravado pela crise da segurança pública, que vem se arrastando ao
menos por três décadas. Os crimes cresceram e se tornaram mais violentos; a
criminalidade organizada se disseminou pela sociedade alcançando atividades
econômicas muito além dos tradicionais crimes contra o patrimônio, aumentando
as taxas de homicídios, sobretudo entre adolescentes e jovens adultos, e
desorganizando modos de vida social e padrões de sociabilidade inter e entre
classes sociais.
114
Assim, o crime organizado se consolida cada vez mais, inclusive na
cidade de Belo Horizonte, e outras formas de violência também surgem e se
consolidam, como o golpe do falso seqüestro por telefone, que foi explorado no
capítulo 03, não sendo o sistema de patrulhamento vídeo-monitorado capaz de
evitar o surgimento de novas técnicas e formas de violência e, muito menos, capaz
de combater o crime organizado, uma vez que a redução da violência que pôde ser
verificada nos pontos monitorados de Belo Horizonte foi praticamente a de delitos
menores como o furto ou roubo a transeuntes.
A Comissão de Constituição e Justiça que, por sua vez, analisou o projeto
de lei sobre a criação do “Olho Vivo” também ressaltou a importância do
monitoramento por câmeras para o combate e prevenção da criminalidade e,
ainda, a preocupação com a preservação da intimidade e da imagem das pessoas
que foi abordada pelo projeto. Desta feita, o indivíduo tem conhecimento de que o
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“Projeto Olho Vivo BH” em algum momento se preocupa com a sua privacidade,
mas continua sendo permanentemente filmado, monitorado, vigiado. Não haveria
aí um contra-senso?
Aparentemente sim, pois como o disposto no capítulo 04, a proteção ao
direito fundamental à privacidade deve ser avaliada dentro de uma visão espacial,
considerando o processo histórico que envolve a sociedade em análise
(DONEDA, 2006), processo esse que hoje depara com a Era da Tecnologia
(ROSA, 2007) e que em muito altera a forma de captação e uso das imagens das
pessoas, principalmente quando elas transitam em espaços públicos. Sendo assim,
conforme visto anteriormente em SOLOVE (2007:166), a privacidade é um
complexo de normas, expectativas e desejos, e isso vai muito além da simples
colocação de que, se o indivíduo se encontra em público, abre mão do seu direito
à privacidade; vai muito além do que simplesmente dizer que o indivíduo que
transita pelas ruas e avenidas de Belo Horizonte pode ser filmado, vigiado,
monitorado, caso queira ter garantida a sua segurança.
Dessa forma, seguindo a linha de pensamento do presente trabalho e
corroborando novamente com o disposto por SOLOVE (2007:187-191), a
privacidade deve ser reconhecida em público, assim como deve ser reconhecido
que a privacidade envolve o respeito ao acesso, ao segredo e ao controle. Para a
sociedade contemporânea e, neste caso, para o “Projeto Olho Vivo BH”, inserido
na Era da Tecnologia, com uma demasiada exposição da imagem e da vida
115
privada dos indivíduos às suas câmeras de vigilância, é imprescindível observar
que o direito fundamental à privacidade deve ser garantido não só nos limites das
quatro paredes de um lar, onde há recato e segredo, mas também nos espaços
públicos ou abertos ao público, ou seja, deve ser garantido também nos espaços
atingidos pelo “Olho Vivo”, uma vez que cada indivíduo carrega consigo a sua
privacidade e não vincula essa proteção apenas ao espaço do seu lar.
Ainda, a discussão que envolveu a aprovação do projeto de lei do “Olho
Vivo” e a conseqüente implantação desse vídeo-monitoramento foi muito
superficial na sua discussão sobre a contraposição dos direitos fundamentais à
segurança e à privacidade. A Lei se limita a falar sobre a fixação de placas de
aviso sobre o monitoramento, se limita a proibir a filmagem em banheiros e
vestiários, por exemplo, mas não alimenta uma discussão mais profunda e ampla
entre todos os setores da sociedade (não só entre os lojistas que exploram
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economicamente as áreas monitoradas) sobre uma verdadeira ponderação entre
ambos os direitos, sobre a real adequação e necessidade do uso de câmeras para
coibir a violência.
Assim, como uma última análise, observa-se que a opção pela instalação
de um projeto como o “Olho Vivo” no Município de Belo Horizonte foi uma
opção clara pelo direito fundamental à segurança em detrimento ao direito
fundamental à privacidade. No entanto, como abordado no item 4.5.1, seria
essencial que o Município em questão conferisse uma peculiar proteção ao direito
à privacidade, pois uma violação a este põe em risco e compromete também a
liberdade e a dignidade de seus indivíduos, comprometendo, por conseguinte e
novamente, a construção de uma sociedade mais livre, mais criativa, mais
produtiva e menos medíocre (HOLTZMAN, 2006).
Além do que, como mencionado acima, existem outros meios e políticas
que vêm sendo aplicados em Belo Horizonte que também contribuem para a
redução da violência, inclusive nos locais não monitorados, sem, no entanto,
violar a privacidade dos indivíduos. Diante disso, se existem meios adequados14,
14
Um bom exemplo, no próprio Município de Belo Horizonte, de iniciativa adequada para a
promoção de maior inclusão social e conseqüente redução dos índices de violência, é o da
Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável – ASMARE. A Associação
é o resultado de uma parceria entre a Pastoral de Rua e os catadores, com o objetivo de gerar
trabalho, renda e novas condições de vida a partir da experiência construída pelos moradores de
rua. Atualmente, a ASMARE tem cerca de 250 associados e beneficia, indiretamente, mais de
1500 pessoas. Por mês, são recolhidas cerca de 450 toneladas de materiais recicláveis. Além do
116
como o “Programa Centro Vivo” e a nova forma de gerenciamento da segurança
pública adotada pela Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, que contribuem
para a redução da violência, por que adotar justamente um outro meio que lesa a
privacidade dos indivíduos, ou seja, por que optar justo por um meio que vigia
permanentemente os indivíduos? Não teria sido esta uma opção autoritária em
prol do direito fundamental à segurança e um descaso para com a privacidade, a
liberdade e a dignidade dos indivíduos que transitam pelas ruas de Belo
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Horizonte?
trabalho de coleta realizado pelos catadores, a associação desenvolve um trabalho de parceria junto
a empresas, escolas, condomínios, órgãos públicos, entre outros, para a coleta de recicláveis. A
organização da produção é acompanhada pelo processo de resgate da auto-estima e da cidadania
dos catadores, o que contribui para a construção de uma sociedade certamente menos violenta e
menos medíocre. (Disponível em: http://www.asmare.org.br/historico.asp. Acesso em:
22/fevereiro/08)
6
Conclusão
De acordo com o pensamento de BAUMAN (2007:102-103), é nos
espaços públicos que a vida urbana alcança sua expressão mais plena e, portanto,
nesses espaços que o futuro dessa vida urbana está atravessando seu momento
decisivo. Aliás, considera o autor que o futuro da coabitação planetária, em
conjunto com suas alegrias e tristezas, premonições e esperanças, também
atravessa um momento decisivo, uma vez que a crescente maioria da população
do planeta se constitui de habitantes urbanos.
E foi com base nessa reflexão que o presente trabalho buscou estabelecer
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um retrato da sociedade contemporânea, adotando um caráter exploratório do
cotidiano das cidades, dos grandes centros urbanos, e sua caracterização enquanto
sociedade de risco e sociedade de controle.
Um dos principais incentivos para a construção das cidades, inicialmente
com fronteiras bem definidas com muralhas ou cercas, era o alcance de uma
proteção, de um local seguro. Desde as antigas aldeias da Mesopotâmia até as
cidades medievais e os povoados dos indígenas da América, as muralhas e os
fossos representavam uma divisão entre a ordem e a confusão, a paz e a guerra,
sendo os inimigos e o perigo deixados do lado de fora das cercas e impedidos de
atravessá-la.
Mais ou menos nos últimos cem anos, no entanto, as cidades passaram a
ser relacionadas mais com o perigo do que com a segurança, invertendo seu papel
histórico como refúgio do perigo para uma fonte criadora deste (BAUMAN,
2007:97). O perigo se mudou para o coração da cidade e, principalmente no final
do século XX e nesse início do século XXI, como enfatizado no presente trabalho,
a violência se tornou latente nos grandes centros urbanos, transformando a vida
urbana em um estado de natureza caracterizado pelo domínio do terror e do medo
onipresentes, e transformando a sociedade em uma sociedade de risco.
Quanto maior a insegurança, mais ela alimenta o medo e ocupa um lugar
de destaque na lista de prioridade dos planejadores urbanos. E nesta lista, é claro,
consta a videovigilância, a adoção de um sistema de vídeo-monitoramento dos
118
indivíduos que circulam nos espaços públicos e privados nos centros urbanos,
como um instrumento pretensamente eficaz e legítimo no combate ao medo e à
violência, caracterizando, pois, a sociedade de controle.
E foi essa vigilância exercida constantemente pelas milhares de lentes
espalhadas no mundo, pelas ruas, praças, avenidas, parques, supermercados, lojas
de departamentos, condomínios fechados, “shopping centers”, elevadores, entre
outros, além da criação de espaços cada vez mais segregados, da construção de
mais e mais muros permeando o ambiente urbano, com um só objetivo, qual seja,
a suposta consecução da segurança, o motivo de discussão deste estudo.
A aclamada Revolução Tecnológica aliada ao medo da violência foram
responsáveis pela instalação de mais de sete milhões de olhos vigilantes e atentos
ao comportamento dos indivíduos por todo o mundo, podendo-se concluir, então,
que a alta modernidade está diante de um panoptismo repaginado. Panoptismo
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este que também rotiniza e homogeneíza o comportamento dos indivíduos que são
submetidos às lentes dos diversos “big brothers”.
Ainda, a consolidação dos enclaves fortificados e dos espaços segregados
em bolhas de segurança na cidade negam a circulação livre, os encontros
impessoais, o uso espontâneo das praças e ruas, contribuindo para o
desengajamento e para a ruptura de laços. A construção de uma cidade de muros
só faz reproduzir a desigualdade, o isolamento e a fragmentação, corroendo, pois,
a cidadania e reforçando a existência de uma vida menos associativa, menos
solidária e mais vulnerável aos desmandos de uma violência gratuita.
Pôde-se concluir, também, que a busca pela segurança, nos moldes e pelos
instrumentos analisados neste trabalho, certamente esbarra na proteção à liberdade
e à privacidade dos indivíduos, sendo este o ponto crucial do problema.
A privacidade, como analisado, carrega uma noção cultural induzida no
decurso do tempo por fatores sociais, políticos e econômicos, não podendo ser
moldada em um conceito estável e imutável, uma vez que sua natureza é
predominantemente dinâmica. E nessa sociedade globalizada, nesse mundo
excessivamente exposto e vigiado, questiona-se se ainda há algo que possa ser
considerado como privado? A resposta para a pergunta é sim! A tradicional e
estática divisão binária entre o público e o privado caiu por terra, devendo a
privacidade hoje ser reconhecida em público, assim como deve ser reconhecido
que ela envolve o respeito ao acesso, ao segredo e ao controle, uma vez que cada
119
um carrega consigo a sua privacidade, sem vincular a proteção a este direito
fundamental apenas ao estrito espaço do seu lar.
Diante da colisão entre a busca pela segurança e a proteção à privacidade,
é válido ressaltar os ensinamentos de BAUMAN (2003:10) no sentido de que
“[...] a segurança e a liberdade são dois valores igualmente preciosos e desejados,
que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca inteiramente ajustados e sem
atrito”. Ainda segundo BAUMAN (2003:11), a tensão entre a comunidade e a
individualidade, entre a segurança e a liberdade, provavelmente continuará por
muito tempo e nunca será resolvida. Não há como sermos humanos sem segurança
ou sem liberdade, assim como não há modo de usufruirmos de ambos esses
direitos fundamentais na mesma proporção, mas a busca e a esperança no
encontro de uma solução satisfatória na utilização deles não devem ser
abandonadas.
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Nesse aspecto, por tratar-se de um conflito de especial relevância, ou de
uma colisão de direitos fundamentais como tratado no item 4.5.1, mais uma vez é
válido refletir sobre o pensamento de BAUMAN (2003:11) no sentido de que
“[...] nunca devemos acreditar que qualquer das sucessivas soluções transitórias
não mereceria mais ponderação nem se beneficiaria de alguma outra correção. O
melhor pode ser inimigo do bom, mas certamente o ‘perfeito’ é um inimigo mortal
dos dois.”
A adoção de sistemas de monitoramento por câmeras nos espaços públicos
e privados, assim como a consolidação de espaços segregados no meio urbano,
vem sendo considerada como a melhor, ou talvez a mais cômoda, opção na luta
contra o medo e na busca pela segurança, sem merecer, todavia, nenhuma séria e
mais profunda ponderação com os demais direitos fundamentais envolvidos na
questão, nem por parte das autoridades públicas tampouco nas discussões
particulares.
Sendo assim, a submissão da sociedade contemporânea a uma vigilância
panóptica e o explícito propósito de construção de espaços interditados levam,
como previamente refletido, à divisão, à segregação e à exclusão e impedem a
construção de pontes, passagens acessíveis e locais de encontro, obstaculizam a
comunicação e qualquer outra forma de comunicação entre os habitantes da
cidade.
120
E como conclui BAUMAN (2007:101), o grande problema a ser pensado é
que quando a insegurança se vai (ou seja, quando a sociedade contemporânea se
vê livre do medo), as principais atrações da vida, como a espontaneidade, a
flexibilidade, a capacidade de surpreender e a oferta de aventuras, tendem a
desaparecer das ruas da cidade e, ainda segundo este autor, “[...] a alternativa à
insegurança não é a benção da tranqüilidade, mas a maldição do tédio.”
Sem esquecer ainda mais que, como exposto, a busca pela segurança
esbarra na proteção à privacidade e, como efeito rebote, atinge também a
liberdade, a dignidade e o respeito pelos cidadãos. E as medidas ora em estudo,
que foram tomadas em prol da segurança, podem, portanto, levar à consolidação
do império da mediocridade, pois uma sociedade desprovida de privacidade, de
liberdade e de dignidade é uma sociedade enfraquecida em sua atuação
democrática, que não traduz o exercício de uma cidadania segura e que, por
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conseguinte, pode levar à própria reprodução da insegurança.
Assim, voltando à análise da ação em ARENDT (2007), única prerrogativa
exclusiva do homem e que depende inteiramente da presença dos outros, e
enfocando agora a irreversibilidade de suas conseqüências, o homem
contemporâneo, que vivendo em uma sociedade de risco instaura uma sociedade
de controle, deve estar atento, pois em nenhum outro campo das atividades
humanas, seja no labor, sujeito às necessidades da vida, seja, ainda, na fabricação,
que é dependente das matérias-primas que lhe são dadas, o homem goza de menos
liberdade do que na própria ação, apesar de esta ter sua essência calcada
precisamente na liberdade. E isso porque aquele que livremente age pode até estar
ciente do que está fazendo neste momento exato, porém não tem como prever os
resultados dessa ação que poderão ser os mais desastrosos e imprevistos e, pior,
nunca poderão ser desfeitos, desconsiderados ou anulados.
Dessa forma, pode se tornar difícil para este homem o ônus de suportar a
irreversibilidade e a imprevisibilidade das conseqüências originadas a partir do
controle, da vigilância e das inúmeras câmeras que vêm atuando sobre a
privacidade, a liberdade e a dignidade. O processo iniciado nunca termina em um
único evento ou ato e seu verdadeiro significado ou conseqüência, por melhores
que tenham sido as intenções quando da implantação da videovigilância, nunca
serão revelados ao ator que desencadeou esse processo, mas poderão ser vistos,
segundo ARENDT (2007) apenas sob a retrospectiva do historiador.
121
No entanto, uma solução possível para o problema da irreversibilidade da
ação humana, segundo a autora, e que talvez acalentasse um pouco esse homem
contemporâneo que se vê diante de duas conseqüências possíveis, quais sejam, o
futuro em uma sociedade controlada, segura, aberta e feliz ou em uma sociedade
controlada, supostamente segura e medíocre, é a faculdade de perdoar. Mas será
que a história reservará o perdão a uma sociedade engessada, precarizada e
controlada? Será possível o perdão quando o homem começar a desejar o “sorria
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você não está sendo filmado”?
7
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