NATÁLIA NAMI
Finalista do concurso Contos do Rio 2008 (O Globo), com “A colombina”, a escritora e
tradutora Natália Nami lança no mesmo ano seu primeiro livro de contos, O pudim de Albertina
(7Letras). Seu primeiro romance, O contorno do sol, é publicado pela Rocco em 2009. Em 2010,
Natália participa da antologia Escritores escritos (Flâneur) com o conto “Tarde de pedra”, em
homenagem a Emily Dickinson, e, em 2011, “Princesinha do mar” é finalista do Prêmio SESC
de Contos Machado de Assis. Natália nasceu e mora em Barra do Piraí (RJ).
1. Lígia é uma mulher marcada pelo não-afeto, pelo desamor. Qual foi sua inspiração
para a criação da personagem?
A personagem leva o nome de uma autora que amo desde menina: Lygia Fagundes Telles,
grande contadora de histórias cuja obra sempre esteve muito perto de mim. Um dos temas
recorrentes é o desencontro amoroso. Minha Lígia, tão sofrida, encarna também esse
desencontro presente na obra da grande Lygia. Daí a dupla homenagem.
2. A confusão entre o que é ilusão e o que é realidade – quase uma marca de certa
loucura – ancora a história de Lígia. Pode falar mais sobre isso e como essa
característica se relaciona com seus outros trabalhos?
Também em O contorno do sol a protagonista, Flávia, fica espremida entre o desejo de reinventar
a realidade, fugindo, e o momento de ter a coragem de enfrentá-la. Quando o trauma é
profundo, é grande a vontade de evitá-lo, de rodeá-lo de longe, como a um bicho feroz. Mas
chega uma hora em que o enfrentamento é inadiável e é daí que vem a cura. A ilusão e a
realidade podem formar um espaço híbrido, como os retalhos de uma colcha que acabam
compondo um todo significativo, acabam se completando e até se auxiliando mutuamente, ao
mesmo tempo ficando delimitados pela fronteira da costura. Tanto Flávia quanto Lígia
sofreram, mas para ambas há esperança. No caso de Flávia, a mudança vem com a confissão
do problema a um amigo, e no caso de Lígia vem com a escrita. É isso que espero que essas
duas mulheres possam levar ao leitor: a esperança de mudança para melhor, ainda que após
traumas dolorosos.
3. O abandono, a solidão e os conflitos psicológicos, por sinal, são outras
características de A menina de véu. Por que aborda tanto esses sentimentos de
desamor, da ausência de afeto?
O sofrimento humano é a grande inquietude do escritor, do artista que sofre buscando dar
sentido ao que já o perdeu, como se tentasse redimensionar uma ferida. Quando eu era
menina, ouvi uma história impressionante de uma senhora da minha cidade, Barra do Piraí. Ela
tinha sido uma moça linda, rica, cheia de pretendentes. Um deles a pediu em casamento, e
conta-se que o noivado dos dois foi cheio de preparativos, incluindo-se um belo enxoval. Num
determinado momento, porém, o noivo desistiu do casamento e desfez todos os planos.
Imagine você o horror, o choque daquela moça. É claro que podemos nos sentir sós e
rejeitados sem uma humilhação dessa magnitude, mas o que acredito que sofreu aquela
senhora e o que sofre Lígia é quase a encarnação do abandono, é a rejeição em seu estado
bruto - se casamento é encontro, se é como, digamos, juntar duas metades de um coração para
que ele pulse, então deixar uma das metades de pé aguardando quem não vem nunca mais é
largar esse coração sangrando o resto da vida.
4. Por que a escolha de personagens femininas como protagonistas de sua obra?
Em A menina de véu, em paralelo à voz de Lígia, está a narração sob a perspectiva de uma
personagem masculina: Amir. Trabalhar essa dualidade foi interessante, porque os pontos de
vista muitas vezes são opostos, conforme nossa própria visão estereotipada do que é masculino
e feminino. Lígia é apaixonada e maternal, Amir tem vários filhos e acha tudo muito
trabalhoso, que "bebê é tudo igual", acha normal homem ter amantes. São percepções um
pouco estanques e o interessante é ver como essas personagens vão se desviar dos caminhos
pré-determinados por seu gênero, sua cultura masculina ou feminina.
5. A memória é outro fator importante em seu trabalho. As lembranças estão sempre
vindo à tona, mas elas nem sempre são confiáveis...Pode falar mais sobre isso?
Numa de suas entrevistas, Lygia Fagundes Telles diz "A invenção e a memória se misturam
muito. É impossível fazer uma separação fria, calculada. A memória é a invenção". Gosto
dessa linha imaginária (nos dois sentidos da palavra), desse limite nem sempre respeitado na
vida e na ficção entre as "lembranças confiáveis" e as não tão confiáveis assim. É nessa ilha de
lembranças que o escritor vai buscar o seu alimento, sejam elas reais ou inventadas. Penso
nessa ilha num dia claro de sol, a maré baixa. Estamos sóbrios e dispostos a revisitar o passado
em busca do real - doa a quem doer. Mas pense nessa mesma ilha no final da tarde, à hora da
preamar... Essa maré cheia é a invenção invadindo a porção frágil da terra da
memória. A memória ficcional está nesse fluxo e refluxo, oscila entre o esto e a vazante...
6. O sentimento de maternidade é forte e legítimo em Lígia. Como materializou esse
sentimento com tanta verdade?
Acho que a verdade ou a força estão justamente na ausência. Muitas vezes o que não temos é
tão imaginado, tão desejado que passa a ser mais real do que o real. Lígia não foi mãe, como
também Flávia não foi. No entanto essa lacuna permeia a narrativa das duas, com doses
maiores ou menores de dor. Talvez em Flávia essa dor seja mais articulada, mais cheia de raiva
e arrependimento os quais ela vai, em vários momentos, manifestar. Já em Lígia a dor é tão
profunda que se transformou no outro - encarnou-se em Teresa. Lígia trabalha sua dor, como
falei, com mais paciência do que Flávia. Daí a ausência ser mais visceral, transformar-se num
ser não só de carne e osso, para ela, mas com personalidade, desejos e frustrações.
7. O amor é a âncora de A menina de véu. Pode falar mais de como esse sentimento
poderoso norteia a criação literária e o seu próprio processo criativo?
Vinicius de Moraes fez um poema para uma fotografia de Luís Carlos Barreto, o "Namorados
no Mirante" que diz assim: "Eles eram mais antigos que o silêncio (...) Como duas estrelas que
gravitam / Juntas para, depois, num grande abraço / Rolarem pelo espaço e se perderem /
Transformadas no magma incandescente / Que milênios mais tarde explode em amor / E da
matéria reproduz o tempo / Nas galáxias da vida no infinito. / Eles eram mais antigos que o
silêncio..." A foto de dois namorados num mirante, fugazes e eternos. Penso em Lígia e Amir
como uma fotografia também - vejo os dois balançando na rede na casa dela em Petrópolis,
ambos quase adolescentes, Amir com os planos dele de servir o Exército e ser bem-sucedido
como os homens da família para poder ganhar a admiração de Lígia, e vejo Lígia com apenas
dezoito anos, a cabecinha cheia de sonhos, mas todos esses sonhos gravitando em torno de
Amir. Essa imagem chega a me assaltar o sono às vezes, como se Lígia viesse me cobrar, "E
então?" Pois eles não conseguiram ser mais do que isso, essa imagem fugaz do amor perfeito
da adolescência que ia durar séculos e séculos e que não escapou da voragem do tempo. Do
véu do tempo.
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