A CASA E A FAZENDA NA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM
PIRENÓPOLIS/GO
João Guilherme da Trindade Curado1
Rosana Romenia Fernandes Leal2
Erick Tavares Silva3
RESUMO
Pretendemos, por meio da História e da cultura popular investigar, mediante observações
realizadas em diversos momentos festivos as (re)significações que algumas paisagens
pirenopolinas adquirem por ocasião da maior manifestação cultural da cidade: a Festa do
Divino Espírito Santo. Para tanto focamos em dois espaços essenciais para a condução dos
festejos, a Casa do Imperador que localizada na área urbana aglutina o ponto referencial da
festa, a cada ano e as Fazendas que por outro lado abrigam os Pousos de Folia e possibilitam a
realização dos primeiros movimentos da festividade envolvendo significativo número de
devotos. Assim, pelo entrelaçamento de vivências festivas propomos observar as
transformações espaciais dos dois espaços mencionados acima, indicando destarte alterações
das paisagens do cotidiano de ambos e também diante de suas ocupações durante as
comemorações de Pentecostes. Outro objetivo será perceber a ação e a atuação de alguns dos
partícipes mediante a abertura de suas propriedades (Casa e Fazenda) para a Festa.
PALAVRAS-CHAVE: Festa do Divino. Casa do Imperador. Fazenda de Pouso de Folia.
Paisagem. Pirenópolis.
Investigar aspectos atuais das festividades que acontecem em Pirenópolis — desde as
décadas iniciais do século XIX em homenagem ao Divino Espírito Santo —, constitui-se
como uma tentativa de melhor compreender a sociedade e as paisagens locais, tanto as
cotidianas quanto as voltadas para a realização da festividade em questão.
Para tanto recorreremos inicialmente a estudos sobre a constituição do núcleo
Professor Temporário da Universidade Estadual de Goiás – Câmpus Pirenópolis. Líder do Grupo de Pesquisa
Saberes e Sabores Goianos. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos turísticos e
gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás” desenvolvido junto a
Universidade Estadual de Goiás (UEG) e pesquisador no Projeto: “Artes e Saberes nas Manifestações Católicas
Populares”, fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). E-mail:
[email protected]
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Acadêmica do Curso de Tecnologia em Gestão de Turismo pela Universidade Estadual de Goiás – Câmpus
Pirenópolis. Bolsista CNPq de Iniciação Científica no Projeto de Pesquisa “Girando Folia: apontamentos
turísticos e gastronômicos em uma das devoções ao Divino Espírito Santo — Pirenópolis/Goiás” desenvolvido
junto a Universidade Estadual de Goiás (UEG) e pesquisadora no Projeto: “Artes e Saberes nas Manifestações
Católicas Populares”, fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg). E-mail:
[email protected]
2
Acadêmico do Curso de Tecnologia em Gastronomia pela Universidade Estadual de Goiás – Câmpus
Pirenópolis, inserido no Projeto de Pesquisa “Egressos do Curso de Gastronomia” da Pró-Reitoria de Extensão,
Cultura e Assuntos Estudantis (PrE/UEG), e colaborador no Projeto de Pesquisa: “Artes e Saberes nas
Manifestações Católicas Populares”, fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás
(Fapeg). E-mail: [email protected]
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aurífero, no intuito de compreender a paisagem urbana mediante o espaço: Casa do
Imperador. Em seguida com a agropecuária tornando-se a principal atividade econômica após
o escasseamento do ouro a investigação passa ao rural com a: Casa da Fazenda, que para a
Festa do Divino abrigam os Pousos de Folia.
É das relações destas espacialidades, permeadas constantemente pelas comidas, é que
se pretende destacar as interlocuções da memória social que se redefinem mediante a festa,
por meio das ações e atuações dos pirenopolinos de ontem e de hoje, que possibilitam a
manutenção da tradição da Festa do Divino Espírito Santo.
O espaço goiano
Segundo Palacín e Moraes (2008), pelas terras goianas passaram bandeirantes no
início do século XVII, mas a ocupação oficial e os núcleos populacionais surgem a partir da
centúria posterior, sendo que “a mineração foi um fator de urbanização por excelência”,
segundo Gomes e Teixeira Neto (1993, p. 67) ao analisarem o nascimento das cidades
goianas.
Como era uma constante, os bandeirantes percorriam áreas próximas a cursos d’água,
pois as técnicas exploratórias do ouro naquele contexto eram ainda bastante rudimentares e
baseadas principalmente na mineração de aluvião. Assim nasceram núcleos urbanos às
margens do Rio Vermelho, Rio das Almas, Rio Corumbá, Córrego do Jaraguá, para
mencionarmos apenas os mais próximos.
Sabe-se que a ocupação e posterior formação do território goiano aconteceram via
exploração do ouro com bandeiras chefiadas por portugueses e também bandeiras chefiadas
por paulistas, o que possibilitou, desde sua gênese, uma diversidade cultural bastante
acentuada.
Vale a pena ressaltar que de modo geral “apesar de não seguir um plano organizado,
a população se estabeleceu em obediência a certas exigências, principalmente de ordem
cultural e social”, conforme destaca Coelho (2013, p. 15) ao analisar especificamente Vila
Boa.
As autorizações lusitanas para constituição de núcleos urbanos, mesmo que
temporários em função da baixa produtividade de ouro seguiam determinados padrões, como
a ereção de uma Igreja Matriz em um espaço de destaque em relação à topografia da
localidade, mas com certo distanciamento da área de garimpagem. Ao lado da referência
religiosa, era construída a Casa de Câmara e Cadeia para abrigar os poderes administrativos, o
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que acabava por constituir o Largo da Matriz, espaço referencial de sociabilidade ainda hoje
mantido nas cidades surgidas com a mineração.
A religiosidade, quase uma obrigação no período colonial fazia da Igreja Matriz o
epicentro dos núcleos urbanos e era para lá que se dirigiam todos não só para professar a fé,
mas principalmente para obterem uma vida social que se fazia presente, especialmente em
momentos festivos, por isso o calendário religioso era tão extenso.
Mas as festas ultrapassavam os limites da Matriz, no adro eram realizados leilões e a
banda tocava para alegrar a comunidade. Enfim, a religião permeava a vida social, talvez por
isso a manutenção das tradições festivas se tornaram elementos identitários imprescindíveis
para pessoas que moravam distantes dos grandes centros populacionais que se concentravam
próximos ao litoral. Assim, em Goiás as festas eram celebrações agregadoras, e por esta razão
geralmente eram compostas também por algumas comidas especiais que eram compartilhadas
entre os presentes.
Destacamos a materialidade da religião representada pela Igreja Matriz, mas
ultrapassaremos este espaço em busca da percepção da cultura popular mediante
manifestações engendradas pela própria comunidade em fazer de devoção e religiosidade que
independem da presença de representantes do clero. Sendo que na hierarquia festiva os
poderes ritualísticos ficam ao encargo de pessoas comuns e que independem da presença de
religiosos e/ou seus representantes.
Para tanto destacamos dois espaços: a Casa do Imperador e a Fazenda do Pouso de
Folia para breves análises sobre as mudanças que passam estas paisagens mediante a
realização da Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis.
Concordamos com Landim, para quem “a cidade pode ser reconhecida somente por
intermédio da sua paisagem urbana, e essa paisagem é resultante dos elementos econômicos,
sociais e culturais que a produziram num determinado período e contexto” (2004, p. 24).
Assim sendo é perceptível verificar como em Pirenópolis, na transição da mineração para a
agropecuária, mudança ocorrida entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX,
que se caracterizou com a ruralização da então urbana população.
O esvaziamento urbano foi registrado pelo viajante francês Auguste de Saint-Hilaire
que passou pela então Meia Ponte, no ano de 1819, quando observou que “ainda hoje a
maioria dos habitantes de Meia-Ponte se dedica à agricultura e como só vão ao arraial aos
domingos, as casas permanecem vazias durante toda a semana” (1975, p. 37).
Saint-Hilaire anotou as primeiras informações registradas, encontradas ainda hoje,
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sobre uma Folia do Divino em terras goianas:
encontrei na mata um bando de gente a cavalo, conduzindo burros carregados de
provisões. Um dos homens levava um estandarte, outro um violão e um terceiro um
tambor. Procurando saber o que significava tudo isso, fui informado de que se
tratava de uma folia (1975, p. 96 — grifo no original).
As observações são bastante pertinentes para o que propomos, uma vez que a Festa
do Divino costura o urbano e o rural, redesenhando o social pirenopolino, pelo menos desde
1819, quando segundo Jayme (1971) foi encontrado os primeiros registros sobre a Festa.
Nestes quase dois séculos de realização da Festa do Divino Espírito Santo em
Pirenópolis, muitas foram as alterações sofridas por esta manifestação, que recentemente, em
2010 foi considerada Patrimônio Cultual do Brasil, devido a sua representatividade nacional
diante das demais celebrações voltadas ao Divino Espírito Santo, que ocorrem por outras
cidades brasileiras.
Casa do Imperador
A Festa do Divino Espírito Santo, uma manifestação que remonta a Europa Medieval
e que era incentivada pela rainha Isabel, foi difundida no continente europeu e depois
trasladada para o Brasil, ocorrendo em várias localidades e tendo por representante máximo
um Imperador. Em Pirenópolis é escolhido, por sorteio, a cada domingo de Pentecostes para
conduzir os festejos do ano seguinte.
Este momento é assim descrito por Brandão: “é o instante em que, á volta de uma
mesa redonda colocada no centro da sacristia da Igreja Matriz, são sorteados os ‘encargos do
Divino’ para a Festa do ano seguinte” (1978, p. 24). Dentre as funções a serem sorteadas há os
vários mordomos, responsáveis por assuntos específicos e ainda o encargo de Imperador,
aquele que deverá conduzir a Festa, sendo sua residência o espaço de várias atividades
durante o ano em que ficará responsável pela Coroa do Divino.
A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis é bastante complexa e possui vários
momentos rituais, sendo grande parte deles realizados na Casa do Imperador que de
residência passa a espaço de festa aberto a toda a comunidade, ou seja, de privada e particular
transforma-se em espaço público e comunitário.
Recorrendo a Gennep (2011) ao analisar os ritos de passagem, podemos afirmar que
pela ritualidade da Festa do Divino em Pirenópolis acontece a transposição da pessoa comum
para a figura de Imperador e consequentemente da transformação de uma residência em
espaço de festa, na noite de Pentecostes, após a missa quando ainda na Igreja Matriz o padre
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retira a Coroa do Divino da cabeça do Imperador e a transfere para a o novo Imperador
sorteado na manhã do mesmo dia.
A cidade de Pirenópolis era bastante pequena até meados da década de 1980, quando
começaram a surgir novos bairros e ocorrer migrações internas da população, o que Siqueira
denominou como sendo “movimento do centro para a periferia” o que segundo o referido
autor se caracterizou pela “valorização das casas do centro histórico e pelo alto custo de
manutenção, muitas famílias estão vendendo suas propriedades para pessoas de fora da cidade
ou mesmo transformando-as em pousadas”, aponta ainda como consequência, o fato de que
“antigos moradores locais estão se deslocando para as regiões mais periféricas da cidade”
(SIQUEIRA, 2004, p. 17).
O crescimento e as mudanças da população contribuíram para que na década de 1990
o pároco local instituísse a Casa do Imperador, um espaço em que os Imperadores sorteados
deviam organizar a Festa do Divino. Tal localidade ficava fora do centro em uma área mais
afastada e apenas os Imperadores ligados diretamente ao padre realizaram ali suas Festas. Em
seguida Imperadores que não moravam mais na área central passaram a alugar uma casa,
situada à Avenida Sizenando Jayme para ali promoverem suas festividades.
No entanto, há consenso entre os partícipes que quando a Festa era realizada em um
dos dois espaços mencionados acima não tinha o mesmo envolvimento e aconchego do que
quando é promovida na residência do festeiro, como também é denominado localmente o
sorteado para ser o Imperador do Divino.
A pessoalidade da Casa do Imperador, enquanto residência e também espaço da Festa
proporciona compreensão do modus vivendi da família pirenopolina, uma vez que:
como espaço de moradia, a casa resguarda em sua materialidade, além da sua
constituição formal (formato, cores, texturas) e técnicas (meios e racionalidade
construtiva), também a maneira de viver e de se relacionar com o mundo que o
homem estabelece em seu tempo e lugar (VAZ; ZÁRATE, 2003, p. 07).
Quando a residência torna-se a Casa do Imperador, a Festa do Divino passa a ser
mais calorosa e contar com maior participação e integração da comunidade pirenopolina.
Muitas pessoas cumprem promessa em rezar junto ao altar que passa a compor a paisagem da
residência, que passa a ser aberta a todos que ali querem fazer orações. Assim, há mudanças
na rotina da família que passa a agregar pessoas até mesmo desconhecidas ou afastadas do
convívio cotidiano, dentro da intimidade do lar.
Outras pessoas passam a frequentar a Casa do imperador no intuito de colaborar com
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alguma atividade relacionada à Festa. E são várias as tarefas a serem cumpridas, mas que se
iniciam a partir de Corpus Christi, quando oficialmente a Coroa do Divino é entregue ao
Imperador que conduzirá a Festa no ano vindouro.
Para este primeiro momento a Casa já passa a ser do Imperador e não mais apenas do
cidadão morador e de sua família. Alterações foram providenciadas, como ampliação ou
montagem de uma cozinha que funcionará durante todas as reuniões que ali ocorrerão, com o
intuito de servir os partícipes. Enfeites são espalhados pela casa, área e até mesmo quintal da
casa que passa a ser espaço festivo. Na sala principal é montado um altar que abrigará a Coroa
do Divino, introduzida na Festa no ano de 1826, pelo Imperador padre Manoel Amâncio da
Luz (JAYME, 1971), objeto de veneração durante todo o ano.
Várias são as reuniões festivas na Casa do Imperador após o Domingo de Páscoa,
com os cavaleiros das Cavalhadas, com as Pastorinhas, com os músicos. Mais adiante com as
pessoas que colaboram com a produção de Verônicas (doces a serem distribuídos no Domingo
do Divino, ápice da Festa). Tem ainda as farofadas que acontecem pela noite ou nas
madrugadas, tem o café da manhã para os participantes das Alvoradas e o café da tarde para
os cavaleiros.
Diante de tantas atividades a cozinha da residência fica inapropriada para ser a
cozinha da Festa, por isso é montada toda uma estrutura capaz de suprir as necessidades
festivas que chegam a servir centenas de pessoas em pequenos períodos. Geralmente contratase uma equipe experiente para “tomar conta” da cozinha da Casa do Imperador, já que os
familiares possuem outras obrigações a fazer. As cozinheiras possuem experiências e sabem
inclusive calcular as quantidades a serem distribuídas, assim como organizar os cardápios de
acordo com os rituais. Os trabalhos são divididos, pois o movimento nas semanas que
antecedem a Festa inicia-se por volta das cinco da manhã com a preparação do café da manhã
da Alvorada e se estende até após a meia-noite com a produção de Verônicas, quando são
servidos caldos aos presentes.
Solenemente a Casa do Imperador é ponto de partida e de chegada do Cortejo do
Imperador que acontece no Domingo do Divino (Pentecostes) e constitui-se no traslado de ida
e de volta do Imperador para a missa, celebrada comumente pelo bispo. No retorno são
distribuídas à população as Verônicas, uma maneira de agradecer aos partícipes da Festa e
instituída também no ano de 1826. Esta é a cerimônia de encerramento oficial das atividades
ritualísticas que acontecem na Casa do Imperador.
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Fazendas dos Pousos de Folia
Se as datas auríferas foram responsáveis pela ocupação dos núcleos urbanos, os
pedidos de sesmarias fizeram o mesmo pela ocupação rural, mesmo ainda na época da
mineração.
Grandes quantidades de terras eram destinadas a quem a solicitasse e mostrasse
algum poder financeiro, e isso deu origem a grandes fazendas em Goiás que com o passar das
gerações foram diminuindo em função das divisões familiares via inventários. De acordo com
informações de Arrais o Brasil é considerado urbano “estatisticamente pela primeira vez na
década de 1970, quando a maior parte da população passou a viver em cidades” (2013, p. 97).
Ainda segundo o referido autor em Goiás esta alteração ocorre na década posterior.
Em Pirenópolis atualmente, mesmo com a economia rural não sendo mais a principal
arrecadação, a ruralidade possui significativa importância para a comunidade local, quase toda
oriunda de descendência ligada à propriedade rural. Assim, manter as fazendas para trabalho,
renda ou descanso é prática comum.
O rural se faz presente no cotidiano urbano do entre os pirenopolinos e a situação
inversa também acontece, uma vez que o município tem tido seu tamanho reduzido devido a
emancipações que remontam o século XIX, o que vem facilitando melhores urdiduras entre o
rural e o urbano, o que pode ser reconhecido ainda pelas “relações de complementaridade
entre cidade e campo, entre o universo da fazenda e o da rua, sendo esta considerada sinônimo
de cidade” (ARRAIS, 2013, p. 102). Vale ressaltar que estamos considerando aqui a Fazenda
como rural e a Casa como urbano.
Um dos primeiros rituais que envolvem muitas pessoas em relação à Festa do Divino
em Pirenópolis é a Folia do Divino Espírito Santo. Atualmente acontecem três delas: a Folia
Tradicional, a Folia da Rua e a Folia do padre. Deteremos-nos à Folia Tradicional que é a
mais antiga e a que percorre fazendas durante o Giro da Folia, a peregrinação de fiéis, a
cavalo, que durante um período superior a uma semana passam por significativa área do
município, tendo à frente os Alferes: Roque e Wellington (Litão) empunhando as Bandeiras
do Divino.
Por serem hierarquicamente os responsáveis pela Folia do Divino, os Alferes é que
providenciam a trajetória do Giro da Folia que sai pelo poente e retorna à cidade pela
nascente, sem cruzar caminho, o que se constitui em um importante interdito ritualístico
seriamente observado.
Por ser a trajetória do Giro longa se estendendo a mais de uma semana, fazem-se
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necessárias algumas paradas para descanso noturno, uma vez que os deslocamentos ocorrem á
luz do dia. Estas paradas precisam ser previamente programadas considerando a distância a
ser transpostas e principalmente as intenções dos fazendeiros em abrigar um Pouso de Folia.
Outro fator a observar é se há algum fazendeiro que tem promessa de “dar” um Pouso de
Folia, neste caso há prioridade e o Giro deve se adequar para que o fiel cumpra sua promessa
votiva.
A definição das Fazendas ocorre com bastante antecedência, uma vez que a
propriedade deve passar por intervenções para receber um Pouso de Folia. Acertado o Pouso,
defini-se a data e o proprietário começa a se programar.
Além da disponibilidade do fazendeiro, há alguns requisitos importantes para que a
Fazenda abrigue um Pouso de Folia: uma casa para abrigar as Bandeiras, espaço destinado a
acampamentos dos foliões, pasto para a tropa dos foliões, estrada de acesso em razoável
estado de conservação, espaço na frente da casa da Fazenda para a alegoria ritual da chegada,
espaço para abrigar uma cozinha improvisada que dará conta das refeições do Pouso e água
para que os animais saciem sede e possam ser lavados, e que os foliões possam tomar banho.
Geralmente o espaço não é problema, pois como observou Oliveira (2010) ao
investigar as fazendas goianas apontou a autora que: “a localização da casa rural meiapontense era sempre determinada pela facilidade de obtenção de água para seu abastecimento
e funcionamento, optando-se, preferencialmente pelos fundos de vale” (p. 40).
Semanas antes do Pouso a paisagem da Fazenda se modifica, alguns pastos
destinados à tropa têm seus arames reforçados, a frente da casa é limpa para abrigar os arcos
de bambu que serão enfeitados, para os rituais de transposição da Folia. À rotina dos
moradores e agregados somam-se outras atividades como matar vacas e porcos que serão
utilizados na alimentação durante o Pouso. Montar, improvisadamente uma cozinha para que
os alimentos sejam preparados em fogareiros produzidos com barro para grandes tachas.
A Folia chega à Fazenda do Pouso ao entardecer e realiza diversos rituais junto ao
arco até depositar as Bandeiras no altar. Nesta etapa há poucos participantes, mas as
alterações na paisagem já são nítidas: os acampamentos se formando, transito de foliões e de
cavalos, comércio temporário de comidas e de bebidas se organizando. Som mecânico sendo
testado e pessoas chegando.
Enquanto isso na cozinha uma equipe prepara a janta. O prato mais concorrido é o
caldo de mandioca com carne ou com costela. Mas será servido ainda arroz, feijão, salada
dentre outros alimentos, para mencionarmos apenas o mais recorrente. As quantias variam a
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partir de 20 quilos, e se no passado os ingredientes eram produzidos na Fazenda, atualmente
quase todos são adquiridos em supermercados.
Estes e outros aspectos contemporâneos têm sido percebidos no mundo rural, e nas
festas que ocorrem nas Fazendas, propriedades hoje que contam com eletrificação rural, o que
proporciona a utilização de equipamentos outrora impensáveis como freezers e até som
mecânico. Assim, há concordância de que “viver no interior goiano é saber apropriar-se das
transformações sem perder as raízes do sertão” (KATRIB; CASTANHO; SILVA, 2010, p.
138), uma vez que ainda de acordo com os referidos autores:
as paisagens que dão contorno ao campo e à cidade não se constituem apenas de
uma geografia sem ranhuras, pois os sujeitos que compõem o lugar foram
transformando a natureza em função das perspectivas de dias melhores e mais
profícuos (KATRIB; CVASTANHO; SILVA, 2010, p. 138).
A vida no campo ou na cidade, em momentos festivos ou não, possuem hoje mais
semelhanças que anteriormente. Mas quando a Fazenda abriga um Pouso de Folia há outra
diferença em relação à Casa do Imperador, em que todos sabem quem é o anfitrião. No Pouso
poucos conhecem os proprietários e a maioria das pessoas só aparece nas Fazendas depois de
encerrados os momentos ritualísticos em devoção do Divino Espírito Santo.
Considerações Finais
A festa do Divino possui características agregadoras destes dois espaços, uma vez
que o calendário religioso coincidia com o período posterior à colheita, portanto um momento
de agradecimento da fartura e por isso as inúmeras contribuições para a realização dos
festejos. Outro fator primordial é a reafirmação da aliança entre os referidos espaços, pois
mesmo sendo uma festa que acontece na cidade, seu início oficial tem por premissa percorrer
o município passando pelas Fazendas, levando as Bandeiras do Divino a saldar e abençoar as
propriedades rurais. Como se a Folia prestasse à função de convidar e/ou integrar a
comunidade residente na cidade com os habitantes rurais.
Na Casa do Imperador, conforme nos expuseram os participantes que ali se fizeram
presentes em vários momentos, há uma intimidade maior com o Divino, pela presença da
Coroa ou mesmo dos familiares e do próprio Imperador, que transforma a particularidade da
residência em espaço coletivo da Festa, durante pelo menos um mês. Alterando não só o ritmo
das pessoas que ali habitam, mas a casa toda por meio de ornamentos ou de movimentos
preparativos para outros momentos da Festa. A comida passa a ser preparada em grandes
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quantidades, pois sempre há alguém trabalhando ou visitando a casa nos horários de refeições.
Há sempre uma mesa posta com café e quitandas para que as pessoas se sirvam sem a
necessidade de um anfitrião, pois a casa passa a ser do povo devoto ao Divino.
Nas Fazendas a permanência da Festa, mediante o Pouso da Folia com as Bandeiras é
mais efêmera, dura apenas uma noite e pedaço do dia seguinte, mas as relações não são muito
divergentes das encontradas na Casa do Imperador. A casa da Fazenda segue geralmente o
partido arquitetônico do período colonial, como já expuseram Jayme e Jaime (2002) e
Oliveira (2001), o que proporciona o isolamento das partes mais íntimas, como os quartos de
dormir, mas como há muito espaço ao ar livre as pessoas não ficam concentradas dentro da
casa, como acontece na cidade.
Sobre as várias possibilidades de participação dos atores ou das pessoas envolvidas
com a Festa do Divino, como mencionamos o Imperador possui muito mais reconhecimento e
até mesmo envolvimento que o promotor de um Pouso de Folia, a Casa do Imperador é uma
referência durante todo um ano, enquanto que a Fazenda apenas nos dias que abriga o Pouso.
Outro aspecto interessante são as diversidades de opiniões sobre os espaços festivos
em questão: a Casa do Imperador e as Fazendas dos Pousos de Folia, o que demonstra que
mesmo sendo pontuais e necessários para os partícipes há sempre um envolvimento maior
dependendo de onde são realizadas as festas. Mas o curioso foi perceber que a memória social
e festiva aponta as paisagens proporcionadas pelos dois espaços específicos de análise, como
sendo pontos importantíssimos de sociabilidade e de perpetuação de uma tradição que
perpassa quase dois séculos e que se mantém devido a representatividade para a comunidade
pirenopolina.
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