Avaliação da Qualidade de Energia Elétrica
S.M.Deckmann e J. A. Pomilio
PARTE B
1. Análise de Sinais no Domínio do Tempo
Inicialmente a abordagem irá considerar duas classes de sinais:
i) sinais periódicos;
ii) sinais aleatórios.
O objetivo é rever as principais formas de tratamento desses sinais no domínio do tempo,
com vistas à obtenção de parâmetros que possam ser usados para caracterizar os distúrbios no SEE.
1.1. Caracterização de sinais periódicos
Um sinal periódico se define desde que a grandeza que o caracteriza apresente, de maneira
repetitiva e regular, o mesmo valor. O intervalo de repetição caracteriza o período e seu inverso, a
frequência fundamental do sinal.
Vp
A
on
T
0
-A
0
senóide
T
T/2
onda quadrada
Vp
off
0 ton toff T
0 T
senóide retificada
ciclo de controle
Figura 1.1 Exemplos de sinais periódicos.
Dependendo do tipo de aplicação e da variável que se deseja monitorar ou controlar, tornase conveniente utilizar uma das seguintes grandezas para análise:
Valor Médio
1
Æ Vcc =
T
Valor Absoluto MédioÆ Vabs =
Valor eficaz (RMS)
Valor de pico
Æ Vef =
1
T
t +T
∫ v( t ).dt
t
k+N
∑Vk
k
∫ v( t ) .dt
t
1
T
t +T
2
∫ v ( t ) .dt
(caso discreto)
t
Æ Vp = Vmáx
Æ F0 =
Razão cíclica ou ciclo de trabalho Æ D =
t on
T
DSCE – FEEC – UNICAMP
1
N
t +T
Freqüência de operação (fundamental)
Fator de crista
(caso discreto)
Æ Fcr =
Vp
1
T
(duty cycle)
(crest factor)
Vef
1
1
N
N
∑v
k =1
2
k
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Pode ocorrer de a literatura utilizar a mesma nomenclatura para diferentes grandezas, sendo
necessária atenção para a definição exata da figura de mérito que se quer analisar. Por exemplo, na
análise da tensão CC presente na saída de um retificador é usual a definição:
Vef
Fator de forma
Æ Ff =
(form factor)
Vcc
Por outro lado, em se tratando das grandezas alternadas (CA), é usual a definição homônima,
que expressa a relação entre os valores eficazes da corrente total (Ii) e o valor eficaz da
componente fundamental da corrente (Ii1): Fator de Forma (da corrente) Æ FFi =
I i1
Ii
Para ondas senoidais e quadradas, as relações mais utilizadas resultam:
Senóide
Quadrada
Vp = 2 .Vef = 1,414.Vef
Vef =
π
2 2
Vabs =
2
π
Vp = Vef = Vabs
Vabs = 1,11.Vabs
Vcc = 0
Fcr = 1
Vp = 0,637.Vp
Vcc = 0
Fcr = 2
1.2 Exemplos de sinais periódicos presentes em conversores eletrônicos de potência
a) Conversor CC/CC
Na análise de conversores eletrônicos, muitas vezes aparece a necessidade de relacionar o
desempenho do circuito em função do ciclo de trabalho. Tomemos como exemplo um conversor
CC-CC chaveado, ideal:
vo(t)
L
T
E
vo(t) C
D
E
R
Vo
Vo
t
t
Τ
Figura 1.2 Conversor abaixador de tensão e forma de onda da tensão sobre o diodo.
on
Apesar da tensão e corrente de saída variarem, interessa saber o valor médio desses valores
para o dimensionamento do conversor. Para o ciclo de trabalho dado teremos a tensão média:
T
V0 =
1
1
v0 (t ) .dt =
∫
T
T 0
∫
t on
0
E. dt +
t
1 T
0. dt = on .E = D.E
∫
T
T ton
Portanto, o conversor CC/CC ideal se comporta como um conversor abaixador de tensão
com relação de transformação dada pelo próprio ciclo de trabalho:
DSCE – FEEC – UNICAMP
2
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V0 t on
=
=D
E
T
0≤ D ≤1
Esse tipo de análise pode ser estendido a circuitos bem mais complexos e mostra como se
pode combinar características básicas (média e ciclo de trabalho) para obter relações de interesse
em aplicações específicas.
B) Ondulação de tensão em retificador
Um retificador de onda completa com filtro de saída, apresenta uma forma de onda típica:
vo
Tc
Vr/2
Vp
Io
C
RL
Td
Vo
Vo
t
T/2
Figura 1.3 Retificador de onda completa com filtro capacitivo e formas de onda no lado CC.
Sendo Tc o tempo de carga e Td o tempo de descarga do capacitor, uma aproximação usual é
considerar o capacitor suficientemente grande (ωCRL>>1) de modo a poder linearizar os trechos
de carga e descarga da tensão de ripple:
Vo = VP -
Vr
2
A tensão de ripple Vr corresponde à variação da carga ΔQc do capacitor durante a carga e a
descarga:
ΔQC
Vr =
C
Considerando que durante a descarga os diodos não estão conduzindo, e assumindo que a
corrente drenada Io pela carga seja constante (Vo>>Vr), teremos:
ΔQC = I 0 .Td
Vr =
I o .Td
C
Para filtragem ideal (ripple desprezível frente a Vo), tem-se que Td Æ
Vr ≅
Io
2 foC
Vo ≅ V p −
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1
.Io
4 f oC
3
T
1
=
, logo:
2 2 f0
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Essa última expressão pode ser analisada como a característica da regulação da ponte
1
retificadora, podendo-se interpretar como resistência interna dessa fonte, o valor Ri =
.
4 f oC
Ri
+
Io
Vp
RL
-
Vo
Figura 1.3. Modelo da ponte retificadora.
1.3 Análise temporal de sistema não-linear
No caso de se conhecer a função não-linear que caracteriza um sistema, pode-se determinar
o conteúdo harmônico que resulta para uma dada excitação periódica, através da análise direta no
domínio do tempo.
Considere-se (sem levar em conta o deslocamento angular1) que a característica de
magnetização de um reator possa ser aproximada por uma função cúbica ou seja, i (t ) = k .v(t ) 3 :
v (t)
i(t)
Figura 1.4 Característica v-i não-linear, tipo saturação magnética.
Se a tensão aplicada for puramente senoidal, ou seja:
v(t) =V1. sen(ω1t)
então a corrente assumirá a forma:
⎡1 1
⎤
i(t) = k V13 sen3(ω1t) = k V13 sen(ω1t).sen2(ω1t) =k V13 sen(ω1t) ⎢ − cos 2ω1t ⎥
⎣2 2
⎦
3
kV
= 1 [sen ω1t − sen ω1t cos 2ω1t ]
2
3
kV ⎡
1
⎛1
⎞⎤
= 1 ⎢sen ω1 − ⎜ sen 3ω1t − sen ω1t ⎟⎥
2 ⎣
2
⎝2
⎠⎦
kV13
=
2
1
⎡3
⎤
⎢ 2 sen ω1t − 2 sen 3ω1t ⎥
⎣
⎦
1
Na verdade a figura 1.4 é válida para a relação entre o fluxo magnético e a corrente. O fluxo, por sua vez, é a integral
da tensão. Como o objetivo é estudar o aparecimento das componentes harmônicas decorrentes da não linearidade, a
defasagem existente entre o fluxo e a tensão (senoidal) não é relevante para a determinação da amplitude das
componentes harmônicas da corrente.
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ou seja, a corrente apresenta 33% de 3º harmônica, com a fase invertida:
Figura 1.5 Formas de onda da corrente decomposta.
1.4 Fator de deslocamento de ondas
Quando, além das tensões (que se mantém com forma aproximadamente senoidal no
sistema elétrico), também se deseja monitorar as correntes, surgem novas grandezas que devem ser
analisadas. Suponha-se que uma fonte senoidal alimenta uma carga através de um conversor nãolinear, resultando as seguintes formas de onda:
Figura 1.6 Corrente em um Reator Controlado por Tiristores (RCT).
Da análise de Fourier é sabido que a corrente periódica i(t) pode ser expressa como uma
série de funções harmônicas, cuja onda fundamental i1 (t) tem a mesma freqüência da tensão
imposta v(t), porém pode estar defasada de um ângulo Φ1
Sabe-se que a potência efetivamente convertida ou ativa é expressa como o valor médio do
produto da tensão pela corrente:
P=
1
T
t +T
∫ v(t ).i(t )dt
t
resultando, em termo dos valores eficazes, que:
P = Vef I i1 cos φ1
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onde φ1 é o ângulo de defasagem entre as ondas de tensão e fundamental da corrente.
A potência aparente, por sua vez, é definida como o produto dos valores eficazes:
S=Vef.Ii
e o fator de potência (FP) é definido como sendo a relação entre as potências ativa e aparente:
FP =
P Vef I i1 cos φ1 I i1
=
=
cos φ1
S
Vef I i
Ii
Para uma tensão senoidal, para que se tenha potência ativa máxima, FP = 1 ou seja, P=S.
Isso implica em duas condições:
i) que não haja distorções de forma de onda (Ii1 = Ii);
ii) que não haja defasagem (φ1 = 0).
Para cargas de ondas de tensão e de corrente senoidais de mesma frequência, a primeira
condição é satisfeita se a tensão de excitação for senoidal, resultando:
FP = cosφ1
O cosφ1 mede o angulo de defasagem entre as ondas fundamentais de tensão e da corrente.
Por essa razão é definido como fator de deslocamento (FD).
No caso de sistemas não-lineares, o FP pode ser menor que 1, mesmo quando a corrente e a
tensão fundamentais estiverem em fase (FD=1), devido à presença de componentes harmônicas
que elevam o valor eficaz sem contribuir para a produção de potência ativa. É o caso de correntes
de arco elétrico, que constituem resistências não-lineares:
Figura 1.7 Formas de onda de tensão e corrente de arco elétrico.
Para estimar o FP nestes casos deve-se usar a definição de fator de potência como a relação
P/S. Da definição de valor eficaz sabe-se que:
Ii =
1
T
∫
T
0
ii2 (t ) .dt
Em termos da série de Fourier, também se pode escrever:
∞
I i = I i21 + ∑ I ih2
h=2
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e, portanto, o valor RMS das componentes distorcivas vale:
I DIS = I i2 − I i21 =
∞
∑I
h=2
2
ih
Define-se como Distorção Harmônica Total da corrente (DHTI) a relação:
DHT I =
⎛ I ih
⎜⎜
∑
h = 2 ⎝ I i1
∞
2
⎞
I
⎟⎟ = DIS
I i1
⎠
Pode-se obter o nível de DHT (sem discriminar cada harmônica) através do cálculo de
valores RMS do sinal, sem a fundamental. Isso requer um filtro elimina faixa (notch) sintonizado
na freqüência da rede, para depois aplicar o cálculo do valor RMS ao sinal residual (ii - ii1 ).
Havendo exclusivamente componentes harmônicos, IDIS=Ires.
1.5 Processamento do fator de distorção no domínio do tempo
Esse algoritmo requer apenas uma rotina para o cálculo de valor eficaz, que pode ser
realizado no domínio do tempo. Na verdade este procedimento calcula a totalidade da distorção,
incluindo o efeito de interharmônicas, caso estejam presentes no sinal.
is(t)
Filtro Notch
1
0
60Hz
+
-
ires(t)=is (t)-is1 (t)
i1 (t)
Cálculo valor
RMS
Cálculo valor
RMS
I1
Ires
Ires
I1
DHTI
Figura 1.8 Algoritmo para estimar a distorção total no domínio do tempo.
A) Estimar o DHT de onda quadrada de tensão:
Sabemos que a amplitude da fundamental de uma onda quadrada unitária vale
V p1 =
4
π
= 1.2732 .
O valor eficaz da fundamental, portanto, vale:
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4
Vef 1 =
2π
=
2 2
π
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= 0.900 .
Por outro lado, o valor eficaz da onda quadrada é dado por:
Vef = Vef21 + ∑Vh2 .
Para uma onda unitária temos:
⎛2 2⎞
⎟ + ∑Vh2
1 = ⎜⎜
⎟
⎝ π ⎠
∑V
2
h
= 1 − 0.81 = 0.19
Assim obtemos o DHT da onda quadrada:
DHT =
1
V1
∑V
2
h
=
0.19
= 0.484
0.90
(48,4%)
B) Considerações sobre o filtro notch
A função de transferência normalizada de um filtro notch de 2º ordem é dada por:
V0
s 2 + 2ξ1ω o s + ω o2
= F ( s) = 2
Vi
s + 2ξ 2ω o s + ω o2
ωo = freqüência natural
ξ1 e ξ2 são os respectivos coeficientes de amortecimento de numerador e denominador.
A profundidade do notch depende da relação
ξ1
ξ
1
. Por exemplo, se 1 =
na freqüência
ξ2
ξ 2 100
de sintonia haverá uma redução de 100 vezes no sinal, ou seja, -40 dB.
Se ξ1=0, a atenuação teórica é infinita. Se ξ2=0, a amplificação teórica de infinita Na
prática, a realização dos filtros, seja ela analógica ou digital, leva a um valor finito de ganho. Ainda
na hipótese de ξ1=0, a banda passante depende exclusivamente de ξ2 e vice-versa. Para valores
muito pequenos de ξ1 isto também é verdade.
A banda passante (ou de rejeição) é dada por:
ω
1
Δω = o ⇒ Q2 =
2ξ 2
Q2
Q = fator de qualidade (seletividade)
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Figura 1.9 Seletividade de filtro notch.
http://www-k.ext.ti.com/SRVS/Data/ti/KnowledgeBases/analog/document/faqs/notch.htm
Assim, se forem especificados os parâmetros acima, pode-se simular diretamente o filtro,
por exemplo, através do MatLab.
Exemplo: Sejam os seguintes parâmetros para o filtro notch
fnotch = 60Hz = 377 rd
s
Q = 10 Î banda de +/- 3 Hz
Ganho em ωο = −60 dB
ω0 = 377 rd
s
Para esses dados, a banda de rejeição é de 37,7 rd/s. Os parâmetros ξ1 e ξ2 são,
respectivamente, (1/20000) e (1/20).
A função de transferência resulta:
⎛ s
F ⎜⎜
⎝ w0
⎞ s 2 + 0.0377.s + 377 2
⎟⎟ = 2
s + 37,7. s + 377 2
⎠
Fora da região do notch a função de transferência apresenta ganho unitário e defasagem
nula.
Para s→0, temos F (
s
ωo
) → 1 ou seja, resulta ganho unitário. Portanto, a função de
transferência acima satisfaz a especificação dada e pode ser simulada diretamente pelo Matlab na
seguinte forma:
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Bode Diagram
0
Magnitude (dB)
-10
-20
-30
-40
-50
-60
90
Phase (deg)
45
0
-45
-90
2
3
10
4
10
10
Frequency (rad/sec)
Figura 1.10 Resposta do filtro notch projetado.
Valores menores de Q (banda maior) levam a um impacto sobre freqüências harmônicas.
Note na figura abaixo que se tem a mesma atenuação mas com banda 10 vezes maior (+/- 30 Hz),
no entanto, o ganho e principalmente a fase na terceira harmônica (1131 rd/s) é muito afetada.
Bode Diagram
0
Magnitude (dB)
-10
-20
-30
-40
-50
-60
90
Phase (deg)
45
0
-45
-90
1
10
2
3
10
10
4
10
Frequency (rad/sec)
Figura 1.11 Resposta de filtro notch com banda mais larga.
A figura a seguir mostra a saída de filtros notch, sintonizados em 60Hz, mas com diferentes
bandas. Na parte superior, tem-se a simples subtração entre a tensão de entrada (quadrada) e sua
fundamental, ou seja, o resultado teórico esperado, sem qualquer erro nas componentes harmônicas
nem atraso na identificação do sinal de saída.
Logo abaixo tem-se a saída com um filtro de banda +/- 1 Hz. Nesse caso tem-se uma
convergência lenta mas que, ao final, reproduz com boa qualidade o sinal desejado.
A seguir tem-se um filtro com banda de +/- 5Hz. Neste caso a resposta é mais rápida mas já
se observa uma alteração nos picos do sinal, o que indica algum impacto sobre o comportamento
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das harmônicas.
Finalmente, no último gráfico, tem-se a resposta com uma banda de +/- 20Hz. A resposta é
rápida, em poucos ciclos. Entretanto, o erro de fase nas harmônicas é significativo, comprometendo
a resposta obtida.
Figura 1.12 Resposta de filtro notch a uma entrada quadrada, eliminando a fundamental. De cima
para baixo: resposta teórica, banda de +/- 1Hz, banda de +/- 5Hz, banda de +/- 20 Hz.
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Capítulo 1 - DSCE