Alfredo Vila-Flor/1964
Claude Santos nasceu em Salvador, no ano de 1953.
Assina ensaios fotográficos e textos em várias
publicações. Participou de mostras como a I Bienal
do Recôncavo (São Félix-BA, 1991) e da Semana
Mundial da Fotografia (Salvador, 1995). Sua
primeira visita a Canudos foi com o pai, Alfredo
Vila-Flor, em 1964 (foto). Em 1986 iniciou o
mapeamento das imagens do pai e registrou o local
do conflito. No ano seguinte, realizou Canudos, um
dos muitos projetos audiovisuais de que tomou parte.
Em 1991, participou do Guia visual do cenário da
Guerra de Canudos (1986/1997). Em 1993
percorreu o interior cearense, pesquisando a vida de
Antônio Vicente Maciel, o Conselheiro. A viagem
resultou no ensaio As andanças de Antônio.
“
– Canudos acabou, moço!...
Estas palavras, ditas por um menino barqueiro numa manhã de junho de 1996 sobre as águas do Lago
de Cocorobó, provocaram-me tamanho desconforto que cheguei a desequilibrar a pequena embarcação. Disfarcei fugindo dos seus olhos castanhos e buscando os perfis das serras que circundam o palco da tragédia sertaneja.
Mas por que o desconforto se ainda menino eu tinha estado na vila, agora adormecida sob os remos
do nosso barco, e, como ele, nada sabia sobre a Guerra de Canudos?
Fora para lá acompanhando meu pai, Alfredo Vila-Flor Santos, em janeiro de 1964. Tinha apenas 10
anos, provavelmente a mesma idade do nosso barqueiro. Entre as pedras da segunda Canudos, vilarejo reconstruído no início do século no mesmo local da Canudos conselheirista, fiquei catando balas com os meninos do povoado. Trouxe algumas. Perdi-as. Se as possuísse, hoje não me orgulharia.
Passamos apenas um dia no arraial. Era uma vila pobre. Não era dia de feira e ficou-me a impressão
de um lugar abandonado, despovoado, esquecido.
Meu pai fotografou as construções da segunda Canudos e o pouco que sobrara da Canudos conselheirista. Anos depois, essas imagens me ajudariam a localizar e mapear a cidadela submersa para um estudo
sobre o cenário da guerra.
Naquela manhã de junho, mal acomodado no assento do pequeno barco, buscava resgatar lembranças de um lugar que, tanto para o menino barqueiro quanto para mim, não existiam mais.
Havia retornado à região em 1986, 22 anos depois da viagem com meu pai, e ainda pouco sabia sobre a guerra. Assustou-me a ausência do vilarejo que conhecera. Fiquei durante muito tempo observando o
cenário, provocado pelo silêncio das serras, o mear longínquo das cabras, a secura dos arbustos, a aspereza do
solo. E aquela vila, onde estaria?
Pouco tempo depois, comecei a estudar Canudos.
Inicialmente li A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa, e produzi o audiovisual Canudos.
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Depois, timidamente, folheei as páginas d’Os sertões. Iniciei-o em ‘A luta’. De ‘A terra’ e ‘O homem’ fiz uma
leitura fragmentada. Entrei n’Os sertões pela porta dos fundos.
Só recentemente retomei a leitura em sua edição original. Antes li os relatos jornalísticos e militares,
estudei os depoimentos dos sobreviventes, os escritos sobre o tema, as imagens de Flávio de Barros e os mapas
e desenhos existentes. Nessa fase de aprofundamento dos estudos, tive a preciosa orientação de José Calasans.
Com o saudoso mestre, me entrincheirei nas ruínas das igrejas de Canudos. Os seus olhos azuis e serenos foram, durante bom tempo, a minha busca diária. Fiquei horas ouvindo-o, silenciosamente, narrar os
episódios canudenses. As fontes históricas eram sempre revisitadas e molestadas com novas indagações. O
nosso ‘Velho Jagunço’, tocaiado entre os mandacarus, macambiras e favelas das veredas que levavam ao Belo
Monte, não se rendia facilmente.
Homem bom, justo e generoso, José Calasans não só narrava o que sabia, mas, principalmente, expunha as suas dúvidas, nos envolvendo em seu vigoroso processo investigativo.
Conheci o professor na Nova Canudos em 1991, mas só fui procurá-lo em 1994. Na época, havia lido o Rei dos jagunços, de Manoel Benício, e estava intrigado com a existência ou não de Joanna Imaginária,
mulher mística e santeira que alguns cronistas relatam ter sido companheira, no Ceará, de Antônio Vicente
Mendes Maciel, mais tarde Antônio Conselheiro. Tiveram um filho batizado com o nome de Joaquim Aprígio. Quem teria sido aquela mulher? Que influência exercera na vida do líder espiritual do Belo Monte? O
nosso bom mestre tinha dúvidas.
Poucos meses antes de estar com Calasans, conheci Antônio Fernandes Mendes Maciel, cearense de
Quixeramobim, parente de Antônio Vicente, que me contou ter visto em 1963, numa casinha na serra do
Machado, em Santa Madalena, Ceará, uma bela imagem de Nossa Senhora das Dores. Antônio Fernandes
fora para lá trabalhar como auxiliar de topógrafo e pedira água a uma senhora conhecida como Dona Pequena, parteira da região. Interessou-se pela imagem e perguntou quem a tinha esculpido. Dona Pequena disselhe que fora Joanna Imaginária.
Desenhava-se aí a possibilidade de uma grande aventura. Será que encontraria aquela imagem?
Com o apoio da Universidade do Vale do Acaraú, no município cearense de Sobral, viajei pelos lugares onde Antônio Vicente vivera, fotografando e buscando notícias dele e de Joanna.
Na época, alunos da universidade tinham localizado o ferreiro e mecânico Joaquim Aprígio Filho, seu
Quincas, neto de Joanna Batista de Lima, Joanna Imaginária, e Antônio Vicente Mendes Maciel. Fui conhecê-lo em Guaraciaba do Norte, antiga Campo Grande. Deu-me notícias esparsas de sua avó. Disse-me apenas
que ela tinha migrado no início do século para o Piauí e que seu pai, Joaquim Aprígio, falecera em 1933.
Não encontrei a imagem que procurava, mas produzi um ensaio fotográfico sobre as andanças de Antônio Vicente em sua terra natal e o audiovisual Rascunhos de Joanna.
Com Joanna Imaginária busquei os personagens da vida de Antônio Vicente. Seguindo os seus passos no Ceará, quis conhecê-lo antes de se embrenhar pelos sertões e fundar o Império do Belo Monte, agora
silenciosamente adormecido sobre as remadas, lentas e compassadas do nosso barqueiro.
Depois de 1991 voltei ao sertão de Canudos muitas vezes. Fotografei moradores da região e, principalmente, locais que mapeei com a ajuda das imagens feitas por meu pai, em 1964, e das produzidas por Flá48
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vio de Barros no final da guerra. Estudei também as fotografias de Jair Dantas, que documentou em 1968 as
ruínas da segunda Canudos, um ano antes se serem fechadas as comportas do Açude de Cocorobó.
Nessa ocasião, comecei a desenvolver o projeto Guia visual do cenário da Guerra de Canudos, que tem
como principal objetivo reconstituir o palco da refrega sertaneja, tendo como fonte, além das imagens, os relatos dos participantes da guerra.
Essas investigações ajudaram a esclarecer equívocos cristalizados durante anos, como a real posição
do Alto da Favela, antes confundido com o Alto do Mário.
Com o desenvolvimento do projeto, uma das intensões era conhecer os pontos de visão dos narradores da guerra. Entre eles, Euclides da Cunha. De que locações Euclides via a cidadela? Onde estava quando
fez os desenhos publicados na Caderneta de campo? De onde observou o combate de 1º. de outubro, marco
da sua reavaliação do conflito, registrada em reportagem para o jornal O Estado de S.Paulo? E a fotografia das
prisioneiras, de Flávio de Barros, publicada já na primeira edição d’Os sertões, em que local teria sido feita?
As perguntas eram muitas. E os estudos sugeriam algumas respostas. Apenas sugeriam. Era fundamental localizar as principais edificações da cidadela. E, naquela manhã de junho de 1996, sobre as águas do
lago de Cocorobó, que secava lentamente, buscava alguma indicação que me ajudasse a localizá-las.
Pouco tempo antes, surgiram na superfície do lago algumas arcadas internas da igreja da segunda Canudos. Essa construção aparece como fundo numa fotografia feita por meu pai, retratando Manoel Ernesto
dos Santos (Manoelzão), afilhado de Antônio Conselheiro, sobre as pedras da Igreja Nova da Canudos conselheirista. Olhando a imagem, eu tinha uma remota noção do posicionamento das ruínas do antigo arraial
em relação à vila reconstruída no início do século. Mas era preciso mais.
Numa outra manhã daquele mesmo ano, voltei ao lago, dessa vez sem o meu amigo barqueiro. De
longe, vi uma pequena construção que começava a emergir. Fomos até ela. Estendendo o corpo para fora do
barco, estirei o braço na água e corri a mão para conhecer sua forma. Era abaulada.
Estava alí o pedestal do cruzeiro da igreja de Santo Antônio, a Igreja Velha conselheirista, a única edificação que sobrevivera às ordens militares de não ficar pedra sobre pedra.
Sabendo a sua posição, cruzando as informações dos relatos e imagens, já me era possível localizar o
arraial. E responder àquelas inúmeras perguntas.
O lago continuou baixando. E, em 1997, no centenário da tragédia sertaneja, pude caminhar sobre
as pedras das igrejas construídas por Antônio Conselheiro.
Durante o lento esvaziamento, acompanhamos o surgimento de uma construção um pouco afastada da vila. Era um belo e singelo cemitério. As suas lápides estavam intactas. Nunca o vira em nenhuma
fotografia. Perguntei sobre ele aos antigos moradores do povoado que conheci em 1964. Disseram-me que
fora edificado no início do século, quando sobreviventes da Canudos dizimada voltaram e reconstruíram
o vilarejo.
Antes das águas do açude do Cocorobó voltarem a subir, destruíram as suas tumbas em busca de ouro. Arruinou-se a única construção que sobrevivera à inundação de 1969 e entrelaçava os tempos canudenses.
Hoje, como disse no início, estou lendo Os sertões na sua edição original pela primeira vez. Provavelmente surgirão novas dúvidas. Canudos não acabou.
”
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Claude Santos - Editora Globo