A Problemática da Verdade e a Legitimidade Subjetiva do Direito: uma breve análise da
dogmática jurídica na pós-modernidade
Rodrigo Ferlin Saccomani dos Reis
A P R O B L E M ÁT I C A D A V E R D AD E E A L E G I T I M AÇ ÃO S U B J E T I VA
DO DIREITO: Uma breve análise da dogmática jurídica na pósmodernidade.1
T H E P R O B L E M O F T R U T H A N D T H E S U B J E C T I V E L E G I T I M AT I O N
O F L AW : A b r i e f a n a l y s i s o f l e g a l d o g m a t i c i n p o s t m o d e r n i t y
Rodrigo Ferlin Saccomani dos Reis
R E S U M O : To m a n d o p o r b a s e a p r o b l e m á t i c a d e M i c h e l F o u c a u l t
a c e r c a d o P o d e r e d a Ve r d a d e , r e a l i z a - s e u m a a n á l i s e d a
evolução do saber jurídico de caráter dogmático, explicitando a
transição entre a dogmática fundada em valores sociais universais
de justiça e sua crescente tecnização, tal como apontada por
T é r c i o S a m p a i o F e r r a z J r. A m e t o d o l o g i a e m p r e g a d a c o n s i s t e n a
análise minuciosa da literatura foucaultiana e no confronto de
suas
conclusões
com
as
noções
da
teoria
dogmática
c o n t e m p o r â n e a t a l c o m o f o r n e c i d a s p o r T é r c i o S a m p a i o F e r r a z J r.
e Luis Alberto Warat, para que, assim, possam-se identificar os
problemas que o direito enfrenta para se afirmar legítimo perante
uma sociedade com progressivo esvaziamento de valores e
instituições.
A
conclusão
à
qual
se
chega,
no
atual
desenvolvimento da pesquisa, é que a neutralidade da técnica
jurídica, como fundamento para a justiça das decisões,
possibilitando uma justiça de caráter formal, não basta para
atender à ânsia social pela materialidade da justiça. A questão se
agrava, quando se atenta para o fato de que o valor de justiça se
torna relativo, adquirindo um caráter diferente para diferentes
grupos e indivíduos.
1
Rodrigo Ferlin Saccomani dos Reis, Advogado, mestrando em Filosofia e
Te o r i a G e r a l d o D i r e i t o p e l a P o n t i f í c i a U n i v e r s i d a d e C a t ó l i c a d e S ã o
Paulo, orientando do professor Márcio Alves da Fonseca. Currículo Lattes
disponível em
h t t p : / / b u s c a t e x t u a l . c n p q . b r / b u s c a t e x t u a l / v i s u a l i z a c v. d o ? i d = K 8 1 5 7 7 6 8 J 5
ATHENAS
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dogmática jurídica na pós-modernidade
Rodrigo Ferlin Saccomani dos Reis
PAL AV R AS
C H AV E :
Michel
Foucault.
Filosofia
do
Direito.
Ve r d a d e . P o d e r. P ó s - M o d e r n i d a d e . J u s t i ç a .
A B S T R AC T: B a s e d o n M i c h e l F o u c a u l t ´ s p r o b l e m a t i c o n P o w e r
a n d Tr u t h , a n a n a l y s i s o f t h e e v o l u t i o n o f d o g m a t i c k n o w l e d g e o f
law is carried out, explaining the transition between a dogmatic
founded on universal values of justice, as such values are
u n d e r s t a n d b y e a c h s o c i e t y, a n d t h e i n c r e a s i n g t e c h n i c i z a t i o n o f
d o g m a t i c k n o w l e d g e o f l a w, a s p o i n t e d b y T é r c i o S a m p a i o F e r r á z
J r. R e s e a r c h m e t o d o l o g y c o n s i s t s i n c a r e f u l r e a d i n g a n d
interpretation of Foucault´s literature, confronting its conclusions
w i t h n o t i o n s o f c o n t e m p o r a r y ´ s d o g m a t i c o f c o n t i n e n t a l l a w, a s
explained by Tércio Sampaio Ferraz Jr and Luis Alberto Warat, as
to identify the challenges faced by law to be subjectively
legitimized by a society characterized by the progressive deflation
of values and institutions. The conclusion that can be achieved in
research´s current development, is that the neutrality of legal
technique as a basis for the justice of decisions is not enough to
meet society´s longing for materiality of justice. This issue is
aggravated when one pays attention to the fact that justice
becomes a relative value, wich receive different meanings to
different groups and individuals.
K e yw o r d s : M i c h e l F o u c a u l t . P h i l o s o p h y o f L a w. Tr u t h . P o w e r.
P o s t - M o d e r n S o c i e t y. J u s t i c e .
1. Introdução
Michel Foucault, filósofo francês, morto precocemente
em 1984, é considerado um dos pensadores mais importantes do
século
XX.
Ao
longo
de
sua
vasta
produção
acadêmica,
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compreendida não apenas por livros publicados, mas também por
inúmeras entrevistas, conferências, e até mesmo da transcrição
das aulas ministradas no Collége de France, instituição na qual
lecionou
de
1970
até
poucos
meses
antes
de
sua
morte,
o
pensador aborda temas de grande importância para a filosofia e
para demais outros saberes, tais como o conhecimento, a verdade
e , s e m d ú v i d a s , c o m m a i o r n o t o r i e d a d e o P o d e r.
Ainda
que
o
filósofo
nunca
tenha
feito
do
direito,
propriamente, um objeto de sua pesquisa, utilizando-o mais como
um modelo para demonstrar fenômenos que superavam as práticas
jurídicas e davam os contornos da sociedade como um todo, a
potência
de
seu
pensamento
ressoa
em
diversos
temas
importantes para o direito.
Desta forma, neste trabalho, pretendemos utilizar dois
temas
amplamente
analisados
pelo
pensamento
de
Foucault,
Ve r d a d e e P o d e r, p a r a t e c e r o b s e r v a ç õ e s a c e r c a d o s a b e r j u r í d i c o
contemporâneo e, consequentemente, também sobre as práticas
que a este estão vinculadas.
Em
nossa
análise,
aplicaremos
a
problemática
foucaultiana acerca da verdade e do poder às modernas noções
da dogmática jurídica, tal como estas são abordadas por Tércio
S a m p a i o F e r r á z J r. e L u i s A l b e r t o W a r a t , d e m o d o a s e t r a ç a r u m a
imagem da dogmática jurídica na pós-modernidade.
2 . A Ve r d a d e
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Segundo a tradição clássica da filosofia ocidental, o
problema da verdade é uma questão que afeta o homem desde a
sua origem. Buscar a verdade, querer saber como as coisas são,
querer conhecer, é um dos instintos do intelecto humano.
Conhecer a verdade torna-se o mesmo que desvendar a
realidade essencial das coisas. Esta relação entre verdade e
realidade se encontra expressa na famosa máxima aristotélica
(ARISTÓTELES, 1973, p.107): “Dizer daquilo que é que não é, ou
daquilo que não é que é, é falso, enquanto dizer daquilo que é
que é, ou daquilo que não é que não é, é verdadeiro.”
Claro que esta aproximação entre verdade e realidade
faz-se relativa na história do pensamento tradicional. Desde uma
correspondência entre verdade e realidade, tal como a concepção
do próprio Aristóteles, até um ponto de convergência entre vários
discursos
no
identificação
caminho
foge
ao
para
uma
intelecto
verdade
humano,
tal
derradeira
como
vemos
cuja
no
pensamento de Charles S. Peirce.
Em uma série de conferências proferidas na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro no ano de 1973, as quais
d e r a m o r i g e m a o l i v r o A Ve r d a d e e a s F o r m a s J u r í d i c a s , M i c h e l
Foucault dedicou grande parte de sua fala, na primeira destas
conferências, para tratar a questão da verdade e do conhecimento
tal como ela aparece no pensamento de Nietzsche.
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Segundo Foucault,
Em Nietzsche, parece-me, encontramos efetivamente um
tipo de discurso em que se faz a análise histórica da
própria
formação
do
sujeito,
a
análise
histórica
do
n a s c i m e n t o d e u m c e r t o t i p o d e s a b e r, s e m n u n c a a d m i t i r
a
preexistência
de
um
sujeito
de
conhecimento.
( F O U C A U LT, 2 0 1 3 B , p . 2 2 ) .
Na interpretação que Foucault (Idem, p.24) nos fornece
do pensamento de Nietzsche, o conhecimento, antes de ser uma
ferramenta
para
revelar
e
sistematizar
a
realidade,
é
uma
invenção dos homens, não restando “em absoluto inscrito na
natureza humana” (Idem, p.25).
A relação entre o conhecimento e os instintos não é de
identificação, como se o conhecimento fosse mais um instinto
entre
os
outros,
mas
é
uma
relação
de
produto.
Isto
é,
o
conhecimento é o produto resultante “do jogo, do afrontamento, da
junção, da luta e do compromisso entre os instintos” (Idem).
Reafirmando Nietzsche, Foucault dirá que o conhecimento é “como
'uma centelha entre duas espadas', mas que não é do mesmo ferro
que as duas espadas” (Idem, p.26).
Esta
relação
entre
instintos
e
conhecimento
torna
impossível realizar a dedução analítica do conhecimento a partir
de
uma
espécie
de
derivação
natural.
O
conhecimento,
para
Nietzsche e, consequentemente, para Foucault, é a um só tempo
contra instintivo e contranatural (Idem).
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Diante
desta
perspectiva,
somos
inevitavelmente
levados a uma pergunta: Se o conhecimento não possui uma
relação de continuidade para com o mundo ou mesmo para com a
natureza humana, tal como propunha, por exemplo, Descartes ou
mesmo Kant (Idem, p.27), quais mecanismos epistemológicos dão
ao
conhecimento
a
forma
que
ele
tem
para
nós
e,
derradeiramente, o que faz com que o conhecimento, notadamente
o conhecimento científico, se constitua como verdade?
Ora, Foucault assinala que nem sempre as coisas se
deram dessa forma. Isto é, houve um tempo em que a verdade se
encontrava
desvinculada
do
conhecimento
ta l
como
o
compreendemos hoje,
Porque,
nos
poetas
gregos
do
século
VI,
o
discurso
verdadeiro – no sentido forte e valorizado do termo – o
d i s c u r s o v e r d a d e i r o p e l o q u a l s e t i n h a r e s p e i t o e t e r r o r,
aquele
ao
qual
era
preciso
submeter-se,
porque
ele
reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito
e
conforme
o
ritual
requerido;
era
o
discurso
que
pronunciava a justiça e atribuía a cada qual sua parte;
era o discurso que, profetizando o futuro, não somente
a n u n c i a v a o q u e i a s e p a s s a r, m a s c o n t r i b u í a p a r a a s u a
realização, provocava
a adesão dos os
homens
e se
t r a m a v a a s s i m c o m o d e s t i n o . ( F O U C A U LT, 2 0 1 3 A , p . 1 4 )
Neste caso, a verdade dá-se como um acontecimento,
ela surge de um ato de criação, uma força positiva que irrompe no
mundo e o transforma. No entanto
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chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato
ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio
enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua
relação a referência.(Idem, p.15)
A verdade se estabelece então como a demonstração da
realidade, deixa de ser um acontecimento, afasta-se do exercício
do poder político, e passa a repousar na contemplação e na
memória.
Segundo Foucault, a partir deste momento,
O ocidente vai ser dominado pelo grande mito de que a
verdade
nunca
pertence
ao
poder
político,
de
que
o
poder político é cego, de que o verdadeiro saber é o que
se possui quando se está em contato com os deuses ou
nos recordamos das coisas, quando olhamos o grande sol
eterno ou abrimos os olhos para o que se passou. Com
Platão, se inicia um grande mito ocidental: o de que há
a n t i n o m i a e n t r e s a b e r e p o d e r . S e h á o s a b e r, é p r e c i s o
q u e e l e r e n u n c i e a o p o d e r. O n d e s e e n c o n t r a s a b e r e
ciência em sua verdade pura, não pode mais haver pode
p o l í t i c o . ( F O U C A U LT, 2 0 1 3 B , p . 5 6 )
Foucault fala em mito, pois, como abordará em A Ordem
do Discurso, as regras que operam a divisão entre verdadeiro e
f a l s o , a q u i l o q u e o f i l ó s o f o c h a m a r á d e Vo n t a d e d e Ve r d a d e ,
atuam como um sistema de exclusão discursiva, capaz de conjurar
os poderes e os perigos do discurso, como podemos ver na
seguinte passagem:
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Certamente,
proposição,
no
se
nos
interior
situamos
de
um
no
nível
discurso,
a
de
uma
separação
entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem
modificável,
nem
violenta.
Mas
se
nos
situarmos
em
outra escala, se levantamos a questão de saber qual foi,
qual
é
constantemente,
através
de
nossos
discursos,
essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos
de nossa história, ou qual é, em sua forma muito geral, o
t i p o d e s e p a r a ç ã o q u e r e g e n o s s a v o n t a d e d e s a b e r,
então
é
talvez
algo
como
um
sistema
de
exclusão
(sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que
v e m o s d e s e n h a r - s e . ( F O U C A U LT, 2 0 1 3 A , p . 1 3 - 1 4 )
Ora, quando a verdade passa a ser concebida como
demonstração do real, a vontade de verdade resta ocultada pela
p róp ria ve rdade, ta l como o filó sofo e xpõe na se gu inte citação :
O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma
l i b e r t a d o d e s e j o e l i b e r a d o p o d e r, n ã o p o d e r e c o n h e c e r
a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de
verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é
tal
que
a
verdade
que
ela
quer
não
pode
deixar
de
mascará-la.(Idem, p.19)
A o s e s e p a r a r a v e r d a d e d o p o d e r, o c u l t a - s e a v o n t a d e
de verdade, afinal, como reconhecer jogos de poder em uma
verdade que ao referir-se apenas a si mesma, cuja capacidade de
ser proferida está ao alcance de todos aqueles que se dispõem a
pesquisá-la, e não apenas de alguns poucos que exercem o poder
político, torna-se imune a qualquer poder?
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Em
certa medida,
podemos dizer
que
reconhecer a
vontade de verdade é invalidar a verdade a partir de suas próprias
regras.
É
torná-la
novamente
um
acontecimento,
pois
somos
levados ao seguinte questionamento:
se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde
os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que
e x e r c e o p o d e r, n a v o n t a d e d e v e r d a d e , n a v o n t a d e d e
dizer
esse
discurso
verdadeiro,
o
que
está
em
jogo,
senão o desejo e o poder?(Idem)
Antes
de
aplicarmos
a
problemática
da
verdade
foucaultiana ao saber jurírido, acreditamos necessário abordar um
outro tema que interessa diretamente ao direito e que, para
F o u c a u l t , e n c o n t r a - s e e s t r e i t a m e n t e v i n c u l a d o à v e r d a d e , o p o d e r.
3 . O P o d e r.
N o p e n s a m e n t o d e F o u c a u l t , Ve r d a d e e P o d e r c o m p õ e m
um binômio quase indissociável, afinal, como expomos na seção
a n t e r i o r, e n q u a n t o a v e r d a d e é r e c o r t a d a p e l o p o d e r, a o m e s m o
t e m p o , e l a e x e r c e p o d e r.
Para esclarecer esta problemática, recorre-se ao que se
chama,
usualmente,
de
relação
Saber-Poder
em
Foucault.
O
f i l ó s o f o ( 2 0 1 2 , p . 2 8 9 ) p r o b l e m a t i z a q u e , p o r u m l a d o , o s a b e r,
como
uma
forma
de
se
organizar
a
verdade,
serve
como
j u s t i f i c a t i v a p a r a o e x e r c í c i o d o p o d e r, e n q u a n t o , p o r o u t r o l a d o , o
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exercício do poder cria as condições necessárias para que o saber
se forme.
A partir destas considerações preliminares, podemos
c o m e ç a r a t r a ç a r a l g u m a s c a r a c t e r í s t i c a s d o p o d e r, t a l c o m o
o b s e r v a d a s p o r F o u c a u l t . E m p r i m e i r o l u g a r, e t a l v e z e s t a s e j a
uma de suas principais características, o poder não possui um
caráter unicamente repressivo, na verdade, sua função principal é
produtiva, de saberes, de comportamentos, de sujeitos (Idem,
p.276).
Da mesma forma, o poder não pode ser pensado a partir
de relações econômicas e patrimoniais, o poder não é algo que se
possui, que se adquire, que se aliena, o poder só existe enquanto
é exercido (Idem, 272-274).
Foucault concebe o poder como algo que se exerce não
a partir de instituições centralizadas, mas sim de capilaridades,
d a s r e l a ç õ e s c o t i d i a n a s e n t r e o s i n d i v í d u o s . O p o d e r, p o r t a n t o ,
não pode ser esquematizado a partir do modelo da pirâmide, mas
sim como uma rede que atravessa os indivíduos(Idem, p.282).
N e s t a r e l a ç ã o , o s i n d i v í d u o s n ã o s ã o o o u t r o d o p o d e r, n ã o s ã o o
objeto sob o qual se impõe a sua dominação, mas são eles
m e s m o s i n s t r u m e n t o s d o e x e r c í c i o d o p o d e r, d e s u a a m p l i f i c a ç ã o
ou despotencialização (Idem, p.284).
Num primeiro momento, parece que Foucault rejeita
completamente as concepções da tradição política clássica, no
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e n t a n t o , o q u e e l e a r g u m e n t a é q u e e s t a n o ç ã o d e p o d e r, p a u t a d a
n a s o b e r a n i a d o E s t a d o c o m o f o n t e d a q u a l e m a n a o p o d e r, f a z - s e
incompleta para compreender toda a complexidade das relações
de poder em nossas sociedades.
O filósofo fará uma inversão do Leviatã de Hobbes que,
faz-se a
coagulação de individualidades separadas, unidas por um
conjunto de elementos constitutivos do Estado: mas no
c o r a ç ã o d o E s t a d o , o u m e l h o r, e m s u a c a b e ç a , e x i s t e
algo que o constitui como tal e este algo é a soberania,
que Hobbes diz ser precisamente a alma do Leviatã.
(Idem)
Para Foucault (Idem, p.291), o poder não emana da
alma do Leviatã, mas dos corpos, periféricos e múltiplos, que o
compõem. Sendo assim, invés de pensar o poder a partir da lógica
da soberania, ele buscará analisá-lo a partir das relações destes
c o r p o s e x t e r n o s , r e l a ç õ e s e s t a s q u e , c o m p r e e n d e o a u t o r, s e d ã o
no âmbito da disciplina. (Idem)
Estamos então diante de dois conceitos amplamente
discutidos
por
conforme
temos
tradição
da
Foucault,
exposto,
ciência
Soberania
o
política,
primeiro
tanto
e
Disciplina,
traduz
de
o
matriz
sendo
modo
liberal
que,
como
a
quanto
m a r x i s t a , a b o r d a o f u n c i o n a m e n t o d o p o d e r.
Soberania e Disciplina são formas pelas quais o poder
se organiza, e o autor destaca o período transcorrido entre os
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séculos XVII e XVIII, como ponto para invenção da mecânica de
p o d e r q u e r e s t a i d e n t i f i c a d a c o m o P o d e r d i s c i p l i n a r. M e c â n i c a ,
esta, completamente incompatível com a relação súdito-soberano,
que é a única relação de poder observada pela soberania. (Idem,
p.290)
Ainda
assim,
a soberania persiste
como
teoria
que
sustenta a organização da ciência política e, sobretudo do direito
e seus códigos, segundo Foucault, isto ocorre por dois motivos.
E m p r i m e i r o l u g a r, p o i s f o i j u s t a m e n t e a s o b e r a n i a , e m p r e g a d a
com um instrumento de crítica permanente contra os mandos e
desmandos
do
soberano,
que
afastou
todos
os
obstáculos
à
formação da sociedade disciplinar (Idem, p.292). Em segundo
l u g a r,
a
teoria
da
soberania,
aliada
a
formação
de
códigos
jurídicos nela fundados, oculta os procedimentos de dominação do
poder
d i s c i p l i n a r,
democratização
na
da
medida
soberania,
em
a
que
qual
só
o
direito
pode
se
opera
fixar
a
mais
profundamente através da coerção disciplinar (Idem).
A soberania resta então como uma máscara para o
p o d e r d i s c i p l i n a r, n a m e d i d a e m q u e e l a c o n s t i t u i a p r ó p r i a f o r m a
a q u a l c o m u m e n t e a t r i b u í m o s a o p o d e r. E s t e p r o c e d i m e n t o d e
ocultação
nos
remete
à
relação
s i m i l a r,
anteriormente
estabelecida, entre a verdade e a vontade de verdade.
4. O Saber sobre o Direito.
O
saber
jurídico
possui
uma
característica
que
o
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A Problemática da Verdade e a Legitimidade Subjetiva do Direito: uma breve análise da
dogmática jurídica na pós-modernidade
Rodrigo Ferlin Saccomani dos Reis
diferencia de alguns saberes científicos, sobretudo aquelas de
caráter empírico, tais como, por exemplo a física ou a química.
Ora, enquanto estes saberes empíricos, ao observarem
os
fenômenos
da
natureza,
reorganizando-os
linguisticamente,
possuem uma função informativa. Isto é, em termos gerais, dizem
como seus objetos são. O saber jurídico, não apenas informa
como são seus objetos, mas também os conformam, ou seja, diz
c o m o e s t e s o b j e t o s d e v e m s e r. P o d e m o s o b s e r v a r e s t a c o n c l u s ã o
n a o b r a , j á c i t a d a , d o p r o f e s s o r T é r c i o S a m p a i o F e r r a z j r, q u a n d o
aborda a diferença entre a transformação das definições na Física
e no Direito.
No caso do físico, a definição é superada porque se
tornou falsa. No caso do jurista, porque deixou de ser
atuante. Ou seja, as definições da física, em geral, são
lexicais, as do jurista são redefinições. Nesse sentido,
se diz também que a ciência jurídica não apenas informa,
mas também conforma o fenômeno que estuda, faz parte
dele. A posse é não apenas o que é socialmente, mas
também
como
é
interpretada
pela
doutrina
jurídica.
(FERRAZ JÚNIOR, 2013, p.17)
D e s t a f o r m a , o p r o f e s s o r T é r c i o S a m p a i o F e r r á z J r.
divide o saber jurídico em dois enfoques teóricos, o zetético e o
dogmático, os quais trabalham justamente privilegiando cada uma
estas funções, informativa e diretiva, respectivamente.
Segundo ele,
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no enfoque zetético predomina a função informativa da
linguagem.
Já
no
enfoque
dogmático,
a
função
informativa combina-se com a diretiva e esta cresce ali
em importâncias.
(Idem, p.19)
Assim, a chamada zetética jurídica se caracteriza pela
possibilidade
de
questionamento
de
todos
os
objetos
do
conhecimento. Mesmo que se adote premissas como pontos de
partidas,
estas
podem
vir
a
ser
descartadas
caso
tornem-se
inadequadas aos critérios de determinada analítica.
Via de regra, as
âmbito
filosofia,
de
ciências
ciência
como
política,
investigações zetéticas partem do
a
e
sociologia,
etc.,
que,
psicologia,
enquanto
história,
não
sejam
propriamente ciências jurídicas, possuem campos dedicados ao
estudo do fenômeno jurídico.
Por outro lado, a dogmática jurídica, como ressoa no
próprio
nome,
caracteriza-se
pela
adoção
de
dogmas
inquestionáveis, sem os quais a ação torna-se impossível. No
caso, estes dogmas tomam substância no ordenamento jurídico.
Tércio Sampaio diz que as dogmáticas são regidas pelo
que ele denomina princípio da não negação dos pontos de partida
de séries argumentativas, e dirá que podermos encontrar um
exemplo de premissa do mesmo gênero no
princípio da legalidade, inscrito na Constituição, e que
obriga o jurista a pensar os problemas comportamentais
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com base na lei, conforme à lei, para além da lei, mas
nunca contra a lei.
Entretanto,
adverte
que
o
o
(Idem, p.25)
referido
conhecimento
jusfilósofo
dogmático
(Idem,
não
p.26)
trabalha
nos
com
as
certezas que circundam os dogmas, mas sim com suas incertezas.
Isto é, a dogmática não pode negar os dogmas, mas isso não quer
dizer que deva apenas repeti-los e afirmá-los, mas sim, confrontálos com questionamentos, a fim de que sejam desenhados os seus
contornos.
Assim, não basta, para uma análise dogmática, que se
constante a existência e vigência de determinada lei, por exemplo,
mas sim buscar os significados que podem ser extraídos de sua
interpretação,
sobretudo
dentro
do
contexto
do
ordenamento
jurídico.
O professor Tércio (Idem, p.65) ressalta, ainda, que o
que
as
questões
correlação
zetéticas
funcional,
representado
pela
e
através
zetética,
dogmáticas
de
e
uma
dever
encontram-se
transição
ser,
em
entre
ser,
representado
pela
dogmática. Sendo assim, a distinção entre ambas cumpre uma
função muito mais didático teórica do que, propriamente, prática.
Ainda
assim,
o
autor
atenta
(Idem,
p.25),
tem-se
notado, ao menos nos últimos 100 anos, a preponderância do
enfoque dogmático na formação acadêmica dos juristas, os quais
têm sido direcionados para uma especialização cada vez mais
centrada e fechada, de modo que se encontrem capacitados a
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solucionar toda a sorte de problemas que venham a surgir no
interior das dogmáticas.
5. O Direito e a Justiça.
É, precisamente, a adoção dos dogmas que possibilita
ao direito solucionar os conflitos jurídicos sem, no entanto, abalar
as estruturas sociais. Os dogmas operam como uma verdade
p r é v i a q u e o j u r i s t a n ã o d e v e i g n o r a r. D e s t a f o r m a , i m p e d e m , q u e
a
prática
jurídica
potencialmente
se
infinitas,
perca
limitando
em
o
questões
escopo
e
a
metafísicas
abrangência
potencial das questões dogmáticas.
Os dogmas, entretanto, ao mesmo tempo que servem de
diretrizes para o saber jurídico, são também objetos deste e,
conforme já expomos anteriormente, os enunciados da ciência
jurídica não possuem apenas função informativa, mas também
diretiva.
Já nos referimos à mudança na forma da vontade de
verdade,
tal
como
problematizada
por
Foucault.
Ora,
uma
a l t e r a ç ã o s i m i l a r, a c o n t e c e t a m b é m n o s t a t u s d o s d o g m a s c o m o
v e r d a d e p a r a o d i r e i t o . N o j á c i t a d o , A Ve r d a d e e a s F o r m a s
Jurídicas, o filósofo aborda
a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os
danos
e
as
responsabilidades,
o modo
pelo
qual, na
história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira
como os homens podiam ser julgados em função dos
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erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a
determinados indivíduos a reparação de algumas de suas
ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se
quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas
também modificadas sem cessar através da história – me
parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade
definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por
conseguinte, relações entre o homem e a verdade que
m e r e c e m s e r e s t u d a d a s . ( F O U C A U LT, 2 0 1 3 B , p . 2 1 )
Ou seja, de maneira resumida, Foucault preocupa-se
em analisar a transformação nas regras para formação da verdade
nos procedimentos judiciais, observando como, de maneira geral,
elas eram expressões do modo como se organizava a vontade de
verdade em cada momento histórico, partindo do “juramento entre
guerreiros” do período Homérico (Idem, p.39), passando pelo
embrião do será o inquérito presente em Édipo-Rei (Idem, p.46),
pelas diferentes formas da prova(épreuve) medieval (Idem, p.62),
bem como a retomada do uso do inquérito, primeiramente pela
igreja
medieval,
centralizadas,
bem
e
depois
como
todo
pelas
o
primeiras
aparelho
monarquias
judicial
que
o
acompanhou (Idem, p.68-75), chegando aos contornos gerais da
sociedade disciplinar a partir da “reforma, a reorganização do
sistema judiciário e penal nos diferentes países da Europa e do
mundo” (Idem, p.81).
O que se observa, ao longo deste processo, é que
sempre
houve
uma
preocupação
de
que
a
sentença
judicial
manifestasse a verdade, entretanto, quando a verdade era tida
como um acontecimento, não era necessário demonstrar esta
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relação,
ela
era
pressuposta.
Quando
se
torna
necessário
demonstrar a relação entre a verdade e a realidade, a relação
e n t r e o a t o d e p o d e r, q u e é a s e n t e n ç a , e a v e r d a d e d e v e ,
necessariamente, ser demonstrada. Acreditamos que um processo
semelhante ocorre com a relação entre os dogmas e a justiça.
As análises históricas do fenômeno jurídico ocidental,
frequentemente,
referem-se
transição
do
direito,
como
um
fenômeno ético de ordem sagrada, para um fenômeno técnico e
racional.
Ora, os dogmas capacitam-se como verdade para o
direito
ao
vincularem-se
aos
valores
que,
em
cada
época,
transmitem aquilo que é percebido como fonte da justiça.
Conforme esclarece o professor Tércio Sampaio Ferraz
J r.
em
Roma
(FERRAZ
JÚNIOR,
2013,
p.32),
os
dogmas
atrelavam-se a fundação contínua da cidade, vista como um ato
sagrado,
através
da
auctoritas,
para
o
Direito
Medieval,
os
dogmas manifestavam, em última instância, a vontade divina.
O
direito,
Adquiriu,
assim,
não
porém,
perdeu
uma
seu
dimensão
caráter
de
sagrado.
sacralidade
transcendente, pois de origem externa à vida humana na
Te r r a ,
diferente
(caráter
sagrado
da
–
dos
romanos,
mítico
–
da
que
era
imanente
fundação).
(FERRAZ
JÚNIOR, p.38)
Para a Era Moderna, os dogmas vinculavam-se ao ideal
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de racionalidade humana definitiva da qual o direito natural seria
a
expressão no campo da conduta humana, assim, a ciência do
direito se transforma
Numa teoria que devia legitimar-se perante a razão por
meio
da
exatidão
proposições,
o
metodológica
lógica
direito
especial.
da
concatenação
conquista
A
redução
uma
das
de
suas
dignidade
proposições
a
relações lógicas é pressuposto óbvio da formulação de
leis naturais, universalmente válidas, a que se agrega o
postulado
antropológico
que
vê
no
homem
não
um
cidadão da cidade de Deus, ou, como no século XIX, do
mundo histórico, mas um ser natural, um elemento de um
mundo concebido segundo leis naturais. (Idem, p.43)
A
era
moderna
marca
o
início
do
processo
de
positivação do direito. Isto é, o direito passa a ser identificado
como as normas escritas postas pelo Estado, organizadas em um
sistema que é, por princípio e necessidade, completo, coerente e
hierarquizado. Assim
o
direito
sagrado.
irá
E
progressivamente
a dessacralização
correspondente
equivalente
perder
tecnização
perda
de
seu
do
do
seu
caráter
direito significará a
saber
caráter
jurídico
ético,
que
e
a
a
Era
Medieval cultuara e conservara. (Idem, p.41)
A partir do século XIX, o direito se consolida como a
norma escrita, posta pela vontade do Estado, o que “ao mesmo
tempo
em
que
aumenta
a
segurança
e
a
precisão
de
seu
entendimento, aguça também a consciência dos limites”(Idem,
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p.48). O direito, enquanto norma posta, precisa transformar-se
constantemente para se adequar a sociedade, e o saber jurídico
permanece relevante pois, para a consciência da época, o direito
muda historicamente (Idem, p.51).
Em
resumo,
aquilo
que
a
razão
representou
para
os
jusnaturalistas passou a ser substituído pelo fenômeno
histórico.
Surgiu,
assim,
dessa
exigência
de
uma
fundamentação da mutabilidade do direito, a moderna
Dogmática. (Idem, p.53)
Ao
desvincular o
direito
de
valores ético,
a positivação
favorece também a sua abstração. Desta forma,
a ciência dogmática, sendo abstração de abstração, vai
preocupar-se de modo cada vez mais preponderante com
a função de suas próprias classificações, com a natureza
jurídica de seus próprios conceitos.(Idem,
p.55)
Estas últimas transformações, iniciadas no século XIX,
marcam,
sem
grandes
variações,
o
modo
como
a
ciência
dogmática compreenderá o seu objeto, o direito posto e dado
previamente,
um conjunto compacto de normas, instituições e decisões
q u e l h e c o m p e t e s i s t e m a t i z a r, i n t e r p r e t a r e d i r e c i o n a r,
tendo
em
vista
uma
tarefa
prática
de
solução
de
possíveis conflitos que ocorrem socialmente. O jurista
contemporâneo preocupa-se, assim, com o direito que
ele postula ser um todo coerente, relativamente preciso
em
suas
determinações,
orientado
para
uma
ordem
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finalista,
que
protege
a
todos
indistintamente.(Idem,
p.57)
Ve m o s ,
então,
que
a
racionalização
do
direito
representa, também, o afastamento entre a dogmática e a justiça.
Conforme expõe o professor Tércio
A ciência dogmática, na atualidade, não deixa de ser um
saber
prático.
Mas
com
uma
diferença
importante.
Enquanto para os antigos o saber prático, por exemplo,
a
romana,
jurisprudência
verdade,
visto
verdadeiro
no
que
era
campo
do
não
um
estava
saber
útil,
do
apartada
que
justo,
da
produzia
o
do
a
belo,
tecnologia moderna deixa de nascer de uma verdade
contemplada
H e i d e g g e r,
pela
de
ciência,
uma
surgindo
“exigência”
antes,
posta
pelo
como
homem
diz
à
natureza para esta entregar-lhe sua energia acumulada.
Assim,
a
tecnologia
dogmática,
ao
contrário
da
jurisprudência romana, torna-se uma provocação, uma
interpelação da vida social, para extrair dela o máximo
q u e e l a p o s s a d a r. A t e c n o l o g i a j u r í d i c a a t u a l f o r ç a a
vida
social,
ocultando-a,
ao
manipulá-la.
Diante
da
natureza das coisas. (Idem, p.60-61)
Assim, da mesma maneira que o século V a.C. marcou a
separação entre a verdade e o exercício do poder político na
problemática foucaultiana, o processo de racionalização, iniciado
na modernidade, marca a separação entre o direito e a justiça.
A ordem jurídica não representa mais, necessariamente,
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a justiça e, por isso, deve constantemente provar-se justa para
manter sua legitimidade.
A erosão de tradições culturais em nome da prioridade
da
eficiência
técnica
gera,
assim,
uma
necessidade
crônica de legitimação do direito e do saber jurídico em
termos de ordem justa. (Idem, p.331)
Neste
contexto,
os
dogmas
se
caracterizam
menos
como verdade, e mais como elementos do que Luis Alberto Warat
chama senso comum teórico dos juristas. Uma vez que
Trata-s e de um pano de f undo que c ondic iona todas as
atividades cotidianas. Sem ele não pode existir prática
jurídica, isto é, não se tem como produzir decisões ou
s i g n i f i c a d o s s o c i a l m e n t e l e g i t i m á v e i s . ( W A R AT, p . 1 9 7 9 ,
p.19)
C o n f o r m e p o d e m o s o b s e r v a r, a c r i s e d e l e g i t i m i d a d e d o
direito
não
funcionalidade
implica,
técnica.
necessariamente,
Conforme
coloca
uma
crise
o
professor
de
sua
Tércio
S a m p a i o F e r r a z J r. ( 2 0 1 3 , p . 3 4 0 ) , “ é p o s s í v e l à s v e z e s , a o h o m e m
e à sociedade, cujo sentido de justiça se perdeu, ainda assim
sobreviver com seu direito”.
O que esta situação parece nos mostrar é, o direito não
p o d e s e r c o m p r e e n d i d o , a p e n a s , c o m o e x p r e s s ã o o u a t o d o p o d e r,
uma vez que não é por seu império que ele resta legitimado. Ele
é, antes, atravessado pelo poder disciplinar ou, para conjurar uma
imagem mais didática, é mais um campo em que se dão as
d i s p u t a s d o p o d e r.
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Um saber sobre o direito, enquanto se propõe também
como
uma
verdade
sobre
o
mesmo,
não
poderá
nunca
ser
l i b e r t a d o d o p o d e r, v i s t o q u e , c o m o F o u c a u l t ( 2 0 1 2 , p . 5 4 ) d e i x a
claro, a “própria verdade é poder”.
Entretanto, um saber sobre o direito,
que pretenda
legitimá-lo, na mesma medida em que o informa e conforma, deve
ter o poder de sua verdade desvinculado das formas hegemônicas
que permeiam nossa sociedade ou, inevitavelmente, permanecerá
puro arbítrio.
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W A R AT, L u í s A l b e r t o . M i t o s e Te o r i a s n a I n t e r p r e ta ç ã o d a L e i .
Edição Única. Porto Alegre: Síntese, 1979.
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