Artigo de opinião
(Por Lúcio Neto Amado)
Título: Diagnóstico psicanalítico da sociedade São-tomense.
(Parte I)
A ideia de fazer um diagnóstico remete-nos, geralmente, para um rastreio de
qualquer coisa, palpável e de alguma consistência material ou espiritual.
Tratando-se de um rastreio psicanalítico de uma sociedade com as características
da insular República (democrática) de São Tomé e Príncipe, ficamos na expectativa, devido
ao facto de se estar a fazer uma autêntica radiografia do comportamento dos indivíduos,
de grupos de indivíduos, no fundo, estaremos perante uma parte significativa dos
habitantes destas maravilhosas ilhas.
Umas ilhas que, vibram e fazem uma grande festa ao receber (órgãos de
soberania, incluído) o presidente de um clube de futebol europeu e, quase que ignora a
participação de um clube local – Sporting da Praia Cruz – que brilha na Liga dos Clubes
Campeões Africanos em futebol, ganhando uma partida, na eliminatória realizada no
sexagenário Estádio Nacional 12 de Julho.
Umas ilhas que, ganham medalhas desportivas na modalidade de Canoagem, na
competição directa com países «poderosos» do nosso continente e ninguém1, quase
ninguém, diz nada.
Umas ilhas que, são badaladas pela imprensa internacional, nomeadamente os
Estados Unidos de América, a Grã-Bretanha, a Itália, a Espanha, sobre as potencialidades
turísticas que representam as suas paisagens.
Umas ilhas (Príncipe) que, são declaradas Reserva Mundial da Biosfera, pela
UNESCO.
A psicanálise, cujos primeiros estudos datam de 1882, é uma teoria de
investigação médica que estuda a mente humana, baseada em estudos desenvolvidos por
Freud2, um médico austríaco.
Pensamos escalpelizar de uma forma cirúrgica esta nossa sociedade, a partir de
uma “fotografia” cuja máquina, ainda funciona com rolos e flash dos tempos, em que
estes apetrechos faziam parte da dita. O recurso e a alusão a essa máquina – surgidas no
tempo dos nossos pais e dos nossos avós – da época do inventor francês Niépce3 ilustra de
facto a fórmula que procuramos para falar da nossa sociedade, que umas vezes, é
retratada pelas lentes de máquinas contemporâneas (fotografias a cores) e outras vezes,
pelas lentes antigas (fotografias a preto e branco).
1
No final do ano (2013) a imprensa local fez a resenha do que de mais importante tinha ocorrido nesses 12 meses.
Silêncio completo. Não foi feita qualquer referência a este grande acontecimento desportivo. Pelo contrário, a imprensa
internacional (sobretudo os países que integram a CPLP) falou bastante.
2
Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico neurologista, de origem judaica, que fundou a Psicanálise. Ele nasceu em
Freiburg no dia 6 de Maio e faleceu em Londres a 23 de Setembro.
3
A primeira fotografia a que se tem registo, feita a preto e branco, remonta ao século XIX, mas concretamente ao ano
de 1826. O feito foi atribuído ao inventor francês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833).
1
Mas isso não tem qualquer relevância, metaforicamente falando. O que conta
mesmo é o produto final, independentemente das lentes e da máquina em que ela está
inserida.
Quando falamos do produto final, queremos de facto significar e mostrar a
transparência da imagem que é transmitida. É, justamente, dessa transparência de
imagem transmitida à sociedade, ou seja, os comportamentos, as atitudes, ou a falta
delas, que passaremos a falar.
Para melhor sistematização da nossa radiografia, dividimos essa abordagem em
duas partes distintas: a primeira parte versa a instituição Família e a segunda tem a ver
com a Sociedade no seu todo.
1.) FAMÍLIA
Comecemos a nossa análise por esta instituição, considerada por muitos como a
mais antiga de todas.
As instituições, que constituem o sustentáculo de qualquer sociedade, estão
fortemente abaladas, no nosso país.
Começando pela instituição que constitui, por excelência, o pilar central das
sociedades – a Família – notamos a olhos nus que ela está numa autêntica encruzilhada.
Esta abordagem é feita também a pensar no processo de socialização que abrange outras
áreas que funcionam numa engrenagem única.
Até há relativamente pouco tempo, os São-tomenses, quando se saudavam na rua;
nos becos; nas esquinas e, noutros locais, como sendo nas festas particulares e espaços
afins, tinham a preocupação de perguntar de que família, o indivíduo era.
Ainda assim, mesmo que não o fizessem, olhavam para um indivíduo e, mediante a
sua postura, diziam de imediato: este indivíduo parece ser de uma boa família.
Queremos significar com estas breves passagens que a instituição Família
consegue resistir, apesar de tudo, a essa hecatombe que parece arrastar fenómenos que
mexem com o nosso comportamento. Desde logo, a perspectiva ética e moral, tal como
vêm nos compêndios deixam-nos atónitos em relação à quantidade de coisas que vemos
no nosso quotidiano.
Crianças
Muitos adultos teimam em ignorar os mina anzu 4 ou minu kêtê5. Para além do
abandono a que muitas crianças estão votadas, desde que são concebidas até ao
nascimento, passando pelo percurso de desenvolvimento, grande parte delas não é
perfilhada pelo pai biológico. A situação da criança é bastante complicada, cá no nosso
país.
Consta que tem havido situações preocupantes, aqui e ali com algumas crianças
(dos zero aos três anos) do nosso país. A ser verdade, as autoridades deverão envidar
esforços no sentido de «atacar» o problema, criando leis ou agravando a punição aos
“predadores”, sejam eles familiares ou outros.
4
5
Mina anzu na língua Forro, quer dizer criança.
Minu kêtê, língua do Príncipe (Minu’iyé). Significa o mesmo: criança.
2
A necessidade de se projectar o número de crianças que em determinado ano, é
suposto nascer, deve constar dos instrumentos estatísticos. Isto porque, continuam a
existir crianças que parecem ficar de fora, no acto da matrícula, nos infantários/creches.
Ainda existem polos de alunos que abandonam a Escola na 3ª e na 4ª classe. O insucesso
escolar e as possíveis causas desse fenómeno deverão entrar, também nessa estatística.
Independentemente de tudo isso, os pais e os encarregados da educação devem ser,
também responsabilizados.
Perfilhar/registar e frequentar a escola, é um processo que tem a ver com o direito
da criança. É necessário criar-se condições mínimas de existência e de felicidade6 para as
nossas crianças.
Jovens
Os jovens não têm o mesmo tratamento na sociedade. Os do sexo masculino são,
em certa medida, «idolatrados» desde que nascem até ao dia em que encomendam a
alma ao Criador. Em São Tomé e Príncipe, não se dá palmadas aos miúdos porque
prejudica. Mas isso são crenças populares, logo, admitimos que poderão ter alguma
sustentação (?).
Os do sexo feminino têm a vida mais complicada, dada a provável distribuição de
tarefas e o papel que é atribuído ao homem e à mulher, nas várias sociedades. Este é o
problema de igualdade do género de que se houve falar quase todos os dias na nossa
comunicação social.
Uma parte significativa de jovens vive a vida há uma velocidade vertiginosa, pois
muitos deles não vislumbram, nem a curto, nem a médio prazos uma saída que lhes
garanta um futuro, que se quer risonho. Muitos, depois de adquirirem formação média e
ou/superiores, no estrangeiro, regressam ao país e vêm-se bloqueados no concernente ao
acesso a um emprego que lhes garanta os meios de sobrevivência.
As meninas têm uma vida altamente traumatizante. A gravidez precoce campeia e,
o recurso ao aborto é uma prática corrente. Só que, as coisas nem sempre correm bem.
Jerusalene F., residente nos arredores da cidade capital, morreu, antes de
completar os 13 anos. Ela não chegou a conhecer a mãe, pois a mesma morreu de parto,
aos treze anos de idade quando a Jerusalene F., nasceu.
A história conta-se em poucas palavras. Jerusalene F., vivia com uma avó, ainda
nova (37 anos é a idade dessa avó). A avó ia visitar assiduamente o amante, pernoitando
em casa deste. A menina ficava em casa com os tios que tinham comportamentos pouco
recomendáveis. Desconfia-se na zona que ela terá sido vítima de violação por parte de um
tio que a obrigou a desfazer a gravidez, ameaçando-a, se contasse a história a alguém de
fora. As coisas deram para o torto.
A menina foi ao rio lavar roupa, tendo apanhado, ao que parece, o tétano. Morreu,
praticamente com a mesma idade com que a mãe falecera. Os vizinhos inicialmente
acreditaram na versão da família que dizia que as almas teriam levado a menina por ela
6
“A felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância. E por isso que a riqueza contribui em tão pequena
medida para ela. O dinheiro não é objecto de um desejo infantil”. Frase atribuída ao médico neurologista Sigmund
Freud, cerca de 1898.
3
ter «devido»7 na outra encarnação. O veredicto final veio de uma enfermeira que seguiu
todas as peripécias da menina, que tinha corpo de mulher…
Na ilha vizinha do Príncipe, a Y. Sanches de doze anos; no norte do país Aline B., de
treze anos, no sul da ilha de São Tomé, Simanoura T., de onze anos e, nos outros locais do
país não especificados, os dramas dessas meninas, feitas mulheres a força, conduz-lhes à
morte, incógnitas no silêncio de um, qualquer vão de escada. Aquelas que «escapam»
vivem traumatizadas para toda a vida. Passam de crianças para adultas, sem fazerem um
tirocínio nessa bela fase da vida que se chama adolescência. Uma autêntica crueldade dos
adultos em geral.
A criação de instituições estatais de recolha e acompanhamento de menores em
risco e de jovens adultos impõem-se com premência. Actualmente um menor de quinze
anos embora cometa um crime grave fica impune.
Os adultos
A vida não é muito fácil para grande parte dos adultos. Quer sejam do sexo
masculino ou feminino. A luta pela sobrevivência não lhes dá tempo para pensarem o
futuro. Grande parte deles desconhece a palavra poupança. Aquilo que auferem ao fim do
mês, não lhes permite essa veleidade.
Os idosos
Vivem uma vida pouco consentânea para indivíduos que trabalharam a vida
inteira. Alguns são inapelavelmente, atirados para os asilos (Lar de idosos) e lá morrem
esquecidos, como se indigentes se tratassem. Carregam consigo um estigma: por causa
dos cabelos brancos, alguns são chamados feiticeiros. Esse é o primeiro passo para serem
espancados e por vezes assassinados de uma forma que roça a barbárie.
Os portadores de deficiência
Estes são considerados não “cidadãos”, tal como na Antiga Grécia. Vivem na
obscuridade sem qualquer tipo de apoio. O motivo desse abandono passa, aparentemente
pelo desconhecimento, pela crença popular, por ignorância, ou outra causa que ainda não
conseguimos descortinar.
Os doentes mentais
Vivem completamente abandonados nas ruas da cidade. É provável que não
constem em qualquer círculo eleitoral, nem tão pouco estejam registados na secção
psiquiátrica dos dois únicos hospitais do país.
Todas estas categorias de indivíduos aqui referenciadas, só são «acarinhadas»
aquando da aproximação da campanha eleitoral. Essa campanha eleitoral do nosso
7
É um acto que ainda se pratica na enraizada tradição São-tomense. Chama-se Págá Dêvê.
4
contentamento, sustentado por um sistema político8 pronto-a-vestir que é imposto aos
países com as nossas características. A contextualização desse sistema político é como as
palavras. Leva-as o vento…
Escolas
Saindo da família, mas permanecendo na área de outros prolongamentos da
socialização do indivíduo, entramos pelas salas de aulas e notamos que a situação
continua periclitante. Os agentes de ensino estão permanentemente a reivindicar,
melhores condições de trabalho, ou seja, salas de aulas com menos alunos, giz, mini
bibliotecas, manuais escolares, casas de banho para os alunos (sobretudo para as
meninas) uma reprografia para fazer fotocópias.
Os professores, de acordo com os manifestos por eles publicitados, pedem que
lhes sejam pagos salários que lhes permita, no limite… sobreviver. Querem que haja
escalonamento da carreira e o acesso ao complemento de formação em exercício. O
concurso público e a posterior colocação nas escolas que deverá, obedecer a um critério
transparente, objectivo e sem recurso a subterfúgios como a cunha (partidária, religiosa,
familiar, amigos…).
As cantinas deverão fazer parte da “estrutura” escolar.
Três disciplinas precisam ser encaradas mais a «sério». Falamos da Educação
Física, da Educação Visual e da Educação Musical. Acrescente-se também a Educação para
a Cidadania e a Introdução à Ciência Política, introduzidas, respectivamente nos
currículos, a primeira, a partir da 7ª Classe e a segunda, na 11ª Classe.
A segurança nas escolas não deverá ser, em circunstância nenhuma, descurada.
Continua a haver situações pouco dignas, de humilhação e de espancamento dentro do
recinto da escola. Os actores desses actos inqualificáveis e cobardes são alguns indivíduos
que envergam uniformes e, que entram principalmente para escolas da cidade capital,
descontraidamente, sem que ninguém lhes tolha os passos. As vítimas são os alunos do
sexo masculino do principal Liceu.
Saúde
A nossa Saúde está, gravemente “enferma”. Ela padece de males que já não se
usam em quase parte alguma.
Um hospital não é propriamente um local de lazer para onde os indivíduos vão
desfrutar de um fim-de-semana de «sonhos». Quando o cidadão procura os serviços de
um hospital é porque está mal de saúde, está doente.
A crónica falta de água corrente, de uma maternidade digna desse nome, de uma
pediatria minimamente apetrechada, de um bloco operatório, de um Banco de Urgências,
de remédios, de camas com lençóis, etc., faz com que, dificilmente, o cidadão comum leve
a sério, quem governe.
Mas, também se deve interrogar qual o destino dos remédios, que é suposto as
entidades da Saúde importam. E os remédios em forma de donativos que, por vezes
8
Esse sistema político foi até 1990/91, de natureza Socialista/Comunista. Posteriormente, a partir de 1991, passou ao
sistema político Democrático.
5
vemos indivíduos das Unidades Hospitalares receberem de organizações internacionais,
através dos órgãos de comunicação social?
Crie-se um estatuto de carreira para os profissionais de saúde, dando formação
contínua, dando mais dignidade, pagando um salário digno. Esses profissionais fazem, por
vezes, milagres nos nossos Hospitais.
A situação do hospital da ilha do Príncipe é muito mais grave, do ponto de vista de
funcionamento, de apetrechamento e de atendimento.
Os nossos compatriotas, de uma maneira geral, vivem constantemente com o
«credo na boca» para não… adoecerem.
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