Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
Construindo uma história invisível
Denise Maria Hudson de Oliveira1
Entre os contos de A noite escura mais eu,2 de Lygia Fagundes Telles,
consta “Uma branca sombra pálida”, que ousa tratar de uma realidade que
a sociedade se recusa a ver. Em meio à fumaça e à dissimulação textual é
que a narradora realça sua história.
Lygia possui linguagem inquieta e uma sensibilidade ímpar para
colher da realidade, e do lado mais tormentoso da vida, sua inspiração para
criar e para escrever de forma consciente. Quando publicou A noite escura
mais eu, já possuía outras obras, mas esta, para Caio F. Abreu, por exemplo,
é talvez a sua obra prima pelo domínio da linguagem, pela densidade das
histórias dos contos e pelo poder estilístico.
Analisar criticamente uma obra de Telles é sempre instigante, ainda
mais em forma de conto, gênero em que se destaca. Tal gênero possui
uma teoria rica e de difícil definição, chega a ser intraduzível. Cortázar
(1974, p. 150-151) a respeito de conto, diz que ele “se move nesse plano do
homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha
fraternal [...]; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese
viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada”. Diz que só por meio de
imagens “se pode transmitir essa alquimia secreta, que explica a profunda
ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também por
que há tão poucos contos verdadeiramente grandes”.
Sintetizar um conto moderno é algo intricado, que encontra um
problema técnico, conforme Piglia diz: “Como contar uma história enquanto
se está contando outra?” (2004, p. 125). Em um conto há uma história
sendo contada (a aparente) e a que é contada nas entrelinhas (a oculta),
a que toma vulto, independentemente da vontade do autor; nos pontos de
1 Mestre em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília. E-mail: dehudson@
gmail.com
2 A noite escura mais eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
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cruzamento dessas histórias está sua base. “Uma branca sombra pálida”
apresenta uma vida sintetizada; possui uma abertura para muito além
de suas linhas; e pode ser representado por uma bolha de sabão, por sua
independência e leveza ainda que diante do trágico.
Quinze anos após a publicação da obra, cremos que a temática é
atualíssima, apenas mais visível. Além do lesbianismo, há expressão de
homofobia, hoje agravada pelo neoliberalismo e que vem sendo cada vez
mais aparente na sociedade. Porém, há uma sucessão de acontecimentos
no Brasil e na América Latina que demonstram a existência de muitos e
graves conflitos.
A narradora conta-nos ter ido naquele dia ao cemitério e de longe
ter visto as rosas vermelhas lá depositadas por Oriana. Esta é amiga de
Gina, a filha da narradora, que é quem está morta. A mãe escreve sobre a
vida familiar e sobre a amizade desta com Oriana, dando a ver uma vida de
desencontros e ciúmes. Sobre as amigas e diante de tudo (ou do nada) que
vê no dia a dia há suspeita de que se trata de uma relação íntima. Numa
noite, faz uma imposição dura à filha dizendo que ela deveria escolher: ou
ela (mãe) ou Oriana; Gina então, na mesma noite, comete o suicídio. Eis a
síntese do conto em tela.
O título é tão branquelo quanto a narrativa. Ele se refere ao título
da música (“de drogados”, como diz a mãe) A Whiter Shade of Pale, que
as amigas ouvem muito. A tradução do título é o nome do conto, cuja
imagem lembra a da palidez da falecida Gina e toda essa brancura pode
ser percebida. A autora faz inúmeras menções a: alma, fumaça de cigarro,
a rosas brancas, a algodão, a quarto branco, a saia branca, à borboleta
de desenhos prateados, ao papel cinza-prateado da floricultura, ao leite
no pires e enfim, a tons claros. Soma-se ainda a tudo isso a visão de Gina
por seu pai: “Minha filhinha é de vidro” (p. 135). O que destoa e contrasta
de toda essa transparência são as rosas vermelhas que Oriana tem por
hábito levar para Gina, além da gravata preta do pai e a roupa preta da
mãe. Tal branquidão está longe de remeter o leitor ao sentimento de paz. O
que se faz presente é a nebulosidade, como dando a ver que os fatos, suas
razões e consequências, ficaram encobertos numa névoa, remetendo-nos à
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desordem humana tão presente no conto. Para a narradora, Oriana, claro,
também destoa, perturba e provoca a desordem. Ela e a morte.
Nebulosidades
Em relação à intimidade entre as duas garotas não há fatos. Temse acesso apenas à consciência da mãe; portanto, a suposta relação das
amigas não é confirmada. Essa questão(-chave?) e outras ficam obscuras
no decorrer da narrativa, enquanto a mãe levanta suas hipóteses: “A porta
trancada e o toca-discos no auge, parece que a coisa só engrenava com
fundo musical [...] Eu podia colar o ouvido na parede e só ouvia a cantoria da
negrada se retorcendo de aflição e gozo” (p. 134). Notemos o tom maldoso e
o indício dito en passant de duplo preconceito. A narradora coloca em cheque
as suas próprias palavras. “Bons sonhos, querida, devo ter dito quando já
estava na porta e agora já não sei se disse isso ou se pensei enquanto segui
firme pelo corredor” (p. 137). Como a filha morreu, essa dúvida de ter dito ou
não “bons sonhos, querida” ganha uma importância especial à mãe. Uma
ironia trágica ou um carinho que ela gostaria de ter dito nesse final de vida?
Ela reconhece ter sido “firme”, embora sem que exale, à primeira vista, algum
tipo de arrependimento por isso. Mas seu sentimento de culpa aflora.
A mãe não sabe por que teve o rompante de falar com fúria à filha,
sem conseguir “segurar as palavras”; acha que se apoiou numa mesa para
não cair, etc. Em seu monólogo diz até não saber por que Gina escolheu
um domingo de Páscoa para se matar, o que é sarcástico. As dúvidas,
portanto, pairam no texto. Abrindo aqui um parêntese, Piglia (2004) nota
que essa é uma característica do conto moderno: tem-se uma estrutura
tal no conto que as tensões são trabalhadas sem que se resolvam. Neste,
a tensão se dá por vários recursos e a narradora-testemunha contribui
justo por ajudar a criar a atmosfera nebulosa, para mostrar o que está
invisível e que deve ficar invisível a fim de não perturbar ninguém. Falar
de homossexualismo há 15 anos, certamente era bem mais difícil. Trata-se
de assunto não resolvido na sociedade brasileira, tanto que neste século
XXI os homossexuais ainda se ressentem de toda a rejeição, preconceito,
intolerância e violência. A situação da mulher lésbica nos anos 1980 e 1990,
segundo dados do movimento organizado, era de uma forte opressão. Expor
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tal opção à sociedade era enfrentar consequências cotidianas em todas
as esferas porque a lésbica era tida como marginal. No ano seguinte à
publicação de A noite escura mais eu – não que tenha sido em consequência
disso, evidente – aconteceu em São Paulo o I Seminário Nacional de
Lésbicas, ocasião em que as militantes definiram o dia 29 de agosto para
a “comemoração” do Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, movimento que
se propôs mostrar à sociedade um fato social real que ela não queria deixar
aparecer. Eleger um dia nacional é fato comum às minorias que precisam
utilizar desse recurso para criar oportunidade de lançar ações coletivas
que dêem visibilidade à luta e de apresentar bandeiras necessárias ao
reconhecimento da existência do grupo. No decorrer das décadas citadas,
o movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais) ficou
fortaleceu impulsionado por uma série de fatores, porém não se trata de
uma condição aceita passivamente pela sociedade mais recente. É de se
registrar que de 1963 a 2001 aconteceram 2.092 homicídios homofóbicos
(MOTT, 2007, p. 13), conforme dados foram coletados pelo Grupo Gay
da Bahia que se empenha nisso desde sua fundação. O assassinato de
homossexuais está longe de ser a única forma de agressão a eles, ou a
única expressão de homofobia. A agressão vem da rua e da própria família,
como acontece no presente conto.
O que é lamentável, de acordo com Pinto-Bailey (1999), é que a
crítica (não apenas a brasileira) não tem dado o devido reconhecimento à
literatura com tal temática, vindo a reproduzir literariamente o que ocorre
nas sociedades.
No Brasil e, de modo geral, na América Latina, a existência
de uma tradição lesbiana na literatura de autoria feminina
não tem sido reconhecida pela crítica [...] A razão para
a suposta ausência dessa tradição é o tabu que ainda
cerca as relações homossexuais na América Latina, e a
conseqüente censura e autocensura que impediriam a
expressão do lesbianismo na literatura de mulheres.
O tabu atinge críticos e leitores. Muitos têm receio até de escrever
sobre o assunto e ser tido como homossexual, como se falar do tema fosse
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“comprometedor”. A propósito disso e indo além, aquela teórica faz a
seguinte constatação:
Se a expressão dessa experiência erótica feminina chega
a ser tão problemática, a representação da sexualidade
lesbiana o é ainda mais, pois rompe com as relações
dominantes de gênero, ao excluir a figura do homem e
colocar a mulher em uma posição de sujeito atuante, em
vez do papel tradicional de objeto do desejo masculino.
Assim, o desejo lesbiano na obra de escritoras brasileiras
não só representa uma dimensão importante da
sexualidade feminina, como também serve para expor e
questionar o controle social sobre a sexualidade e o corpo
femininos.
E quanto ao leitor, é preciso que ele possua um discernimento tal que
o permita ler a ambiguidade do texto e retirar a homossexualidade feminina
da marginalidade literária, ou seja, da pornografia. Eis então uma abertura
fundamental dessa obra de Telles.
“Ou ela ou eu”
O discurso é feito em primeira pessoa, por uma narradora-testemunha,
que narra da periferia; seu ângulo de visão é restrito e suspeito. Fatos
familiares vão surgindo, tais como o bom relacionamento entre pai e filha; a
recomendação do pai no sentido de dar mais liberdade à menina; a morte do
pai; o interesse de Gina por Letras, após conhecer Oriana, etc. Acontece da
seguinte forma a breve, dura e fatídica conversa da mãe com a filha:
[...] acho que me apoiei na mesa para não cair. Mas
ainda me pergunta?! Falo dessa relação nojenta de vocês
duas e que não é novidade para mais ninguém, porque
está se fazendo de tonta? Não vão mesmo parar com
essa farsa? Seria mais honesto abrir logo esse jogo, vai
Gina, me responde agora, não seria mais honesto? Mais
limpo? [...] Cruzei os braços com força porque eram os
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meus dentes que agora batiam. Levantei a voz mas falei
devagar. A escolha é sua, Gina. Ou ela ou eu, você vai
saber escolher, não vai? Ou fica com ela ou fica comigo,
repeti e fui saindo sem pressa. (p. 137)
A filha nesse momento cultiva as plantas, cortando os caules. Em
instantes cortará sua própria vida. O suicídio de Gina revela coragem e
fragilidade; além disso, é um gesto que desestabiliza a situação e a própria
mãe, cujo perfil é o de uma mulher racional, aparentemente avessa a
sentimentalismos: “Ah, mamãe, mamãe! ficou repetindo agarrada em mim.
Ela sabe que não gosto de beijos, nem tentou me beijar mas apenas me
abraçava” (p. 138).
Essas características ajudam a justificar sua atitude para com a
filha. E no final da história, numa sutileza não surpreendente, dá vazão
ao seu real e novo sentimento. Ela agora prejulga Oriana e expressa sua
revolta só de imaginar que um dia Oriana encontrará outra pessoa e deixará
de homenagear Gina (ou de amá-la): “Até quando Oriana vai se empenhar
comigo nessa polêmica? [...] logo vai conhecer outra, é evidente”. E conclui:
“Ao lado das suas rosas ressequidas ficarão apenas as minhas rosas
brancas. Difícil explicar, mas quando isso acontecer, esta será para mim a
sua maior traição” (p. 142).
A observação confessada de que o sentimento que brotou da
narradora é de difícil explicação não é bem uma verdade. Lembrando o que
José Saramago observou, segundo Fucks, de que na narrativa de Telles
“a palavra final irá tornar redondo, completo, imenso de sentido”, o trecho
recém-citado, que é o final do conto, dá todo sentido à história, consegue
fechar um círculo e completar os sentidos de tudo o que foi contado.
Dissimulando o trágico
Tudo no conto está interligado: a ironia, a calma aparente, a
dissimulação... São todos elementos que ajudam a narradora a construir
uma duvidosa lógica: a de que ela, mãe, não tem culpa pela tragédia que
aconteceu, e que nada foi assim tão grave. Ajudam a reproduzir na ficção
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o que se dá no mundo. Para exemplificar: “Bem, Gina, você se matou, se
pirulitou, como diz sua amiga, ela gosta desse verbo, pirulitar. Desertou do
corpo mas está lúcida, certo? [...] Você parecia tão feliz lá no seu quarto”
(p. 132). E ainda: “A respiração de Oriana foi se acelerando cada vez mais
[...] Não aconteceu, não é verdade! [...], Aconteceu sim, minha querida. Aí
está a sua amiguinha abarrotada de pílulas, ela não era a sua amiguinha?”
(p. 140).
Os fatos como são narrados perdem a real importância que tiveram
e são contados com uma naturalidade que até incomoda. De um lado, a
evidência de um desajuste familiar, de atitudes equivocadas, etc.; de outro,
a banalidade, o descaso para com as mesmas situações e tentativas de
não mostrar nada abertamente. De acordo com Bourdieu, a questão da
dissimulação dá-se de forma previsível, como ele observa:
A forma particular de dominação simbólica de que são
vítimas os homossexuais, marcados por um estigma
que, à diferença da cor da pele ou da feminilidade,
pode ser ocultado (ou exibido), impõe-se através de
atos coletivos de categorização que dão margem a
diferenças significativas, negativamente marcadas, e
com isso a grupos ou categorias sociais estigmatizadas.
Como em certos tipos de racismo, ela assume, no caso,
a forma de uma negação da sua existência pública,
visível. A opressão como forma de “invisibilização”
traduz uma recusa à existência legítima, pública, isto é,
conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por
uma estigmatização que só aparece de forma realmente
declarada quando o movimento reivindica a visibilidade.
Alega-se, então, explicitamente, a “discrição” ou a
dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se
impor (2007, p. 143-144).
O suicídio de Gina, por exemplo, reforça a invisibilidade e a narradora
explora a dissimulação. Num trecho, a uma borboleta, a narradora diz: “Foi
acidente? Não, minha bela, respondo e sopro devagar a fumaça do cigarro
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na sua direção, foi suicídio” (p. 132). Nem parece que o defunto é sua própria
filha, e que talvez “viv(esse) envergonhadamente” (expressão de Bourdieu)
com a provável descoberta por sua mãe. Vítima da sociedade burguesa
e machista, Gina recebe justo de sua mãe a mais dura das imposições:
escolher entre ela ou Oriana. É difícil crer que a narradora não sentisse
culpa pelo que provocou, salientando que ela própria é fruto de seu meio e
reage de acordo com ele.
Há repetições que mostram a aflição da mãe, como o vício do cigarro:
“Acendo outro cigarro [...] Leio a advertência no maço, Fumar É Prejudicial
à Saúde. Mais prejudicial do que o cigarro é a memória, digo baixinho” (p.
141). Tal afirmação é quase confissão da consciência pesada a que nos
referimos. A narradora privilegia-se por meio de um diário em que se faz
indagações e afirmações. Fernandes (1996, p. 138), ao tratar do aspecto
do desequilíbrio entre personagens, o que favorece o narrador, acrescenta
que este, em primeira pessoa “é reservado porque interroga – a si mesmo, o
passado, o meio que o cerca”. Isso encontramos desde o início do conto.
Contando as coisas a seu modo, ao terminar de fazer sua imposição
a Gina, recolhe-se: “Peguei o tricô e varei a noite acordada, mas em nenhum
momento me ocorreu que além das duas saídas que lhe ofereci, havia uma
terceira”. Por isso mesmo, esta história é um drama, não se pode negar. A
desimportância que a mãe dá ao caso é a desimportância e o desprezo da
sociedade que termina por expressar isso da pior forma. Ao dizer da “escolha”
pelo suicídio dá a entender que havia outras opções para a menina, o que se
revela inverídico. Na verdade, é pela incapacidade de escolha.
Schüler (1989) diz que “Escrever em primeira pessoa mostrou-se, nos
casos de sucesso, gesto de humildade” e este é um traço que, ao término
do texto, pode ser notado na narradora de um modo sutil, por paradoxal que
pareça. Apesar dos fingimentos e da “cara compungida”, o eu-testemunha
não se esconde e narra sua frieza e seu preconceito. Seu registro escrito pode
ser uma forma de punir-se. “Recordar fatos não significa compreendê-los”,
diz Schüller, mas pode ser uma técnica para aproximar-se da compreensão
das coisas.
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Jogo de sentidos e duelo de imagens
O jogo de sentidos neste conto associa-se à ironia característica
de Telles e está espalhado pela história, podendo ser assim ilustrado: o
“refresco” que a mãe quer dar à filha no momento crucial de um discurso
seu; quando diz que sua filha possui “[...] a cabeça pequena, a testa pura”
(p. 129); quando Gina volta do ponto de táxi, após ter ido deixar Oriana,
e chega com a “carinha lavada” e depois a narradora completa que “ela
não usava maquiagem” (p. 134) e outros, como a atribuição do nome
“Gina”, dando a ideia de “vagina”. Reis & Lopes destacam a importância
da atribuição do nome dizendo ser um fator de peso na caracterização dos
personagens, “sobretudo quando surge como um signo intrinsecamente
motivado”. Essa motivação, eles dizem, “pode resultar de uma exploração
poética da materialidade do significante (através, por exemplo, do
simbolismo fonético) ou das conotações socioculturais que rodeiam certos
nomes” (1989, p. 214).
Como parte desse jogo, está presente na história, de forma
marcante, o corpo de Gina, a prova concreta do drama narrado, para isso
citando diversas partes dele numa expressão da necessidade de manter viva
a imagem daquele corpo, presente na memória da mãe: “[...] tinha um jeito
tão gracioso de interrogar inclinando assim a cabeça e aquele jeito de rir,
os olhos tão acesos e os cabelos de um castanho dourado tão profundo” (p.
131); “[...] os braços caídos ao longo do corpo, a boca interrogativa, olhando”
(p. 138); e “[...] deixasse suas rosas obscenas aí no caixão mas só da cintura
para baixo, ventre, pernas, Ô! filha, eu deixei escapar” (p. 141).
Criticando a farsa social, a hipocrisia da religião, mas mostrando seu
preconceito, a narradora compõe-se. Reconhece-se lúcida e participando de
uma farsa, movendo-se entre a dissimulação e a culpa. Num momento, fala
da “mentira da superfície arrumada escondendo lá no fundo a desordem,
o avesso d(est)a ordem” (p. 131). Nely N. Coelho, a propósito, observa a
respeito dos contos de Telles: “sobre a falência da razão ordenadora [...]
(Lygia) reflete sobre a impossibilidade de a lógica comum explicar o fluxo
da vida e as (des)razões do mundo” (LAMAS, 1995, p. 96). Segundo o senso
comum, considera-se normal o que não choca e nem perturba; porém, a
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normalidade não existe pois que nela está contida uma concepção burguesa
hipócrita.
Este conto contribui com tal reflexão mostrando uma desordem
humana e social e proporcionando aberturas para uma reflexão, uma vez
que a atitude homossexual esbarra em questões pessoais e religiosas.
Bourdieu quando trata de gays e homossexuais e da revolta que estes sentem
contra a violência que sofrem, diz que essa revolta aviva a “ordem simbólica
vigente e coloca de maneira bastante radical a questão dos fundamentos
desta ordem e das condições de uma mobilização bem-sucedida visando a
subvertê-la” (2007, p. 143).
A história de Telles, em seu tempo e a seu modo, faz valer a literatura.
A construção de “Uma branca sombra pálida” é fortemente coesa em meio à
turbulência velada e também floreada. Fica estabelecido no conto o “duelo
floral” (José Carlos Paes) simbólico entre a mãe e Oriana. A mãe deposita as
rosas brancas e Oriana insiste nas rosas vermelhas; todas elas ornamentam
o conto, mas se trata de um ornamento perigoso, pois pode nos iludir com
uma imagem bela que, na verdade, não existe, pois Telles floreou o assunto
de sua história. Para a mãe, as rosas vermelhas, desabrochadas demais, são
vistas como obscenas; as brancas são puras e também não desabrocham
tanto. Eis aí uma metáfora rasteira, mas tão bem construída.
A narradora dá destaque, em meio ao roseiral, ao caule das flores,
enfatizando o gesto da podagem dessas rosas por parte de Gina. Esta cuida
sempre do caule das flores que é o órgão condutor da seiva, que é como o
sangue que circula nas plantas para alimentar suas células. É singular que
enquanto a mãe e Oriana cuidam da estética, do aparente, Gina cuida da
vida das flores não para obter a beleza, mas para cuidar da preservação
daquela espécie, a dela própria, a de sua amiga, de sua mãe. Bastante
simbólica essa representação porque Gina é que era a vida e depois foi a
morte. É também possível a vinculação do corte à ideia de castração. Nesse
caso, a mutilação sexual simbolizaria a impossibilidade de uma reprodução
sexual, o que é coerente com toda a construção, além de ser oposta à ideia
da vida plena. Porém, resta a compreensão de que esses dois aspectos
opostos e intrincados não se anulam, mas coexistem.
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As cores contrastantes seguem em duelo entre amor maternal e
paixão – tipos diferentes de amor, que, em tese, não se disputam. Porém,
pela lógica da narradora, no texto há mais de dez referências às rosas
vermelhas e seis referências às rosas brancas. Não nos parece casual esse
escore, uma vez que ao término do conto a narradora diz que a maior traição
de Oriana seria ela encontrar outra amiga, como já mencionado. O amor
maternal sutilmente agora permite que as rosas vermelhas ganhem das
brancas. Ou seja, diante da tragédia, torna-se importante para a mãe que
Oriana continue a gostar de Gina.
E quanto à bonita imagem, quando no passado os familiares
conversavam sobre cemitérios, a narradora anota: “Mas os cemitérios têm
mesmo que ser românticos, disse Gina. Voltávamos do enterro do pai e agora
me lembro que fiz uma observação que a desgostou, era qualquer coisa em
torno desse ritual das belas frases, das belas imagens sem a beleza” (p.
130 - 131).
Podando
As questões que surgem suscitam tantas outras e tão profundas que
não se explicam nem se justificam pelo trivial. Para entendê-las é necessário
ir para além do juízo de valores sem reflexão e sem base.
A fragilidade da vida está aqui nesse universo criado por Telles:
“Deitou-se [...] e amanheceu aquela imagem que eu enfeitava tentando
botar ordem na desordem da morte, a morte é só desordem, sei como Gina
deve estar agora” Em seguida, revela: “sei também como elas se amavam,
andei lendo sobre esse tipo de amor” (p. 141).
Se Telles acredita que apenas a arte pode negar a morte, seu
diário nada mais é que a luta pela sobrevivência da personagem. Esta
ficção não é mero exercício estético: carrega uma “alquimia secreta”
(palavras de Cortázar), fisga o leitor e chama atenção para a realidade e
para a imprevisibilidade das relações humanas, resultando em sua eficácia
literária.
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