Sob o signo da transição
Abandono, destruição e solidão são, a princípio, temas das fotografias de Rogério
Canella. Desde Retratos (1998), quando o artista iniciou a registrar objetos abandonados
e dar a eles certa dignidade, não por acaso nomeando a série como uma das mais
tradicionais formas da pintura, há uma visível preocupação em dar foco a elementos
descartados pela sociedade de consumo. Sem sua função original, esses objetos
_extintores, latões, cones de trânsito_ tornaram-se registro de desprezo, de inutilidade.
A partir de Retratos, Canella amplia o campo de visão com a série Paisagem (1999).
Agora, é o próprio espaço urbano, em ambientes de processo destrutivo, tão comuns
numa cidade como São Paulo, que interessa ao artista. São locais onde impera a
desordem e a incoerência, signos do capitalismo selvagem de terceiro mundo, que ora
busca assemelhar-se a um modelo moderno de desenvolvimento e ora o nega.
Essa perturbação da ordem se multiplica nas séries que seguem Paisagem: Natureza
Morta, Noite e Dia, Acúmulos, Simetrias. Em todas elas, o que interessa é um
deslocamento, seja temporal (Noite e Dia), do desaparecimento de elementos sem razão
aparente (Natureza Morte), do excesso (Acúmulos), ou mesmo das desigualdades
(Simetrias).
Com tudo isso, Canella realiza uma operação que vai além do mero registro dos temas
que surgem em primeiro plano, do tal abandono, destruição e solidão. O que ele nos
mostra são situações de transição, marcadas pela velocidade de uma sociedade que
constrói, destrói e reconstrói, com a mesma violência da própria natureza tropical. A
cultura brasileira é marcada pelo excesso, o exagero, e tal característica, segundo
Canella, se reflete no espaço urbano.
Assim, suas fotografias não denunciam a falência de um sistema mas anunciam sua mais
significativa marca: a idéia de passagem. Seus locais são espaços de transição, de algo
com a memória do que foi e a promessa do que será, ou seja, ambientes de alta potência
criativa.
Já dizia Alejo Carpentier sobre as dificuldades em se retratar as cidades latinoamericanas: “Mais ou menos extensas, mais ou menos gratas, são um bolo, uma salada
de coisas boas e detestáveis – arremedos horrendos, às vezes, de ocorrências
arquitetônicas horrendas”1. Canella consegue apontar para as questões apresentadas
por Carpentier em sua matriz: o signo do transição.
Para tanto, o enquadramento utilizado por Canella é o mesmo da escola alemã, que tem
no casal Bernd e Hilla Becher sua origem. Mesmo que ambos trabalhem com séries,
enquanto os Becher focam construções de uma sociedade marcada pela ordem, pela
precisão e pelo refinamento, Canella registra ambientes e objetos que revelam processos
sociais, nos quais a noção de transformação é fundamental.
Apesar de trabalhar com um princípio de registro documental, ao expor imagens de locais
em transição, Canella inverte o próprio princípio da fotografia. Ele não congela uma
imagem do passado e sim revela promessas de transformação, especialmente na série
Paisagens.
Com isso, a obra de Canella é mais do que uma arqueologia da destruição, ela realiza um
mapeamento de espaços energéticos, onde a potência da transformação afirma-se como
principal marca.
Fabio Cypriano, abril de 2004
1
CARPENTIER, Alejo. Literatura & consciência política na América Latina. São Paulo: Global (1966).
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Rogério CANELA - Galeria Vermelho