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ARTE DE MAIO, OU DE QUALQUER OUTRO MÊS
A exposição “Maio”, realizada na Galeria Vermelho, em 2005, composta
por individuais de Rogério Canella e Nicolás Robbio é uma mostra que desvela
nossa época, evidencia avanços de linguagem e questiona significados ocultos
da vida contemporânea.
Mesmo constituindo universos autônomos, Canella e Nicolás permitem
estabelecer aproximações e marcar diferenças e especificidades. Uma larga
seta de cor preta e de dupla direção que atravessa os espaços da galeria,
bem representa conjunções e separações entre as duas exposições
individuais. Da perspectiva da sala utilizada por Canella, a seta é uma solução
de rebaixamento do teto e de criação de um clima propício para as
fotografias aí expostas. Do ponto de vista do local de Nicolás, a seta bidirecional torna-se obra e estrutura o diálogo que se estabelece entre os
trabalhos, inclusive, incorporando a parede à exposição.
Percorrendo o olhar nos trabalhos dos dois artistas, um denominador
comum sobressai: ambos conseguem dar expressão poética ao Tempo e, além
do mais, imprimem significados a detalhes esquecidos, tornando os pequenos
objetos pistas sensíveis de compreensão do mundo.
O maio de Rogério Canella
A mídia utilizada pelo artista é a fotografia, imprimindo o recorte da
realidade num negativo de grande formato (4 x 5 polegadas) que permite
tanto captar a amplitude do ambiente selecionado, quanto as mínimas
presenças dispostas no campo focalizado. Tal meio técnico permite que
Canella trabalhe a relação macro-micro no interior da obra, criando diversas
linhas de tensão ou de complementaridade entre as partes e o todo. Com tais
recursos o artista associa esta pesquisa de linguagem à procura de
localidades insólitas, escondidas do passeante comum. É como se Canella
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concluísse que apenas com o potencial do olhar maquímico, mas na dimensão
da arte, o mundo pode se revelar. Neste sentido, Canella traz à luz
subterrâneos urbanos, locais abandonados ou ambientes em transformação.
Todos estes lugares estão envoltos em misteriosa iluminação – muitas vezes
tendendo para o negro, mas, também, para o verde ou ocre.
Estas relações térreo-subterrâneo e aparente-escondido que Canella
procura descortinar possuem correspondência na relação claro-escuro,
estruturante na elaboração de suas fotografias. Desta forma, o artista obtém
altos resultados no manuseio da luz e da sombra, garantindo que o plano
geral e o detalhe apareçam num estado de suspensão. Nestas condições,
suas fotografias, quase sempre de grande formato, propiciam mergulhos no
interregno, dando expressão ao acontecimento colocado entre momentos
diferentes.
Tal possibilidade permite dizer que os trabalhos de Canella dão a
perceber a passagem do tempo, às vezes de forma imediata quando reúne
num díptico dois instantes de uma mesma paisagem ou, ainda, ao retratar
paisagens/objetos sob as luzes contrastantes da noite e do dia. Outras vezes
ele produz obras que trazem a discussão do tempo no interior de um mesmo
retângulo, sem precisar criar uma relação de fluxo temporal baseada no
díptico. No primeiro caso, Canella cria a impressão do tempo oferecido pelo
recurso da montagem, como aquele utilizado pelas revistas em quadrinho ou
pelo cinema, já que se está de frente para dois recortes colocados em
paralelo. No segundo caso, a impressão do tempo decorre das informações
visuais contidas em uma única fotografia, uma vez que o tema sugere história
passada ou futura. Porém, em todos estes casos o transcurso do tempo
possui
uma
particularidade:
Canella
capta
o
tempo
social
da
contemporaneidade. O artista apresenta o retrato possível da solidão social,
representada a partir da presença de edificações, objetos ou de coisas,
prescindindo da figura humana para dar conta desta questão. As lentes do
fotógrafo se voltam, assim, para pedaços de desertos urbanos.
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Não lhe interessa o tempo fugaz, a documentação do imediato, mas sim
o interstício do processo sócio-econômico que gera as condições da vida
atual. Não se trata do tempo rápido, veloz – mas do tempo moroso,
demorado. Suas fotos colocam o observador no interregno, apresentando os
locais abandonados, ou locais em preparação, gerados pelo sistema
econômico. Por isso suas obras, na reprodução realista da paisagem, no
brilho intenso da superfície e no arranjo interno de um caos organizado,
expressam o estranhamento da vida social. A sociedade continua se
desenvolvendo – ou a partir do abandono ou da incipiência. Daí a paradoxal
representação oferecida pela obra: a fotografia enquanto coisa finalizada
tem como assunto o inacabado ou o incompleto. Acrescente-se que a alta
resolução da imagem é colocada à disposição para abordar o transitório,
criando uma tensão entre a excelência da imagem obtida e o assunto
aparentemente pouco importante.
As fotografias de Canella parecem mostrar que a sedução da
aparência, nesta sociedade de consumo, está em todos os lugares, mesmo
naqueles de pouca relevância econômica. Com tal lógica artística e social o
artista capta mercadorias adormecidas no díptico “Distribuição”, de 2004.
Neste trabalho, centenas de caixas nas prateleiras de imensos galpões
esperam no estoque o momento de entrar no circuito de consumo. Nesta obra
está congelado o cenário da organização estratégica que antecede o ataque
em massa de milhares de objetos que se oferecerão, como se estivessem
numa batalha, aos indivíduos no mercado. “Distribuição”, baseada num
instigante jogo de perspectivas, elucida também um aspecto da linguagem das
fotografias de Canella indicando que a força do conjunto advém das unidades
e que o artista procura dar expressividade aos detalhes da cena. De forma
geral, seus trabalhos falam sobre o excesso, o acúmulo e a abundância,
constatando que os materiais e os objetos são produzidos para a substituição
imediata. Suas fotografias apresentam o mundo das coisas para falar do
mundo dos homens.
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O espaço recortado por Canella não é o espaço privado das
individualidades, mas o espaço público ou o espaço da produção do capital –
capturando o tempo da (des)construção do sistema. Neste sentido pode-se
perceber que a heterogeneidade ou polissemia do tempo se configura como
uma característica marcante da sua produção.
Um primeiro tipo de tempo a ser assinalado é o tempo do abandono,
captado por Canella nas paisagens da desativação do sistema, percebido
naqueles espaços deixados como reserva, conforme se percebe no díptico
“Trilhos” (2004), com seus entulhos de fios e com trilhos bifurcando em
dupla direção, sob o peso de uma cor preta que se impõe neste mundo de
coisas inertes.
Já na “Obra nº 6” (2004) pode-se perceber o tempo da rejeição,
aquele que transcorre no não-lugar, num espaço cego. Este trabalho retrata
o entorno de um titânico pilar de viaduto, sem memória, apenas pontuado por
deslocados pneus velhos e invólucros jogados na calçada e na rua. Neste
caso tem-se a paisagem ativada, mas esquecida pelos habitantes e pela
sociedade.
Mas,
este
sistema
paradoxal
é
fundamentalmente
dinâmico
e
progressivo. As fotografias de Canella trazem, assim, o tempo da
preparação. Trata-se do tempo que atravessa os espaços que estão sendo
montados para entrar em atividade. Este tempo preliminar para o futuro
esparrama-se
nas
galerias
subterrâneas
de
monumentais
estações
(“Subsolo 6”, 2004), no imenso galpão com tubulações (“Obra nº 3”, 2004) e
na escadaria de misteriosa coloração que simbolicamente conduz o olhar
para um movimento ascendente, indicando que a ideologia dominante exige
que se olhe para o alto, conforme pode-se notar em “Acesso”, (2004).
Estes tempos não convivem na mesma obra, embora eles
transcorram, simultaneamente, na mesma cidade. Cada fotografia transmite
a impressão de um deles, uma vez que o olhar do artista tipifica ao máximo a
expressão do real, apresentando-o na sua forma ideal.
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O mistério da incompletude nas fotografias de Canella acentua-se por
um certo toque gótico inoculado às
edificações que aparecem como
monumentos na ausência humana. Estas fotografias exprimem o homem, o
construtor e usuário da cidade, mesmo que seu corpo esteja ausente nas
paisagens. A presença humana é anunciada pelas coisas descartadas ou em
realização.
Pode-se dizer, portanto, que as fotografias de Canella realizam uma
prospecção da sociedade pós-industrial, revelando suas entranhas e
iluminando seus segredos de funcionamento. Elas causam um curto circuito
na disseminação das falsas aparências e dão a perceber que a arte é uma
esperança para que os homens escapem dos simulacros que invadem o
mundo contemporâneo.
Miguel Chaia
“Maio” a julho de 2005
Professor e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da
PUC-SP.
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