PRÁTICAS DE ESCRITA DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Rosana Mara Koerner (UNIVILLE)
[email protected]
Resumo:
O objetivo do presente artigo é apresentar alguns resultados de uma pesquisa intitulada Práticas
de letramento dos professores: da Educação Infantil às Licenciaturas, feita com professores
acerca de suas práticas de leitura e de escrita. Foram 116 professores da Educação Infantil que
responderam a um questionário, caracterizando a pesquisa como do tipo survey. Aqui serão
apresentados os dados relativos a três questões, voltadas para suas próprias práticas de escrita,
suas dificuldades nesta modalidade e as propostas de escrita que apresenta aos seus alunos. Os
resultados indicaram que os professores produzem, essencialmente, escritas relacionadas ao seu
trabalho (planejamentos, avaliações, projetos). Foram poucas as referências a gêneros que
possibilitam a manifestação de um estilo mais individual. Em torno de 45% dos professores
afirmou não ter dificuldade na modalidade escrita. Já no caso daqueles que afirmaram ter alguma
dificuldade, o maior problema está em expor suas ideias. Também problemas de uso da
linguagem padrão foram apontados. Com relação ao trabalho em sala de aula, a principal
referência foi a uma espécie de introdução das crianças ao mundo da escrita, uma vez que não há
a obrigatoriedade pela alfabetização na faixa etária atendida por estes profissionais. Esta
introdução se dá por meio do manuseio de materiais escritos e pelo contato com livros de
literatura infantil. Principais autores que embasaram este trabalho foram: Kramer (1998) e
Kleiman (2005).
Palavras-chave: professores, práticas de escrita, sala de aula.
Introdução:
Parece haver uma espécie de acordo coletivo sobre a dificuldade que a tarefa de escrever
acarreta. Os estudantes, em sua maioria, reclamam quando lhes é proposta uma produção escrita.
No vestibular, a redação é uma das etapas mais temidas. No local do trabalho, mesmo escrever
um simples ofício pode demandar um esforço enorme. Foge-se da folha em branco (nos dias
atuais, da tela em branco).
Colocada a questão dessa maneira, deixa-se de lado uma série de aspectos que fazem
toda a diferença quando se pensa a escrita. Entre eles, o próprio conceito do que seja escrever. À
simples pergunta “O que é escrever?”, feita para professores dos anos iniciais, durante uma
formação continuada, houve respostas que a considerassem apenas em seu aspecto mecânico,
ignorando completamente o ato criativo, a marca individual, o sujeito por trás das palavras.
Segundo depoimento de uma professora, atualmente não se escreve mais porque todos estão
1
usando o computador! Qual é a concepção de escrita que pode ser depreendida de tal
depoimento? Qual a origem de tal concepção? Em se tratando de uma professora dos anos
iniciais, responsável pela introdução de crianças no universo da escrita, como tal concepção
afetará seu fazer pedagógico? E suas práticas particulares com a modalidade?
Pertencentes a uma sociedade grafocêntrica, os professores representam, talvez, uma das
categorias profissionais com uma das relações mais íntimas com a escrita. São eles que ensinam a
escrita para outros, o que parece pressupor que sejam usuários plenos da escrita. Afinal, ninguém
ensina sobre o que não sabe. Mas qual é a relação do professor com a escrita, para além das
propostas de atividades pedagógicas que elabora para seus alunos? É ele um usuário pleno desta
modalidade? Em quais práticas de escrita que se encontra envolvido, além daquelas que lhe são
exigidas por conta de sua função?
São tais reflexões que são propostas no presente artigo, resultantes de uma pesquisa
intitulada Práticas de letramento do professor: da Educação Infantil às Licenciaturas,
desenvolvida ao longo dos anos 2011 e 2012 na cidade mais populosa de Santa Catarina.
Inicialmente serão feitas algumas reflexões sobre a relação entre escrita e professor. Em seguida,
serão apresentados os dados e o modo como foram coletados. Com base nos resultados obtidos
para três questões que focalizavam a escrita, serão feitas algumas ponderações, que encaminharão
para algumas provocações nas considerações finais.
A escrita e os professores: algumas reflexões iniciais
A escrita de professores já atuantes parece não ter se constituído como um campo fértil
de investigações, embora já haja indícios de que poderá vir a ser. Em uma breve visita ao banco
de teses e dissertações da CAPES, usando os descritores “escrita e professores” como expressão
exata, e considerando o que foi produzido a partir de 2007, foram encontrados quatro trabalhos
(uma dissertação e três teses). A partir da leitura do resumo, percebeu-se que houve o olhar
voltado para a escrita do professor, ainda que, em alguns casos, se referisse à escrita de um
gênero em especial. A dissertação abordava de forma mais explícita as práticas de escrita do
professor sob o título “Condições de letramento de professores das séries iniciais”, de Marcia
Regina dos Reis Santos. Segundo a pesquisadora, os resultados indicaram que os professores têm
prazer em escrever e a maioria afirmou não ter dificuldade com a escrita.
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Uma tese é bastante ilustrativa sobre a escrita de um gênero bem conhecido do
profissional professor: o registro de classe. O trabalho do Luiza A. Ribeiro, intitulado “Sobre fios
e identidades docentes na escrita profissional dos professores – um estudo sobre cadernos
docentes e registros de classe”, foi orientado por Ludmila Thomé de Andrade que vem
desenvolvendo significativos trabalhos sobre o professor enquanto sujeito que lê e escreve.
Segundo Ribeiro (2011), a escrita pessoal pouco se manifesta no cotidiano do professor, sempre
voltado para as escritas que lhe são exigidas no campo do trabalho.
Recentemente lançado (em 2012), a obra intitulada Letramento do professor em
formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado da Licenciatura, organizada
por Wagner Rodrigues Silva, aborda em vários de seus capítulos, a escrita de professores em
situação de formação inicial. De acordo com Kleiman, que apresenta a obra, houve, na última
década, um significativo aumento no número de pesquisas sobre o que se escreve no contexto do
estágio supervisionado, tanto no que se refere aos gêneros ali produzidos, como às condições de
letramento ali inauguradas. A obra serve como indício da preocupação que claramente se delineia
para com a formação do professor e seu letramento, mesmo que focalize a formação inicial. Um
estudo envolvendo práticas de escrita de professores já atuantes aponta para uma série de
percalços: qual professor selecionar para o estudo? Como abordá-lo? Como gerar dados
suficientemente confiáveis?
O que escreve o professor? Aquele da Educação Básica, que não precisa,
necessariamente, atender a exigências de publicação, como um indicador de sua produtividade
acadêmica? Para vislumbrar alguma possibilidade de resposta, talvez seja necessário, por alguns
instantes (algumas linhas) retirá-lo da condição de professor e enxergá-lo como um sujeito igual a
todos os outros, que passou por um Ensino Médio, sofrível muitas vezes e que concluiu seu curso
superior, à custa de muita escrita. Há, de fato, uma produção escrita que se pode provisoriamente
dizer caseira, não relacionada ao mundo do trabalho?
Para compreendermos melhor a amplitude desta questão, façamos uma comparação com
a questão da leitura. A associação entre leitura e prazer é uma constante na defesa pela formação
de novos leitores. Fácil é relacionar tal associação a locais reais, onde ela acontece: em um sofá,
confortavelmente instalado; na cama; embaixo de uma árvore e até no ônibus, no trajeto até o
trabalho. Investimentos publicitários são feitos em defesa do prazer em ler. Reconhece-se como
condição para a inserção no mundo da cultura.
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Tal situação não se repete com a escrita, embora ela possa ser tremendamente prazerosa.
Quando se pensa em escrita, lembra-se logo dos rápidos registros para apoio da memória, os
recados, talvez algumas inscrições em pontos e momentos estratégicos. Ou, então, em escritas
altamente rotineiras, geralmente relacionadas ao ambiente de trabalho. Em outro extremo, o
prazer de escrever parece estar associado somente aos escritores, entidades quase sobrenaturais.
Mesmo que algum desconhecido tenha uma produção escrita que lhe confira o status de autor, tal
produção é guardada em segredo, com receio de que a sua exposição denuncie as fragilidades de
quem produziu. Lemos textos com autoria, mas não escrevemos textos com autoria, em que um
estilo individual possa sobressair-se para além do estilo do próprio gênero (penso aqui em
Bakhtin (2000 [1952, 1953]).
Talvez tudo isso seja reforçado pela crença em um poder, quase mágico, que é conferido
à escrita, como apontado por Graff (1994). A escrita transforma a sociedade, mas o ato de
escrever de forma legitimada é para poucos. Esta é a crença que subjaz em frases como: “Eu não
escrevo, só uma bobagenzinha no trabalho, uns recadinhos pra minha mulher”. E, às vezes, quase
em um sussurro: “Tem umas poesias que fiz, mas são besteiras! Não vale à pena!”
Como pensar o professor nesse contexto? Será que ele se difere dos demais
profissionais, por ter na escrita seu principal instrumento de trabalho? Espíndola (2012, p. 65),
em artigo que aborda as práticas de escrita de professores, aponta que
A escrita teria, (...), um poder mágico de portadora da felicidade e de
transformação na vida das pessoas. As concepções das professoras não diferem
das questões que normalmente são colocadas pela sociedade, de forma geral em
relação ao mito da alfabetização, conforme descrito por Graff (1990).
A familiaridade com a escrita, contudo, parece autorizá-las a falar com maior liberdade
de suas produções particulares: “Quando perguntadas sobre suas práticas de escrita, apresentam
tudo o que produzem sem nenhuma necessidade de buscar a legitimação.” (Id.ib., p. 65)
Kramer, em texto seminal sobre a escrita dos professores, a partir de entrevistas, percebe
que tais profissionais falam com receio de suas dificuldades relacionadas a uma escrita escolar,
mas, com certo tom de intimidade, de escritas mais particulares, como registro de histórias
vividas, agendas, diários: “Encontramos aí poetas que não se dão bem na escrita nas atividades
regulares de produção de textos.” (1998, p. 36) Ou seja, apesar de o trabalho do professor
fundamentar-se em práticas de escrita, a maioria delas com estruturas formulaicas e com estilo
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altamente marcado, há uma dificuldade latente em circular por tais práticas. Ainda segundo
Kramer (Id.ib. p. 36):
Concluímos que a leitura e a escrita eram constitutivas da atividade e do estilo
de ensinar. Com o decorrer do tempo e as mudanças instituídas na escola,
passou-se a ensinar a leitura e a escrita e não mais a ensinar com a leitura e a
escrita.
Nesse sentido, o professor em nada se diferencia dos demais profissionais no que se
refere às dificuldades com a escrita, exaustivamente reconhecidas por todos. Contudo, é inegável
que há expectativas em relação ao professor e seu desempenho. Andrade (2007, p. 11), baseandose em Tardif (1991), diz que: “Tratando-se de ensino de leitura e escrita, (…), é desejável que o
professor tenha tais práticas incorporadas em seu horizonte de experiências cotidianas.” Tal
incorporação torna-se visível em sua habilidade de circular por variadas práticas sociais com a
escrita, naquilo que faz para inserir-se e participar dos variados eventos que uma sociedade
letrada lhe impõe. Assim, parece extremamente relevante verificar de quais eventos de uso da
escrita ou de que práticas de letramento este professor participa.
Se considerarmos a ideia de sujeito híbrido proposta por Bakhtin (2000), tem-se que o
sujeito professor sofre as influências do sujeito social e doméstico e de todos os demais papéis
que podem ser assumidos nas variadas interações das quais participa. É a partir do todo que este
professor precisa ser visto, ou, que suas práticas letradas devem ser investigadas, que seus dizeres
sobre suas próprias dificuldades com a escrita devem ser ouvidos.
Assim, refletir sobre as práticas de escritas do professor pressupõe refletir sobre a
própria trajetória da profissão que envolve aspectos: da formação, da profissionalidade, da
história e da cultura. É preciso ver o professor para além de seu processo de formação, enxergá-lo
em sua singularidade, em sua própria história de contatos com variados materiais, nas
dificuldades que foram sendo superadas, naquelas que permanecem... É preciso tomar como
sempre necessária a recomendação de Kramer (1998) de que práticas de leitura e de escrita
devem fazer parte da formação de professores. Ouvir dele em quais práticas de escrita se envolve
e como percebe suas dificuldades com a escrita (como é o propósito neste texto) talvez possa
indicar possíveis caminhos a serem tomados, tanto na formação inicial como na formação
continuada. Tendo como pano de fundo tais reflexões, poderão ser mais bem compreendidas as
propostas de escrita feitas pelos professores e no que contribuem para a formação de sujeitos
letrados, capazes de circular por diferentes esferas de uso da escrita.
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Percurso metodológico:
Os dados que aqui se apresentam são um recorte da pesquisa intitulada Práticas de
letramento de professores da Educação Infantil às licenciaturas, desenvolvida ao longo de
2011 e 2012, na cidade mais populosa do Estado de Santa Catarina. Com o objetivo de contribuir
para as discussões sobre letramento, a pesquisa, do tipo survey, buscou investigar práticas de
letramento de professores de diferentes níveis de ensino, incluindo aquelas voltadas para a sua
prática profissional. Como instrumento de pesquisa foi utilizado um questionário com 19
questões sobre formação, tempo de atuação e diferentes aspectos que envolvem a leitura e a
escrita. Antecediam as questões informações relativas à pesquisa (título, objetivo, participantes) e
à garantia de sigilo aos respondentes.
Dada a dimensão dos dados, aqui serão apresentados os resultados referentes a três
questões voltadas para as práticas de escrita do professor, para a sua percepção acerca de
dificuldades (ou não) com a escrita e para os modos pelos quais trabalha com a escrita em suas
aulas. Para esta análise foram considerados os 116 questionários respondidos pelos professores da
educação infantil1. Algumas de suas “falas” serão reproduzidas (em itálico) para ilustrar um ou
outro aspecto.
A maioria das questões era do tipo aberta permitindo ao professor se manifestar
livremente. Levando-se em conta que "toda pesquisa pode ser, ao mesmo tempo, quantitativa e
qualitativa" (TRIVIÑOS,1987, p.118), tem-se que o estudo apresentou características de um
estudo quantitativo porque fez uso de técnicas estatísticas para o tratamento dos dados. Contudo,
também apresentou características de um estudo qualitativo, uma vez que, a partir dos resultados,
pretendeu-se a compreensão dos processos vividos por um dado grupo social e a percepção de
certas particularidades no dizer dos professores. Como as respostas foram muito variadas, optouse por sua segmentação sempre que isso fosse possível, considerando cada unidade como
referência. Em seguida, as referências foram agrupadas em categorias, de acordo com traços em
comum, para tornar possível a reflexão sobre os resultados.
1
A pesquisa, em sua totalidade, abrangeu professores da Educação Infantil, das séries iniciais do Ensino
Fundamental, de Língua Portuguesa das séries finais do Ensino Fundamental, de Língua Portuguesa do Ensino
Médio e das licenciaturas da maior universidade da cidade, totalizando 334 sujeitos (número relativo aos
questionários válidos devolvidos, de um total de 750 entregues). A seleção dos professores se deu por meio de
sorteio simples, considerando-se a totalidade de profissionais em cada nível, informada pelos órgãos gestores.
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Sobre os sujeitos:
Dos 116 professores que responderam ao questionário, mais de 70% têm mais de 5 anos
de atuação na educação. Quando observados os dados sobre a experiência, mais de 60% atua na
turma atual (aquela na qual atuava em 2011, ano da coleta de dados) há menos de 5 anos. Isto
indica a rotatividade dos professores, alternando as turmas com relativa periodicidade.
Quanto à formação, 67% dos professores possuem pós-graduação (especialização).
Somente 6 professores não são graduados e 2 não são graduados em Pedagogia. Entre aqueles
que informaram o ano de conclusão do curso, observa-se que a maior parte formou-se no período
entre 2001 e 2010. Isto indica que a demanda pela continuidade no processo de formação é algo
mais recente e que os professores estão atentos para tais exigências.
Apresentação e discussão dos resultados:
A primeira questão a ser apresentada é: O que você costuma escrever? As respostas
foram segmentadas conforme fornecessem indicações de mais de uma prática. Por exemplo:
“Todo planejamento diário é escrito, avaliação da criança, registro diário, projetos”. No caso
desta resposta, foram consideradas 4 referências: 1. Planejamento; 2. Avaliação da criança; 3.
Registro diário; e 4. Projetos, uma vez que cada uma delas se constitui em uma escrita
diferenciada. Assim, chegou-se a um total de 363 referências. Apenas 3 professores não
responderam a esta questão.
A referência mais recorrente foi a planejamentos/planos de aula, com 20%2 do total.
Registros (ligados às ocorrências em sala de aula) vêm em seguida, com 19% e avaliações, em
terceiro, com 11% das ocorrências. Todas essas escritas estão relacionadas ao trabalho do
professor. Além dessas atividades, foram citadas outras, também relacionadas à sua função:
projetos (4%), relatórios (6%), escrita em sala de aula (3%) e portfólio (0,8%). Se somarmos
todas as referências claramente relacionadas ao fazer pedagógico, temos que 66% de tudo o que o
professor escreve, ele o faz em função de seu trabalho. Trata-se de uma escrita altamente
padronizada, de gêneros que oferecem pouco espaço para a manifestação de um estilo individual.
É uma escrita que, em muitos casos, serve como documento (no caso dos registros e das
2
Foram considerados apenas os números inteiros para facilitar a leitura.
7
avaliações) e que, por isso mesmo, não possibilita manifestações estilísticas. Apenas o estilo do
próprio gênero deve ser observado, com uma linguagem padrão e estruturas já previamente
formuladas.
Poucas foram as ocorrências de uma escrita mais particular, mais pessoal. Houve 5% de
referências a recados, bilhetes, avisos, que podem facilmente ser associados a atividades também
escolares, já que as crianças atendidas por estes professores ainda não sabem escrever e qualquer
comunicação com os responsáveis deve ser feita pelo professor. Sete professores afirmaram
escrever textos de gêneros literários, como poemas e peças de teatro. Outros 5 indicaram a escrita
de livros, sem especificar o tipo.
Muitos professores pareciam se encontrar em processo de formação, já que fizeram
referências a gêneros típicos do universo acadêmico: trabalhos acadêmicos (2%), sínteses,
resumos, resenhas (2%) e artigos (1%). É uma escrita que raramente tem lugar fora da esfera
acadêmica e que serve, em sua maioria, como uma estratégia de avaliação. Se houvesse espaços
de divulgação, os professores se sentiriam motivados a produzir textos depois de terem concluído
sua formação? Uma escrita mais reflexiva, que exige bases teóricas, como o caso do artigo, não
poderia se configurar como uma espécie de formação continuada? Em quantos fóruns de
discussão o professor poderia participar, apresentando resultados de projetos implantados?
Curiosamente 3 professores fizeram referência à escrita à mão, delimitando o ato de
escrever (produzir) ao exercício de produzir sinais em uma folha de papel, excluindo desse
universo a escrita feita no computador, por exemplo: “Sou daquelas adeptas à escrita se posso
evito digitar no computador!”
É uma visão bastante limitada do que é escrever que,
infelizmente, pode repercutir em propostas de ensino circunscritas apenas ao exercício da
caligrafia, cuja preocupação maior é o treino da letra (de preferência, que fique bem “redonda”).
Dezessete professores lembraram a escrita produzida em ambiente virtual, representando
um total de 4% das referências. Embora seja um número ainda baixo, sua simples lembrança já
indica um professor que vai, aos poucos, também se incluindo nesse universo. Apesar disto, 8
professores costumam escrever cartas, uma prática em franco desuso, considerando todas as
ferramentas de comunicação virtual oferecidas tanto pelo computador, como pelo celular. Seriam
produções mais nostálgicas, nas quais é possível imprimir um caráter mais pessoal, mais
subjetivo? A subjetividade é algo a ser discutido quando se fala de escrita de e-mails, por
exemplo, e escrita de cartas. O traçado da letra carrega mais subjetividade do que a linguagem
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quase cifrada dos e-mails?
A segunda questão cujos resultados serão aqui apresentados foi: Você tem dificuldades
com a escrita? Em caso afirmativo, especifique qual(is). Dos 116 professores, 7 não responderam
a questão. Talvez tenham considerado a possibilidade da dificuldade com a escrita um tanto
absurda quando feita a professores. Ou, ainda, não tenham se sentido à vontade para explicitar
suas dificuldades.
Quarenta e três por cento dos professores responderam explicitamente que não tinham
dificuldades. Outros 7% também responderam não, mas apresentaram algum tipo de justificativa,
talvez para esclarecerem a fonte de sua segurança. Seria interessante tentar compreender as
razões que levaram tais professores a responder que não têm dificuldade, quando é quase
consagrado que o ato de escrever é difícil, complexo, que exige vários domínios. Não que o
professor não possa ter nenhuma dificuldade! Mas o que significa não ter nenhuma dificuldade de
escrita? Dominar as questões de ordem gramatical em sua totalidade? Dar conta de circular com
desenvoltura pelos mais variados gêneros? Ter conteúdo para ter o que escrever? Ter
criatividade? Certamente são questões que conduzem a uma reflexão mais densa sobre o que
significa escrever.
Vinte e sete professores responderam que têm dificuldade, e outros 12, apesar de não
terem respondido a primeira parte da questão que implicava em um “não” ou em um “sim”,
apresentaram suas dificuldades. Tem-se que 33% do total se sentiram à vontade para reconhecer
que têm dificuldades com a escrita. Talvez sejam professores com um senso de autocrítica mais
exigente ou, ainda, que reconhecem que o ato de escrever implica em uma série de domínios nem
sempre possíveis de tê-los todos. Talvez entendam que a escrita é um processo que, para se
consolidar, exige tempo e prática.
Algumas respostas indicaram que o professor titubeou entre o sim e o não, optando por
um às vezes ou, no caso de um professor, já tive! Talvez estes professores tenham se
surpreendido com a questão e optaram pelo meio termo por não darem conta da dimensão do que
é escrever com dificuldade.
Com relação às dificuldades apontadas pelos próprios professores, estão sendo
consideradas 66 referências, as quais se caracterizam por justificativas e/ou argumentos. Muitas
vezes o professor apresentava mais de uma justificativa. Nesses casos era considerada cada uma
delas. Desse total, 4 foram respostas vagas, que não apresentavam, de fato, uma justificativa.
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A principal dificuldade apontada pelos professores relaciona-se com a habilidade de se
expressar por escrito. Foram 18 referências (27% do total). Segundo informaram, faltam palavras
para colocar no papel as suas ideias. É uma justificativa que indica a pouca experiência com uma
escrita de autoria, na qual o sujeito precisa expor seus pensamentos. Se levarmos em
consideração que a resposta mais presente na questão anterior estava relacionada à escrita de
gêneros típicos da organização escolar (planejamentos, registros, avaliações), que se caracterizam
por uma estrutura bastante rígida, na qual é preciso preencher determinados “espaços”, a resposta
a esta questão parece ter-se voltado para uma escrita mais subjetiva, mais pessoal, em que as
dificuldades se avolumam. Ou estariam as dificuldades relacionadas também a estes tipos de
gêneros? Talvez haja mesmo a dificuldade em esboçar, por exemplo, a avaliação de um dado
aluno, tão mais simples de ser feita na modalidade oral.
Apesar de esta justificativa ter sido a mais recorrente, as que se seguem se referem ao
domínio do português padrão, especialmente as dificuldades de ordem morfossintática (com 21%
do total) e com a ortografia (10%). Se ainda somarmos com os 3% que simplesmente
mencionaram ter dificuldade com a norma culta e os 4% que apontaram a pontuação como ponto
de dúvidas, tem-se que quase 40% explicitaram sua falta de domínio com a escrita
exigida/ensinada pelas escolas. Três professores, por exemplo, manifestaram repulsa de sua
própria escrita, afirmando não gostarem dela: “Prefiro falar do que escrever. Geralmente não
gosto do que escrevo”. Vale questionar por que, apesar de mais de 12 anos de escolaridade,
persiste o temor para com a escrita padrão? O quanto este temor contribuiu para que tais
profissionais optassem pela Educação Infantil, onde pouco se trabalha com a escrita?
Algumas respostas ultrapassam o plano meramente linguístico, concentrando-se mais na
questão da estrutura do gênero (6%) ou no conteúdo a ser emitido (também 6%). Dizem respeito
ao plano do que dizer e do modo como dizer. Especialmente no caso do ter o que dizer, os
professores afirmaram ser necessário realizar pesquisas para a escrita de projetos/planejamentos.
No caso dos modos de dizer, a dificuldade está mais relacionada aos gêneros do ambiente
acadêmico. Talvez sejam professores que se encontram em fase de formação, de quem tem sido
exigido o domínio de certos gêneros (resenhas, resumos, relatórios, artigos etc.).
Falta de prática, de hábito, de tempo foram também citadas como justificativas, mas com
baixíssima ocorrência. Um professor reconhece que sua escrita tem melhorado a partir da
ampliação de suas práticas de leituras. Repete um discurso facilmente encontrado na escola, de
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senso comum, que a leitura melhora a escrita, colocando as habilidades em relação de causa e
consequência. Não há o reconhecimento, nestes casos, das particularidades que envolvem o ato
de ler e o ato de escrever.
Um professor fez referência à questão da digitação e do corretor ortográfico automático:
“...com acentos, pontuações e concordâncias, principalmente com o hábito de digitar e usar o
corretor ortográfico.”
No caso dos professores que afirmaram não ter dificuldade com a escrita, alguns
apresentaram complementos ao não (12 deles). Parecem evitar com isso, a imagem de alguém
que se julga totalmente proficiente em uma área que, historicamente, é reconhecida como difícil.
Foram poucos os complementos e muito esparsos. Passam pelo professor que afirma ter o hábito
de escrever, por aquele que seleciona as palavras com cuidado, que pesquisa a escrita correta.
Curiosamente muitos dos complementos mais se encaixariam se a resposta tivesse sido positiva,
com o professor dizendo ter dificuldades, seja com o tempo, seja com o conteúdo e até com o
limite de linhas. Terão tais professores ignorado a parte inicial da segunda parte da questão (“Em
caso afirmativo”)? Ou, na tentativa de justificar o “não”,
as dificuldades acabaram se
sobressaindo? Como compreender tais discrepâncias?
A terceira pergunta foi: Como você trabalha com a escrita em suas aulas? Embora haja
a consciência de que a escrita não é a tônica da Educação Infantil como um todo, optou-se por
preservar o mesmo questionário para todos os entrevistados, na tentativa de perceber nuances
relacionadas a cada nível de ensino. Foram consideradas unitariamente cada indicação de
atividade com a escrita. Por exemplo, na resposta “Com elaboração de textos, relatos, registros”,
foram consideradas 3 referências: 1. Elaboração de textos; 2. Relatos e 3. Registros. Assim,
foram 351 referências no total. Apenas 4 professores não responderam e 5 deram respostas vagas
ou sem relação com a questão.
A não obrigatoriedade para com a alfabetização, que deverá ocorrer de forma mais
sistemática e evidente a partir do ingresso da criança no Ensino Fundamental, foi lembrada por 6
professores que, por isso mesmo, não apresentaram nenhuma atividade. Trata-se, de fato, de uma
resposta bastante coerente com a faixa etária atendida. Tais professores parecem ter escapado a
uma espécie de armadilha: como é possível responder com atividades feitas se elas ainda não
deveriam ser realizadas? Contudo, não era esta a intenção da questão, uma vez que foi a mesma
para todos os níveis de ensino que participaram da pesquisa. E as respostas dadas pelos demais
11
professores deixam claro que a maioria deles compreendeu a questão da escrita como algo a ser
apenas introduzido, em alguns casos, e em outros, como uma espécie de reconhecimento do que é
feito por meio dela (no caso das histórias).
A ideia da introdução esteve presente na sugestão do trabalho com os nomes, referência
de maior recorrência (12%). Dada a importância que o nome assume para a criança, torna-se
bastante produtivo o trabalho envolvendo-o, seja pela simples exposição a um crachá, seja pelo
manuseio de letras (de madeira, papelão ou outros materiais).
Uma significativa parte dos professores compreendeu que nesta faixa etária, o mais
importante é possibilitar à criança o contato e, preferencialmente, o manuseio com os mais
variados gêneros (11%). Se somarmos a este montante, os 3% de referências explícitas ao
trabalho com receitas e rótulos e os 2% que mencionaram a criação de um ambiente
alfabetizador, temos que quase 18% dos professores apontaram, em suas respostas, para uma
concepção mais voltada para o letramento. De acordo com Soares (2006), o letramento não
pressupõe, necessariamente, a alfabetização. O sujeito pode ir se envolvendo em práticas de
letramento muito antes de iniciar a sua alfabetização. Talvez seja esta a maior contribuição que a
Educação Infantil poderá dar ao aluno que dali segue para iniciar sua alfabetização.
O ambiente mágico da literatura infantil também esteve bem presente nas respostas dos
professores. Foram 7% de referências a histórias /livros, 2% a poemas, versos e poesias e 0,8% à
recriação de histórias. Embora a questão envolvesse a escrita, tais professores talvez a tenham
entendido como portadora de objetos culturais. Ou, talvez, trabalhem mesmo com a
aprendizagem de tais gêneros, como perceptível nos 5% de referências à escrita espontânea e nos
7% à produção de textos coletivos, quando o professor assume o papel de escriba. Outros 2%
falaram explicitamente em produção de textos. Tais práticas precisam ser realizadas com muita
cautela junto a crianças de tão tenras idades, com o risco de incutir nelas uma aversão à produção
escrita precoce, tão frequente em alunos com idades mais avançadas. De qualquer forma, as
respostas já apontam para uma prática absolutamente comum na escola, que é a da escrita de
textos sem ou pouco vínculo com gêneros variados. A concentração se dá na escrita de histórias,
que continuam a ser produzidas até quase o final do Ensino Fundamental. Contudo, os escritores
de literatura de ficção são tão poucos! Os próprios professores são exemplo disto: apenas 7
ousaram dizer que escrevem textos de gêneros literários (na primeira questão aqui apresentada).
Por que tanta insistência na produção quase exclusiva deste tipo de texto?
12
Atividades típicas da Educação Infantil (rotina da aula, elaboração de listas de palavras,
trabalho com o alfabeto, desenho, pintura, música) foram referenciadas com relativa frequência:
quase 20% do total. Certamente seriam referências esperadas para esta faixa etária. Também é o
caso da citação de materiais típicos para uso de crianças, como cartazes, palitos, caixa de areia,
figuras etc..
Apesar da não obrigação de um trabalho mais sistematizado com alfabetização, houve
algumas referências (3%) a atividades que sinalizam a preocupação para com a aprendizagem da
escrita. O uso de palavras como motricidade e sonoridade das letras indica tal preocupação.
Também expressões como cópias, tarefas, ditados, presentes em quase 4% das referências
servem para sublinhar isto, introduzindo a criança no universo da escrita por vias já
exaustivamente taxadas como ultrapassadas, se vistas assim, de forma isolada. De onde vem a
necessidade do professor de continuar com práticas que pouco ou nada contribuem para o
letramento de seus alunos? O caráter lúdico também foi lembrado em 13 respostas (3% do total),
sugerindo uma preocupação de natureza diversa (quase contrária) daquela apontada logo acima. É
um professor que reconhece as características que marcam a faixa etária com a qual trabalha e
que isto precisa ser respeitado.
Algumas considerações:
Neste texto foram trazidos dados obtidos por meio de um questionário respondido por 116
professores da Educação Infantil de uma das maiores cidades da região sul do Brasil. As
temáticas aqui abordadas giraram em torno do que os professores costumam escrever, sua
percepção quanto a suas dificuldades de escrita e da promoção de atividades envolvendo esta
modalidade em suas aulas.
Sobre as atividades de escrita nas quais se envolve, prevaleceu a escrita relacionada ao
seu trabalho. O professor pouco se envolve na escrita de gêneros em que o aspecto autoral
pudesse se manifestar mais explicitamente. Os gêneros de estrutura formulaica, do cotidiano
escolar, são parte inerente ao seu trabalho: registros, avaliações, planejamentos. Talvez por isso a
maioria tenha afirmado não ter dificuldades com a escrita. Afinal, repetir estruturas prontas,
apenas adequando os dados, não oferece mesmo muita dificuldade.
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Contudo, um número significativo de professores afirmou ter dificuldades, ainda que,
em alguns casos, de forma diluída em justificativas e explicações. Parecem dificuldades não
relacionadas com os gêneros do cotidiano profissional, mas com uma escrita mais reflexiva, mais
autoral, possivelmente. Talvez isso possa explicar o baixo número de escritas não ligadas ao
trabalho. São dificuldades de variadas ordens, desde a falta de ter o que dizer, àquelas
relacionadas ao uso da forma padrão e às dúvidas que ele suscita.
O quanto a formação inicial serviu para amenizar tais dúvidas? Considerando que a
escrita encontra-se presente nos espaços da Educação Infantil sob a forma da escrita do professor
com função mais de registro e/ou de caráter instrucional (como no caso dos planejamentos) e que
tal escrita é endereçada a diferentes interlocutores (direção da escola, supervisão, secretaria,
pais), valeria questionar acerca dos espaços que tem o ensino da Língua Portuguesa na formação
inicial desses profissionais. Há esse espaço? Em meio à preocupação com didáticas e
metodologias, é visto este professor como alguém que deverá escrever?
É possível perceber em muitas respostas a incorporação dos discursos sobre letramento.
Boa parte das práticas de escrita propostas pelos professores indica claramente a preocupação
para com a familiarização da criança com o universo da escrita. Considerando que são discussões
que vêm se avolumando nos últimos vinte anos, percebe-se nisto uma significativa influência do
processo de formação inicial e continuada dos professores informantes da pesquisa que aconteceu
principalmente no período mencionado. Tal cenário é altamente favorável, se lembrarmos que as
expectativas para com o que o aluno irá encontrar no ambiente escolar devem ser as melhores.
Um desencontro nesta fase seria um desastre!
Pelo que ficou do que foi exposto, muito ainda há para ser reconhecido quando se pensa
no professor na interface entre sujeito e profissional, especialmente em suas práticas de escrita.
Parece relevante não perder de vista justamente esse aspecto: uma singularidade que se faz a
partir de diferentes frentes. E como tal, com dificuldades, com lacunas, com preferências, com
ecos de vozes da formação, com propostas pedagógicas – tudo se mesclando em seu fazer diário
na sala de aula, com outros sujeitos, também singulares.
REFERÊNCIAS:
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discursivas de conhecimentos e saberes. Belo Horizonte: CEALE; Autêntica, 2007.
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Práticas de escrita de professores: entre usos e mitos. Educação Unisinos, Vol. 16(1), 58-66,
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(Texto apresentado na XX Reunião Anual da ANPED, Caxambu, set. de 1997.) Revista
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um estudo sobre cadernos docentes e registros de classe [tese]. Rio de Janeiro: Universidade
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TRIVIÑOS, Augusto N. Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa
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