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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS
LINHA DE PESQUISA: CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO
Denise da Silveira
CONTROLE DO MÉRITO DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E O
DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO
Santa Cruz do Sul, maio de 2009
2
Denise da Silveira
CONTROLE DO MÉRITO DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E O
DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Direito – Mestrado, Área de Concentração em Direitos
Sociais e Políticas Públicas, Universidade de Santa Cruz
do Sul – UNISC, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito.
Orientador:
Rodrigues
Prof.
Dr.
Itiberê
Santa Cruz do Sul, maio de 2009
de
Oliveira
Castellano
3
Denise da Silveira
CONTROLE DO MÉRITO DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E O
DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO
Esta dissertação foi submetida ao Programa de PósGraduação em Direito – Mestrado, Área de Concentração
em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Universidade de
Santa Cruz do Sul – UNISC, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Dr. Itiberê de Oliveira Castellano Rodrigues
Professor Orientador
Dr. Rafael das Cás Maffini
Professor Convidado
Dr. Janriê Rodrigues Reck
Professor Participante
4
Para Santa e Vantuil, meus pais.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, aos meus pais pelo amor incondicional, pela confiança
incansável, por sonharem comigo e por acreditarem que o sonho era possível.
Sou igualmente grata ao Fernando, por compreender as faltas e ausências, por todo
o amor e incentivo, me impedindo muitas vezes de desistir.
Agradeço à minha avó Maria, in memoriam, mulher de interna força e coragem, cujo
exemplo de amor, fé e simplicidade jamais esquecerei.
Agradeço, ainda, à minha irmã Deise e aos meus sobrinhos Matheus e Maria
Fernanda, pelos laços de sangue e amor que nos unem.
Agradeço também à Beatriz, Jaime, Viviane, Elsa e Thiago, família de coração, por
acreditarem que tudo seria possível.
Agradeço à Dra. Andréia Goedert pela compreensão, apoio e estímulo neste e em
outros momentos de minha vida.
Agradeço aos colegas e amigos de profissão por todo o apoio e incentivo.
Agradeço, ainda, aos professores, à Coordenação e à Secretaria do Programa de
Pós-Graduação em Direito – Mestrado – da Universidade de Santa Cruz do Sul, em
especial à Rosana Fabra, por todo apoio e compreensão sempre dispensadas aos
discentes do programa.
Aos colegas de Mestrado, todos especiais, agradeço a amizade, o carinho e a
cumplicidade demonstradas nessa trajetória.
6
Não poderia deixar de agradecer de forma especial à colega e amiga Mariana, que
como eu pegou o trem andando, obrigada pelo incentivo de sempre.
Ainda, à minha colega e amiga Carine Zeni, um presente que Deus me conferiu no
curso dessa trajetória.
Por fim, meu agradecimento muito especial, ao Professor e orientador Dr. Itiberê de
Oliveira Castellano Rodrigues, grande mestre, por todo o ensinamento no decorrer
dessa trajetória.
7
RESUMO
Este trabalho busca uma melhor compreensão sobre a aplicação do devido
processo legal substantivo como mecanismo de controle de mérito da
discricionariedade administrativa. O devido processo legal substantivo é elemento
integrante do princípio constitucional fundamental do Estado de Direito – art. 1º,
caput da Constituição Federal de 1988 -, conforme tem reconhecido em sua
jurisprudência o Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, esta Corte já tem
reconhecido que essa garantia, pela via da razoabilidade, serve de parâmetro para
um controle de mérito dos atos estatais, e, portanto, também dos elementos
intrínsecos da discricionariedade. Por outro lado, o mesmo Supremo Tribunal
Federal ainda afirma paralelamente sua antiga jurisprudência, segundo a qual, em
nome da Separação dos Poderes, não cabe ao Poder Judiciário realizar o exame do
mérito dos atos administrativos discricionários. Para a análise dessa situação, a
pesquisa parte do estudo dos elementos que compõem a primeira orientação, a qual
veda ao Poder Judiciário a análise do mérito do ato administrativo discricionário
para, num segundo momento, analisar a evolução do devido processo legal
substantivo nos Estados Unidos, para, por fim, investigar como o direito brasileiro
recepcionou tal garantia e como ela tem sido aplicada na prática, principalmente
pelo Supremo Tribunal Federal, como instrumento que autoriza o Poder Judiciário
ingressar no mérito do ato administrativo discricionário.
Palavras-chave: Controle do mérito. Discricionariedade administrativa. Devido
processo legal substantivo.
8
RESUMEN
Este trabajo busca una mejor comprensión sobre la aplicación del debido
proceso legal sustantivo como mecanismo de control de mérito de la
discrecionalidad administrativa. El debido proceso legal sustantivo es elemento
integrante del principio constitucional fundamental del Estado de Derecho – art. 1º,
caput de la Constitución Federal de 1988 –, según está reconocido en su
jurisprudencia el Supremo Tribunal Federal. En este sentido, esta Corte ya reconoce
que esa garantía, por la vía de la razonabilidad, sirve de parámetro para un control
de mérito de los actos estatales, y, por lo tanto, también los elementos intrínsecos de
la discrecionalidad. Por otro lado, el mismo Supremo Tribunal Federal aun afirma
paralelamente su antigua jurisprudencia, según la cual, en nombre de la Separación
de los Poderes, no cabe al Poder Judiciario realizar el examen del mérito de los
actos administrativos discrecionales. Para el análisis de esa situación, la
investigación parte del estudio de los elementos que componen la primera
orientación, la cual prohíbe al Poder Judiciario el análisis del mérito del acto
administrativo discrecional para, en un segundo momento, analizar la evolución del
debido proceso legal sustantivo en Estados Unidos, para, por fin, investigar como el
derecho brasileño recibió tal garantía y como la misma es aplicada en la práctica,
principalmente por el Supremo Tribunal Federal, como instrumento que autoriza el
Poder Judiciario ingresar en el mérito del acto administrativo discrecional.
Palabras-clave: Control del mérito. Discrecionalidad administrativa. Debido proceso
legal sustantivo.
9
ABSTRACT
This work looks for a better comprehension about the application of the
substantive due process of Law as merit control mechanism of the administrative
discretionarity. The substantive due process of Law is an integrant element of the
fundamental constitutional principle of the State of Law (Rechtsstaat) – 1st article,
caput of the Federal Constitution of 1988 -, as it has been recognized by the Federal
Supreme Court in its jurisprudence. In this sense, this Court has recognized that this
principle, by means of reasonability, serves as parameter to the merit control of the
acts of the State, and, therefore, also of the intrinsic elements of discretionarity. On
the other hand, the same Federal Supreme Court still affirms, in parallel, its old
jurisprudence, according to which, in the name of the Separation of Powers, it is not
due to the Judiciary to examine the merit of the discretionary administrative acts. To
the analysis of this situation, the research starts from the study of the elements that
compose the first orientation, which impedes the Judiciary to analyze the merit of the
discretionary administrative act to, in the second moment, analyze the evolution of
the substantive due process of law in the United States and, at last, to investigate
how the Brazilian Law received this guarantee and how it has been applied in
practice, especially by the Federal Supreme Court, as instrument that authorizes the
Judiciary to enter in the merit of the discretionary administrative act.
Key words: Merit control. Administrative discretionarity. Substantive due process of
law.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12
1. FUNDAMENTOS DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA ........... 16
1.1 A compreensão de um conceito: da atividade administrativa à
discricionariedade ............................................................................................ 16
1.2 Discricionariedade administrativa: a construção de um conceito .............. 23
1.3 Elementos do ato administrativo e presença de discricionariedade ........... 26
1.3.1 Mérito administrativo ............................................................................... 32
1.3.2 Limites ao exercício da discricionariedade .............................................. 33
1.3.2.1 Teoria do desvio de poder ou desvio de finalidade .............................. 34
1.3.2.2 Teoria dos motivos determinantes ....................................................... 35
1.4 Controle judicial do mérito administrativo .................................................. 37
1.4.1 Controle externo...................................................................................... 40
1.4.2 Controle interno....................................................................................... 41
1.5 A corrente tradicional e a jurisprudência .................................................... 42
2. FUNDAMENTOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SENTIDO
SUBSTANTIVO................................................................................................ 47
2.1 Origem do devido processo legal ............................................................... 47
2.2 Devido processo legal adjetivo e devido processo legal substantivo ......... 50
2.2.1 Devido processo legal adjetivo................................................................ 52
2.3 Origem da versão substantiva do devido processo legal ........................... 53
2.3.1 O caso Bonham....................................................................................... 55
2.4 A garantia do devido processo legal substantivo nos Estados Unidos da
América ............................................................................................................ 57
2.4.1 A evolução da garantia do devido processo legal substantivo nos Estados
Unidos da América ........................................................................................... 60
2.4.1.1 Primeira fase: do surgimento até 1930................................................. 60
2.4.1.2 Segunda fase: 1930-1960 .................................................................... 66
2.4.1.3 Terceira fase: pós-1960........................................................................ 68
2.5 Finalidade prática do devido processo legal substantivo .......................... 73
3. CONTROLE JUDICIAL DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
VIA DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO........................................ 76
3.1 A garantia do devido processo legal substantivo no direito brasileiro ........ 76
3.2 A classificação da “norma-garantia” do devido processo legal substantivo a inserção sistemática do devido processo legal na Constituição Federal de
1988 ................................................................................................................. 78
11
3.2.1 A distinção existente entre “texto” e “norma”........................................... 80
3.2.1.1 Espécies de normas – as regras, princípios e postulados ................... 81
3.2.2 O conteúdo da norma do art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988 . 85
3.2.3 Elementos de concretização do devido processo legal substantivo:
razoabilidade e proporcionalidade.................................................................... 87
3.2.3.1 A razoabilidade..................................................................................... 92
3.2.3.2 A proporcionalidade.............................................................................. 94
3.3 Constatação de dois entendimentos antagônicos na jurisprudência:
existência e inexistência de controle do mérito administrativo ......................... 95
3.4 Consequências da práticas da atual realidade......................................... 105
3.4.1 Segurança jurídica ................................................................................ 105
3.4.2 Volutarismo do Poder Judiciário............................................................ 107
CONCLUSÃO................................................................................................. 110
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 115
12
INTRODUÇÃO
A presente dissertação investiga a aplicação do devido processo legal
substantivo como mecanismo de controle de mérito da discricionariedade
administrativa.
O devido processo legal substantivo está previsto expressamente no art. 5º,
inciso LIV, da Constituição Federal de 1988. Ao lado disso, o devido processo legal
substantivo é um dos elementos integrantes do princípio constitucional fundamental
do Estado de Direito – art. 1º, caput da Constituição Federal de 1988 -, conforme
tem reconhecido em sua jurisprudência o Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido,
esta Corte tem afirmado que essa garantia, pela via da razoabilidade, serve de
parâmetro para um controle de mérito dos atos estatais, e, portanto, também dos
elementos intrínsecos da discricionariedade.
A partir da observação de decisões do Supremo Tribunal Federal onde se
aplica o princípio do devido processo legal substantivo, quer-se saber quais são os
critérios utilizados por esse Tribunal brasileiro na aplicação desse princípio no que
tange ao controle da discricionariedade administrativa.
Há muito se tem discutido sobre a possibilidade ou não de o Poder Judiciário
exercer o controle do mérito das decisões administrativas discricionárias. O
entendimento inicial, defendido por quase a totalidade da doutrina brasileira e
abraçada por nossos tribunais, diz que o Poder Judiciário não pode rever o mérito da
decisão discricionária. Esse entendimento deita raízes em uma das primeiras leis da
República brasileira, a Lei nº. 221, de 20.11.1894, que organizou a estrutura e o
funcionamento da Justiça Federal no país. Ali se encontrava expressamente vedada
ao Poder Judiciário Federal a análise do mérito (rectius: “do merecimento”) de atos
administrativos discricionários.
13
No entanto, tal posição vem sendo abrandada principalmente pela recepção
em nosso ordenamento jurídico do devido processo legal substantivo. Essa garantia
constitui instrumento próprio à manutenção dos direitos e das garantias
fundamentais do indivíduo contra o arbítrio das autoridades estatais, por meio do
qual se procede ao exame da razoabilidade do conteúdo das normas jurídicas e dos
demais atos do Poder Público. A aplicação dessa garantia autoriza o Poder
Judiciário a adentrar o âmbito do mérito da decisão administrativa discricionária,
abandonando, ou, ao menos, quebrando a tradição jurisprudencial anterior.
Por outro lado, o mesmo Supremo Tribunal Federal ainda afirma
paralelamente sua antiga jurisprudência, segundo a qual, em nome da Separação
dos Poderes, não cabe ao Poder Judiciário realizar o exame do mérito dos atos
administrativos discricionários. Verifica-se a partir disso que (paradoxalmente) o
tribunal pode chegar a duas diferentes orientações quando decide sobre um mesmo
tema, a saber: a possibilidade e a impossibilidade de ser realizado o controle judicial
dos atos administrativos discricionários.
Assim, ao que tudo indica está instaurada uma dicotomia de posições no
ordenamento jurídico brasileiro. O antigo entendimento sobre o não exame de mérito
dos atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário não é totalmente
abandonado, mas ao mesmo tempo instaura-se outra posição, diametralmente
diversa daquela primeira, que, baseada no devido processo legal substantivo,
autoriza então o Poder Judiciário a examinar o mérito da discricionariedade
administrativa.
Nesse diapasão, o Poder Judiciário precisa enfrentar o problema e buscar
saber quais as consequências práticas desse fenômeno, o que constitui também
objeto de estudo da presente pesquisa.
O método de abordagem adotado no desenvolvimento da presente pesquisa
é o método hipotético-dedutivo, numa perspectiva histórica e crítica que procura dar
tratamento localizado no tempo à matéria objeto deste estudo.
14
A partir desse método, foi estabelecida a demarcação teórica de categorias
fundamentais à pesquisa, quais sejam: discricionariedade administrativa, controle
judicial da discricionariedade, as origens históricas do devido processo legal
substantivo no “common law”, para então discorrermos acerca da forma como o
Supremo Tribunal Federal vem utilizando essa garantia como justificativa para o
Poder Judiciário adentrar o exame do mérito dos atos administrativos discricionários
rompendo com seu anterior entendimento sobre o não exame do mérito.
Diante desse contexto, o primeiro capítulo é destinado à análise da
discricionariedade administrativa, em especial do controle do mérito do ato
administrativo discricionário pelo Poder Judiciário.
Ainda, é necessário referir que a diferença conceitual entre "poder
discricionário" e "conceitos jurídicos indeterminados" não será examinada no
presente trabalho, uma vez que não se pode afirmar que essa distinção, vinda do
direito alemão, seja corrente no direito brasileiro. Pelo contrário, é majoritário na
doutrina o entendimento da inexistência de distinção, seguindo-se o modelo francês.
Mesmo o fato de haver um precedente no STF, com voto do Ministro Relator Eros
Grau, que já defendia esse entendimento em sua obra doutrinária, não indicia que a
distinção foi plenamente recepcionada na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, sobretudo por se tratar de um caso isolado e que não foi depois reiterado
em outras decisões, motivo pelo qual o presente trabalho não se dedica a esse
ponto.
O segundo capítulo é destinado à análise do devido processo legal. Nele se
busca saber como ocorreu o seu processo evolutivo desde a sua origem histórica e
o como ocorreu o seu desenvolvimento jurisprudencial pela Suprema Corte dos
Estados Unidos.
Após, serão abordadas as diferenças entre o devido processo legal adjetivo e
substantivo, para, ao seu final, serem destacados alguns marcos da evolução do
devido processo legal substantivo na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados
Unidos.
15
É necessário salientar que a apresentação dos julgados da Suprema Corte
dos Estados Unidos neste capítulo será feita de forma meramente exemplificativa
das fases de evolução dessa garantia, não sendo o objetivo da presente pesquisa a
análise pormenorizada das referidas decisões.
No terceiro capítulo será analisada a recepção da garantia do devido
processo legal no direito brasileiro, e como essa garantia pode ser enquadrada em
nossa ordem jurídica, sobretudo qual a sua função prática.
A segunda parte desse capítulo é destinada ao exame da aplicação do devido
processo legal substantivo como mecanismo de controle da discricionariedade
administrativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, bem como à
constatação da existência de dois posicionamentos antagônicos na jurisprudência
nacional. Ao final serão abordadas as consequências que podem advir da utilização
desses dois entendimentos para a ordem jurídica nacional.
16
1 FUNDAMENTOS DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
1.1 A compreensão de um conceito: da atividade administrativa à
discricionariedade
A Administração Pública possui papel de suma relevância, tanto no quadro
orgânico quanto no quadro das funções materiais do Estado, posto que ela é quem
atua como sujeito de direitos, aplicando a lei e o Direito, definidores dos interesses
públicos, aos casos concretos, objetivando com isso a consecução imediata das
necessidades coletivas.
Para tanto, tradicionalmente o direito administrativo garante à Administração
Pública assumir uma posição de superioridade, sobretudo frente aos administrados,
uma vez que atribui a ela uma série de prerrogativas no agir, das quais não dispõem
os particulares (nas origens: as prerrogativas de “puissance publique”, isto é: os atos
de império). Frise-se, todavia, que essa posição de superioridade para a persecução
do interesse público advém dos ditames do ordenamento jurídico e só se exerce no
âmbito deste, uma vez que a Administração Pública não está autorizada a exercer
seu papel de acordo com a autonomia da vontade de seus agentes1.
1
Diferentemente, portanto, do que ocorre no Direito Privado, onde há o predomínio da autonomia
privada, e o que prevalece são o interesse e a liberdade individual das pessoas. Genericamente
significa dizer que ao particular é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, no Direito Público e
principalmente no tocante ao Direito Administrativo, à Administração Pública só é permitido atuar
dentro dos limites da lei. Nesse sentido a lição originária de João Barbalho: “ao indivíduo é
reconhecido o direito de fazer tudo quanto a lei não tem prohibido, e não póde elle ser obrigado sinão
ao que ella lhe impõe.Com a autoridade, porem, dá-se justamente o contrario, - só podem fazer
nessa qualidade, o que a lei autorisa[...]”. BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira (1891)
Comentada.[Fac-simile]. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 302. Acompanhando esse mesmo
raciocínio, Celso Antônio Bandeira de Mello refere que “a relação existente entre um indivíduo e a lei,
é meramente uma relação de não contradição, enquanto que a relação existente entre a
Administração e a lei, é não apenas uma relação de não contradição, mas é também uma relação de
subsunção”. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 13.
17
O princípio da legalidade2, nesse contexto, é de fundamental importância para
a Administração Pública (e também para os administrados), pois ele é fundamento e
limite
da
ação
da
Administração
Pública,
oferecendo
aos
administrados
previsibilidade quanto às condutas dessa Administração Pública3.
Assim, a lei irá ditar quando a Administração Pública pode agir e como ela
deve agir: a legalidade irá portanto regular o modus operandi e conseqüentemente a
própria forma de atuação do administrador (sobretudo perante os administrados).
Vê-se então que a legalidade administrativa possui uma dupla face. Quando a
Administração pode agir é uma resposta dada pelo princípio da reserva legal (“nulla
actio sine lege”), ao passo que o modus operandi dessa ação administrativa se
submete ao princípio da supremacia da lei, isto é, deve estar de acordo com aquilo
previsto na lei, e jamais contrariá-la.
A Administração Pública, mormente quando se trata de um Estado
Democrático de Direito (art. 1º, Constituição Federal de 1988) que prevê uma devida
participação da Administração Pública na esfera social (conforme art. 6º,
Constituição Federal de 1988) e ainda lhe abre espaço para o exercício de amplas
atividades econômicas (conforme art. 173, Constituição Federal de 1988),
desempenha as suas funções constitucionais e legais, sobretudo através da prática
de atos positivos e/ou comissivos. Mas desde o Estado Liberal de Direito, que
predominou no século XIX, a teoria geral da Administração Pública já se assentava
na prática de atos positivos e/ou comissivos.
2
Princípio previsto de forma expressa na Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, caput, mas
também no art. 5º, II, como direito subjetivo público dos indivíduos. Ele surge como conquista do
Estado de Direito, a fim de que os administrados não sejam obrigados a se submeter ao abuso de
poder. Porém esse princípio é mais amplo do que a mera sujeição do administrador à lei, segundo
Lúcia Valle Figueiredo ele também “está atrelado ao devido processo legal, em sua faceta
substancial, e não formal”. FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São
Paulo: Maleiros Editores, 2000, p. 40.
3
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 27-32.
18
Por isso as palavras de José Cretella Júnior, para quem o ato administrativo
“constituiu noção fundamental do direito administrativo”, vez que é sobretudo através
dele que a Administração faz sentir sua presença no mundo jurídico4.
Assim, o ato administrativo é que vai espelhar o agir da Administração frente
aos administrados. Portanto não é demais afirmar que, para se compreender o
núcleo do direito administrativo clássico e, em conseqüência, o desenvolvimento da
nossa pesquisa, é imperioso o conhecimento da teoria do ato administrativo.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma genericamente que onde existe
Administração Pública aí existe o ato administrativo. A rigor, a teoria do ato
administrativo é uma decorrência da própria criação do direito administrativo
enquanto ramo do direito destacado do direito comum, isto é: uma decorrência da
derrubada do Antigo Regime francês pela Revolução liberal de 1789.
Logo, a teoria do ato administrativo se desenvolveu paralelamente com a
própria “invenção” do direito administrativo. Assim, ainda segundo Di Pietro
Embora não se saiba exatamente em que momento a expressão foi
utilizada pela primeira vez, o certo é que o primeiro texto legal que fala em
atos da Administração Pública em geral, foi a Lei de 16/24-8-1790, que
vedava aos Tribunais conhecerem de “operações dos corpos
administrativos”. Depois, a mesma proibição constou da Lei de 3-9-1795,
onde se proibiu “aos tribunais conhecer dos atos da administração, qualquer
que seja a sua espécie”. Essas normas é que deram origem, na França, ao
contencioso administrativo; para separar-se as competências, houve
necessidade de elaboração de listas dos atos da administração excluídos
da apreciação judicial.
Em texto doutrinário, a primeira menção encontra-se no repertório de
Merlin, de Jurisprudência, na edição de 1812, onde ato administrativo se
define como “ordenança ou decisão de autoridade administrativa, que tenha
5 6
relação com a sua função” .
4
O autor ainda realiza a seguinte comparação: “se a comunicação do Poder Legislativo com o mundo
jurídico se faz mediante a lei, se o Poder Judiciário se expressa mediante a sentença, o Poder
Executivo, ou melhor, a Administração, nos três Poderes, faz sentir sua presença no mundo jurídico
por meio do ato administrativo. [...] O porta-voz do Poder Executivo é o ato administrativo. A
comunicação entre as pessoas públicas e os administrados se concretiza por meio dos atos
administrativos”. CRETELLA JÚNIOR, José. Do ato administrativo. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky
Editor, 1977, p. 01/02.
5
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15.ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 183.
6
Sobre a origem da expressão ato administrativo, Cretella Júnior refere que somente em época
recente houve a utilização desse termo, ele refere que “em 1812, na quarta edição do Repertório de
Guyot, a cargo de MERLYN, emprega-se pela primeira vez a expressão ‘ato administrativo’ se bem
que o elemento ‘ato’, integrante daquela designação, já fosse vocábulo técnico, consagrado pela
terminologia jurídica, nas edições anteriores de outros repertórios e decisões, mas circunscrito ao
19
Depois, é importante referir que a origem do ato administrativo também
guarda um forte conteúdo político, de contenção do Executivo monárquico pelos
representantes do povo em Parlamento (na origem: a burguesia em Parlamento), o
que se traduz juridicamente no princípio da separação das funções do Estado e dos
três Poderes, e, a partir disso, na supremacia do ato parlamentar (a lei) sobre a ação
executiva (do monarca)7.
Apresentadas as breves premissas históricas, falemos, agora, sobre o
conceito de ato administrativo. Nesse aspecto, a doutrina brasileira segue de perto
os fundamentos gerais desenvolvidos no direito administrativo francês.
Partindo da definição apresentada por José Cretella Júnior, o ato
administrativo é, antes de tudo, um ato jurídico8 (aspecto que o afasta de início dos
“atos reais” ou “atos-fato” da Administração, que são atos de mera execução
praticados pelos agentes administrativos).
A partir disso o autor refere que o primeiro passo para a definição de ato
administrativo é delimitar, dentre os atos jurídicos em geral que são praticados pelo
Estado, aquelas manifestações emanadas do Estado-Administração. Logo, para
este autor, o ato jurídico é gênero do qual o ato administrativo é espécie9.
Feita a referência sobre o ponto de partida para a realização do conceito,
José Cretella Júnior define então o ato administrativo da seguinte forma:
ato administrativo é a manifestação da vontade do Estado, por seus
representantes, no exercício regular de suas funções, ou por qualquer
pessoa que detenha, nas mãos, fração de poder reconhecido pelo Estado,
campo do direito civil e do processo. [...] Em 1843, a expressão ato administrativo é adotada na
Espanha, sendo definida por OLIVÁN, no livro De la administración publica com relación a España”.
CRETELLA JÚNIOR, 1977, p. 4/5.
7
Maria Sylvia Zanella Di Pietro refere que a noção de ato administrativo passou a ter sentido somente
a partir do momento que se tornou nítida a idéia de separação de funções, subordinando-se cada
uma delas a regime jurídico próprio: a própria autora ainda afirma que isso só existe em países em
que se reconhece a existência de um ‘regime jurídico-administrativo’, a que se sujeita a
Administração Pública, e que é diverso do regime de direito privado. DI PIETRO, 2003, p. 184.
8
CRETELLA JÚNIOR, José. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo. Rio de Janeiro: Forense,
1997, p. 116.
9
CRETELLA JÚNIOR, op. cit, loc. cit.
20
que tem por finalidade imediata criar, reconhecer, modificar, resguardar ou
10
extinguir situações jurídicas subjetivas, em matéria administrativa .
Em linha semelhante, Lúcia Valle Figueiredo identifica o conceito de ato
administrativo da seguinte forma:
Ato administrativo é a norma concreta, emanada pelo Estado, ou por quem
esteja no exercício da função administrativa, que tem por finalidade criar,
modificar, extinguir ou declarar relações jurídicas entre este (o Estado) e o
11
administrado, suscetível de ser contrastada pelo Poder Judiciário.
Dos conceitos acima descritos podem ser destacados os seguintes
elementos essenciais: o ato administrativo é: (i) uma ação praticada de forma
unilateral pelo Estado (emanação da vontade do Estado e independentemente da
vontade do atingido pela ação estatal), (ii) visando regular um fato determinado
(regular um caso concreto), (iii) entre ele (o Estado), e o administrado, sempre (iv) no
exercício da função administrativa12.
A partir desse conceito o ato administrativo diferencia-se basicamente (i) dos
contratos administrativos, que são atos bilaterais; (ii) das normas estatais, que são
atos de conteúdo abstrato; e (iii) das demais funções estatais que também regulam
relações entre o Estado e os indivíduos, mas que não têm caráter administrativo.
Traçada nossa visão geral sobre o conceito de ato administrativo, é
relevante tecer alguns comentários, de forma breve, sobre como podem ser
classificados esses atos.
Em que pese a doutrina estrangeira e nacional já terem escrito rios de tinta
sobre o tema em tela, o ato administrativo não é um instituto fácil de ser classificado.
Entretanto, embora difícil essa tarefa, ela é relevante, pois é através das
classificações e visualizações das especificidades de cada ato que é possível
10
Idem, p. 123/124.
FIGUEIREDO, 2000, p. 151/152.
12
Função Administrativa segundo Lúcia Valle Figueiredo “consiste no dever de o Estado, ou de quem
aja em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos comandos normativos de maneira
geral ou individual, para a realização dos fins públicos, sob regime prevalente de direito público, por
meios de atos e comportamentos controláveis internamente, bem como externamente pelo Legislativo
(com o auxílio dos Tribunais de Contas), atos, estes, revisíveis pelo Judiciário”. FIGUEIREDO, op. cit.,
p. 31/32.
11
21
resolver problemas práticos e identificar diferenças existentes entre as espécies de
ato administrativo13.
Adotamos aqui a classificação do ato administrativo realizada por José
Cretella Júnior, por entender que ela exprime orientação didática e científica sobre o
tema, a fim de que possamos identificar, diante de uma visão harmônica, o ato
administrativo discricionário, objeto próprio do nosso estudo.
Segundo o referido autor, a classificação dos atos administrativos deve
ocorrer de forma a somar, reunir as diferentes classificações já realizadas pela
doutrina, partindo, inicialmente, dos dois índices tradicionais (material e formal),
assinalando a partir deles as seguintes classificações: os atos materiais que, pela
antiga classificação, são classificados entre atos de império (isto é: atos praticados
em regime de prerrogativas e de autoridade) e atos de gestão (isto é: atos
praticados em regime de direito comum, ou privado); e pela moderna classificação
que divide os atos materiais através dos critérios de vontade, vinculação, âmbito
(raio de ação), objeto, pessoa jurídica e relações entre os atos (intercomunicação)14.
Inserido na classificação quanto à sua vinculação, encontra-se a subdivisão
do ato administrativo entre ato vinculado e ato discricionário.
O ato administrativo vinculado é aquele que possui todos os seus elementos
traçados previamente pela lei. Ele é regrado ou predeterminado, segundo José
Cretella Júnior, ele é “o ato administrativo que se concretiza pela vontade
condicionada ou cativa da Administração, obrigada a manifestar-se positivamente,
desde que o interessado preencha, no caso, determinados requisitos fixados, a
priori, pela lei”.15
Sobre ato administrativo vincluado, Fábio de Oliveira refere:
13
Nesse sentido refere CRETELLA JÚNIOR, José. Controle Jurisdicional do Ato Administrativo. Rio
de Janeiro: Forense, 1997, p. 125.
14
CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 131/132.
15
CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 149.
22
Não se deixa qualquer liberdade (opção) sobre a conduta a ser tomada,
visto que a lei por antecipação regula todos os aspectos da ação que deve
ser adotada. Diz-se que não há uma submissão total às determinações
legais, uma mera execução da tipificação objetiva que regra o único
16
comportamento contemporâneo administrativo possível (obrigatório).
A doutrina, de forma exaustiva, já trabalhou este conceito, podendo ele ser
resumido nos seguintes termos: o ato administrativo vinculado é aquele em que a lei
predetermina todos os seus elementos, bastando ao Estado (Administração)
executá-lo, inexistindo margem de escolha, somente execução17.
Como acima exposto, a forma vinculada do ato administrativo faz com que
haja uma total submissão do administrador à lei, uma vez que ele apenas pode
seguir os ditames por ela impostos, não existindo nem possibilitando, perante o caso
concreto para o qual ele foi formulado, qualquer margem de escolha ou liberdade ao
administrador.
Entretanto, dessa situação surge a seguinte circunstância: nem sempre a lei
consegue prever de forma clara e precisa todas as situações a serem vivenciadas
pela Administração Pública, ou seja, o legislador, ao editar as leis, não possui de
fato condição de visualizar todas as situações que a Administração vai enfrentar e,
assim, prever de forma predeterminada e única como deverá ser a sua atuação.
Nesse sentido, por vezes, no intuito de permitir a ação da Administração
Pública, a lei confere ao administrador determinada margem de escolha para que
ele, de acordo com os critérios de oportunidade e conveniência, a serem analisados
no caso concreto, escolha qual a melhor forma de desempenhar a sua função.
É justamente essa margem de escolha (prevista expressamente na lei) que
é chamada de discricionariedade administrativa, a qual compõe o objeto central da
nossa dissertação e, a partir de agora, será mais pormenorizadamente analisada.
16
OLIVEIRA, Fábio de. Por uma Teoria dos Princípios – O Princípio Constitucional da Razoabilidade.
2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 135
17
Nesse sentido: LUSTOSA JÚNIOR, Hélio Dourado. Ato administrativo e Discricionariedade. In:
Estudos de Direito Administrativo. Em homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello.
São Paulo: Max Limonad, 1996. p. 225-266; NOVAIS, Raquel Cristina Ribeiro. A razoabilidade e o
exercício da discricionariedade. In: Estudos de Direito Administrativo. Em homenagem ao Professor
Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 24.
23
1.2 Discricionariedade administrativa: a construção de um conceito
O termo “discricionário” pode nos apresentar, na sua literalidade, um sentido
ambíguo, uma vez que pode nos levar a identificar tal expressão como sinônimo de
arbitrariedade, já que este é um elemento que constitui o sentido linguístico do
termo, sobretudo na linguagem usual18.
Entretanto, em que pese o seu sentido literal levar-nos a esse entendimento,
não devemos projetá-lo ao sentido jurídico, pois aí teríamos o sentido de
discricionariedade como liberdade juridicamente ilimitada19.
Enfrentado
o
sentido
lingüístico
usual
(“dicionarístico”)
do
termo
discricionariedade, passemos, agora, ao que efetivamente importa, isto é: à
abordagem do sentido técnico-jurídico dessa expressão.
De acordo com o que até aqui foi trabalhado, é corrente identificar o ato
administrativo discricionário em contraposição ao ato administrativo vinculado20,
sendo que, ao contrário do vinculado, no ato administrativo discricionário o
Administrador possui certa margem de escolha na sua forma de atuar.
Assim, a discricionariedade presente no ato administrativo é justamente a
margem de opção do administrador para escolher qual o caminho a seguir diante
das possibilidades permitidas pela lei.
18
Conforme sentido literal descrito por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira: discricionário adj. Que
precede ou se exerce à discrição; arbitrário. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário
Aurélio. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1990, p. 165.
19
Segundo refere João Roberto Santos Régnier, “Da lingüística, portanto, vem-nos a sinalização
inaugural para o enfrentamento do estudo no âmbito do Direito. Como primeiros passos em direção a
esse horizonte, pode-se, pois, aquiescer em que os vocábulos arbítrio, discrição, arbitrário, e
discricionário, embora possam ostentar em sentido próprio a idéia de liberdade, arbitrário e
arbitrariedade (encerrando o sentido de liberdade ilimitada) contrariam frontalmente o Direito,
enquanto que discricionário e discricionariedade (liberdade condicionada a certos limites) com ele
podem conviver.” RÉGNIER, João Roberto Santos. Discricionariedade Administrativa. Significação,
Efeitos e Controle. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 28.
20
Para João Roberto Santos Régnier, a contraposição existente entre ato administrativo discricionário
e ato administrativo vinculado é o primeiro ponto que empresta substrato de apoio para a
compreensão da “discricionariedade administrativa”. RÉGNIER, 1997, p. 28/31.
24
Traçadas essas premissas, passemos à análise do conceito de ato
administrativo discricionário por alguns doutrinadores pátrios.
Celso Antônio Bandeira de Mello apresenta o seguinte conceito de
discricionariedade administrativa:
Discricionariedade [...] é a margem de liberdade que remanesça ao
administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade,
um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso
concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à
satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões
da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair
21
objetivamente, uma situação unívoca para a situação vertente .
Em raciocínio similar, José Cretella Júnior expõe que tal poder possibilita
certa margem de desvinculação do agente, permitindo-lhe a formulação de
juízos de valor, síntese convergente de uma série infinita de operações
emotivo-intelectivas, que dão como resultado, na prática, ao
pronunciamento administrativo, ação ou inércia, palavra ou silêncio,
consubstanciada, muitas vezes, a conduta no ato administrativo
discricionário. O agente administrativo deve mesmo ter sensibilidade para
22
ajustar a ação administrativa ao meio .
Dessa forma, a concepção corrente de discricionariedade administrativa
consiste justamente em conceder aos agentes da Administração Pública o poder de
escolha entre duas ou mais formas de atuação, todas elas válidas perante o Direito.
No mesmo sentido leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro, referindo que a
discricionariedade administrativa é a “faculdade que a lei confere à Administração
para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e
escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito”23.
A autora confere, ainda, à discricionariedade outra característica, referindo
que ela “é indispensável para permitir o poder de iniciativa da Administração,
21
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2007. p. 48.
22
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999,
p. 221.
23
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. São
Paulo: Atlas, 2001. p. 67.
25
necessário para atender às infinitas, complexas e sempre crescentes necessidades
coletivas”24.
Nesse diapasão nota-se que é corrente na doutrina conceituar a
discricionariedade administrativa como sendo uma espécie de faculdade conferida
pela lei ao administrador.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por fim, confere à discricionariedade
administrativa inclusive o status de princípio geral do direito administrativo, quando
afirma:
É o princípio substantivo mais característico do Direito Administrativo, a
ponto de, para muitos autores, integrar o próprio conceito da disciplina.
[...], não sendo possível esgotar no preceito legal todas as hipóteses
casuísticas da atuação administrativa do Estado na prossecução dos
interesses públicos, o legislador comete, pela própria norma legal
preceitual, ao executor administrativo, um leque de opções de escolha da
oportunidade ou da conveniência de agir ou de ambas.
A discricionariedade abre, assim, para a Administração Pública um novo
espaço jurídico decisório substantivo, dentro do qual seus agentes poderão,
conforme a amplitude definida pelo legislador, escolher, total ou
parcialmente, o motivo e o objeto de seus atos, ou ambos, para realizar a
25
boa administração .
Entretanto, devemos fazer referência a um elemento de suma importância
constante nesses diversos conceitos, que é a limitação desse exercício
discricionário, ou seja, a Administração Pública deve exercer sua escolha de acordo
com os contornos legítimos previamente dados pelo ordenamento jurídico. Logo, ela
não age de forma livre e desregrada, mesmo nesse contexto a sua atuação é de
certa forma vinculada26, e portanto não há como confundir discricionariedade com
“plena liberdade” ou livre arbítrio, e, menos ainda, com ato arbitrário.
24
DI PIETRO, 2001. p. 67.
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral
e parte especial. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 97.
26
Nesse sentido: RÉGNIER, João Roberto Santos. Discricionariedade Administrativa. Significação,
efeitos e controle. São Paulo: Malheiros Editores. 1997, p. 28.
25
26
1.3 Elementos do ato administrativo e presença de discricionariedade
Entendido que discricionariedade é liberdade limitada pelo ordenamento
jurídico, cabe agora identificar – no âmbito dos elementos que constituem o ato
administrativo – onde é possível encontrar discricionariedade27.
Como todo ato jurídico, o ato administrativo é composto por alguns elementos
que se conjugam e completam para o fim de atender os preceitos legais e
produzirem no mundo jurídico efeitos válidos28.
No direito brasileiro, é o art. 2º da Lei nº. 4.717/65 (Lei da Ação Popular) o
instrumento legal básico a enumerar expressamente (em uma interpretação a
contrario sensu) os elementos constitutivos, isto é, os elementos de existência e de
validade do ato administrativo29. Assim, ao elencar os vícios nos elementos do ato
administrativo, esse art. 2º também pressupõe inversamente os próprios elementos
de existência e de validade do ato administrativo.
27
Embora exista divergência doutrinária acerca do referido tema (elementos do ato administrativo),
compartilho do entendimento de Lúcia Valle de Figueiredo, a qual concorda com Celso Antônio
Bandeira de Mello, no sentido de que o ato administrativo é integrado de elementos. FIGUEIREDO,
Lúcia Valle de. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 173.
28
Conforme refere MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 164.
29
Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos
casos de:
a) incompetência;
b) vício de forma;
c) ilegalidade do objeto;
d) inexistência dos motivos;
e) desvio de finalidade.
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes
normas:
a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do
agente que o praticou;
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de
formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;
c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei,
regulamento ou outro ato normativo;
d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se
fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido;
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele
previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.
27
Podemos identificar, portanto, de acordo com o referido dispositivo legal,
cinco elementos constituintes do ato administrativo, sendo eles: (i) agente, (ii) forma,
(iii) objeto, (iv) motivo e (v) finalidade.
A mesma lei ainda pressupõe os requisitos de validade em relação a esses
cinco elementos. Trata-se da (i) competência do agente, (ii) forma conforme prevista
na lei, (iii) licitude e possibilidade do objeto, (iii) existência e/ou veracidade de
motivos para agir, e (v) interesse público como finalidade do agir.
Passemos agora à compreensão de cada um desses elementos de
existência e de validade.
Segundo disciplina Lúcia Valle de Figueiredo, a competência significa o “plexo
de atribuições outorgadas pela lei ao agente administrativo para a consecução do
interesse público postulado pela norma”30.
Isso significa que é competente para editar o ato administrativo o agente a
quem a lei habilita para tanto. Segundo este elemento, os atos administrativos
devem ser praticados por quem tiver competência para tanto, sob pena de
invalidade, ou seja, o ato administrativo somente pode e deve ser praticado por
pessoa habilitada, sob pena de, sendo praticado por pessoa incompetente, o ato ser
considerado inválido31.
A forma é o modo de exteriorização do ato administrativo32. No tocante à
forma do ato administrativo, José Cretella Júnior refere o seguinte:
Os requisitos formais exigidos para o ato jurídico, em geral (forma prescrita
ou não defesa em lei), são os mesmos que se exigem para o ato
administrativo: se a lei prescrever determinada forma para o ato, sob o risco
de invalidade deve este acomodar-se à referida prescrição. Silenciando a
lei, nesse particular, pode o ato ser praticado por qualquer das formas em
33
direito permitidas .
30
FIGUEIREDO, 2000, p. 175.
MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. Vol. 11. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 110.
32
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 195.
33
CRETELLA JÚNIOR, José. Do ato administrativo. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1977.
p. 36.
31
28
Assim, se prescrita em lei a forma em que deve ser exteriorizado determinado
ato administrativo, ele deve ser realizado de acordo com a previsão legal, sob pena
de ser o ato administrativo inválido34.
No tocante ao objeto, podemos referir que ele consiste no efeito práticojurídico buscado pela edição do ato administrativo, é aquilo sobre o qual o ato
administrativo dispõe, ou seja, o efeito jurídico imediato que o ato produz35. Segundo
Odete Medauar,
Objeto significa o efeito prático pretendido com a edição do ato
administrativo ou a modificação por ele trazida ao ordenamento jurídico.
[...]
O objeto há de ser lícito, isto é, o resultado pretendido deve ser aceito pelo
ordenamento, porque pautado em lei; moral – conforme os princípios
éticos e a todas as regras de conduta extraídas da disciplina geral da
36
Administração; possível – referente a algo realizável de fato e de direito.
No que se refere aos motivos do ato administrativo, eles significam as
circunstâncias de fato e os elementos de direito que provocam e precedem a edição
do ato administrativo37. Segundo leciona Lúcia Valle de Figueiredo, “podemos
conceituar motivo como sendo o pressuposto fático, ou acontecimento no mundo
fenomênico, que postula, exige ou possibilita a prática do ato”38.
Assim, podemos referir que o motivo do ato administrativo é a situação
anterior à prática do ato, são as questões de fato e de direito que acabam
determinando a realização do ato administrativo. Em resumo: motivo é a causa que
legitima e/ou exige a prática do ato administrativo.
34
Sobre a análise da forma do ato administrativo propriamente dita, refere Rafael Maffini: “tem-se que
a grande maioria dos atos administrativos tem forma escrita. Todavia, não se pode afirmar que todos
tenham tal espécie de forma. Com efeito, existe a possibilidade de que o ato administrativo tenha
forma diversa da escrita (ex.: verbal, mímica, sonora, eletromecânica etc.). Isso ocorre basicamente
em duas situações: quando a lei determina forma diversa da escrita ou quando circunstâncias
emergenciais determinam a utilização de forma extraordinária. Por fim, não se pode confundir a forma
dos atos administrativos com a sua formalidade. Aquela (a forma) é o modo de exteriorização do ato
administrativo; esta (a formalidade) consiste na especificação, ou seja, a minúcia da forma.” MAFFINI,
2006. p. 112/113.
35
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 199.
36
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
p. 166.
37
Conceito trabalhado por Odete Medauar. MEDAUAR, op cit., p. 167.
38
FIGUEIREDO, Lúcia Valle de. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, p. 176.
29
A finalidade, por fim, está relacionada com o interesse público perseguido
pela Administração Pública, este é a meta que se busca atingir com o ato
administrativo, nesse sentido refere Odete Medauar:
O agente competente, em vista de circunstancias de fato e de razões de
direito, edita um ato administrativo que produzirá um efeito prático, com o
objetivo de obter uma conseqüência final, o fim, traduzido como o interesse
público. O interesse público é a meta a ser atingida mediante o ato
administrativo. Elemento típico do ato administrativo, o fim de interesse
público vincula a atuação do agente, impedindo a intenção pessoal. Por
isso, a afirmação do fim como elemento do ato administrativo representa
39
uma das grandes conquistas do direito público moderno .
Traçadas as premissas sobre os elementos de existência e validade que
compõem o ato administrativo, resta-nos, agora, analisar onde, no interior desta
estrutura do ato, é que podemos identificar a presença da discricionariedade.
Com relação à competência ou ao sujeito a quem a lei determina como
competente, não existe discricionariedade, pois, conforme refere Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, ela “é fixada em lei; é inderrogável, seja pela vontade da
Administração, seja por acordo com terceiros, embora possa ser objeto de
delegação ou avocação, desde que não conferida a determinado órgão ou agente
com exclusividade”40.
Assim, no que se refere ao elemento da competência dos atos
administrativos, podemos concluir, liminarmente, que inexiste discricionariedade
nesse âmbito. Isso porque a competência refere-se ao agente que pratica ou deve
praticar o ato, ele será ou não será competente para tanto, não cabendo, portanto,
margem de escolha ao administrador quanto a ser ou não ser competente, e em
conseqüência, inexistindo discricionariedade.
Quanto à forma do ato, ela poderá ser por vezes vinculada e por vezes
discricionária, ou seja, se a lei previamente definir uma certa forma de como o ato
deverá ser exteriorizado, ao Administrador não haverá margem ou opção de escolha
para agir senão daquela forma, inexistindo no caso discricionariedade. Todavia,
39
MEDAUAR. 2002. p. 168.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2001. p. 80.
40
30
quando a lei não determinar previamente a forma do ato, aí então haverá
discricionariedade.
Nesse sentido, refere Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
a não ser que a lei imponha à Administração a obrigatoriedade de
obediência de determinada forma (como decreto, resolução, portaria), o ato
pode ser praticado pela forma que lhe parecer mais adequada.
Normalmente as formas e procedimentos mais rigorosos são exigidos
quando estejam em jogo direitos dos administrados, como ocorre nos
concursos públicos, nas licitações, no processo disciplinar.
Ressalte-se, também, que às vezes a lei prevê mais de uma forma possível
para atingir o mesmo efeito jurídico: o acordo pode ser formalizado, em
determinadas hipóteses, por meio de ordem de serviço, nota de empenho,
carta de autorização; a ciência de um ato ao interessado pode, quando a lei
permita, ser dada por meio de publicação ou de notificação direta. Nesses
41
casos existe discricionariedade quanto a forma .
No que se refere, por sua vez, ao motivo do ato, é inconteste, na doutrina, de
que pode existir discricionariedade quanto a esse elemento42.
Por um lado, quando a lei definir qual o motivo do ato, ou seja, predeterminar
a letra da lei de forma precisa, quais os casos (fáticos) que ensejam a realização de
determinado ato, o ato será vinculado. Por outro lado, haverá discricionariedade
quando for conferido à Administração o poder de analisar o caso concreto e escolher
o motivo que ensejará a prática do ato. Nesse caso a discricionariedade estará
presente justamente na possibilidade de escolha do motivo.
Quanto ao objeto do ato administrativo, também nele pode estar presente a
discricionariedade, pois a lei pode deixar margem de escolha à Administração em
duas ou mais opções de objeto ou, pode, ainda, conferir a faculdade de praticar ou
não o ato. Maria Sylvia Zanella Di Pietro assim refere:
a norma jurídica ao estabelecer os efeitos jurídicos que decorrem de
determinada conduta, pode deixar ou não certa margem de
discricionariedade para a Administração. Isso ocorre quando ela confere
mera faculdade de agir e quando dá à Administração mais de uma opção
para agir. É a discricionariedade situada no mandamento da norma. Assim,
a lei pode dizer que, diante de determinada situação, apenas um efeito
41
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2001. p. 83.
42
Conforme refere Maria Sylvia Zanella Di Pietro. DI PIETRO, op. cit., p. 83/84.
31
jurídico é possível; por exemplo, praticada certa infração de trânsito, a lei
pode prever pena de multa apenas. Ou pode ocorrer que a lei preveja dois
ou mais efeitos jurídicos (objetos) possíveis, à escolha da Administração,
segundo critérios puramente administrativos, ou seja, de oportunidade e
conveniência; exemplo disso é a previsão de duas ou mais penalidades
para punir determinada infração, cabendo à Administração escolher uma
43
delas .
Com relação à finalidade do ato, embora haja dissenso na doutrina quanto à
presença da discricionariedade neste elemento44, entendemos, outrossim, que não
existe discrição por parte do agente que pratica o ato no tocante a sua finalidade,
pois o fim a ser buscado com o ato é sempre vinculado ao interesse público, esse é
o objetivo maior a ser alcançado em virtude de lei, não havendo qualquer margem
de discricionariedade quanto a um possível desvio de finalidade na persecução
desse interesse público.
É verdade que é possível cogitar de um ato administrativo que também é
praticado no interesse privado. Por exemplo, uma autorização administrativa45. Mas
intrinsecamente deve concorrer também o interesse público na edição da
autorização, e é portanto a presença concorrente do interesse público que permite
afirmar que inexiste desvio de finalidade nesse caso.
De todo o modo, admitir a prática de um ato administrativo onde não haja
interesse público no agir poderia, inclusive, colocar em xeque a própria noção de
Administração Pública: a Administração que é pública não pratica atos em que não
haja interesse público.
43
DI PIETRO. op cit. p. 80/81.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro trabalha bem essa questão. Ela elenca, em seu livro
“Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988”, qual o posicionamento de alguns dos
principais doutrinadores administrativistas brasileiros sobre o tema e encerra apresentando a sua
posição onde considera que não há a mínima possibilidade de contestação quando se afirma que a
Administração está vinculada a fins de interesse público, porém admite a possibilidade de existência
de certa margem de discricionariedade quando os fins têm que ser analisados em relação a cada
caso concreto. DI PIETRO, op. cit., p. 84/86.
45
Autorização administrativa, segundo conceito apresentado por Celso Ribeiro Bastos é “o ato
administrativo, unilateral, discricionário e precário pelo qual o Poder Público somente consente ou
delega o exercício de determinada atividade a particular interessado (autorizatário) a fim de atender a
interesses coletivos instáveis ou a uma emergência”. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito
Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 208.
44
32
Como conclusão é possível afirmar, então, que não existe discricionariedade
nos elementos “competência” e “finalidade”, sendo possível haver, então, nos
elementos “forma”, “motivo” e “objeto”.
1.3.1 Mérito administrativo
Considerando os elementos que constituem o ato administrativo, e sobretudo
considerando aqueles onde há discricionariedade, existe um outro conceito que
merece destaque, que é o chamado “mérito administrativo”.
O mérito administrativo é um conceito que possui íntima relação com a
discricionariedade administrativa. Conforme já se viu, a discricionariedade decorre
da possibilidade que a lei confere ao administrador público de realizar a escolha
entre as várias soluções legalmente previstas.
No que pertine ao ato administrativo, o mérito está vinculado à própria
decisão do administrador frente às opções dadas pela lei - ele relaciona-se à
amplitude ou extensão da própria discricionariedade, é a parte do ato administrativo
que constitui a própria decisão discricionária46.
Para usarmos da linguagem consagrada no direito administrativo, quando a
lei confere discricionariedade, a lei confere uma certa margem de ação ao agente
administrativo. A totalidade dessa margem da decisão em favor do agente é o
“mérito” do ato administrativo discricionário. Dentro dessa margem legal de ação, o
administrador adota uma ou outra decisão segundo critérios de “conveniência e
oportunidade”.
Celso Antônio Bandeira de Mello assim apresenta essas noções:
Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a
remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios
de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções
46
Nesse sentido refere CRETELLA JÚNIOR, José. Do ato administrativo. 2. ed. São Paulo: José
Bushatsky Editor, 1977. p. 82.
33
admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade
legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas
47
seria a única adequada .
No tocante ao mérito, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, citando Seabra
Fagundes, leciona que:
o mérito se relaciona com a intimidade do ato administrativo, concerne ao
seu valor intrínseco, à sua valoração sob critérios comparativos. Ao ângulo
do merecimento não se diz que o ato é legal ou ilegal, senão que é ou não é
o que devia ser, que é bom ou mau, que é pior ou melhor do que outro. E
por isto é que os administrativistas o conceituam, uniformemente, como o
aspecto do ato administrativo, relativo à conveniência, à oportunidade, à
utilidade intrínseca do ato, à sua justiça, à finalidade, aos princípios da boa
gestão, à obtenção dos desígnios genéricos e específicos, inspiradores da
48
atividade estatal .
Diante disso, podemos identificar, portanto, que o mérito possui imbricada
relação com a discricionariedade, pois ela (discricionariedade) é a liberdade de
opção dentre duas ou mais situações previstas pela lei para solução de determinado
fato concreto; e ele (mérito) é justamente a totalidade das margens de escolha pela
Administração diante das opções legais e possíveis apresentadas.
Estabelecidos os limites de liberdade, a decisão individual e correta será
tomada pelo administrador conforme critérios de conveniência e oportunidade.
1.3.2 Limites ao exercício da discricionariedade
De acordo com o até aqui trabalhado podemos concluir, preliminarmente,
que a discricionariedade é a margem de liberdade legal conferida ao administrador
no exercício de suas funções administrativas. Traçada essa premissa, ou seja,
construído este conceito, surge a seguinte indagação: pode o administrador, no
exercício da discricionariedade, exercê-la sem nenhuma limitação intrínseca, isto é:
em total liberdade no âmbito que lhe é legalmente permitido tomar uma outra
decisão? Até que ponto a Administração pode ir no exercício do seu poder
discricionário? Dito de outro modo: existem limites jurídicos também para o uso da
47
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2007. p. 38.
48
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 210.
34
“oportunidade e conveniência” no exercício da discricionariedade? Essas questões
intrigam os doutrinadores49 e são de suma relevância para nossa pesquisa.
No intuito de buscar respostas a essas indagações partiremos à análise, a
partir de agora, de duas teorias básicas e tradicionais que identificam os limites à
própria discricionariedade, que são a teoria do desvio de poder (ou de finalidade) e a
teoria dos motivos determinantes (princípio da motivação). Conforme já se viu acima,
todas as duas estão expressamente previstas no art. 2º da Lei da Ação Popular
(alíneas “d” e “e”).
1.3.2.1 Teoria do desvio de poder ou desvio de finalidade
Na chamada teoria do desvio de poder ou finalidade, nascida na França50, o
administrador usa a competência discricionária para atingir finalidade diversa
daquela prevista em lei.
Sobre essa teoria, Odete Medauar refere:
A teoria do desvio de poder, de origem francesa representou importante
passo no sentido de direcionar o exercício do poder discricionário aos fins
de interesse público explícitos ou implícitos, em razão dos quais esse poder
foi conferido ao agente administrativo; os poderes atribuídos aos agentes
visam ao atendimento do interesse público pertinente à matéria em que
esses agentes atuam; não se destinam tais poderes à satisfação de
interesses pessoais, de grupos, de partidos, nem são instrumentos de
51
represália, vingança ou favorecimento próprio ou alheio .
Conforme leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro, essa teoria possui o objetivo
de limitar o exercício do poder discricionário, de modo a ampliar a possibilidade de
sua apreciação pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, ela sustenta que:
o desvio de poder ocorre quando a autoridade usa do poder discricionário
para atingir fim diferente daquele que a lei fixou. Quando isso ocorre fica o
49
Cf. DI PIETRO, 2001. p. 133; MELLO, 2001. p. 108.
Conforme refere Celso Antônio Bandeira de Mello em nota de rodapé nº. 28, a teoria do desvio de
poder nasceu na França, onde em 1864, o Conselho de Estado da França admitiu pela primeira vez o
“desvio de poder”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2.
ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 56, nota de rodapé nº. 28.
51
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
p. 187.
50
35
Poder Judiciário autorizado a decretar a nulidade do ato, já que a
Administração fez uso indevido da discricionariedade, ao desviar-se dos fins
52
de interesse público definidos na lei .
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello53 existem duas modalidades de
desvio de poder: a primeira refere-se à atuação do agente público, no sentido de que
ele, utilizando-se da competência que lhe é outorgada legalmente, age de forma a
dar prevalência a um interesse alheio ao interesse público, com o objetivo de
satisfazer desejo pessoal, favorecer alguém, ou por paixão política ou questão
ideológica. Já a segunda ocorre quando o administrador público, igualmente
legitimado, age visando a atender uma finalidade pública, porém não a finalidade
específica relacionada na orientação legal.
1.3.2.2 Teoria dos motivos determinantes
A segunda teoria, chamada de teoria dos motivos determinantes, preceitua
que os motivos que determinaram a vontade do administrador, e que serviram de
suporte à sua decisão, integram a validade do ato administrativo. Nesse sentido,
segundo dispõe Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ela ocorre “quando a Administração
indica os motivos que a levaram a praticar o ato, este somente será válido se os
motivos forem verdadeiros”54.
Em outras palavras, uma vez descritos pelo administrador os motivos em que
se baseou para praticar determinado ato, ainda que a lei não tenha estabelecido
antecipadamente quais os motivos que ensejaram a prática daquele ato específico,
este só será válido e, portanto, legal, se os motivos declarados realmente existirem e
justificarem o ato praticado55.
52
DI PIETRO, 2003. p. 202.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros,
2003. p. 372.
54
DI PIETRO, 2003, p. 202.
55
Rogério Leal refere que a análise dos motivos do ato administrativo constitui vetor indispensável à
caracterização da moralidade. LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 127 et seq.
53
36
Necessário relembrar, como já destacado na análise deste elemento, que os
motivos podem ou não estar previstos em lei, mas, no caso de eles serem
expressamente previstos, a atuação do administrador estará obrigatoriamente
vinculada ao motivo alegado.
Entretanto, quando não existir previsão de motivos, poderá o administrador
escolher a situação fática em vista da qual editará o ato, porém deve o ato obedecer
aos limites legais abstratamente previstos. Mesmo quando não é necessário elencar
expressamente os motivos que levaram à prática do ato – o exemplo clássico é o da
livre nomeação ou exoneração em cargos em comissão (art. 37, inciso II, da
Constituição de 1988) –, os motivos devem ser verdadeiros no caso de o agente
praticar o ato mediante motivação expressa.
Dito isso, deve ficar claro que os motivos e motivação são fenômenos
distintos entre si56. A motivação é a formalização ou exteriorização dos motivos que
levaram à prática do ato administrativo. Logo, a teoria dos motivos determinantes diz
respeito, em realidade, a essa formalização ou exteriorização. Ela busca saber se a
formalização (aquilo que foi externado) efetivamente corresponde à realidade dos
fatos. A rigor, portanto, quando essa teoria é aplicada, ela não permite um controle
dos motivos do ato administrativo, e sim da motivação propriamente dita. Nesse
sentido, ela não autoriza um controle dos motivos, ela se dirige (somente) à
motivação do ato.
Seguindo-se então a doutrina tradicional, em princípio existe um controle de
atos administrativos discricionários no tocante ao desvio de poder e no tocante à
motivação do ato. Nota-se, portanto, que ela não afirma haver controle da parte
discricionária propriamente dita do ato administrativo, isto é: do uso da liberdade
pelo agente administrativo naquilo que diz respeito à forma, ao motivo e ao objeto.
Passemos, agora, então, exatamente à análise de como é possível – e
inclusive se é possível – o controle judicial genérico da discricionariedade
56
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ato Administrativo e direitos dos administrados. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1981, p. 74-75.
37
administrativa propriamente dita, isto é: um controle judicial do chamado “mérito
administrativo”.
1.4 Controle judicial do mérito administrativo
Construído o conceito de discricionariedade administrativa e traçadas as
premissas referentes aos limites existentes para o exercício desse poder, passemos,
agora, ao centro da discussão proposta neste capítulo, que é investigar a
possibilidade ou não de o Poder Judiciário efetuar um controle do mérito do ato
administrativo, revisando, com isso, as decisões de oportunidade e conveniência dos
agentes administrativos.
Nesse diapasão, a doutrina e a jurisprudência, na sua compreensão
tradicional, defendem a impossibilidade de o Poder Judiciário promover tal revisão,
afirmando que ele não está legitimado a promover a fiscalização ou o controle de
decisões válidas de conveniência e oportunidade.
A defesa dessa posição parte do pressuposto, dentre outros argumentos, de
que os três Poderes, por serem harmônicos e independentes, não podem sofrer
sobreposição de funções dentro de cada Poder, sendo vedada a recíproca invasão e
usurpação de atribuições. Assim, se a norma jurídica confere uma certa margem de
liberdade de ação ao administrador, não cabe ao Poder Judiciário se substituir ao
administrador na escolha de qual conduta será adotada57.
Conforme a doutrina tradicional, dentre a qual destaco o entendimento de
José Cretella Júnior, o mérito do ato administrativo é zona inapreciável pelo Poder
Judiciário, conforme segue:
o mérito tem sentido técnico especialíssimo, referindo-se à oportunidade e à
conveniência das medidas, sendo, pois, inexaminável pelo Poder Judiciário
sob qualquer aspecto; assim entendido, o mérito ou merecimento não se
confunde de modo algum com a legalidade ou legitimidade, nem a esta se
contrapõe, pela própria natureza específica dos dois campos; ao Poder
57
Em sentido semelhante refere SILVA, Almiro Couto e. Poder discricionário no direito administrativo
brasileiro. In: Revista de Direito Administrativo nº. 179/180. Rio de Janeiro: Renovar, 1945, p. 65.
38
Judiciário é facultado o exame do mérito do processo administrativo,
investigando se houve o fato, fiscalizando as provas através do reexame,
indo aos motivos, observando se houve aplicação falsa, viciosa ou errônea
da lei ou regulamento. Tudo isso é exame da legalidade, porque o mérito do
ato administrativo, a valoração do fato, resumida no binômio oportunidadeconveniência, continua a ser campo privativo da Administração, insuscetível
58
de reexame pelo Poder Judiciário .
Conforme refere Almiro Couto e Silva, ao explicar a concepção tradicional, “os
limites do controle judicial começavam onde se iniciava o mérito ou o merecimento
do ato administrativo”59, sendo vedado, portanto, ao Poder Judiciário adentrar os
aspectos de conveniência e oportunidade do ato administrativo60.
Ao Poder Judiciário, segundo a concepção tradicional, seria possível apenas
apreciar o ato administrativo segundo seus aspectos externos, isto é: tudo aquilo
que não diz respeito ao mérito, sendo a ele vedado, portanto, o exame do ato sob o
seu aspecto interno, ou seja, sendo vedado adentrar no mérito administrativo
propriamente dito61.
Como acima trabalhado, é possível identificar em alguns dos elementos que
compõem os atos administrativos (isto é: forma, motivo e objeto) a presença de
discricionariedade. Ao mesmo tempo há elementos onde inexiste discricionariedade
(competência e finalidade). A partir disso, é possível distinguir, dentro de cada ato
administrativo discricionário, elementos “extrínsecos”, que são aqueles onde inexiste
discricionariedade, e elementos “intrínsecos” que são aqueles onde se constata a
discricionariedade.
Nesse sentido, seguindo-se a concepção tradicional, os elementos
extrínsecos à discricionariedade são passíveis de análise e controle judicial, ao
passo que os elementos intrínsecos estão fora de uma análise e de um controle
58
CRETELLA JÚNIOR. José. Do ato administrativo. 2. ed. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1977.
p. 82/83.
59
SILVA, Almiro Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. In: Revista de Direito
Administrativo nº. 179/180. Rio de Janeiro: Renovar, 1945, p. 64.
60
Cf. refere Seabra Fagundes “ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle
jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examina-los, tão somente, sob o prisma da
legalidade. Este é o limite do controle quanto à extensão”. FAGUNDES, M. Seabra. O Controle dos
atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 145.
61
SILVA, Almiro Couto e. 1945, p. 65.
39
judicial. Nesse âmbito está protegida a análise da conveniência e oportunidade pelo
administrador, existindo o mérito administrativo.
Esse entendimento tradicional de não-controle do mérito dos atos
administrativos discricionários não é mera criação da doutrina ou da jurisprudência
pátrias. Ele decorre de uma das primeiras leis republicanas.
Assim, a Lei nº. 221, de 20 de novembro de 1894, lei que completava a
organização da recém-criada Justiça Federal, previu em seu art. 13, § 9º, o que
segue:
Art. 13. Os juizes e tribunaes federaes processarão e julgarão as causas
que se fundarem na lesão de direitos individuaes por actos ou decisão das
autoridades administrativas da União.
[...]
§ 9º Verificando a autoridade judiciaria que o acto ou resolução em questão
é illegal, o annullará no todo ou em parte, para o fim de assegurar o direito
do autor.
a) Consideram-se ilIegaes os actos ou decisões administrativas em razão
da não applicação ou indevida applicação do direito vigente. A autoridade
judiciaria fundar-se-ha em razões juridicas, abstendo-se de apreciar o
merecimento de actos administrativos, sob o ponto de vista de sua
conveniencia ou opportunidade;
b) A medida administrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder
discricionario sómente será havida por illegal em razão da incompetencia da
62
autoridade respectiva ou do excesso de poder.
Feita uma análise desse dispositivo legal, vê-se que é dele que surgem
conceitos fundamentais relativos à matéria “discricionariedade”. Dele vêm, por
exemplo, a noção de distinção entre atos vinculados e atos discricionários, a noção
de “mérito”, a noção de “oportunidade e conveniência” e, não por último, a partir da
alínea “b”, também a distinção (implícita) entre elementos extrínsecos e intrínsecos
dos atos administrativos discricionários.
Nesse contexto, era vedado ao Poder Judiciário apreciar “o merecimento
dos atos administrativos, sob o ponto de vista de sua conveniência e oportunidade”,
ou seja, era vedado ao Poder Judiciário adentrar a análise do mérito do ato
administrativo, o elemento intrínseco à discricionariedade.
62
Fonte: http://www6.senado.gov.br/sicon/ExecutaPesquisaBasica.action.
40
Então, segundo a posição tradicional, pode-se concluir que a atividade
administrativa vinculada (por ter todos os elementos do ato administrativo
previamente estabelecido na norma legal) admite o controle judicial em toda a sua
extensão. Um exemplo disso é a seguinte ementa do nosso Supremo Tribunal
Federal:
“CONTROLE JURISDICIONAL DE ATO ADMINISTRATIVO VINCULADO.
O EXAME, PELO PODER JUDICIÁRIO, DE SUA LEGALIDADE,
COMPREENDE, QUER OS ASPECTOS FORMAIS, QUER OS
MATERIAIS, NESTES SE INCLUINDO OS MOTIVOS E PRESSUPOSTOS
63
QUE O DETERMINARAM. EMBARGOS CONHECIDOS E RECEBIDOS.”
1.4.1 Controle externo
Ao realizar a análise da presença de discricionariedade dentro da estrutura do
ato administrativo, ou seja, relativamente a cada um dos elementos do ato, pudemos
concluir que a discricionariedade não está presente nos seguintes elementos:
competência e finalidade.
Nesse sentido, por não existir discricionariedade em tais elementos podemos
considerá-los como externos à discricionariedade – a competência porque o agente
que pratica o ato será ou não competente para tanto, não havendo como conferir
margem de escolha nesse tocante; e de igual forma com a finalidade, que deve
sempre estar vinculada ao interesse público.
Disso decorre, então, que o Poder Judiciário está autorizado a verificar
esses aspectos externos do ato administrativo discricionário. Cumpre destacar então
que a Administração Pública, mesmo quando estiver diante de atos praticados no
exercício de discricionariedade administrativa, está adstrita à obediência da lei e a
inobservância desse preceito pode ensejar o controle judicial nesse aspecto.
Em outras palavras, estamos dizendo que, mesmo atuando de forma
discricionária, a Administração Pública deve seguir os ditames legais e exercer a sua
63
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 223.543/Distrito Federal; julgado
em 18 de setembro de 1975, Ministro Xavier de Albuquerque (relator). Disponível em:
http://www.stf.jus.br. Acesso em 23 nov. 2008.
41
“escolha” (mérito) de acordo com os parâmetros previstos na ordem jurídica, sob
pena de ter sua atuação (ato administrativo) revisto, mas aí não estamos mais
falando em controle do mérito e sim da própria legalidade do ato, ou seja, sendo o
ato administrativo revestido de alguma ilegalidade, autorizado está o Judiciário a
apreciá-lo64.
1.4.2 Controle interno
Os elementos do ato administrativo que podem, por sua vez, conter
discricionariedade são: forma, objeto e motivo. Em tais elementos, poderá haver
margem de escolha pelo agente público, conforme critérios de conveniência e
oportunidade, constituindo essa escolha o mérito do ato.
Nesse diapasão, por constituírem elementos que estão permeados de
liberdade de escolha do administrador, existe mérito, e ele é que não pode ser
analisado, valorado ou controlado pelo Poder Judiciário, pois se isso fosse permitido
esse Poder estaria se pronunciando sobre a justiça e injustiça conforme refere
Almiro Couto e Silva65.
O que se extrai da corrente tradicional é que se a Administração Pública age
dentro dos contornos legais previstos pelo ordenamento jurídico, então o mérito do
ato administrativo não poderá ser controlado pelo Poder Judiciário, somente os
elementos extrínsecos à discricionariedade é que podem ser passíveis de controle
pelo Judiciário.
De todo o modo, cabe também referir que nem sempre a discricionariedade
aparece obrigatoriamente em todos aqueles três elementos. Assim, a área ou a
64
A ilegalidade do ato abrange aspectos referentes ao abuso, excesso ou desvio de poder, pois de
acordo com o entendimento de Cretella Júnior a ilegalidade é gênero do qual o abuso, excesso ou
desvio de poder é espécie. Nesse sentido o autor refere: A ilegalidade do ato da Administração, em si
ou em qualquer de seus aspectos (abuso, excesso ou desvio), é defeito que vicia e desnatura o ato,
propiciando ao prejudicado, além dos recursos na via administrativa, a possibilidade de provocar o
exame da medida pelo Poder Judiciário, suscitando, em todos esses casos, o controle jurisdicional da
iniciativa viciada da Administração Pública. CRETELLA JÚNIOR. José. Controle Jurisdicional do Ato
Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 49.
65
Cf. refere SILVA, Almiro Couto e, 1945. p. 65.
42
extensão da discricionariedade é variável caso a caso, e conforme dispõe a norma
jurídica que a institui.
1.5 A corrente tradicional e a jurisprudência
Os reflexos da Lei nº. 221/94 são visíveis no decorrer do século XX na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Assim, por exemplo, transcreve-se aqui
ementas de julgados de diferentes épocas sobre esse tema, começando-se pelo
Mandado de Segurança nº. 1430, julgado em 16 de agosto de 1951, onde, em seu
voto, o Ministro Edgar Costa defendia a seguinte posição:
“Ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do contrôle
jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examina-los, tão
somente, sob o prisma da legalidade. Esse é o limite do contrôle, quanto á
extensão.
O mérito compreende as questões relativas ao acêrto á Justiça, á equidade,
etc. Tais aspectos envolvem interesses e não direitos. Ao Judiciário, não se
submetem os interesses, que o ato administrativo contrarie, mas apenas
direitos individuais, acaso feridos por êle. O mérito é de atribuição exclusiva
do Poder Executivo, e o Poder Judiciário, nêle penetrando, “faria obra de
administrador, violando, destarte princípio de separação e independência
66
dos poderes” (sic).
No mesmo sentido encontram-se as ementas mais recentes, já sob a égide
da Constituição Federal de 1988, conforme abaixo transcritas:
MANDADO DE SEGURANÇA - SANÇÃO DISCIPLINAR IMPOSTA PELO
PRESIDENTE DA REPÚBLICA - DEMISSÃO QUALIFICADA ADMISSIBILIDADE DO MANDADO DE SEGURANÇA - PRELIMINAR
REJEITADA - PROCESSO ADMINISTRATIVO-DISCIPLINAR - GARANTIA
DO CONTRADITÓRIO E DA PLENITUDE DE DEFESA - INEXISTÊNCIA
DE SITUAÇÃO CONFIGURADORA DE ILEGALIDADE DO ATO
PRESIDENCIAL - VALIDADE DO ATO DEMISSÓRIO - SEGURANÇA
DENEGADA. 1. A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 PRESTIGIOU
OS INSTRUMENTOS DE TUTELA JURISDICIONAL DAS LIBERDADES
INDIVIDUAIS OU COLETIVAS E SUBMETEU O EXERCÍCIO DO PODER
ESTATAL - COMO CONVÉM A UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA E
LIVRE - AO CONTROLE DO PODER JUDICIÁRIO. INOBSTANTE
ESTRUTURALMENTE DESIGUAIS, AS RELAÇÕES ENTRE O ESTADO E
OS INDIVÍDUOS PROCESSAM-SE, NO PLANO DE NOSSA
ORGANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL, SOB O IMPÉRIO ESTRITO DA LEI.
A RULE OF LAW, MAIS DO QUE UM SIMPLES LEGADO HISTÓRICO66
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº. 1430/Distrito Federal; julgado em
16 de agosto de 1951, Ministro Edgar Costa (relator). Disponível em: http://www.stf.gov.br. Acesso em
20 ago. 2007.
43
CULTURAL, CONSTITUI, NO ÂMBITO DO SISTEMA JURÍDICO VIGENTE
NO
BRASIL,
PRESSUPOSTO
CONCEITUAL
DO
ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO E FATOR DE CONTENÇÃO DO ARBITRIO
DAQUELES QUE EXERCEM O PODER. É PRECISO EVOLUIR, CADA
VEZ MAIS, NO SENTIDO DA COMPLETA JUSTICIABILIDADE DA
ATIVIDADE ESTATAL E FORTALECER O POSTULADO DA
INAFASTABILIDADE DE TODA E QUALQUER FISCALIZAÇÃO JUDICIAL.
A PROGRESSIVA REDUÇÃO E ELIMINAÇÃO DOS CÍRCULOS DE
IMUNIDADE DO PODER HÁ DE GERAR, COMO EXPRESSIVO EFEITO
CONSEQÜENCIAL, A INTERDIÇÃO DE SEU EXERCÍCIO ABUSIVO. O
MANDADO DE SEGURANÇA DESEMPENHA, NESSE CONTEXTO, UMA
FUNÇÃO INSTRUMENTAL DO MAIOR RELEVO. A IMPUGNAÇÃO
JUDICIAL DE ATO DISCIPLINAR, MEDIANTE UTILIZAÇÃO DESSE WRIT
CONSTITUCIONAL, LEGITIMA-SE EM FACE DE TRÊS SITUAÇÕES
POSSIVEIS,
DECORRENTES
(1)
DA
INCOMPETÊNCIA
DA
AUTORIDADE, (2) DA INOBSERVÂNCIA DAS FORMALIDADES
ESSENCIAIS E (3) DA ILEGALIDADE DA SANÇÃO DISCIPLINAR. A
PERTINÊNCIA JURÍDICA DO MANDADO DE SEGURANÇA, EM TAIS
HIPÓTESES, JUSTIFICA A ADMISSIBILIDADE DO CONTROLE
JURISDICIONAL SOBRE A LEGALIDADE DOS ATOS PUNITIVOS
EMANADOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO CONCRETO
EXERCÍCIO DO SEU PODER DISCIPLINAR. O QUE OS JUIZES E
TRIBUNAIS SOMENTE NÃO PODEM EXAMINAR NESSE TEMA, ATÉ
MESMO COMO NATURAL DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA
SEPARAÇÃO DE PODERES, SÃO A CONVENIENCIA, A UTILIDADE, A
OPORTUNIDADE E A NECESSIDADE DA PUNIÇÃO DISCIPLINAR. ISSO
NÃO SIGNIFICA, PORÉM, A IMPOSSIBILIDADE DE O JUDICIARIO
VERIFICAR SE EXISTE, OU NÃO, CAUSA LEGÍTIMA QUE AUTORIZE A
IMPOSIÇÃO DA SANÇÃO DISCIPLINAR. O QUE SE LHE VEDA, NESSE
ÂMBITO, É, TÃO-SOMENTE, O EXAME DO MÉRITO DA DECISÃO
ADMINISTRATIVA, POR TRATAR-SE DE ELEMENTO TEMÁTICO
INERENTE AO PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO
67
PÚBLICA.[…] . (Grifei)
ADMINISTRATIVO. CANA-DE-AÇÚCAR. PORTARIA Nº 294, DE 13.12.96,
DO MINISTÉRIO DA FAZENDA, QUE LIBEROU OS PREÇOS DO
PRODUTO, A PARTIR DE 1º.05.98. ALEGADA OFENSA AOS PRINCÍPIOS
DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, DA HIERARQUIA DAS NORMAS, DA
LEGALIDADE, DA PROPORCIONALIDADE, DA SEGURANÇA JURÍDICA,
E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. O art. 10 da Lei nº 4.870/65, que
previa a fixação do preço da cana-de-açúcar, foi alterado pelo art. 3º, III, da
Lei nº 8.178/91, que deixou a critério do Ministro da Fazenda, responsável
pela execução da política econômica do Governo, a liberação, total ou
parcial, dos preços de qualquer setor, o que foi concretizado pela referida
autoridade por meio do ato impugnado, em face do manifesto descabimento
da exigência de lei, ou de decreto, para fixação ou liberação de preços. Não
há falar-se, portanto, em ofensa aos princípios constitucionais sob enfoque.
No que concerne ao mérito do ato impugnado, é fora de dúvida que se
trata de matéria submetida a critérios de conveniência e oportunidade,
insuscetíveis, por isso, de controle pelo Poder Judiciário. Recurso
68
desprovido . (Grifei)
67
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança nº. 20.999/Distrito
Federal; julgado em 21 de março de 1990, Ministro Celso de Mello (relator). Disponível em:
http://www.stf.jus.br. Acesso em 23 nov. 2008.
68
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança nº. 223.543/Distrito
Federal; julgado em 27 de junho de 2000, Ministro Ilmar Galvão (relator). Disponível em:
http://www.stf.jus.br. Acesso em 23 nov. 2008.
44
HABEAS CORPUS" - ESTRANGEIRO. DECRETO DE EXPULSÃO. VÍCIO
DE NULIDADE: INEXISTÊNCIA. 1. A expulsão de estrangeiro, como ato de
soberania, discricionário e político-administrativo de defesa do Estado, é de
competência privativa do Presidente da República, a quem incumbe julgar a
conveniência ou oportunidade da decretação da medida ou, se assim
entender, de sua revogação (art. 66 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de
1980). 2. Ao Judiciário compete tão somente a apreciação formal e a
constatação da existência ou não de vícios de nulidade do ato
expulsório, não o mérito da decisão presidencial. 3. Não padece de
ilegalidade o decreto expulsório precedido de instauração do competente
inquérito administrativo, conferindo ao expulsando a oportunidade de
69
exercer o direito de defesa. 4. "Habeas corpus" indeferido . (Grifei)
No mesmo sentido:
HABEAS CORPUS – CRIME DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES
PRATICADO POR ESTRANGEIRO - APLICABILIDADE DA LEI Nº 6.815/80
- ESTATUTO DO ESTRANGEIRO - SÚDITO COLOMBIANO - EXPULSÃO
DO TERRITÓRIO NACIONAL - MEDIDA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DE
PROTEÇÃO À ORDEM PÚBLICA E AO INTERESSE SOCIAL COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA - ATO
DISCRICIONÁRIO - ANÁLISE, PELO PODER JUDICIÁRIO, DA
CONVENIÊNCIA E DA OPORTUNIDADE DO ATO - IMPOSSIBILIDADE CONTROLE JURISDICIONAL CIRCUNSCRITO AO EXAME DA
LEGITIMIDADE JURÍDICA DO ATO EXPULSÓRIO - INOCORRÊNCIA DE
CAUSAS DE INEXPULSABILIDADE - ART. 75, II, DA LEI Nº 6.815/80 INEXISTÊNCIA DE DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO À PERMANÊNCIA NO
BRASIL - PLENA REGULARIDADE FORMAL DO PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO INSTAURADO - PEDIDO INDEFERIDO. - A expulsão
de estrangeiros - que constitui manifestação da soberania do Estado
brasileiro - qualifica-se como típica medida de caráter político-administrativo,
da competência exclusiva do Presidente da República, a quem incumbe
avaliar, discricionariamente, a conveniência, a necessidade, a utilidade e a
oportunidade de sua efetivação. Doutrina. Precedentes. - O julgamento da
nocividade da permanência do súdito estrangeiro em território nacional
inclui-se na esfera de exclusiva atribuição do Chefe do Poder Executivo da
União. Doutrina. Precedentes. - O poder de ordenar a expulsão de
estrangeiros sofre, no entanto, limitações de ordem jurídica
consubstanciadas nas condições de inexpulsabilidade previstas no Estatuto
do Estrangeiro (art. 75, II, "a" e "b"). - O controle jurisdicional do ato de
expulsão não incide, sob pena de ofensa ao princípio da separação de
poderes, sobre o juízo de valor emitido pelo Chefe do Poder Executivo da
União. A tutela judicial circunscreve-se, nesse contexto, apenas aos
aspectos de legitimidade jurídica concernentes ao ato expulsório.
Precedentes. - O remédio de "habeas corpus" não constitui instrumento
processual adequado à invalidação do procedimento administrativo de
expulsão regularmente instaurado e promovido pelo Departamento de
Polícia Federal, especialmente se o súdito estrangeiro interessado - a quem
se estendeu, de modo pleno, a garantia constitucional do direito de defesa não invocou, em momento algum, por inocorrentes, quaisquer das causas
de inexpulsabilidade previstas em lei. Precedentes. - Para efeito de
incidência da causa de inexpulsabilidade referida no art. 75, II, "b", da Lei nº
6.815/80, mostra-se imprescindível, no que concerne à pessoa do filho
brasileiro, a cumulativa satisfação dos dois requisitos fixados pelo Estatuto
69
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº. 73.940/São Paulo; julgado em 26 de junho
de 1996, Ministro Maurício Corrêa (relator). Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 23 nov.
2008.
45
do Estrangeiro: (a) guarda paterna e (b) dependência econômica.
70
Precedentes .
Mais recentemente, esse mesmo entendimento ainda se encontra posto na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tal como demonstra o Recurso em
Mandado de Segurança nº. 24256 do Distrito Federal, julgado de 03 de setembro de
2002, cuja ementa segue transcrita:
ADMINISTRATIVO. PROCESSO DISCIPLINAR. LEI N.° 8 .11 2/90, ART.
132, INCISOS IV E XIII. DEMISSÃO DE SERVIDORA. AMPLA DEFESA.
AUTORIA. SUBSTITUIÇÃO DE PENA. Faltas disciplinares apuradas em
processo administrativo que correu regularmente, com observância do
princípio da ampla defesa, não havendo resultado demonstrado, por outro
lado, que os atos punidos eram alheios à competência da servidora, como
alegado. Impossibilidade de substituição da pena imposta sem reexame do
mérito do ato administrativo, providência vedada ao Poder Judiciário.
71
Recurso ordinário a que se nega provimento.
Do mesmo modo o seguinte julgado do ano de 2004:
MANDADO DE SEGURANÇA. TOMADA DE CONTAS ESPECIAL NO
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. DETERMINAÇÃO DE RENOVAÇÃO
DO PROCEDIMENTO DE LICITAÇÃO. PRORROGAÇÃO DO PRAZO DE
VIGÊNCIA
DO
CONTRATO.
DISCRICIONARIEDADE
DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E
CERTO. SEGURANÇA DENEGADA. Ato do Tribunal de Contas da União
que determinou à Administração Pública a realização de nova licitação.
Prorrogação do vigente contrato por prazo suficiente para que fosse
realizada nova licitação. A escolha do período a ser prorrogado, realizada
de acordo com o disposto no contrato celebrado, insere-se no âmbito de
72
discricionariedade da Administração. Segurança denegada.
Chega-se, por fim, ao ano de 2008, onde se lê o seguinte julgado:
AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DE TUTELA
ANTECIPADA: ARTS. 4º, CAPUT, DA LEI 8.437/92 E 1º DA LEI 9.494/97.
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO
INTERESTADUAL DE PASSAGEIROS. LICITAÇÃO: ARTS. 21, XII, "e", E
175 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DEMONSTRAÇÃO DOS
REQUISITOS OBJETIVOS PARA O DEFERIMENTO DA SUSPENSÃO DA
EXECUÇÃO DO ACÓRDÃO: LESÕES ÀS ORDENS JURÍDICA,
ADMINISTRATIVA E À ECONOMIA PÚBLICA. JUÍZO MÍNIMO DE
70
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº. 72.851/São Paulo; julgado em 25 de
outubro de 1995, Ministro Celso de Mello (relator). Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 23
nov. 2008.
71
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança nº. 24256/Distrito
Federal; julgado em 03 de setembro de 2002, Ministro Ilmar Galvão (relator). Disponível em:
http://www.stf.jus.br. Acesso em 20 ago. 2007.
72
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº. 24.785/Distrito Federal; julgado em
08.09.2004, Ministro Joaquim Barbosa (relator para o acórdão). Disponível em http://www.stf.jus.br.
Acesso em 23 nov. 2008.
46
DELIBAÇÃO. EFEITO MULTIPLICADOR. [...] Jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal no sentido da impossibilidade da prestação de serviços de
transporte interestadual de passageiros a título precário, sem a observância
do procedimento licitatório. Lesão à ordem administrativa: afastamento
da Administração do legítimo juízo discricionário de conveniência e
oportunidade na fixação de trecho a ser explorado diretamente ou
mediante autorização, concessão ou permissão, do serviço de
73
transporte rodoviário interestadual de passageiros. (Grifei)
Como visto, a doutrina e a jurisprudência declinadas afirmam historicamente
que não compete ao Poder Judiciário apreciar o mérito de atos administrativos
discricionários no que se refere à sua legalidade intrínseca.
Entretanto,
mais
recentemente,
tal
posição
vem
sendo
abrandada
principalmente pela aplicação do princípio do devido processo legal substantivo
como critério de análise de mérito dos atos estatais. Esse princípio constitui
instrumento próprio à manutenção dos direitos e das garantias fundamentais contra
o arbítrio das autoridades estatais, por meio do qual se procede ao exame da
razoabilidade do conteúdo das normas jurídicas e dos demais atos do Poder
Público.
Nesse contexto, a aplicação desse princípio legitima o Poder Judiciário a
adentrar o âmbito do mérito das decisões administrativas discricionárias, a fim de se
verificar se elas são razoáveis (ou, ainda, proporcionais), quebrando, com isso, toda
a tradição anterior construída sob a sombra da Lei nº. 221/94.
Assim, é imperioso agora o estudo da cláusula do devido processo legal como
condição para entendermos a origem desse princípio, bem como a sua dupla face,
tanto processual quanto material. É imperioso também verificar como o devido
processo legal em sentido material tem aplicação na seara dos atos administrativos
discricionários, o que será realizado de maneira pormenorizada no capítulo seguinte.
73
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada-AgR nº. 73/São Paulo;
julgado em 17.03.2008, Ministra Ellen Gracie (relatora). Disponível em http://www.stf.jus.br. Acesso
em 23 nov. 2008.
47
2 FUNDAMENTOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SENTIDO
SUBSTANTIVO
A abordagem aqui proposta possui a intenção de lançar alguns dos principais
eventos históricos que marcaram a evolução da garantia constitucional do devido
processo legal em sentido substantivo. A abordagem partirá da origem do devido
processo legal, na Inglaterra e sua recepção no direito norte-americano. A partir
disso, teceremos algumas considerações sobre as duas diferentes facetas pelas
quais o devido processo legal pode se apresentar, ou seja: tanto em sentido adjetivo
quanto em sentido substantivo.
2.1 Origem do devido processo legal
O princípio do devido processo legal tem berço no direito inglês da Idade
Média74, possuindo como antecedente histórico a cláusula per legale iudicium
parium suorum vel per legem terre, firmada na Magna Carta inglesa selada em 15 de
junho de 121575, no reinado de John Lackland, a qual foi concebida como uma carta
em favor dos “homens livres” ingleses, isto é: os barões76.
74
Mas há autores, como Adhemar Ferreira Maciel, que registram que o princípio teve surgimento há
mais de cinco séculos antes da era cristã, sendo mais antigo que as próprias instituições inglesas. O
citado autor refere que na Antígona de Sófocles, peça estreada em Atenas, presumidamente no ano
de 441 a.C., já se invocavam determinados princípios morais e religiosos, não escritos, que podiam
ser opostos à tirania das leis escritas. MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido processo legal e a
constituição brasileira de 1988. Doutrina e Jurisprudência, In.: Dimensões do Direito Público, Belo
Horizonte: Del Rey, 2000, p. 229-231.
75
A Magna Carta foi selada no reinado de John Lackland (João Sem Terra). João era o 4º filho de
Henrique II e de Leonor de Aquitânia, seu nome originou-se do fato de seu pai haver partilhado todos
os seus domínios entre seus irmãos mais velhos, não o contemplando na herança, conforme refere
LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1983, p. 67.
76
Conforme refere MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido Processo Legal Substantivo: Razão
Abstrata, Função e Características de Aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 01,
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 05; BORGES NETTO, André L. A
Razoabilidade Constitucional (o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos
concretos). Revista Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 2, nº. 12, Brasília, maio de 2000.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 23 ago. 2007
48
Essa carta, conforme refere Letícia Campos Velho Martel, incorporou uma
noção da possibilidade de imposição de limites ao poder do Rei, os quais poderiam
ser traduzidos em forma legal, vinculando a todos, até mesmo o próprio Rei.77
Isso quebrava um tradicional entendimento político-jurídico, fortalecido
depois no período do absolutismo monárquico, segundo o qual o monarca não
estava limitado por suas próprias leis – somente seus súditos.
Na Magna Carta, o princípio do devido processo legal estava expresso no
artigo 39. Originalmente ela foi redigida em latim, no seguinte texto:
Nullus líber homo capiatur vel imprisonatur aut disseisiatur de liberto
tenemento suo vel libertatibus vel liberis consuetudinibus suis aut utlagetur
aut exulet aut aliquo modo destruatur nec supere um ibimus nec super eum
mittemus nisi per legale iudicium parium suorum vel per legem terre. Nulli
78
vendemus, nulli negabimus aut differemus rectum vel iusticiam .
Nas primeiras traduções para a língua inglesa, surgidas somente 300 anos
depois da própria edição da Magna Carta, esse art. 39 restou assim redigido:
No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or
possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other
way, nor will we proceed with force against him, or send others to do so,
7980
except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land .
Conforme versão traduzida por Fábio Konder Comparato, esse art. 39 possui
a seguinte redação em nossa língua:
“39. Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens
(disseisiatur), banido (utlagetur) ou exilado ou, de algum modo prejudicado
(destruatur), nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante
um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra (nisi per legale
81
iudicium parium suorum vel per legem terre)” .
77
MARTEL, 2005, p. 04.
Disponível em: http://www.magnacartaplus.org/magnacarta/latin.htm#latin-text. Acesso em 12 dez.
2008.
79
Disponível em: http://www.britannia.com/history/docs/magna2.html. Acesso em 06 nov. 2008.
80
Segundo explica Carlos Roberto Siqueira Castro, na sua tradução original a cláusula assegurava
aos homens livres, notadamente aos barões vitoriosos e aos proprietários da terra a inviolabilidade de
seus direitos relativos à vida, à liberdade e, sobremaneira, à propriedade, que só poderiam ser
suprimidos através da “lei da terra” (per legem terrae ou law of the land). CASTRO, 2006, p. 06/07.
81
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 81.
78
49
Conforme defende Letícia Campos Velho Martel, a Magna Carta constitui o
marco inicial do movimento do constitucionalismo, pois é a partir dela que se
incorporou a noção de que limites podiam ser impostos ao poder estatal, sobretudo
na forma de leis82.
Já na interpretação de Paulino Jacques a Magna Carta constituiu apenas um
pacto entre o rei e os barões, fruto da evolução e realidade histórica da época de
sua construção, que demonstrou a aquisição de uma garantia que à época não era
de alcance de todos do povo, mas somente da minoria de “homens livres”83. Nessa
outra visão, portanto, as cartas medievais inglesas não representam a origem do
constitucionalismo contemporâneo, posto que não passavam de cartas de
concessão de prerrogativas reais a uns poucos nobres.
Em que pese tal discussão acerca da natureza da cláusula em sua criação,
ainda assim a Magna Carta constituiu um importante documento para o direito
constitucional contemporâneo, conforme argumenta, por exemplo, Jayme de
Altavila:
É bem verdade que a simples existência de tal documento, revestido de
tamanha autoridade legal, já era o bastante para que cada um, na parte que
lhe competia no estado inglês, tivesse a convicção de um direito, pelo qual
deprecasse e pelo qual pudesse lutar ou morrer, dentro das raias do seu
civismo.
Porque, em verdade, ali estava um direito constitucional exarado dentro de
84
um molde clássico e admirável [...] .
Assim, embora as garantias e as prerrogativas declaradas na Magna Carta
não estivessem acessíveis a todos os ingleses, ela não deixou de constituir um
marco histórico importante no desenvolvimento do constitucionalismo85.
82
MARTEL, 2005, p. 04.
JACQUES, Paulino. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 34.
84
ALTAVILA, Jayme de. Origem dos Direitos dos Povos. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001, p. 166/167.
85
Sobre o conteúdo e a importância da Magna Carta, Roscoe Pound refere que por meio dos
dispositivos gerais nela previsto “[...] se imaginados para agravos particulares de classes particulares
em época e lugar determinados, se aplicam, entretanto, a agravos semelhantes em qualquer tempo
ou lugar, a Magna Carta estabeleceu um sistema de govêrno constitucional, sendo assim justamente
referenciada como origem do órgão mais seguro de estabilidade social e política no mundo moderno
e símbolo da supremacia da lei sôbre os órgãos do govêrno e das garantias do indivíduo com relação
à máquina administrativa, que, guiando-o e protegendo-o, não o esmagará, o que constitui o bem de
que mais se orgulham os inglêses e seus descendentes por tôda parte do mundo”. POUND, Roscoe.
Desenvolvimento das Garantias Constitucionais da Liberdade. Tradução de E. Jacy Monteiro. São
Paulo: Ibrasa, 1965, p. 20.
83
50
Já no ano de 1354, conforme refere Letícia Campos Velho Martel, durante o
Reinado de Eduardo III, foi elaborado um estatuto por um desconhecido legislador,
no qual foi reproduzido, com algumas pequenas alterações, o texto do artigo 39 da
Magna Carta. Dentre as alterações realizadas, uma que constitui ponto primordial ao
nosso estudo foi a substituição do termo law of the land por due process of law86. A
referida cláusula previa o seguinte:
“Nenhum homem, qualquer que seja a sua situação ou condição, pode ser
expulso de sua terra ou moradia, nem conduzido, nem aprisionado, nem
deserdado, nem condenado à morte, sem que isto resulte de um devido
87
processo legal.”
Da análise do significado desse dispositivo podemos referir que o devido
processo legal era considerado mais uma garantia do que propriamente um direito,
pois sua previsão visava proteger a pessoa contra a ação arbitrária do monarca,
sendo a lei uma forma de implemento dessa garantia88, ou seja, ela visava
assegurar à pessoa que seus bens, sua vida, ou sua liberdade não seriam limitados
nem subtraídos de maneira arbitrária pelo Rei.
Assim, originariamente a cláusula do “due process of law” possuía relação
sobretudo com o direito processual penal, ou seja, no sentido de que, em face de
acusação criminal, ninguém poderia ser privado de sua liberdade ou de seus bens
sem que fosse respeitado um procedimento previamente instituído para tanto, o qual
pressupunha o respeito a um conjunto mínimo de garantias em favor do acusado.
2.2 Devido processo legal adjetivo e devido processo legal substantivo
Séculos depois, por força da jurisprudência da Suprema Corte americana, a
cláusula do “due process of law” deixa de significar apenas e tão somente uma
garantia de caráter processual (penal). Assim, essa cláusula passou a ser
86
MARTEL, 2005, p. 15
Ibidem. (grifado no original)
88
Nesse sentido refere BASTOS, Celso Ribeiro Bastos; MARTINS, Ives Granda. Comentários à
Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1988-1989.
p. 261.
87
51
interpretada sob dois ângulos de incidência diferentes, configurando uma dupla
proteção ao indivíduo89, a saber: no tradicional sentido adjetivo; e também em um
sentido substantivo90.
A originária garantia em sentido formal ou adjetivo não será objeto de estudo
na presente pesquisa, sendo necessário apenas destacarmos a sua existência e as
características que a afastam do sentido substantivo. O aspecto substantivo,
construção jurisprudencial estadunidense, é que constitui o objeto propriamente dito
de nossa abordagem.
André L. Borges Netto apresenta com clareza as duas formas históricas
pelas quais o devido processo legal pode se apresentar, como segue:
Duas são as facetas do devido processo legal, a adjetiva (que garante aos
cidadãos um processo justo e que se configura como um direito negativo,
porque o conceito dele extraído apenas limita a conduta do governo quando
este atua no sentido de restringir a vida, a liberdade ou o patrimônio dos
cidadãos) e a substantiva (que, mediante autorização da Constituição,
indica a existência de competência a ser exercida pelo Judiciário, no sentido
de poder afastar a aplicabilidade de leis ou de atos governamentais na
hipótese de os mesmos serem arbitrários, tudo como forma de limitar a
91
conduta daqueles agentes públicos) .
Considerando a importância de estabelecer a diferença entre as duas faces do
devido processo legal para a compreensão do problema proposto, passemos à
análise mais detalhada de cada uma dessas versões.
89
Nesse sentido Alexandre de Moraes refere que “o devido processo legal configura dupla proteção
ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito
formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa
[...]. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 124.
90
Em que pese a existência de duas versões do devido processo legal, Luis Roberto Barroso refere
que “elas não se excluem, mas, ao contrário, convivem até hoje”, significando que o âmbito de
incidência de cada uma das facetas não faça com que sua aplicação seja excludente. BARROSO,
Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva. 1999, p. 208.
91
BORGES NETTO, André L. A Razoabilidade Constitucional (o princípio do devido processo legal
substantivo aplicado a casos concretos). Revista Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 2, nº. 12,
Brasília, maio de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 23 ago. 2007.
52
2.2.1 Devido processo legal adjetivo
Na sua origem, conforme já se viu, a cláusula do devido processo legal era tida
apenas como uma garantia processual penal, isto é, o seu sentido era de
assegurador da regularidade processual92, o que significava uma garantia concedida
à parte ré no processo penal para utilizar a plenitude dos meios jurídicos existentes
para a defesa e a garantia de seu direito93, logo: uma “garantia inerente ao
procedimento jurisdicional”94.
Se sua origem estava no direito processual penal, como meio de defesa do
acusado contra o poder do monarca, com o tempo ela evoluiu para uma garantia
genérica em todos os ramos do direito processual.
Nessa ótica processual mais ampla, Nelson Nery Júnior refere que, por
exemplo, o princípio do devido processo legal em senso adjetivo também é o
princípio fundamental do processo civil, e que serve como base sobre a qual os
outros princípios desse direito se sustentam95. A forma processual da cláusula, nas
palavras do citado autor, poderia ser resumida como segue: “nada mais é do que a
possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo a pretensão e
defendendo-se de modo mais amplo possível”96.
Nesse mesmo sentido refere Paulo Fernando Silveira:
A princípio, parecia que cuidava, apenas, de meras garantias processuais
asseguradas ao acusado, como o julgamento pelo júri e o igual tratamento
processual. Mas mesmo para se obter essas garantias, na essência, estava
a limitação do poder governamental, o que só foi percebido com clareza
92
Nesse sentido refere CASTRO, 2005, p. 29 e também Lúcia Valle de Figueiredo In. FIGUEIREDO,
Lúcia Valle de. Estado de direito e devido processo legal. Revista Diálogo Jurídico, Vol. I, nº. 11,
Salvador, fevereiro de 2002. Disponível em: http:www.direitopublico.com.br. Acesso em 20 ago. 2007.
93
A Constituição Federal de 1988 abrange os seguintes princípios como meios de garantia formal do
devido processo legal: princípio da isonomia (paridade das partes); princípio do juiz natural (art. 5º,
inciso XXXVII e LIII); princípio do promotor natural (art. 5º, inciso LIII); princípio da inafastabilidade do
controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV); princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso
LV); princípio da proibição da prova ilícita (art. 5º, inciso LVI); princípio da publicidade dos atos
processuais (art. 5º, inciso LX e art. 93, inciso IX); princípio da fundamentação das decisões judiciais
(art. 93, inciso IX) entre outros.
94
MARTEL, 2005, p. xxvi.
95
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 30.
96
NERY JÚNIOR, 1999, p. 40.
53
mais tarde. Por isso, depois, com precisão conceitual, o princípio do devido
processo legal evoluiu como um precioso instrumental, manejável através
do Judiciário, como um modo de contenção do poder do chefe de governo,
visando evitar o cometimento de arbitrariedades, como retirar de qualquer
membro da comunidade seus direito à vida, liberdade ou propriedade. Com
o tempo, a cláusula foi estendida e acabou alcançando departamentos
97
subalternos do governo .
Essa mesma evolução histórica pode ser notada no direito brasileiro. Se antes,
por prática da jurisprudência, a idéia de “devido processo legal” estava voltada
basicamente para o processo penal, o art. 5º, LIV e LV da Constituição Federal de
1988 acabou por reconhecer a validade do princípio do devido processo legal em
sentido adjetivo a todos os ramos do direito processual, e tanto no âmbito
processual judicial quanto no do processo administrativo.
2.3 Origem da versão substantiva do devido processo legal
Desde um ponto de vista dogmático-jurídico, a versão substantiva do devido
processo legal substantivo só veio a ser desenvolvida muito depois no direito norteamericano – mas as premissas desse instituto, ou seja, as bases teóricas da versão
substantiva do devido processo legal remontam, também, à cláusula do law of the
land98.
Nesse sentido refere Letícia Campos Velho Martel:
A sugestão de que a law of the land já possuía uma versão substantiva
nesse período do constitucionalismo inglês, à semelhança da que o due
process of law possui hoje nos Estados Unidos, parece um tanto
descontextualizada. A substantividade do devido processo legal é um passo
além do controle jurisdicional de constitucionalidade dos atos
governamentais que privam as pessoas da vida, propriedade ou liberdade,
uma vez que permite ao Poder Judiciário controlar a razoabilidade desses
atos e não apenas a adequação literal ao texto constitucional. Na quadra
medieval ora em exame, não se encontravam presentes a separação dos
poderes, com juízes independentes, nem o monopólio da jurisdição pelo
Estado, com foco único de emanação e aplicação do Direito; não se
conhecia a Constituição em sentido moderno, e, portanto, ausente estava a
noção de supremacia da Constituição, todas estas condições sine qua do
controle jurisdicional da constitucionalidade. Torna-se difícil, assim,
sustentar a ocorrência da versão substantiva do devido processo legal.
Todavia, se a sugestão aparta-se do sentido aliado ao controle jurisdicional
97
98
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 3. ed. Del Rey, 2001, p.235/236
MARTEL, 2005, p. xxviii.
54
de constitucionalidade que o substantivo devido processo legal assume nos
Estados Unidos e atenta para um sentido altamente abstrato, qual seja,
proibições de privações arbitrárias dos direitos de vida, propriedade e
99
liberdade pelo detentor do poder, ela pode manter alguma coerência .
Letícia Campos Velho Martel também refere que, no curso do século XVII, a
cláusula law of the land apresentou-se como instrumento hábil para fornecer
subsídios aos opositores dos reis, esses centrados no Parlamento e nas cortes da
common law, sendo que as novas leituras e interpretações dadas à referida cláusula
pelos opositores formaram um impasse histórico quanto ao nascedouro da versão
substantiva do devido processo legal.
A autora aduz por fim que, segundo alguns estudiosos nesse momento
histórico (século XVII, na Inglaterra), houve o surgimento da interpretação
substantiva da law of the land, por obra de Sir Edward Coke100. Mas outros
estudiosos afirmaram como impossível tal hipótese, aduzindo que tal cláusula nesse
momento histórico continuou apenas com a sua versão procedimental, não sendo
nunca ventilada a versão substantiva em solo inglês101.
Em que pese essas divergências histórico-doutrinárias acerca da origem da
versão substantiva da cláusula do devido processo legal, parece ser incontestável
que o caso Bonham foi de fundamental importância para o tema, já que a partir dele
se iniciou o debate sobre a possibilidade do controle judicial de constitucionalidade
das leis e dos atos do Poder Público. É dizer, em outras palavras, que foi a partir
dele que se iniciou o debate sobre um controle judicial do mérito dos atos estatais,
com base em critérios de razoabilidade das leis, conforme veremos a seguir.
99
MARTEL, 2005, p. 13.
Jurista inglês, nasceu no condado de Norfolk, em 1552. Eleito, pela primeira vez, para a Câmara
dos Comuns em 1589, foi escolhido como seu presidente (Speaker of the House), em 1593 e, após,
foi nomeado Procurador Geral (Attorney General), atuando nesse cargo nos reinados de Elizabeth I
(1558-1603) e Jaime I (1603-1625). Foi nomeado cavaleiro em 1603 e, em 1606, nomeado Juiz
Presidente do Court of Common Pleas, pelo Rei Jaime I. Tal Rei também o nomeou, em 1613, ao
cargo de Juiz Presidente do King’s Bench. Em 1616, foi afastado do cargo por acusações contra sua
conduta. Coke foi reeleito ao Parlamento em 1620 onde, alguns anos depois, sob sua liderança seria
redigida a petição de direitos (Pettition of Right), considerada a mais explícita afirmação dos
princípios garantidores da liberdade na Inglaterra até então. Entre suas obras, destacam-se as
Institutes of the Laws of England (Instituições do Direito da Inglaterra) e os Reports, conforme
YOSHIKAWA, Eduardo Henrique de Oliveira. Origem e evolução do devido processo legal
substantivo. São Paulo: Editora Letras Jurídicas, 2007. p. 27-36.
101
MARTEL, 2005, p. 16.
100
55
2.3.1 O caso Bonham
Parece não haver dúvidas de que a base teórica da versão substantiva do
devido processo legal foi originada na Inglaterra, no Dr. Bonham’s Case, julgado
pela Corte de Common Pleas, onde Sir Edward Coke atuou como Chief Justice. Os
fatos ocorridos no referido julgado foram assim resumidos por Roscoe Pound:
Neste caso um ato do Parlamento, confirmando a Carta do Colégio Real de
Médicos, dava podêres à sociedade incorporada de médicos para multar os
membros que transgredissem as regras, cabendo metade da multa à coroa
e metade à sociedade. O dr. Bonham, tendo sido prêso por falta de
pagamento da multa lançada de acôrdo com êsse dispositivo, moveu ação
por falsa detenção. O Tribunal do Rei julgou a prisão injusta por dois
motivos: (1) a carta, confirmada pelo estatuto, não ampliava a jurisdição do
Colégio de Médicos aos que não clinicavam em Londres, e (2) o estatuto,
que tornava o colégio, o qual recebia metade da multa, juiz da própria
causa, autor, promotor e juiz, era contrário ao common law e à razão e,
102
portanto, nulo .
De acordo com a referida decisão, Sir Edward Coke estava admitindo a
possibilidade de as Cortes da common law realizarem o controle de validade dos
atos do Parlamento, permitindo, em razão disso, “até mesmo anular os atos
daqueles, quando contrários ao direito comum e à razão, ou dotados de efeitos
impossíveis ou repugnantes”103 104.
Nelson Saldanha, abraçando o entendimento de que o controle de
constitucionalidade pela via judicial remonta sua origem a essa argumentação de
Edward Coke, refere:
Dentro dos debates e dos conflitos que ocuparam a passagem do século
XVII, a posição de Edward Coke se revestiu de grande expressividade, já
que ele lutou pela limitação dos poderes do rei e pelo reforço do papel do
judiciário no esquema das funções governamentais. Justamente, o
problema do controle de constitucionalidade por via judicial teria nele, em
105
sentido moderno, seu ponto de partida.
102
POUND, 1965, p. 41.
MARTEL, p. 24-25.
104
Cumpre referir que Eduardo Henrique de Oliveira Yoshikawa dedica um capítulo do livro “Origem e
evolução do devido processo legal substantivo” (obra constante nas referências) ao caso Bonham.
Nele menciona o posicionamento de vários autores sobre o tema, permitindo a conclusão de que não
é pacífico o entendimento de que a versão substantiva do devido processo legal remonta no referido
caso, embora o posicionamento do autor seja diverso, pois entende que o surgimento da versão
substantiva se deu nesse momento.
105
SALDANHA, Nelson. Formação da Teoria Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 53.
103
56
Posição diversa, conforme cita Letícia Campos Velho Martel, é a de Lucius
Polk McGehee. O referido autor menciona que se buscar hoje a real intenção de
Coke é uma tarefa especulativa porque:
É um mistério o efetivo sentido das palavras de Coke, não há como se
precisar se ele estava simplesmente anunciando uma regra de
interpretação, se estava propondo uma nova doutrina, similar ao controle de
constitucionalidade, ou se estava lançando as bases do devido processo
legal substantivo. O que se tem, objetivamente, é que a decisão proferida
no Dr. Bonham’s Case não constitui um precedente, logo angariando o
106
posto de caso isolado .
Em vista do que foi exposto, seria correto afirmar, de acordo com a doutrina
majoritária107, que a versão substantiva do devido processo legal não se
desenvolveu de forma precisa na Inglaterra, ali ela foi lançada apenas como tese108,
e sem que fosse efetivamente reconhecida como parte do direito vigente. Assim, foi
somente depois nos Estados Unidos que o devido processo legal substantivo se
tornou parte do direito vigente.
Tendo em vista a importância da versão substantiva do devido processo legal,
não só ao estudo aqui proposto, mas também pelo que ela representa para o avanço
da interpretação constitucional e da democracia, partimos agora para o estudo mais
detalhado de sua conformação no direito público norte-americano, com o fito de
depois podermos proporcionar o entendimento de como essa cláusula é utilizada
hodiernamente.
106
MCGEHEE, Lucius Polk. apud MARTEL, 2005, p. 28.
Conforme refere MARTEL, 2005, p. 39; BORGES NETTO, André L. A Razoabilidade
Constitucional (o princípio do devido processo legal substantivo aplicado a casos concretos). Revista
Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 2, nº. 12, Brasília, maio de 2000. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 23 ago. 2007; CASTRO, 2006, p. 08.
108
Conforme refere Letícia de Campos Velho Martel, “com o julgamento desse caso Coke estava
abrindo caminho para controle de atos do Parlamento pelas cortes de common law, permitindo a
estas julgar e até mesmo anular os atos daquele, quando contrários ao direito comum e à razão [...]”.
MARTEL, 2005, p. 24-25.
107
57
2.4 A garantia do devido processo legal substantivo nos Estados Unidos da
América
A consolidação da versão substantiva do devido processo legal nos Estados
Unidos foi fruto de um longo processo evolutivo, sendo “um enigma”, conforme
refere Letícia Campos Velho Martel, definir ao certo quando efetivamente ocorreu
seu surgimento109.
Diante disso, antes de adentrarmos propriamente o tema proposto no
presente tópico, faz-se importante compreender as diferenças existentes entre os
sistemas jurídicos inglês e norte-americano, no tocante à posição e importância do
Parlamento, para que assim possamos entender mais claramente os motivos que
levaram à garantia do devido processo legal em sentido substantivo ser
desenvolvida com destaque no direito norte-americano (e não no direito inglês).
O doutrinador Bernard Schwartz refere que a supremacia parlamentar
constitui a pedra fundamental da estrutura constitucional da Inglaterra, sendo ao
Parlamento permitido fazer e desfazer qualquer lei, enquanto os tribunais ingleses
possuem a prerrogativa de apenas interpretar as leis, não podendo discutir a
validade das leis editadas pelo Parlamento110. Assim, na Inglaterra o Parlamento
ocupa a condição de supremacia e os tribunais uma posição secundária.
Já no que se refere ao sistema norte-americano, a posição do Parlamento é
diferente. Há uma rejeição ao modelo da supremacia legislativa, e os tribunais
americanos possuem autoridade para examinar a constitucionalidade das leis,
estando isso implícito na própria essência do poder judicial atribuído pela
Constituição111. Portanto, nos Estados Unidos o Congresso Nacional possui poderes
109
MARTEL, op. cit., p. 39.
Outrossim, importante referir que Mauro Cappelletti defende que nos Estados Unidos, em
oposição com a Inglaterra, existe a denominada supremacia do poder judiciário ou, o governo dos
juízes, atribuindo essa denominação ao desenvolvimento do sistema norte-americano da judicial
review. CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial da constitucionalidade das leis no direito
comparado. Tradução Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, p.
57-63.
111
SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Tradução de Carlos Nayfeld. Rio de
Janeiro: Editora Forense. 1966, p. 23-25.
110
58
limitados, já que é permitido ao Poder Judiciário (Tribunais) controlar os atos por ele
emanados.
Seguindo esse raciocínio, Bernard Schwartz refere que:
Como a constituição é a lei suprema de um país, num conflito entre estas e
as leis, quer as do Congresso, quer as dos estados, é dever do Judiciário
cumprir apenas isso, que constitui a sua obrigação. Isso advém da própria
teoria da forma republicana de governo; pois de outro modo, os atos do
Legislativo e do Executivo se tornariam na realidade supremos e
incontroláveis, não obstante as limitações contidas na Constituição,
sobrevindo em conseqüência usurpações de caráter extremamente
evidente e perigoso, sem qualquer remédio ao alcance dos cidadãos... O
espírito universal da América resolveu que, em último recurso, o Judiciário
deve decidir sobre a constitucionalidade dos atos e das leis do Governo
federal e estaduais, desde se tornem objeto de controvérsia judicial”.
Segundo a teoria adotada pelos tribunais americanos, a autoridade para
declarar a constitucionalidade provém do dever judicial de determinar a lei.
112
“Evidentemente é dever de incumbência do Poder Judiciário” .
Nos Estados Unidos, o controle judicial da constitucionalidade dos atos dos
Poderes Legislativo e Executivo ocorreu naturalmente, em decorrência basicamente
da forma de organização do Estado, de sua representação política e da
independência do Poder Judiciário113. Nesse quadro, o judicial review (i.e. o controle
judicial dos atos legislativos e executivos) firmou-se cedo na história das instituições
norte-americanas.
O caso Marbury v. Madison114, em 1803, é considerado uma referência
canônica quanto ao poder do judicial review. Nele o Chief Justice John Marshall
sustentou a tese de que a Constituição é a base de todos os direitos, lei suprema do
ordenamento porque produto do Poder Constituinte, devendo, por isso, ser
112
SCHWARTZ, 1966, p. 25.
MELO, Manuel Palácios Cunha. A Suprema Corte dos EUA e a Judicialização da Política – Notas
sobre um itinerário difícil. In: VIANA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil.
Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 63-64.
114
O caso Marbury contra Madison pode ser assim resumido: “Jefferson ordenou ao Secretário de
Estado Madison para reter o documento, selado e assinado pelo Presidente Adams sob o Ato
Judiciário de 1801, da nomeação de William Marbury para juiz de paz do Distrito de Columbia. A
designação de Marbury foi uma das chamadas ‘nomeações no escuro’ feitas por Adams ao deixar o
cargo. Ao recusar dar um parecer decisivo, sob a alegação de que o tribunal padecia de competência
no caso, o Presidente da Côrte de Justiça, Marshall, empregou uma estratégia calculada para evitar
uma luta aberta com o ramo do executivo responsável pelo cumprimento do mandado. Esta foi a
primeira ocasião em que a Côrte Suprema manteve um ato inconstitucional do Congresso, que não
se repetiu senão mais tarde, no caso Dred Scott.” (sic). MORRIS, Richard B. Documentos básicos da
história dos Estados Unidos. Tradução de Francisco Rocha Filho. Rio de Janeiro: Editora Fundo de
Cultura, 1964. p. 105-111.
113
59
respeitada pelos três Poderes constituídos e também proibida a sua modificação
pela via ordinária115
116
. Notadamente, esse caso deu início ao judicial review nos
Estados Unidos, surgindo, assim, o modelo de controle judicial difuso de
constitucionalidade117.
Letícia Campos Velho Martel refere que foi no período colonial norteamericano e no primeiro meio século após a independência que se firmaram os
elementos que constituiriam a versão substantiva da cláusula, quais sejam: as
noções de Constituição escrita com Declaração de Direitos Fundamentais, de
supremacia da Constituição e de controle jurisdicional de constitucionalidade118.
Nesse contexto, a cláusula em comento foi formalmente inserida no sistema norteamericano com a 5ª119 e com a 14ª Emendas120.
No âmbito da judicial review a versão substantiva do due process of law
serviu como um critério de aferição da constitucionalidade, já que com base nas
duas premissas se iniciou a discussão acerca da possibilidade de os Tribunais
realizarem a revisão da razoabilidade dos atos do Poder Público.
Assim, o devido processo legal substantivo está ligado ao controle de
constitucionalidade como sendo a cláusula que permite aos Tribunais revisar a
razoabilidade dos atos normativos que privam as pessoas do direito à vida, à
115
LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A constituição como Princípio, Baueri, SP: Manole, 2003. p. 96.
Letícia Campos Velho Martel refere que neste caso “o Justice Marshall sustentou ser a
Constituição o supremo direito da terra. Em vista disso, asseverou que é função peculiar do Poder
Judiciário interpretar a Constituição e recusar-se a aplicar atos governamentais que contrariem seus
princípios e suas regras, pois a concordância do Judiciário com esses atos derrubaria, na prática,
toda a teoria de limitação de poder”. MARTEL, 2005, p. 69.
117
MELO, 2003, p. 68-69.
118
MARTEL, 2005, p. 69.
119
Letícia Campos Velho Martel refere que a história legislativa da quinta emenda, assim como sua
redação, não fornecem elementos para identificar precisamente a versão substantiva do devido
processo legal nesta etapa do constitucionalismo norte-americano. A autora argumenta que a referida
cláusula e o histórico de seu processo legislativo não são os únicos elementos disponíveis para
identificação da origem da substantividade da cláusula, alega que o Bill of Rights não foi o primeiro
texto legal norte-americano que ofertou guarida explícita à cláusula, aduzindo que tanto documentos
anteriores como posteriores à independência abraçavam a cláusula ou frases similares a ela.
MARTEL, 2005, p. 46.
120
BORGES NETTO, André L. A Razoabilidade Constitucional (o princípio do devido processo legal
substantivo aplicado a casos concretos). Revista Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 2, nº. 12,
Brasília, maio de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 23 ago. 2007.
116
60
liberdade e à propriedade121, ou seja, servindo de instrumento para a própria
efetivação da supremacia da Constituição.
Feitos esses esclarecimentos, passemos à análise de como ocorreu o
surgimento e a evolução da versão substantiva em solo americano.
2.4.1 A evolução da garantia do devido processo legal substantivo nos
Estados Unidos da América
A evolução da versão substantiva do devido processo legal pode ser
subdividida em diferentes fases históricas. A primeira delas (do seu surgimento até o
ano de 1930) é caracterizada como a fase em que a utilização da versão substantiva
é destinada a controlar e invalidar leis econômico-sociais estaduais. A segunda fase
(1930-1960) é onde ocorre a sua utilização para controlar e validar leis econômicosociais editadas sobretudo no período da política do “New Deal”, para debelar os
efeitos da crise econômica de 1929. A terceira fase (pós-1960) é a consagração do
devido processo legal substantivo para a proteção dos direitos de liberdade e de
direitos individuais não enumerados expressamente na Constituição norteamericana122.
Considerando as características de cada uma dessas fases, passemos ao
estudo de cada uma delas, no intuito de sistematizar a sua compreensão.
2.4.1.1 Primeira fase: do surgimento até 1930
O primeiro período de desenvolvimento da versão substantiva da cláusula é
caracterizado pela proteção da liberdade contratual dos indivíduos contra a
ascensão dos direitos econômicos e sociais e o intervencionismo estatal.
121
122
MARTEL, 2005, p. 40-41.
BARROSO, 1999, p. 211.
61
Assim, a cláusula do devido processo legal em sentido substantivo era
oposta, nessa primeira fase, à tentativa dos Estados-membros de interferirem, por
meio de lei, sobre as relações contratuais derivadas do livre pacto entre as partes123.
Todavia, sua efetiva aplicação nesse sentido só se fez sentir no final do
século XIX. Antes disso a Suprema Corte muito mais reconhecia a sua vigência,
mas de fato não o utilizava como critério fundamentador da declaração da
inconstitucionalidade de leis e outros atos estatais.
A rigor, foi o caso Dred Scott124 o primeiro em que o devido processo legal
substantivo serviu de fundamento jurídico para a decisão125, constituindo assim,
segundo Letícia Campos Velho Martel, “o único exemplar que explicitou a
substantividade da cláusula em cenário nacional antes da ratificação da Décima
Quarta Emenda”126.
123
PAMPLONA, Danielle Anne. Devido Processo Legal: aspecto material. Curitiba: Juruá Editora,
2004, p. 46.
124
O caso Dred Scott pode ser assim resumido: “[...] Os detalhes são os seguintes: Dred Scott,
escravo negro, foi levado pelo seu dono de St. Louis, Missúri, para Rock Island, Ilinóis, onde a
escravidão tinha sido proibida pelo Dispositivo de 1787, e mais tarde para o Território de Wisconsin,
onde a escravidão também fôra proibida pelo Compromisso de Missúri. Em 1846 Scott requereu aos
tribunais de Missúri a sua libertação, acentuando que se tinha tornado livre porque se encontrava
num estado e num território livres. Um parecer de tribunal inferior em favor de Scott foi rejeitado pela
côrte suprema do Estado. O caso suscitou apelação para o tribunal federal distrital e finalmente para
a Côrte Suprema dos Estados Unidos. O caso envolvia três argumentos principais. 1) se Scott era um
cidadão do Estado de Missúri e portanto habilitado a recorrer aos tribunais federais; 2) se a sua
estada temporária em solo livre lhe dera um direito à liberdade que seria válido até o seu retôrno ao
estado escravagista de Missúri; 3) a constitucionalidade do compromisso de Missúri. Cada uma das
côrtes de justiça mantivera uma opinião isolada, mas a do Juiz Presidente Roger B. Taney é
comumente citada como sendo a da maioria. As opiniões dissidentes dos Juízes John McLean e
Benjamin R. Curtis, que são geralmente considerados responsáveis por introduzirem o recurso do
Compromisso de Missúri, mantiveram que Negros Livres eram cidadãos dos Estados Unidos e que o
Congresso estava constitucionalmente investido de pôderes (Art. IV, parágrafo 3) para controlar a
escravidão nos territórios”. (sic) MORRIS, Richard B. Documentos básicos da história dos Estados
Unidos. Tradução de Francisco Rocha Filho. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1964, p. 147148; a decisão também pode ser consultada em PADOVER, Saul K. A Constituição Viva dos Estados
Unidos. Tradução de A. Della Nina. São Paulo: Ibrasa, 1964, p. 119-130.
125
Convém salientar, como refere a citada autora, que o caso Dred Scott também não soluciona o
enigma quanto ao surgimento da substantividade do devido processo legal, pois não teve o referido
julgado vida longa, sendo abandonado como precedente poucos anos após ser prolatado, conforme
MARTEL, 2005, p. 86.
126
O Dred Scott e outros julgados ocorridos no período são exemplos de aplicação do devido
processo legal em sua faceta substantiva e, também, exemplos de “ultra judicial review”, que é,
segundo ela, a extrapolação dos limites do molde tradicional do controle de constitucionalidade, uma
vez que nestes casos a fundamentação da inconstitucionalidade baseava-se em elementos externos
ao texto constitucional e não em artigos e cláusulas objetivamente considerados, como, por exemplo,
o direito natural, os princípios gerais do direito e os derivados do contrato social, da razão, do
republicanismo e do governo livre e da common law, argumentando que, embora não haja ligação
62
Esse caso é assim articulado por Letícia Campos Velho Martel:
A Corte negou a Dred Scott o status de homem livre, e, via de
conseqüência, negou-lhe a cidadania federal. O Chief Justice Taney,
salientou que, como Dred Scott era propriedade, poderia ser carregado pelo
seu senhor de acordo com a vontade deste, sem impedimentos à livre
circulação de bens. A lei do Congresso que proibia a escravidão nos
territórios foi declarada inconstitucional e um dos fundamentos de tal
inconstitucionalidade foi o due processo of law, em sua faceta substantiva,
pois um ato do Congresso que priva um cidadão (o senhor) de sua
propriedade (Dred Scott) por levá-la consigo pelo território nacional não
pode ser digna do nome devido processo legal. [...]
O grande diferencial é que o Justice Taney injetou os fundamentos calcados
no direito natural no vocábulo due process of law, da Quinta Emenda, no
caso Dred Scott. E, por meio da cláusula assim interpretada, o Justice
Taney derrubou uma lei do Congresso. Por isso, o caso Dred Scott é
considerado um marco inequívoco na construção da faceta substantiva do
devido processo legal. Então, o recuso a elementos extraconstitucionais,
calcados no direito natural, que já estavam se delineando em decisões
posteriores, entraram no conceito de due process of law, fazendo dele o
canal apto a garantir a presença desses elementos no texto da
127
Constituição .
Verifica-se portanto que o surgimento da versão substantiva do devido
processo legal foi fruto de um longo amadurecimento da idéia que estava sendo aos
poucos inserida nos julgados americanos, constituindo por fim o caso Dred Scott um
marco da afirmação da faceta substantiva.
A evolução dessa interpretação (mais ampla do que uma mera garantia
simplesmente de processo) desembocou na Décima Quarta Emenda128, que acabou
fortalecendo os elementos da versão substantiva e ganhando aceitação na Suprema
Corte norte-americana129.
Cumpre esclarecer que a aprovação das emendas constitucionais números
13, 14 e 15, pelo Congresso Nacional norte-americano ocorreram em uma época
histórica marcada pelo fim da guerra civil (1861-1865) e como resultado da abolição
entre a ultra judicial review e o devido processo legal substantivo, existe compatibilidade entre ambas.
MARTEL, 2005, p. 73-79, 85-86.
127
MARTEL, 2005, p. 82.
128
É importante esclarecer, conforme refere Letícia de Campos Velho Martel que a versão
substantiva do devido processo legal não pode ser claramente identificada na Décima Quarta
Emenda, mas foi a partir dela que a doutrina do devido processo legal substantivo foi construída e
ganhou espaço junto à Suprema Corte norte-americana. MARTEL, 2005, p. 86.
129
MARTEL, 2005, p. 85.
63
da escravatura (pela Proclamação expedida em 1º de janeiro 1863)130. Tais
emendas destinavam-se, fundamentalmente, a garantir os direitos de cidadania e as
liberdades civis aos ex-escravos e aos seus descendentes de cor negra131.
Nesse contexto histórico, a Décima Quarta Emenda, em sua seção I, assim
declarou:
Todas as pessoas nascidas e naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à
sua jurisdição são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado em que
residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei restringindo os
privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem privará
qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo
legal regular (due process of law); nem negará a qualquer pessoa dentro de
132
sua jurisdição a igual proteção das leis .
Em que pese o conteúdo da Décima Quarta Emenda ser aparentemente
taxativo, ele também é suficientemente vago, caracterizando sobretudo um princípio
de cunho político e moral, não havendo portanto como precisar juridicamente de
modo pleno a sua amplitude e extensão.
Nesse contexto, o que se percebe é que a Suprema Corte, depois de
abandonar o precedente do Caso Dred Scott, por algum tempo não aplicou a
cláusula.
No ano de 1873, por exemplo, a Suprema Corte se viu diante do Slaughter
Hause Cases, caso explicitamente pioneiro de aplicação do devido processo legal
substantivo sobre a Décima Quarta Emenda. Nesse caso, a Suprema Corte deveria
decidir acerca da constitucionalidade de uma Lei da Lousiana que conferia o
monopólio a um determinado açougue da área de New Orleans por 25 anos. O juiz
Bradley, voto vencido, afirmou que isso significava proibir um grande grupo de
cidadãos de exercer atividade lícita, o que era, de fato, privá-los da liberdade
(liberdade de exercer uma profissão) e da propriedade, sem portanto atender ao due
130
A proclamação abolicionista de 1º de janeiro de 1863 pode ser consultada em MORRIS, 1964, p.
157-159.
131
CASTRO, 2006, p. 25. Outrossim, importante lembrar que a autora Letícia Campos Velho Martel
dedica estudo pormenorizado aos antecedentes históricos e congressuais da Emenda Décima
Quarta, o qual é de importante significado. MARTEL, 2005, p. 87-100.
132
CORWIN, Edward S. A Constituição Norte-Americana e seu significado atual. Tradução Lêda
Boechat Rodrigues. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1986, p. 298-299.
64
process of law. Entretanto, nesse caso a Corte decidiu que a previsão da 14ª
Emenda somente servia para proteger os indivíduos contra injustiças processuais
(afirmando então somente o tradicional sentido adjetivo do devido processo)133.
Assim, embora em voto dissidente, o Juiz Bradley levantou a questão de que
havia limites materiais ao Congresso Nacional e aos Legislativos Estaduais, no
sentido de que era possível rever o mérito dos atos legislativos por eles
promulgados. Entretanto, a posição predominante da Corte nesse caso ainda foi a
de não aplicar o substantive due process of law como mecanismo de controle de
mérito da atuação do Estado e seus agentes legisladores134.
No decorrer dos anos, todavia, a Suprema Corte acabou sedimentando o
entendimento para a aplicação do devido processo legal em seu sentido substantivo,
conforme
refere
Danielle
Anne
Pamplona,
mais
exatamente
no
período
compreendido entre os anos de 1899 e 1937. Nesse espaço de tempo a Suprema
Corte decidiu mais de cem casos onde leis estaduais foram declaradas
inconstitucionais em confronto com a cláusula do substantive due process e com a
cláusula que prevê a igual proteção das leis135.
O leading case na área do controle judicial da legislação econômica136
ocorreu em 1905, no caso Lochner v. New York. Nesse caso, a Suprema Corte
estadunidense declarou incompatível com a Constituição a lei do Estado de Nova
Iorque que fixava uma jornada máxima de trabalho para os empregados de padaria.
Aqui a Corte reconheceu que a garantia do devido processo legal substantivo
assegurava aos empregados e empregadores a faculdade de livremente
contratarem a duração do trabalho diário, não podendo haver qualquer ingerência do
Poder Público nesse âmbito.
133
PAMPLONA, Danielle Anne. Devido Processo Legal: aspecto material. Curitiba: Juruá Editora,
2004, p. 47.
134
MARTEL, 2005, p. 144.
135
PAMPLONA, 2004, p. 51.
136
Neste tópico cumpre descrever que a doutrina divide em fases a aplicação do devido processo
legal substantivo. Nesse caso, precisamente, os autores referem como exemplo da fase referente ao
“devido processo legal substantivo econômico”, com algumas variações de nomenclaturas, mas que
se refere ao período em que predomina a proteção dos direitos econômicos, em especial à liberdade
contratual, conforme: MARTEL, 2005, p. 153-182; CASTRO, 2006, p. 55 e PAMPLONA, 2004, p. 46.
65
Segundo refere Carlos Roberto Siqueira Castro, o que estava em questão
nesse caso era a constitucionalidade de uma lei trabalhista do Estado de Nova
Iorque que proibira o trabalho de padeiros por mais de 10 horas diárias e para além
de 60 horas semanais. A superior instância da Justiça estadunidense considerou
que a faculdade de contratar as condições de trabalho entre empregado e
empregador configurava uma “liberdade individual protegida pela 14ª Emenda da
Constituição Federal”. O caso Lochner simboliza assim a tendência da restrição
judicial, no princípio do século XX, contra a legislação de ordem econômica
limitadora da liberdade de iniciativa137.
Assim, a decisão no referido julgado tornava identificável que a visão da
Suprema Corte era declarar nula toda legislação que desrespeitasse o direito
constitucional de livremente contratar138.
Conclui-se, portanto, que nesta primeira fase de sua evolução o devido
processo legal substantivo foi utilizado para proteger formalmente a liberdade
contratual, no sentido de que o direito de livremente contratar deveria ser
plenamente assegurado – não podendo a lei restringi-la de forma irrazoável. Na
prática o substantive due process of law foi utilizado como instrumento para invalidar
leis que representavam a invasão do Estado na economia139e que buscavam, de
alguma maneira proteger os socialmente menos favorecidos.
Sua aplicação serviu, por consequência, para barrar a ascensão do Estado
do Bem-Estar Social (“Welfare State”) nos Estados Unidos. Isso irá se manter até
que a crise econômico-social de 1929 finalmente legitime a ação intervencionista do
Estado.
137
CASTRO, 2006, p. 55-56.
Nesse sentido refere PAMPLONA, 2004, p. 53 e MARTEL, 2005, p. 160-164.
139
PAMPLONA, 2004, p. 51.
138
66
2.4.1.2 Segunda fase: 1930-1960
O entendimento pretoriano antes descrito prevaleceu até a década de
1930140, quando então a solução das mazelas sociais ocasionadas pelo período de
Grande Depressão foi atribuída aos governos (estaduais e nacional), contrariandose com isso a tese do Estado liberal não interventor. Nessa fase, a noção de Estado
passava por uma profunda reformulação em face da crise econômico-social de
1929. Ele deixava de ser apenas regulamentador e negativo, passando a se
interessar pelos serviços sociais e pelo funcionamento da economia, tornando-se
positivo neste novo sentido (“Walfare State”)141.
Essa nova postura passou a exigir do Estado o desempenho de inúmeras
funções públicas que somente poderiam ser efetivadas através da intervenção em
negócios sociais e econômicos, a fim de implementar o seu novo papel, ou seja,
realizar aquilo que era almejado para pôr fim à crise.
O plano de recuperação econômica e social, denominado New Deal, do
governo Roosevelt, colidiu porém com as premissas políticas e econômicas antes
defendidas pela Suprema Corte, no sentido da não intervenção estatal sobre a
liberdade de contrato e sobre a propriedade privada142.
A Grande Depressão ocorrida entre os anos de 1929 e 1933 elevou os
índices de desemprego, a liberdade contratual nesse período prejudicava a parte
mais fraca da relação, qual seja: o empregado. Nesse sentido, na segunda metade
da década de trinta a Suprema Corte passou a se ver pressionada a mudar de
posição em função da grave crise econômico-social143.
140
A Grande Depressão ocorrida no final da década de 1920 foi marcada pela quebra da bolsa de
New York, ocorrida em 1929, e pelo início da emergência do chamado Estado de Bem-Estar Social,
ou seja, o Welfare State, época caracterizada como o Estado assistencialista.
141
Conforme refere SCHWARTZ, 1966, p. 206-207.
142
Bernard Scwartz refere que “o New Deal envolvia um grau de contrôle governamental por parte de
Washington muito maior do que qualquer outro anteriormente tentado no sistema americano. Se o
país quer ir para frente, disse o Presidente Roosevelt no seu discurso de posse de 1932, ‘nós nos
devemos mover como um exército leal e disciplinado disposto a sacrificar-se pelo bem da disciplina
comum, porque sem tal disciplina não se consegue qualquer progresso, nenhuma liderança se pode
tornar eficaz’”. SCHWARTZ, 1966, p. 208.
143
PAMPLONA, 2004, p. 56.
67
Assim, a Suprema Corte foi literalmente forçada a modificar a sua forma de
atuação, passando a prolatar nas décadas de 1930 e 1940 uma série de decisões
onde era nítida a deferência judicial para com as decisões de ordem política e
econômica adotadas pelo Congresso e pelas Assembléias Legislativas144.
Nesse sentido, a Corte passou a não mais julgar inconstitucionais, por lesão
ao princípio do devido processo legal material, as leis contendo intervenções
estatais na economia, isto é: na propriedade e na liberdade de contrato. Pelo
contrário, esse mesmo princípio passou a servir para considerar constitucionais,
porque não arbitrárias e irrazoáveis, leis que tinham por objetivo reprimir a crise e
que, para tanto, necessitavam de alguma maneira limitar ou restringir as liberdades
individuais em nome da repressão da crise econômica.
Assim, a Suprema Corte passou por um período em que não mais limitou a
atuação do Congresso ao regular a economia, e tendo por base o mesmo
fundamento que ela antes se valia para invalidar leis nesta seara: o devido processo
legal substantivo145.
Já no período posterior seguinte ao esmorecimento da crise econômica, que
vai de 1937 a 1954, o devido processo legal substantivo foi sendo gradativamente
abandonado como instrumento de controle e invalidação de leis econômico-sociais
estaduais.
Depois de 1954 ele passa, por fim, a ser utilizado em casos relacionados ao
reconhecimento de direitos constitucionais não enumerados, despontando com isso
a sua terceira fase146.
144
Conforme esclarecido por CASTRO, 2006, p. 57.
PAMPLONA, 2004, p. 57-59.
146
MARTEL, 2005, p. 217.
145
68
2.4.1.3 Terceira fase: pós-1960
A partir de 1960, quando já plenamente consolidada a legislação do Welfare
State, a Suprema Corte teve de analisar vários casos referentes às liberdades
individuais, e neles passou a apresentar os contornos da retomada da aplicação do
devido processo legal substantivo147.
O caso Griswold v. Connecticut (1965) é um exemplo dessa situação. Ele é
assim descrito por Letícia de Campos Velho Martel:
O diretor executivo e o diretor médico Planned Parenthood League of
Connecticut foram condenados à prisão por oferecer informações e, após
exame, prescrever anticoncepcionais femininos a pessoas casadas. De
acordo com a legislação estadual, o uso de qualquer método para prevenir
a natalidade constituía crime, assim como a assistência no uso,
aconselhamento ou prescrição deles. Os dois crimes eram sujeitos à
148
idêntica punição, multa e prisão .
Nesse caso, a Suprema Corte norte-americana considerou inconstitucional a
proibição legislativa quanto à utilização de métodos anticoncepcionais, proferindo
decisão no sentido de ser uma tal norma lesiva ao direito de privacidade. Através do
voto do Juiz Douglas, conforme refere Carlos Roberto Siqueira Castro, “o Tribunal
deixou assentado que as garantias explícitas constantes da Bill of Rights norteamericana possuem ‘sombras jurídicas extensivas’, designadas penumbral rights,
que abrigam em seu bojo outros direitos implícitos ou consequentes daqueles
formalmente assegurados na Constituição”149.
Em voto dissidente, o Justice Black, acompanhando o voto do Justice
Stewart, acusou a Corte de estar dando crédito ao devido processo legal substantivo
que já estava desacreditado fazia trinta anos, e, mesmo posicionando-se contra a
lei, negou que como Justice estivesse declarando uma lei inconstitucional mediante
considerações de justiça natural e do devido processo legal substantivo150.
147 Para Letícia Campos Velho Martel a nova fase de aplicação do devido processo legal substantivo
passou a ser denominada de “personal substantive due process of law” o que, para ela, representa
uma guinada na forma de aplicação da referida cláusula. MARTEL, 2005, p. 192, 240.
148
Conforme destaca Letícia de Campos Velho Martel em nota de rodapé nº. 471 In.: MARTEL, 2005,
p. 255.
149
CASTRO, 2006, p. 61-63.
150
MARTEL, 2005, p. 256.
69
A postura do Juiz Douglas, conforme refere Letícia de Campos Velho Martel,
significou o reconhecimento da existência de um direito à privacidade nas relações
conjugais, um direito “dotado de fundamentalidade” e que, diante disso, não
poderiam ser autorizadas intrusões governamentais no direito de privacidade das
relações conjugais. Mesmo tendo o Juiz Douglas negado a utilização da doutrina do
due process of law para fundamentar seu voto, essa posição foi o primeiro passo
para a retomada do princípio151.
Com a retomada da utilização do devido processo legal substantivo pela
Suprema Corte dos Estados Unidos, ele passou a ser aplicado, fundamentalmente,
em três setores: “a) combinado com os direitos da Primeira Emenda; b) combinado
com os direitos da Quarta Emenda; c) isoladamente, na proteção dos direitos não
enumerados”152.
As matérias que a Suprema Corte dos Estados Unidos passou a tutelar com
base no devido processo legal substantivo, foram principalmente as seguintes:
procriação (como o exemplo narrado acima, no caso Griswold v. Connecticut);
casamento; relações familiares; morte digna; orientação sexual; privacidade nas
transações financeiras e aborto.
Alguns casos referentes a essas temáticas serão a partir de agora
apresentados.
Em 1967, no caso Loving v. Virginia a Suprema Corte rechaçou a
constitucionalidade de uma lei por unanimidade, admitindo a existência de um direito
não enumerado (não previsto expressamente na Bill of Rights, mas decorrente dos
direitos enumerados) tutelado pelo devido processo legal.
O caso é assim resumido:
151
152
MARTEL, 2005, p. 255-257.
MARTEL, 2005, p. 241.
70
Dois residentes do estado da Virginia, uma mulher negra e um homem
branco, casaram-se no distrito de Columbia. Logo após o casamento,
retornaram à Virginia, fixando residência em um município desse estado. No
mesmo ano, foram denunciados, processados e condenados por violação à
lei que proibia casamentos inter-raciais. Foi imposta pena de um ano de
prisão, suspensa por vinte e cinco anos, desde que o casal deixasse o
estado. A condenação escorava-se em duas normas, ambas partes de um
esquema desenhado para coibir casamentos entre pessoas pertencentes à
raça branca e a raças coloridas. Uma delas criminalizava o casamento interracial, e a outra, a saída do estado para a celebração de tais uniões em
outros estados. Os Loving atacaram a constitucionalidade da lei, por
violadora da igual proteção e do devido processo legal. O estado assim
motivou a lei: a) preservação da integridade racial e da pureza do sangue;
b) manutenção do orgulho racial. Alegou que a lei não era discriminatória,
153
pois atingia a todos, brancos e negros .
Conforme sustenta Letícia de Campos Velho Martel, a decisão da Suprema
Corte baseada no devido processo legal substantivo reputou insuportável a
classificação racial estabelecida na lei atacada, uma vez que a mesma era
“desprovida de qualquer propósito concebível dentro da competência de um estado,
não havendo fim legítimo no caso”154. Assim, a Suprema Corte entendeu que a
Constituição dos Estados Unidos deixava a cada indivíduo a escolha de se casar e
com quem se casar.
Um dos casos mais polêmicos na sedimentação da aplicação do devido
processo legal substantivo no âmbito dos direitos de personalidade foi o caso Roe v.
Wade, em 1973, que teve como objeto central a discussão sobre o aborto. Nesse
caso,
o
voto
majoritário
da
Suprema
Corte
entendeu
por
declarar
a
inconstitucionalidade da lei do Estado do Texas que proibia a realização de aborto
nos casos em que a vida da gestante não estivesse em risco155.
O caso é assim resumido:
Havia três litigantes confrontando a constitucionalidade de uma lei do Texas
que criminalizava o aborto, prevendo pena de prisão tanto para mulheres
que optassem pela prática quanto para os médicos que as auxiliassem: a)
Jane Roe, pseudônimo de uma mulher solteira e grávida, que desejava
realizar um aborto em condições seguras, mas foi impedida pela existência
da lei e a lei recusa dos médicos em realizar a intervenção. Ela ingressou
com uma class action, em seu nome e em nome de todas as mulheres que
desejavam interromper uma gravidez, alegando que a lei violava seu direito
153
Conforme destaca Letícia de Campos Velho Martel em nota de rodapé nº. 483 In.: MARTEL, 2005,
p. 259.
154
MARTEL, 2005, p. 260.
155
MARTEL, 2005, p. 265-266.
71
de privacidade e de tomar decisões inteiramente privadas, ferindo o due
process of law da Décima Quarta Emenda; b) Hallford, um médico, que
desejava realizar e aconselhar abortos para algumas de suas pacientes. Ele
possuía dois processos pendentes ante as Cortes texanas, nos quais era
acusado de realizar abortos; c) o casal Doe, cuja mulher tinha problemas de
saúde, e não estava grávida. Como o casal temia que ela ficasse grávida,
alegou que a lei violava sua privacidade como um casal, porque se a
esposa necessitasse e um aborto no futuro, não poderia fazê-lo. Em
nenhum dos três casos houve condenação. A lei excepcionava a
interrupção da gestação para salvar a vida da gestante, bem como vedava
156
a saída do estado para a realização do aborto .
Comentando a decisão da Suprema Corte nesse julgado, Carlos Roberto
Siqueira Castro refere:
Pela maioria simples de seus membros, e com o voto em nome da Corte de
autonomia da Justice Blackmun, o Tribunal confirmou a decisão da Justiça
estadual que absolvera os acusados, ao mesmo tempo em que declarou
inconstitucional toda a legislação que punia criminalmente as práticas
abortivas, com isso assegurando a direito insubtraível da mulher de decidir
sobre ter ou não ter filho mediante interrupção voluntária da gravidez. A
rigor, o aresto reconheceu que o direito constitucional à privacidade era
suficientemente amplo para abrigar essa decisão da mulher insubrogável
pelo Poder Público, muito embora sujeito a condições ditadas pela saúde
157
pública .
Essa atuação da Suprema Corte foi polêmica e sofreu críticas, inclusive de um
de seus juízes, através de um voto dissidente. O Justice Rehnquist, em seu voto,
arguiu que a atuação da Corte era usurpadora de poder, atuando de forma
legislativa158.
De acordo com essas e várias outras decisões também polêmicas da Suprema
Corte, o devido processo legal em seu sentido substantivo restou sedimentado na
prática da jurisdição constitucional norte-americana, passando a partir disso a servir
de modelo de aplicação de tal garantia para outros Estados.
Depois do caso Roe v. Wade, vários outros casos versando sobre o aborto
chegaram
até
a
Suprema
Corte,
principalmente
trazendo
a
debate
a
constitucionalidade de leis estaduais sobre o tema, passando a exigir uma atuação
156
Conforme destaca Letícia de Campos Velho Martel em nota de rodapé nº. 490 In.: MARTEL, 2005,
p.265.
157
CASTRO, 2006, p. 63-64.
158
Conforme refere MARTEL, 2005, p. 268-269.
72
positiva da Corte a fim de traçar as linhas demarcatórias entre o razoável e o
desarrazoado nesse campo159.
André L. Borges Netto discorre o seguinte acerca do devido processo legal
substantivo em sua concepção atual:
A Constituição indica a existência de competência a ser exercida pelo
Judiciário, no sentido de poder afastar a aplicabilidade das Leis com
conteúdo arbitrário e desarrazoado, como forma de limitar a conduta do
legislador.
Lei que não atinge um fim legítimo é inválida, como tal devendo ser
declarada, por força da garantia constitucional em exame.
Na atualidade, o texto da Lei ou ato governamental será preservado pela
Suprema Corte, até que nenhum posicionamento razoavelmente concebível
possa estabelecer uma relação entre a regulamentação contestada e um
160
fim legítimo do governo .
Nesse mesmo sentido, Carlos Roberto Siqueira Castro refere que o devido
processo legal substantivo, em razão de sua “imensurável riqueza exegética”,
estimula a interpretação constitucional, fazendo com que assim se possa alcançar o
seu verdadeiro desígnio, que é dar a resposta a muitos dos anseios da sociedade
contemporânea, fazendo com que por esse processo haja uma constante adaptação
da Constituição às realidades emergentes161.
Nas palavras do renomado autor,
Essa visão revitalizadora da legalidade a que possibilitou a cláusula due
process of law, com riqueza científica e enormíssima utilidade social,
transforma-se no mais importante instrumento jurídico para a proteção das
liberdades públicas nos Estados Unidos da América e nos demais países
que a incorporaram em sua ordem constitucional. Pode-se afirmar que,
através dela, a Constituição pôs-se a serviço da democracia, do avanço
162
civilizatório e do futuro .
Delineados os contornos referentes à evolução do devido processo legal
substantivo nos Estados Unidos, passemos à análise da finalidade prática desse
princípio que será o objeto de análise do próximo tópico.
159
MARTEL, 2005, p. 269.
BORGES NETTO, André L. A Razoabilidade Constitucional (o princípio do devido processo legal
substantivo aplicado a casos concretos). Revista Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 2, nº. 12,
Brasília, maio de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 23 ago. 2007.
161
CASTRO, 2006, p. 65.
162
Ibidem, p. 65-66.
160
73
2.5 Finalidade prática do devido processo legal substantivo
Até o presente momento a abordagem da temática consistiu em demonstrar
como houve a evolução da referida garantia na sua versão substantiva, bem como
em demonstrar que tal versão não foi uma previsão totalmente acabada, isto é: uma
garantia com conceito pré-definido e que foi incorporada na legislação para a sua
pronta aplicação. O desenvolvimento da cláusula foi fruto de um grande período de
amadurecimento pelos tribunais norte-americanos até que houvesse a sua
sedimentação com contornos mais específicos.
Nesse sentido, cumpre agora destacar qual a finalidade prática do devido
processo legal em seu sentido substantivo no direito norte-americano - para que
possamos compreender em que termos recepcionamos no Brasil essa garantia e,
sobretudo, se aqui conferimos a ela significado diverso e aplicação distinta daquelas
que ela possui nos Estados Unidos.163
Carlos Roberto Siqueira Castro refere que o devido processo legal
substantivo se transformou em instrumento jurídico de importante utilidade social
que possui o objetivo de proteger as liberdades públicas164.
Reforçando esse entendimento André L. Borges Netto discorre o que segue
acerca do devido processo legal substantivo:
Fato é que o entendimento atual do devido processo legal substantivo
permite o controle de atos normativos disciplinadores de liberdades
individuais até mesmo "não econômicas". Esse princípio, em sua concepção
substantiva, é fonte inesgotável de criatividade hermenêutica,
transformando-se numa mistura entre os princípios da "legalidade" e
"razoabilidade" para o controle dos atos editados pelo Executivo e
165
Legislativo .
Para Luís Roberto Barroso, a cláusula do devido processo legal substantivo
enseja a análise da compatibilidade entre o meio empregado e os fins visados pelo
163
Essa mesma situação é destacada por PAMPLONA, 2004, p. 63.
CASTRO, 2006, p. 66.
165
BORGES NETTO, André L. A Razoabilidade Constitucional (o princípio do devido processo legal
substantivo aplicado a casos concretos). Revista Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 2, nº. 12,
Brasília, maio de 2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 23 ago. 2007.
164
74
Poder Público. Segundo ele somente se presentes essas condições poder-se-á
admitir que haja a limitação de algum direito individual, estando eles expressos ou
não no texto, desde que fundados em princípios gerais de justiça e liberdade166.
Já na ótica de Letícia Campos Velho Martel, a faceta substantiva do devido
processo legal caracteriza-se por possuir uma razão abstrata, assim por ela definida:
devido processo legal substantivo é um princípio-garantia constitucional,
concretizador do devido processo legal genérico, que proíbe privações
arbitrárias e dezarrazoadas dos direitos de vida, propriedade e liberdade
das pessoas, privações estas advindas do conteúdo das leis e dos atos
executórios e das fundamentações das decisões judiciais, não importando
quão razoáveis tenham sido os procedimentos empregados na aplicação
dos atos constritores pelo órgão judicante, autorizando, assim, o Poder
Judiciário a controlar a razoabilidade de tais atos normativos, sendo que a
razoabilidade a ser aferida não possui um conteúdo estanque e fixo, nem se
167
confunde com as paixões majoritárias momentâneas .
Partindo das descrições acima referidas, podemos destacar as seguintes
considerações importantes para a compreensão da utilidade prática do instituto nos
Estados Unidos.
O devido processo legal substantivo é aplicado como garantia concretizadora,
instrumento de autorização e legitimação a ser utilizado pelo Poder Judiciário para
proibir atos arbitrários e dezarrazoados proferidos pelos demais Poderes (Legislativo
e Executivo), sobretudo de forma a garantir os direitos à vida, à propriedade e à
liberdade.
Em síntese, a utilidade prática do devido processo legal substantivo deve ser
compreendida como a possibilidade reconhecida ao Poder Judiciário de apreciar o
mérito dos atos emanados pelo Poder Público (atos legislativos e também atos
administrativos), permitindo a revisão desses atos diante da necessidade de
razoabilidade no conteúdo das leis ou atos administrativos, sem que isso signifique
qualquer usurpação de funções pelo órgão julgador.
166
167
BARROSO, 1999, p. 211.
MARTEL, 2005, p. 397/398.
75
Em que pese a enorme utilidade prática conferida a essa garantia pelos
doutrinadores pátrios, é importante referir todavia que, para muitos doutrinadores
norte-americanos, dentre os quais destacamos a posição de Edward Corwin, a
doutrina do substantive due process of law também é passível de críticas, pois
através dela o Poder Judiciário acabaria exercendo um papel de superioridade com
relação aos demais Poderes, podendo, com isso, ocorrer o risco do “voluntarismo do
Judiciário”. Vejamos:
Em conseqüência da doutrina moderna do due process of law como “lei
razoável”, o controle judicial deixou de ter limites definidos e definíveis;
embora varie consideravelmente, em cada caso, o reexame a que a Corte
Suprema submeterá a justificativa de fato de uma lei, sob as cláusulas de
due process da Constituição, essa matéria, depende, em última análise,
168
apenas do arbítrio da própria Corte e de nada mais .
Diante dessa situação, é importante então destacar que nem mesmo nos
Estados Unidos, a aplicação desse instituto é totalmente pacífica e sem críticas pela
doutrina, o que por consequência semeia a indagação de como o Brasil recepcionou
esse instituto e de como se dá a sua aplicação no tocante ao controle do mérito dos
atos administrativos discricionários.
Assim, realizado o apanhado evolutivo e identificada qual a utilidade prática
desse instrumento, partiremos, agora, ao estudo sobre a forma como o Brasil
recepcionou esse instituto e como o Supremo Tribunal Federal tem utilizado esse
instrumento como meio de legitimar o controle do mérito da atividade administrativa
discricionária. Para tanto, o último capítulo deste nosso estudo é dedicado a essa
finalidade.
168
CORWIN, 1986, p. 306.
76
3 CONTROLE JUDICIAL DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA VIA
DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO
3.1 A garantia do devido processo legal substantivo no direito brasileiro
No Brasil, a cláusula do devido processo legal ganhou menção expressa
somente com a Constituição Federal de 1988, no art. 5º, LIV169, o qual dispõe:
“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”170.
Entretanto, é necessário salientar que já bem antes os tribunais o
consideravam como implicitamente vigente em nosso ordenamento jurídico,
conforme refere a doutrina:
[...] da positivação tardia não se pode inferir a completa ausência do
princípio no Direito pátrio. Desde as primeiras décadas do
constitucionalismo republicano brasileiro o devido processo legal já era
compreendido como implícito no ordenamento jurídico nacional. Constituía
objeto de estudo doutrinário e de aplicação nos tribunais principalmente por
seus – consoante denominação atual – subprincípios concretizadores, como
171
o contraditório e a ampla defesa .
Existem, por exemplo, registros jurisprudenciais da aplicação do devido
processo legal substantivo já na metade do século passado. Em uma decisão de
1951 (RE 18.331, in RF 150/164) entendeu-se que o valor de certas taxas tributárias
era excessivo e por isso violava o “espírito da Constituição”, embora não seu texto
literal, e daí sua inconstitucionalidade. Depois, há registros de proibição do excesso
também na década de 1960172. De todo modo, o que efetivamente vingou em termos
169
Conforme refere Nelson Nery Júnior, foi no sentido genérico, amplo, que o devido processo legal
foi adotado pela Constituição de 1988, fazendo-se nele incluir tanto a sua faceta processual como
material, sendo o inciso LIV, do art. 5º, inspirado nas 5ª e 14ª Emendas da Constituição dos Estados
Unidos. NERY JÚNIOR, 1999, p. 34.
170
BRASIL, Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso LIV.
171
MARTEL, 2005, p. xxv-xxvi.
172
Nesse sentido é o voto do Ministro Themístocles Cavalcanti relator do Habeas Corpus nº.
45.232/GB - Guanabara, julgado em 21/02/1968, onde não explicitamente se refere ao devido
processo legal em seu sentido substantivo, mas de maneira implícita, reconhecendo em seu voto a
possibilidade de exercer o controle de constitucionalidade de lei com base em princípios não
previstos na Constituição, mas decorrentes do sistema político e dos demais princípios expressos,
com o fito de resguardar direitos fundamentais. Tribunal Pleno. Disponível em: http://www.stf.gov.br.
Acesso em 29 out. 2007.
77
quantitativos, antes da vigência da atual Constituição, foi a aplicação do princípio do
devido processo legal em seu sentido adjetivo.
Conforme refere Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, foi somente com a
Constituição de 1988 que o Supremo Tribunal Federal passou a intensificar a
aplicação do devido processo legal em seu sentido substantivo, reconhecendo, mais
amplamente, a inconstitucionalidade de leis com base na referida cláusula173.
É a partir da Carta Magna de 1988, portanto, que restou sedimentada a
garantia do devido processo legal nos seus dois tradicionais sentidos (o adjetivo e o
substantivo), garantia que, nas palavras de Rogério Lauria Tucci e José Rogério
Cruz e Tucci, significa:
a)
elaboração regular e correta da lei, bem como de sua razoabilidade,
senso de justiça e enquadramento nas preceituações constitucionais
(substantive due process of law, segundo o desdobramento da concepção
norte-americana);
b)
aplicação judicial da lei através de instrumento hábil à sua
interpretação e realização, que é o processo (judicial process); e
c)
assecuração, neste, da paridade de armas entre as partes, visando à
174
igualdade substancial .
Assim, a interpretação doutrinária do dispositivo constitucional referente à
cláusula em estudo identifica a vigência das duas faces do devido processo legal, a
material e a processual, a partir da Constituição Federal de 1988175 176.
173
FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. O devido processo legal substantivo – e o Supremo
Tribunal Federal – nos 15 anos da Constituição Federal. Revista Jurídica Virtual, Vol. 6, nº. 60,
Brasília, maio de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 15 julho 2008.
174
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e Processo:
regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 16/17.
175
Na sequência da explicação, Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci referem que para
eles “[...] de modo induvidoso, que o devido processo legal se consubstancia, também, numa garantia
conferida pela Constituição Federal visando à consecução da tutela dos direitos nela denominados
fundamentais – por isso mesmo tidos, explícita e implicitamente, como inerentes ou essenciais ao
membro da coletividade na vida comunitária -, e a saber: a) direito à integridade física e moral, e à
vida; b) direito à liberdade; c) direito à igualdade; d) direito à segurança; e) direito à propriedade; f)
direitos relativos à personalidade (a par, obviamente, do direito ao processo)”. TUCCI, 1989, P. 16/17.
176
Ainda, se faz importante mencionar, conforme refere Carlos Roberto Siqueira Castro que no direito
brasileiro, “[...] o devido processo legal fecundou entre nós primeiramente na esfera processual penal,
estendendo-se, depois, ao processo civil e, mais recentemente, aos procedimentos travados no
âmbito da Administração Pública.” CASTRO, 2006, p. 404.
78
3.2 A classificação da “norma-garantia” do devido processo legal substantivo
– a inserção sistemática do devido processo legal na Constituição Federal de
1988
Antes de iniciarmos o estudo sobre o enquadramento ou classificação da
garantia do devido processo legal diante da sua previsão normativa na Constituição,
mister destacar a importância da Constituição de 1988 dentro do cenário
democrático jurídico e político do país.
A sucessão de Constituições promulgadas no Brasil teve como consequência
prática no sistema jurídico a falta de efetividade de um número significativo de
disposições normativas nelas inscritas, ocasionando o não reconhecimento de força
normativa aos seus textos e a falta de vontade política de dar aplicabilidade direta e
imediata das disposições nela previstas177.
Assim, o desrespeito à efetividade constitucional acompanhou a evolução política
brasileira. Nesse contexto, a Constituição de 1988 é considerada o marco zero na
perspectiva de uma nova história democrática. Embora tardiamente, é a partir dela
que o povo ingressa na trajetória política brasileira como protagonista efetivo do
processo democrático178.
Diante disso, a efetividade da Constituição está em processo de maturação179.
As normas constitucionais conquistam o status pleno de normas jurídicas, dotadas
de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que
contemplam180.
177
BARROSO, L. R.; BARCELLOS, A. P. O começo da história. A nova interpretação constitucional e
o papel dos princípios no Direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação
constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
p. 328/330.
178
Idem.
179
O processo de efetivação da constituição é reforçado com destaque por Fabiana Marion Spengler.
SPENGLER, Fabiana Marion. A Constituição e a compreensão hermenêutica da sua (in)efetividade e
do seu constituir. In. LUCAS, Doglas César; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana (orgs). Olhares
Hermenêuticos sobre o Direito: em busca de sentido para os caminhos do jurista. Ijuí: Ed. Unijuí,
2006, p.195-244.
180
BARROSO, L. R.; BARCELLOS, A. P., 2003, p. 328/330.
79
Nessa visão, importante localizar a garantia constitucional em estudo para que
possamos visualizar a sua inserção dentro do sistema jurídico e para que possamos
compreender o seu modo de aplicação e efetividade181.
A garantia que ora se estuda está localizada no inciso LIV, do art. 5º, da
Constituição de 1988, que assim prescreve: “ninguém será privado da sua liberdade
ou de seus bens sem o devido processo legal”. Esse dispositivo, por sua vez, integra
o Capítulo I (“Dos direitos e deveres individuais e coletivos”) do Título II da
Constituição (“Dos direitos e garantias fundamentais”).
Entretanto, em que pese a localização sistemática do dispositivo legal dentro
do capítulo destinado aos direitos e às garantias fundamentais, ele não pode ser
analisado e interpretado isoladamente. Deve haver, conforme refere Claus-Wilhem
Canaris, a sua interpretação sistemática: assim, a norma deve ser vista “como parte
de um todo”, parte de um sistema, para assim ser corretamente considerada e
interpretada182.
É nesse mesmo contexto que se deve entender a difundida afirmação do
Ministro Eros Roberto Grau, segundo o qual “não se interpreta a Constituição em
tiras, aos pedaços”183.
Para realizarmos a análise específica do art. 5º, LIV, da Constituição Federal
de 1988, ou seja, realizarmos a análise de seu conteúdo enquanto norma, é
necessário então traçarmos antes de mais nada algumas premissas sobre os
significados de texto, norma e princípio, para que ao final possamos descobrir o
significado da referida norma dentro da ordem constitucional brasileira.
181
Conforme refere Carlos Maximiliano a interpretação do direito (hermenêutica) é o meio para atingir
a aplicação do direito. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. 2. tiragem.
Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 06/09.
182
CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito.
Tradução de A. Menezes Cordeiro. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 154/157.
183
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 3. ed.
São Paulo: Malheiros, 1997, p. 176/177.
80
3.2.1 A distinção existente entre “texto” e “norma”
A proposta aqui lançada é realizar inicialmente a distinção existente entre texto
e norma para que possamos compreender as diferenças existentes entre esses dois
elementos e possibilitar a análise sistemática do art. 5º, LIV, da Constituição Federal
de 1988.
Inicialmente, texto e norma não possuem uma relação de equivalência184. O
“texto”, na explicação de J.J. Gomes Canotilho, é o corpus constitucional, é todo o
conjunto de dispositivos inseridos no documento constitucional185. Se realizarmos o
exercício proposto pelo autor, o corpus constitucional da Constituição Brasileira de
1988 é constituído pelo conjunto de dispositivos normativos originariamente
aprovados pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988 e pelas sucessivas
emendas constitucionais.
De outro lado existe a “norma” que, segundo J. J. Gomes Canotilho, “é a regra
jurídica definidora de um padrão de comportamento ou criadora de esquemas
jurídicos para a solução de conflitos”186, em outras palavras podemos referir que a
norma é o gênero, do qual a regra e o princípio são suas espécies187.
Em complemento a isso, Humberto Ávila refere então que “as normas não são
textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação
sistemática de textos normativos”188, ou seja, isso significa dizer que nem todo texto
normativo irá possuir, obrigatoriamente, uma norma jurídica. A norma é fruto do
processo de interpretação realizado, vários textos, o que muitas vezes pode
necessitar de muitos dispositivos normativos para que deles seja extraída uma única
norma jurídica.
184
Nas palavras de Humberto Ávila “não há correspondência biunívoca entre dispositivo e norma –
isto é, onde houver um não terá obrigatoriamente de haver o outro”. ÁVILA , Humberto. Teoria dos
princípios: da definição à aplicação. 7. ed. Rio de Janeiro: Malheiros Editores, 2007, p. 31.
185
CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Portugal:
Livraria Almedina, 1998, p. 1007.
186
CANOTILHO, op. cit, p. 1017,
187
Idem, p. 1034.
188
ÁVILA, 2007, p. 30.
81
Traçada essa diferenciação, passemos, agora, ao estudo sobre as espécies de
normas.
3.2.1.1 Espécies de normas – as regras, princípios e postulados
Tradicionalmente vingou no direito constitucional brasileiro dos últimos vinte
anos uma distinção das normas constitucionais à base de princípios e regras. Tratase de tema recorrente de estudiosos em Direito Constitucional e da Teoria da
Constituição, sendo várias as diferenças identificadas pelos autores para
estabelecer as diferenças entre tais regras e princípios. Essa distinção tem origem
mais direta nas obras de Ronal Dworkin e Robert Alexy, e foi depois divulgada com
sucesso na língua portuguesa por J. J. Gomes Canotilho, nada obstante seja o fruto
de uma longa evolução de um processo que envolveu diferentes autores em
diferentes países e que pode chegar até a década de 1950.
Para o objetivo do presente estudo é importante tecermos algumas
considerações sobre essa temática, não com o objetivo de aprofundar a discussão,
mas no intuito de situar o leitor no exercício que será proposto na segunda parte
deste tópico.
Segundo a síntese apresentada por J. J. Gomes Canotilho, distinguir regras e
princípios é uma tarefa complexa, pois vários são os critérios sugeridos para essa
distinção, conforme ele refere:
a)
Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de
abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma
abstração reduzida.
b)
Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os
princípios por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações
concretizadoras (do legislador? do Juiz?), enquanto as regras são
susceptíveis de aplicação directa.
c)
Carácter de fundamentabilidade no sistema das fontes de direito: os
princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no
ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das
fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante
dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).
d)
Proximidade da ideia de direito: os princípios são standards
juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou
82
na ideia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com
um conteúdo meramente funcional.
f)
Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras,
isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras
jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética
189
fundamentante .
Diante desses critérios de distinção entre regras e princípios apresentados
pelo autor, que alguns inclusive afirmam que não servem satisfatoriamente para
realizar a diferenciação, podemos referir que é a partir da análise interpretativa do
texto normativo que será possível identificar quando ela é uma regra ou quando é
um princípio.
Entretanto, embora não se torne possível estabelecer diferenças absolutas
entre princípios e regras, é possível apresentar diferenças qualitativas entre essas
duas espécies de normas, que são lançadas pelos autores mais importantes e
apresentadas de forma sintética por J. J. Gomes Canotilho. Segundo ele, as
diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos:
Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma
optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os
condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem
imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou
não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing
fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky), a
convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras
antinómicas excluem-se. Consequentemente, os princípios ao constituírem
exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e
interesses (não obedecem, como as regras, à lógica tudo ou nada),
consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente
conflituantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução,
pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida
das suas prescrições, nem mais nem menos. [...] Realça-se também que os
princípios suscitam problemas de validade e peso (importância,
ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se
190
elas não são correctas devem ser alteradas) .
Quando, por exemplo, não é possível definir com clareza para quantos e quais
casos a norma se aplica (maior grau de abstração), teremos um princípio.
Entretanto, quando é possível identificar de forma clara com quantos ou a quais
casos a norma se aplica (menor grau de abstração), nesse caso estaremos diante
de uma regra.
189
190
CANOTILHO, 1998, p. 1034-1035.
CANOTILHO, 1998, p. 1035-1036.
83
Para exemplificar as duas situações:
“Em Estradas Federais é proibido conduzir veículo automotor acima de 100
km/h”. A norma referida apresenta pequeno grau de abstração, pois ela limita que
em “estradas federais” é “proibido conduzir” “veículo automotor” em “velocidade
acima de 100 km/h”, possuindo, dessa forma maior grau de determinabilidade.
Assim, podemos concluir que a referida norma é uma regra, vez que
fundamentalmente o lícito e o ilícito se resumem na distinção (descritiva) entre
velocidade a menos ou a mais de 100 km/h.
“É proibido atentar contra a moralidade e os bons costumes”. A norma referida
apresenta um maior grau de abstração, pois ela não define o que é moralidade e
bons costumes, possui conceitos vagos, que exigem a atuação do legislador ou do
juiz para defini-los concretamente perante o caso ao qual a norma se aplica. Nesse
sentido, diante do exercício de interpretação, podemos defini-la como sendo um
princípio, uma vez que não é possível definir-se a priori o que se deva entender por
“moralidade” ou por “bons costumes” junto a um caso concreto.
Sobre a temática, necessário destacar, como de grande importância, a
proposta conceitual lançada por Humberto Ávila ao tema em discussão:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são
axiologicamente subjacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade,
para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o
estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta
191
havida como necessária à sua promoção .
Avançando na diferenciação das normas, existe, ainda, uma outra espécie que
pode ser identificada, de acordo com a classificação apresentada por Humberto
Ávila, que são os chamados postulados.
191
ÁVILA, 2007, p. 78/79.
84
Para esse autor postulados são considerados normas de segundo grau,
porque orientam a aplicação de outras normas, ao passo que as regras e princípios
são normas de primeiro grau, porque são as normas objeto da aplicação192.
Ainda segundo o autor, existem postulados meramente hermenêuticos,
destinados à compreensão em geral do Direito, e os postulados aplicativos que
possuem a função de estruturar a aplicação concreta do Direito193. É esse segundo
tipo que interessa ao nosso estudo.
Humberto Ávila define os postulados aplicativos normativos como sendo:
Normas imediatamente metódicas que constituem critérios de aplicação de
outras normas situadas no plano do objeto de aplicação. Assim, qualificamse como normas de aplicação de outras normas, isto é, como metanormas.
Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau. Nesse
sentido, sempre que se está diante de um postulado normativo, há uma
diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de
194
outras normas .
Assim, existem as normas de primeiro grau, identificadas como regras e
princípios, e as normas de segundo grau, identificadas como os postulados
normativos aplicativos, e que não se confundem com as normas de primeiro grau,
constituindo categoria que impõe condições a serem observadas na aplicação das
regras e dos princípios195.
Diante dessa nova (tríplice) divisão das normas, um ou mais dispositivos
podem funcionar como ponto de referência tanto para regras, como para princípios
ou postulados.
Nesses casos, as alternativas não são exclusivas (ou é regra, ou é princípio,
ou é postulado) e sim inclusivas, no sentido que o mesmo dispositivo pode gerar,
simultaneamente, mais de uma espécie normativa.
192
ÁVILA, 2007, 122.
ÁVILA, 2007, 121-122.
194
ÁVILA, 2007, 122.
195
ÁVILA, 2007, p. 70/71.
193
85
Nas palavras do autor, “um ou vários dispositivos, ou mesmo a implicação
lógica deles decorrente, pode experimentar uma dimensão imediatamente
comportamental (regra), finalística (princípio) e/ou metódica”196 e essa conclusão é
importante para a terceira parte do estudo proposto.
3.2.2 O conteúdo da norma do art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988
Os conceitos até aqui trabalhados são importantes para o exercício que a partir
de agora será proposto. Realizaremos a análise do conteúdo do art. 5º, LIV, da
Constituição Federal de 1988, buscando identificá-lo com as espécies de normas já
apresentadas, a fim de entender qual o status que, enquanto norma, essa garantia
possui no ordenamento jurídico brasileiro.
Em que pese entender que o objetivo da tarefa proposta pode não ser atingido,
uma vez que é difícil estabelecer uma separação absoluta entre as duas espécies de
normas de primeiro grau, o exercício é importante para que atinjamos o fim maior,
buscado na presente pesquisa, que é analisar a aplicação do devido processo legal
substantivo como mecanismo autorizador de apreciação do mérito do ato
administrativo discricionário pelo Poder Judiciário.
Partindo das diferenças conceituais apresentadas, podemos aduzir que a
norma constitucional do devido processo legal substantivo estabelece um fim que
pode ser atingido e um necessário meio para tanto (“ninguém será privado da sua
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”).
Disso decorre que o Estado pode privar alguém de sua liberdade ou de seus
bens (fim), mas isso só poderá ocorrer se previamente for cumprido um devido
processo legal (meio).
Diante desse raciocínio, na visão dualista de classificação de regras e
princípios, pode-se observar que o devido processo legal estabelece a realização de
196
ÁVILA, 2007, p. 69.
86
uma garantia que pode ser ou processual, ou material, e também a preservação de
um estado de coisas (direito à vida, liberdade e propriedade), mas ele não indica
como isso concretamente ocorre, ele só traça um quadro muito amplo e geral:
mediante um “devido processo legal”.
Logo, essa norma extraída do art. 5º, LIV da Constituição pode ser identificada
como um princípio, já que exprime um fim a ser alcançado (legitimação da privação
da liberdade e da propriedade), mas não refere concreta e especificamente os
elementos que integram o meio para alcançar esses fins, porque só se sabe que
deve haver um processo devido para tanto. Enfim, ali não vem dito como esse
processo se conforma na prática197.
Considerando o texto do seu dispositivo, “ninguém será privado da sua
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, podemos retirar as
seguintes premissas: (i) podemos examiná-lo como regra porque condiciona a
validade da privação da propriedade e da liberdade à realização de um processo
prévio, onde devem ser respeitadas as formalidades legais; (ii) como princípio,
porque estabelece o resguardo dos valores de liberdade, vida e propriedade por
meio de um “devido processo”; e podemos, também, examiná-lo (iii) como postulado,
porque estabelece um dever jurídico de interpretação e de aplicação de outras
normas, ou seja, para alguém ser privado de seus bens ou de sua liberdade é
necessário que essa privação seja precedida ou efetivada mediante a obediência de
um determinado procedimento que envolve tantos aspectos adjetivos quanto
substantivos 198.
Assim, a norma em comento pode ser analisada sob as três óticas
apresentadas por Humberto Ávila. Entretanto, em que pese a possibilidade de se
197
Essa identificação do devido processo legal como princípio se dá, basicamente, pelas notas
lançadas por Humberto Ávila acerca dos princípios, já que em suas palavras: “Os princípios instituem
o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou,
inversamente, instituem o dever de efetivação de um estado de coisas pela adoção de
comportamentos a ele necessários. Essa perspectiva de análise evidencia que os princípios implicam
comportamentos, ainda que por via indireta e regressiva. Mais ainda, essa investigação permite
verificar que os princípios, embora indeterminados, não o são absolutamente. Pode até haver
incerteza quanto ao conteúdo do comportamento a ser adotado, mas não há quanto à sua espécie: o
que for necessário para promover o fim é devido”. ÁVILA, 2007, p. 80.
198
Exercício de interpretação baseado na proposta apresentada por ÁVILA, 2007, p. 69.
87
identificar internamente a existência das três espécies de normas, mister comentar
que, de acordo com a definição do autor, os postulados não se confundem com as
regras e princípios, eles funcionam de maneira diferente199.
A primeira diferença estriba-se na situação que regras e princípios não estão
situados materialmente no mesmo nível: os postulados são normas que orientam a
aplicação de outras normas (regras ou princípios). A segunda diferença refere-se
aos destinatários da norma: enquanto as regras e princípios são de forma primária
dirigidas ao Poder Público e ao indivíduo, os postulados são direcionados ao
intérprete da norma e ao aplicador do direito200.
De acordo com esse raciocínio, podemos identificar, como conclusão primeira,
que a norma do devido processo legal substantivo pode ser classificada como
princípio, pois prevê o resguardo e a obediência de valores como vida, propriedade
e liberdade, mas também como postulado, pois estabelece diretrizes metódicas para
sua aplicação e/ou validação de normas primárias e/ou atos estatais201.
Entretanto, para a concretização do devido processo legal em sentido
substantivo é necessário a utilização de elementos de aplicação e esses elementos
são os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade que no próximo tópico
serão examinados.
3.2.3 Elementos de concretização do devido processo legal substantivo:
razoabilidade e proporcionalidade
Na evolução do devido processo legal em sentido substantivo, apresentada no
capítulo anterior, foi mencionado que a utilização dessa garantia como instrumento
apto a evitar abusos do Poder Público não possui uma forma precisa e acabada de
aplicação. Segundo ensina Carlos Roberto Siqueira Castro, “essa garantia acabou
199
ÁVILA, 2007, p. 122.
ÁVILA, 2007, p. 122.
201
ÁVILA, 2007, p. 122/123.
200
88
se transformando num postulado genérico de legalidade a exigir que os atos do
Poder Público se compatibilizem com a noção de um direito justo” 202.
Porém, é justamente esta dificuldade de compreensão e vagueza conceitual
que torna importante a investigação de como se dá a aplicabilidade dessa garantia,
de como ela realmente se concretiza. Nem mesmo nos Estados Unidos, que
desenvolveu propriamente essa garantia, houve forma estanque, imutável de
aplicação, conforme se verifica tanto da história de sua evolução na jurisprudência
da Suprema Corte (conforme descrito no segundo capítulo do estudo), e que aqui se
sintetiza nas palavras do Justice Harlan, em voto proferido no caso Griswold vs.
Connecticut, na Suprema Corte:
“Devido processo” legal não foi ainda reduzido a nenhuma fórmula: seu
conteúdo não pode ser determinado pela referência a qualquer código. O
melhor que pode ser dito é que através do curso das decisões desta Corte
ele representou o equilíbrio que nossa Nação, construída sobre postulados
de respeito pela liberdade do indivíduo, oscilou entre esta liberdade e as
203
demandas da sociedade organizada .
Nesse contexto, levando em conta o seu processo evolutivo, importante
argumentar, conforme refere Luís Roberto Barroso, que através do devido processo
legal substantivo abriu-se a possibilidade de exame do mérito dos atos do Poder
Público, o que na visão do autor representa a “redefinição da noção de
discricionariedade”, não constituindo, todavia, aquela garantia, uma cláusula de fácil
compreensão204.
De todo modo, a aplicação do devido processo legal na sua faceta substantiva
está diretamente associada à razoabilidade e/ou à proporcionalidade, como forma
de realizar a avaliação dos atos do Poder Público e a efetivação do seu controle.
Os julgados a seguir transcritos exprimem a identificação do devido processo
legal substantivo com a razoabilidade e a proporcionalidade, vejamos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI Nº 8.713/93 (ART. 8º,
§ 1º, E ART. 9º) - PROCESSO ELEITORAL DE 1994 - SUSPENSÃO
202
CASTRO, 2006, 141.
HARLAN, apud BARROSO, 1999, p. 211.
204
BARROSO, 1999, p. 211.
203
89
SELETIVA DE EXPRESSÕES CONSTANTES DA NORMA LEGAL CONSEQÜENTE ALTERAÇÃO DO SENTIDO DA LEI - IMPOSSIBILIDADE
DE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AGIR COMO LEGISLADOR
POSITIVO - DEFINIÇÃO LEGAL DO ÓRGÃO PARTIDÁRIO COMPETENTE
PARA EFEITO DE RECUSA DA CANDIDATURA NATA (ART. 8º, § 1º) INGERÊNCIA INDEVIDA NA ESFERA DE AUTONOMIA PARTIDÁRIA - A
DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DOS PARTIDOS POLÍTICOS SIGNIFICADO - FILIAÇÃO PARTIDÁRIA E DOMICÍLIO ELEITORAL (ART.
9º) - PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE - MATÉRIA A SER
VEICULADA MEDIANTE LEI ORDINÁRIA - DISTINÇÃO ENTRE
PRESSUPOSTOS
DE
ELEGIBILIDADE
E
HIPÓTESES
DE
INELEGIBILIDADE - ATIVIDADE LEGISLATIVA E OBSERVÂNCIA DO
PRINCÍPIO DO SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW CONHECIMENTO PARCIAL DA AÇÃO - MEDIDA LIMINAR DEFERIDA EM
PARTE. AUTONOMIA PARTIDÁRIA: A Constituição Federal, ao proclamar
os postulados básicos que informam o regime democrático, consagrou, em
seu texto, o estatuto jurídico dos partidos políticos. O princípio constitucional
da autonomia partidária - além de repelir qualquer possibilidade de controle
ideológico do Estado sobre os partidos políticos - cria, em favor desses
corpos intermediários, sempre que se tratar da definição de sua estrutura,
de sua organização ou de seu interno funcionamento, uma área de reserva
estatutária absolutamente indevassável pela ação normativa do Poder
Público, vedando, nesse domínio jurídico, qualquer ensaio de ingerência
legislativa do aparelho estatal. Ofende o princípio consagrado pelo art. 17, §
1º, da Constituição a regra legal que, interferindo na esfera de autonomia
partidária, estabelece, mediante específica designação, o órgão do Partido
Político competente para recusar as candidaturas parlamentares natas. O
STF
COMO
LEGISLADOR
NEGATIVO:
A
ação
direta
de
inconstitucionalidade não pode ser utilizada com o objetivo de transformar o
Supremo Tribunal Federal, indevidamente, em legislador positivo, eis que o
poder de inovar o sistema normativo, em caráter inaugural, constitui função
típica da instituição parlamentar. Não se revela lícito pretender, em sede de
controle normativo abstrato, que o Supremo Tribunal Federal, a partir da
supressão seletiva de fragmentos do discurso normativo inscrito no ato
estatal impugnado, proceda à virtual criação de outra regra legal,
substancialmente divorciada do conteúdo material que lhe deu o próprio
legislador. PRESSUPOSTOS DE ELEGIBILIDADE: O domicílio eleitoral na
circunscrição e a filiação partidária, constituindo condições de elegibilidade
(CF, art. 14, § 3º), revelam-se passíveis de válida disciplinação mediante
simples lei ordinária. Os requisitos de elegibilidade não se confundem, no
plano jurídico-conceitual, com as hipóteses de inelegibilidade, cuja definição
- além das situações já previstas diretamente pelo próprio texto
constitucional (CF, art. 14, §§ 5º a 8º) - só pode derivar de norma inscrita
em lei complementar (CF, art. 14, § 9º). SUBSTANTIVE DUE PROCESS
OF LAW E FUNÇÃO LEGISLATIVA: A cláusula do devido processo
legal - objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da
Constituição - deve ser entendida, na abrangência de sua noção
conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe
restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas,
sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo
obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A
essência do substantive due process of law reside na necessidade de
proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer
modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do
necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da
perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das
atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência
para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável,
gerando, com o seu comportamento institucional, situações
normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins
90
que regem o desempenho da função estatal. O magistério doutrinário
de CAIO TÁCITO. Observância, pelas normas legais impugnadas, da
205
cláusula constitucional do substantive due process of law.
(Grifo
nosso)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI DISTRITAL QUE
DISPÕE SOBRE A EMISSÃO DE CERTIFICADO DE CONCLUSÃO DO
CURSO E QUE AUTORIZA O FORNECIMENTO DE HISTÓRICO
ESCOLAR PARA ALUNOS DA TERCEIRA SÉRIE DO ENSINO MÉDIO
QUE COMPROVAREM APROVAÇÃO EM VESTIBULAR PARA INGRESSO
EM CURSO DE NÍVEL SUPERIOR - LEI DISTRITAL QUE USURPA
COMPETÊNCIA LEGISLATIVA OUTORGADA À UNIÃO FEDERAL PELA
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DAS
LACUNAS PREENCHÍVEIS - NORMA DESTITUÍDA DO NECESSÁRIO
COEFICIENTE DE RAZOABILIDADE - OFENSA AO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE - ATIVIDADE LEGISLATIVA EXERCIDA COM
DESVIO DE PODER - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO DEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR COM EFICÁCIA "EX TUNC". A
USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, QUANDO PRATICADA
POR QUALQUER DAS PESSOAS ESTATAIS, QUALIFICA-SE COMO ATO
DE TRANSGRESSÃO CONSTITUCIONAL. - A Constituição da República,
nas hipóteses de competência concorrente (CF, art. 24), estabeleceu
verdadeira situação de condomínio legislativo entre a União Federal, os
Estados-membros e o Distrito Federal (RAUL MACHADO HORTA, "Estudos
de Direito Constitucional", p. 366, item n. 2, 1995, Del Rey), daí resultando
clara repartição vertical de competências normativas entre essas pessoas
estatais, cabendo, à União, estabelecer normas gerais (CF, art. 24, § 1º), e,
aos Estados-membros e ao Distrito Federal, exercer competência
suplementar (CF, art. 24, § 2º). - A Carta Política, por sua vez, ao instituir
um sistema de condomínio legislativo nas matérias taxativamente indicadas
no seu art. 24 - dentre as quais avulta, por sua importância, aquela
concernente ao ensino (art. 24, IX) -, deferiu ao Estado-membro e ao
Distrito Federal, em "inexistindo lei federal sobre normas gerais", a
possibilidade de exercer a competência legislativa plena, desde que "para
atender a suas peculiaridades" (art. 24, § 3º). - Os Estados-membros e o
Distrito Federal não podem, mediante legislação autônoma, agindo "ultra
vires", transgredir a legislação fundamental ou de princípios que a União
Federal fez editar no desempenho legítimo de sua competência
constitucional e de cujo exercício deriva o poder de fixar, validamente,
diretrizes e bases gerais pertinentes a determinada matéria (educação e
ensino, na espécie). - Considerações doutrinárias em torno da questão
pertinente às lacunas preenchíveis. TODOS OS ATOS EMANADOS DO
PODER PÚBLICO ESTÃO NECESSARIAMENTE SUJEITOS, PARA
EFEITO DE SUA VALIDADE MATERIAL, À INDECLINÁVEL
OBSERVÂNCIA DE PADRÕES MÍNIMOS DE RAZOABILIDADE. - As
normas legais devem observar, no processo de sua formulação,
critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os
padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os
atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que
consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due
process of law". Lei Distrital que, no caso, não observa padrões
mínimos de razoabilidade. A EXIGÊNCIA DE RAZOABILIDADE
QUALIFICA-SE
COMO
PARÂMETRO
DE
AFERIÇÃO
DA
CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DOS ATOS ESTATAIS. - A
exigência de razoabilidade - que visa a inibir e a neutralizar eventuais
205
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno, ADI-MC 1.063/Distrito Federal; julgado em 18
de mai. 1994, Min. Celso de Mello (Relator). Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 20 ago.
2007.
91
abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas
funções normativas - atua, enquanto categoria fundamental de
limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro
parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos
estatais. APLICABILIDADE DA TEORIA DO DESVIO DE PODER AO
PLANO DAS ATIVIDADES NORMATIVAS DO ESTADO. - A teoria do
desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas,
permite que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício
imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder
Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar
causa à instauração de situações normativas que comprometam e afetem
os fins que regem a prática da função de legislar. A EFICÁCIA EX TUNC
DA MEDIDA CAUTELAR NÃO SE PRESUME, POIS DEPENDE DE
EXPRESSA DETERMINAÇÃO CONSTANTE DA DECISÃO QUE A
DEFERE, EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO. - A
medida cautelar, em sede de fiscalização normativa abstrata, reveste-se,
ordinariamente, de eficácia "ex nunc", "operando, portanto, a partir do
momento em que o Supremo Tribunal Federal a defere" (RTJ 124/80).
Excepcionalmente, no entanto, e para que não se frustrem os seus
objetivos, a medida cautelar poderá projetar-se com eficácia "ex tunc", com
conseqüente repercussão sobre situações pretéritas (RTJ 138/86),
retroagindo os seus efeitos ao próprio momento em que editado o ato
normativo por ela alcançado. Para que se outorgue eficácia "ex tunc" ao
provimento cautelar, em sede de fiscalização concentrada de
constitucionalidade, impõe-se que o Supremo Tribunal Federal
expressamente assim o determine, na decisão que conceder essa medida
extraordinária (RTJ 164/506-509, 508, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Situação excepcional que se verifica no caso ora em exame, apta a justificar
206
a outorga de provimento cautelar com eficácia "ex tunc".
Para Humberto Ávila, a razoabilidade e a proporcionalidade constituem
postulados normativos aplicativos que somente serão aplicados na presença de
elementos determinados, devendo, ainda, ser observados critérios determinados.
Em outras palavras, os postulados são normas especiais que constituem formas de
aplicação (elementos concretizadores) de outras normas207.
Dessa forma, podemos concluir que a razoabilidade e a proporcionalidade
constituem métodos de aplicação de normas, ou seja, constituem postulados que
irão orientar a aplicação de outras normas, até mesmo quando estas estiverem em
conflito.
206
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. ADI-MC 2667/Distrito Federal; julgado em 19
de jun. 2002, Min. Celso de Mello (Relator). Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 20 ago.
2007.
207
ÁVILA, 2007, P. 133-175.
92
3.2.3.1 A razoabilidade
O princípio da razoabilidade, ensina Luís Roberto Barroso, é mais fácil de ser
sentido do que conceituado. Para o autor a razoabilidade “é um parâmetro de
valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor
superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça”208, possuindo portanto uma
dimensão excessivamente vaga e ampla.
O intérprete, ao analisar uma norma ou ato advindo do Poder Público, vai
proceder, por intermédio do devido processo legal substantivo, ao exame de
razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) dessas normas ou
atos209, ou seja, o intérprete irá examinar se dada norma ou ato estatal é razoável
em seu conteúdo, ou não, e se ela se justifica legitimamente no contexto do
ordenamento jurídico.
A forma de utilização desse instrumento é assim explicada por Luís Roberto
Barroso:
A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente far-seá diante de certas circunstâncias concretas; será determinada à realização
de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados
meios. Desse modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação
relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os
fins e os meios. Além disso, há de se tomar em conta, também, os valores
fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a
ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A
razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver
210
entre os elementos .
A aplicação do teste da razoabilidade pela Suprema Corte norte-americana
constitui forma de justificar objetivamente o exercício de argumentação, tudo a fim
de se constatar se o ato do Poder Público é, efetivamente, irrazoável ou
desproporcional. O resultado do dele irá justificar a supressão ou manutenção do ato
do Poder Público, servindo, assim, o teste como contorno objetivo para justificar a
aplicação do devido processo legal substantivo.
208
BARROSO, 1999, P. 215.
Conforme refere BARROSO, 1999, p. 210.
210
BARROSO, 1999, p. 216/217.
209
93
Disso se retira que, nos Estados Unidos, a aplicação do devido processo legal
substantivo, embora não possua uma fórmula pré-definida, tem, com o teste da
razoabilidade e outros que são aplicados, contornos objetivos que irão nortear a sua
aplicação pelo intérprete, tudo para que a análise não se revista apenas de
voluntarismo judicial.
As raízes do teste da razoabilidade remontam ao século XIX, no caso Lawton
v. Steele, em voto do Justice Brown, na Suprema Corte norte-americana211. Nesse
diapasão, Letícia Campos Velho Martel refere que o teste da razoabilidade se
estrutura, basicamente, nos seguintes estágios212:
a) Há privação de um bem ou liberdade?
a.1) O bem ou liberdade alegados são tutelados pelo princípio do
devido processo legal?
a.2) Existe efetivamente uma privação do bem ou da liberdade
provinda de uma agente/órgão dotado de poder estatal?
a.3) Qual o grau dessa privação?
b) O fim almejado pelo Estado é legítimo, real e apto a justificar o meio?
b.1) Existe nexo de causalidade entre o meio escolhido e o fim
pretendido?
b.2) Não existe meio alternativo menos intrusivo no bem ou na
liberdade hábil a conduzir ao fim pretendido?
b.3) O fim pretendido tem peso suficiente para justificar a constrição
213
do bem ou da liberdade?
No decorrer do trabalho, iremos analisar como é feita a aplicação da
razoabilidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no tocante ao controle
da discricionariedade administrativa, para que possamos analisar se, assim como é
feito nos Estados Unidos, o teste da razoabilidade também é aplicado em nossa
jurisprudência.
211
MARTEL, 2005, p. 354
A autora refere que a formulação do teste da razoabilidade apresentado é básico, pois nada
impede que o intérprete não possa adicionar outras etapas, acoplando testes específicos,
demonstrando que não há rigidez na aplicação e sim flexibilidade. Ele serve de roteiro “formal” de
argumentação, sendo essencial apenas que ele cumpra o seu objetivo que é auxiliar na aplicação do
princípio, guiando a argumentação, a fim de evitar confusões. MARTEL, 2005, p. 271.
213
MARTEL, 2005, p. 370/371.
212
94
3.2.3.2 A proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade, oriundo do direito público alemão214,
expressa, na lição de Carlos Roberto Siqueira Castro, a noção de adequabilidade,
equitatividade, ausência de excesso ou abuso, logo: exige uma “justa e aceitável
proporção na correlação entre os direitos e os deveres impostos, reprimidos,
admitidos ou de qualquer forma promovidos pela ordem jurídica plural e
democrática”215. O mesmo autor explica que:
Proporcionalidade encerra, assim, a orientação deontológica de se buscar o
meio mais idôneo, mais eqüitativo e menos excessivo nas variadas
formulações do Direito, seja na via da legislação ou positivação das normas
jurídicas, da administração pública dos interesses sociais, da aplicação dos
comandos normativos e, ainda, no campo das relações privadas, a fim de
que o reconhecimento ou o sacrifício de um bem da vida não vá além do
necessário ou, ao menos, do justo e aceitável em face de outro bem da vida
ou de interesses contrapostos. A idéia (ou ideário) da proporcionalidade
persegue, assim, a justa e equânime distribuição de ônus e encargos, e
também de bônus e vantagens, nos incontestáveis contextos de disputas,
216
litígios e concorrências intersubjetivas.
A aplicação do postulado da proporcionalidade pressupõe a existência de uma
relação entre meio e fim, ou seja, uma atividade-meio destinada a alcançar uma
determinada finalidade. Para tanto se realiza o exame de adequação, necessidade e
proporcionalidade217.
Em apertada síntese, a estrutura do teste da proporcionalidade é bastante
semelhante ao modelo da razoabilidade, no seu segundo estágio ou fase como
anteriormente caracterizado. A sua funcionalidade e aplicação se estrutura em três
elementos que são: adequação (Geeignetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e
proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit im engeren Sinne)218.
214
Conforme refere Humberto Ávila In. ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a
redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Vol. I, nº. 04, Salvador, julho de
2001. Disponível em: http:www.direitopublico.com.br. Acesso em 23 jul. 2008.
215
CASTRO, 2006, p. 198.
216
CASTRO, 2006, p. 199/200.
217
Conforme refere Humberto Ávila “sem uma relação meio/fim não se pode realizar o exame do
postulado da proporcionalidade, pela falta dos elementos que o estruturem”. ÁVILA, 2007, p. 162.
218
BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade
das leis restritivas de direitos fundamentais. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p. 74/76.
95
Pelo juízo de adequação se exige que as medidas adotadas pelo Poder
Público se mostrem aptas a atingir os fins ou objetivos pretendidos; pela
necessidade ou exigibilidade, impõe-se a verificação da inexistência de meio menos
gravoso para que os fins almejados sejam alcançados; e pela proporcionalidade em
sentido estrito se faz o juízo de ponderação entre o ônus imposto e o benefício
trazido, de modo a demonstrar que é justificável a interferência nos direitos do
cidadão, em uma espécie de relação custo versus benefício219.
Assim, embora o princípio da proporcionalidade possua articulação quanto à
sua forma de aplicação diferente da razoabilidade, o resultado obtido com a
aplicação de um ou outro postulado é praticamente o mesmo. Parece ser
indubitável que, mediante a correta aplicação dos testes já descritos, não se possa
chegar à conclusão de que um dado ato é razoável mas desproporcional, ou que um
ato seja irrazoável mas proporcional.
De todo modo permanece ainda viva a discussão, na doutrina brasileira, se a
razoabilidade e a proporcionalidade na prática constituem (ou não) um mesmo
postulado. A rigor, se efetivamente fossem dois, então perante os casos concretos
dois diferentes testes de avaliação teriam de ser feitos sucessivamente: um de
razoabilidade, e outro de proporcionalidade.
3.3 Constatação de dois entendimentos antagônicos na jurisprudência:
existência e inexistência de controle do mérito administrativo
Conforme identificado no capítulo inicial deste estudo, o entendimento
tradicional da doutrina e jurisprudência brasileiras, referente ao controle do mérito do
ato administrativo discricionário, vem sendo modificado, gradativamente, pela
aplicação do devido processo legal substantivo como cláusula legitimadora e
autorizadora de sua revisão pelo Poder Judiciário.
219
BARROSO, 1999, p. 219/220.
96
A posição inicial defendia a impossibilidade de o Poder Judiciário adentrar o
exame do mérito do ato administrativo discricionário sob pena de usurpação de
funções e afronta ao princípio da separação dos Poderes. Porém, a partir da
aplicação do princípio do devido processo legal substantivo, essa característica vem
sendo transformada.
O devido processo legal substantivo, através de seus elementos de
concretização
acima
descritos
(razoabilidade
e
proporcionalidade),
serve
exatamente de legitimação para o controle da discricionariedade estatal (e com isso
também da discricionariedade administrativa) sempre que os direitos da pessoa
estiverem sendo, de alguma forma, afrontados de modo irrazoável ou de modo
desproporcional por atos do Poder Público.
Assim, a aplicação da garantia do devido processo legal substantivo
modificou o cenário até então vigente (que defendia o não exame do mérito),
conforme pode ser vislumbrado nos seguintes julgados:
ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO POR ATO DE IMPROBIDADE.
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PENA MENOS SEVERA. O órgão
do Ministério Público, que oficiou na instância de origem como custos legis
(art. 10 da Lei nº 1.533/51), tem legitimidade para recorrer da decisão
proferida em mandado de segurança. Embora o Judiciário não possa
substituir-se à Administração na punição do servidor, pode determinar
a esta, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, a aplicação
de pena menos severa, compatível com a falta cometida e a previsão
legal. Este, porém, não é o caso dos autos, em que a autoridade
competente, baseada no relatório do processo disciplinar, concluiu pela
prática de ato de improbidade e, em conseqüência, aplicou ao seu autor a
pena de demissão, na forma dos artigos 132, inciso IV, da Lei nº 8.112/90, e
11, inciso VI, da Lei nº 8.429/92. Conclusão diversa demandaria exame e
reavaliação de todas as provas integrantes do feito administrativo,
procedimento incomportável na via estreita do writ, conforme assentou o
acórdão recorrido. Recurso ordinário a que se nega provimento. (Grifo
220
nosso)
O Recurso Ordinário de Mandado de Segurança nº. 24.901 tratava de recurso
do Ministério Público Federal contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça que
julgou extinto, sem exame do mérito, mandado de segurança impetrado por servidor
público visando desconstituir Portaria do Ministro do Estado de Educação, por meio
220
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RMS nº. 24.901/Distrito Federal; julgado em 26 out. 2004,
Min. Carlos Britto. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 15 nov. 2008.
97
do qual o impetrante foi demitido do cargo de agente administrativo pela prática de
ato de improbidade administrativa.
Diante da referida decisão, o Ministério Público Federal, que havia opinado
pela parcial segurança, interpôs recurso ordinário alegando excesso na dosimetria
da reprimenda e ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O
relator, Ministro Carlos Ayres Britto, inicialmente reconheceu a possibilidade de o
Poder Judiciário conhecer a questão posta em análise, ou seja, apreciar o mérito do
ato impugnado, sem, contudo, “substituir-se à Administração e sacar – ele mesmo –
outra penalidade para o caso”221.
Outro caso a ser destacado é o da ementa abaixo colacionada:
CONCURSO PÚBLICO - TÍTULOS. Discrepa da razoabilidade norteadora
dos atos da Administração Pública o fato de o edital de concurso emprestar
ao tempo de serviço público pontuação superior a títulos referentes a pós222
graduação.
A ementa acima descrita refere-se a Agravo Regimental em Recurso
Extraordinário interposto contra decisão do Ministro Marco Aurélio que lhe negou
seguimento. O Agravo interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul teve seu
provimento negado com as razões fundadas na decisão monocrática do Recurso
Extraordinário, onde assim se decidiu no tocante à discricionariedade da
Administração Pública:
Em segundo lugar, é de registrar que o tratamento a ser dado pela
administração pública na aferição dos títulos dos candidatos há de
apresentar-se em consonância com a finalidade do preceito do inciso II do
artigo 37 da Constituição Federal. Descabe dizer que em tal campo atua a
administração pública com discricionariedade, mesmo porque esta não
exclui a análise da questão sob o ângulo da finalidade do ato. Na espécie
dos autos, em detrimento da natureza do vocábulo “títulos”, emprestou-se
peso incomum ao tempo de serviço público, a tal ponto de um candidato
com três anos de efetivo serviço vir a suplantar aquele que obtivesse
titulação máxima, ou seja, a alusiva ao doutorado. Em síntese, três anos de
efetivo serviço público levaria, pelo injusto balizamento introduzido pelo
221
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RMS nº. 24.901/Distrito Federal; julgado em 26 out. 2004,
Min. Carlos Britto. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 15 nov. 2008.
222
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário/Agravo nº. 205.535/Rio Grande do
Sul; julgado em 22 mai. 1998, Min. Marco Aurélio (Relator). 2ª Turma. Disponível em:
http://www.stf.gov.br. Acesso em 20 ago. 2007
98
Estado, a seis pontos, enquanto o título, realmente título de doutor,
acarretaria a concessão de cinco pontos.
À toda evidência, ainda que se possa compreender no gênero “títulos” a
consideração do tempo do serviço público, a disciplina emprestada não se
mostra razoável, tendo em vista não só o disposto no inciso II do artigo 37,
como também o princípio isonômico que a ele é inerente. Por isso, bem
andou a Corte de origem ao glosar a situação, não se podendo ver, na
hipótese, malferimento aos artigos 2º e 25 da Constituição Federal. Ao
contrário, o decidido harmoniza-se às inteiras com essa última, coibindo a
prática de ato que, alfim, revelar-se-ia, caso prevalente, um verdadeiro
privilégio, colocando em situação de ampla desigualdade aqueles que não
tivessem vida pregressa profissional ligada ao serviço público. Eis um caso
exemplar de exame do tema sob a esfera da razoabilidade. A Constituição
Federal não pode ser tomada como a respaldar verdadeiros paradoxos,
223
olvidando-se o objetivo maior por ela buscado .
Assim, baseado na razoabilidade, o Supremo Tribunal Federal entendeu por
manter a decisão do Tribunal de origem, a qual analisou o mérito do ato e anulou o
edital no tocante ao ponto em que conferia a ex-servidores da Administração Pública
pontuação superior a títulos referentes a pós-graduação. Embora os recorrentes
tivessem aduzido e o relator reconhecido que tal ato era discricionário, o ato deveria,
ainda assim, estar revestido de razoabilidade.
Outros casos, como os citados abaixo, também baseados na razoabilidade e
proporcionalidade, evidenciam situações semelhantes de controle judicial do mérito
de atos administrativos discricionários:
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - PRÁTICA DE ATOS - REGÊNCIA. A
Administração Pública submete-se, nos atos praticados, e pouco
importando a natureza destes, ao princípio da legalidade. TAXISTA AUTONOMIA - DIARISTA - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA TRANSFORMAÇÃO - LEI MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Nº
3.123/2000 - CONSTITUCIONALIDADE. Sendo fundamento da República
Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da
constitucionalidade de ato normativo faz-se considerada a impossibilidade
de o Diploma Maior permitir a exploração do homem pelo homem. O
credenciamento de profissionais do volante para atuar na praça implica ato
do administrador que atende às exigências próprias à permissão e que
objetiva, em verdadeiro saneamento social, o endosso de lei viabilizadora
da transformação, balizada no tempo, de taxistas auxiliares em
224
permissionários .
223
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário/Agravo nº. 205.535/Rio Grande do
Sul; julgado em 22 mai. 1998, Min. Marco Aurélio (Relator). 2ª Turma. Disponível em:
http://www.stf.gov.br. Acesso em 20 ago. 2007.
224
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 359.444/Rio de Janeiro; julgado
em 24 de mar. 2004, Min. Carlos Velloso (Relator) [Relator p/ Acórdão: Min. Marco Aurélio].
Disponível em: http://www.stf.gov.br. Acesso em 20 ago. 2007.
99
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - PRESSUPOSTO ESPECIFICO DE
RECORRIBILIDADE. A parte sequiosa de ver o recurso extraordinário
admitido e conhecido deve atentar não só para a observância aos
pressupostos gerais de recorribilidade como também para um dos
específicos do permissivo constitucional. Longe fica de vulnerar o artigo 6.,
parágrafo único, da Constituição de 1969 acórdão em que afastado ato
administrativo praticado com abuso de poder, no que revelou remoção de
funcionário sem a indicação dos motivos que estariam a respalda-la. Na
dicção sempre oportuna de Celso Antonio Bandeira de Mello, mesmo nos
atos discricionários não há margem para que a administração atue com
excessos ou desvios ao decidir, competindo ao Judiciário a glosa cabível
225
(Discricionariedade e Controle judicial) .
Aliás, a proporcionalidade e a razoabilidade servem também de parâmetro
para a discricionariedade judicial, onde eles servem de pauta de aplicação de
decisões discricionárias, permitindo que se adentre no mérito de tais decisões,
conforme demonstram os julgados abaixo transcritos:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. LESÃO A PRINCÍPIOS
ADMINISTRATIVOS. AUSÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO. APLICAÇÃO
DAS PENALIDADES. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. VIOLAÇÃO
DO ART. 535, I e II, DO CPC. NÃO CONFIGURADA.
1. O caráter sancionador da Lei 8.429/92 é aplicável aos agentes públicos
que, por ação ou omissão, violem os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, lealdade às instituições e notadamente: a)
importem em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) causem prejuízo ao erário
público (art. 10); c) atentem contra os princípios da Administração Pública
(art. 11) compreendida nesse tópico a lesão à moralidade administrativa.
2. A exegese das regras insertas no art. 11 da Lei 8.429/92, considerada a
gravidade das sanções e restrições impostas ao agente público, deve se
realizada cum granu salis, máxime porque uma interpretação ampliativa
poderá acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis
de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público,
preservada a moralidade administrativa e, a fortiori, ir além de que o
legislador pretendeu.
3. A má-fé, consoante cediço, é premissa do ato ilegal e ímprobo e a
ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta
antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública
coadjuvados pela má-intenção do administrador.
4. À luz de abalizada doutrina: "A probidade administrativa é uma forma de
moralidade administrativa que mereceu consideração especial da
Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políticos
(art. 37, §4º). A probidade administrativa consiste no dever de o "funcionário
servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas
funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em
proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer". O desrespeito a
esse dever é que caracteriza a improbidade administrativa. Cuida-se de
uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é
uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente
vantagem ao ímprobo ou a outrem(...)." in José Afonso da Silva, Curso de
225
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 131.661/Espírito Santo; julgado em
26 de set. 1995, Min. Marco Aurélio (Relator). 2ª Turma. Disponível em: http://www.stf.gov.br.
Acesso em 20 ago. 2007.
100
Direito Constitucional Positivo, 24ª ed., São Paulo, Malheiros Editores,
2005, p-669.
5. Ação Civil Pública ajuizada por Ministério Público Estadual em face de
membros de Comissão de Licitação, realizada sob a modalidade de convite
para a aquisição de um trator agrícola, um arado, uma grade hidráulica e
uma roçadeira, e das empresas habilitadas no mencionado certame,
objetivando a condenação dos réus nas sanções previstas no art. 12 da Lei
8429/92 pela prática de irregularidades em procedimento licitatório, qual
seja, habilitação de empresas à míngua de apresentação de documentos
exigidos pelo edital.
6. O Tribunal local, revisitando os fatos que nortearam o ato acoimado de
improbidade, deu parcial provimento ao recurso interposto pelos membros
da comissão de licitação, apenas, para afastar o ressarcimento ao erário,
mantendo incólume a condenação no que pertine à perda da função
pública, à suspensão dos direitos políticos por três anos, ao pagamento de
multa civil, calculada sobre cinco vezes o valor da remuneração percebidas
pelos agentes públicos à data do fato, além da proibição de contratar com o
poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais, creditícios, direta
ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja
sócio majoritário, pelo prazo de três anos, fixada pela sentença exarada às
fls. 136/142, bem como proveu o recurso apresentado pelo Ministério
Público do Estado de Minas Gerais para condenar as empresas com
supedâneo no art. 3º da Lei 8429/92, consoante se infere do voto-condutor
do acórdão às fls. 235/245.
7. O elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade,
afastado pelo Tribunal a quo na sua fundamentação, por isso que incidiu em
error in judicando ao analisar o ilícito somente sob o ângulo objetivo,
consoante se infere do voto condutor às fls. 235/245.
8. A lei de improbidade administrativa prescreve no capítulo das penas que
na sua fixação o “juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim
como o proveito patrimonial obtido pelo agente.” (Parágrafo único do artigo
12 da lei nº 8.429/92).
9. In casu, a ausência de dano ao patrimônio público e de enriquecimento
ilícito por parte dos membros da comissão de licitação e das empresas
contratadas, tendo em vista a efetiva entrega dos equipamentos licitados,
reconhecidos pelo Tribunal local à luz do contexto fático delineado nos
autos, revelam a desproporcionalidade das sanções impostas às partes, ora
recorrentes.Precedentes do STJ:Resp 626.204/RS, DJ 06.09.2007; MS
10.826/DF, DJ 04.06.2007; Resp 717375/PR, DJ 08.05.2006 e REsp
514820/SP, DJ 06.06.2005.
10. Inexiste ofensa ao art. 535, I e II, CPC, quando o Tribunal de origem
pronuncia-se de forma clara e suficiente sobre a questão posta nos autos,
cujo decisum revela-se devidamente fundamentado. Ademais, o magistrado
não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos trazidos pela parte,
desde que os fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar
a decisão, como de fato ocorreu no voto condutor do acórdão de apelação
às fls. 35/245, além de que a pretensão veiculada pelos embargantes,
consoante reconhecido pelo Tribunal local, revela nítida pretensão de
rejulgamento da causa (fls. 286/288 e 290/293).
11. Recursos especiais interpostos por Luchini Tratores e Equipamentos
Ltda (fls. 300/309), Valtra do Brasil S/A (fls. 320/348) e Paulo Roberto
Moraes e outros (fls. 396/386) providos para afastar as sanções impostas
226
aos recorrentes .
PROCESSUAL
IMPROBIDADE
226
CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL.
ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO CUMULATIVA DAS
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 831178/MG; julgado em 25 de mar.
2008, Min. Luiz Fiux (Relator). Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em 07 abr. 2009.
101
PENALIDADES PREVISTAS NO ART. 12 DA LEI 8.429/92.
INADEQUAÇÃO. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA
RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. PRECEDENTES DO STJ.
RECURSO
ESPECIAL DESPROVIDO.
(...)
2. A aplicação das penalidades previstas no art. 12 da Lei 8.429/92 exige
que o magistrado considere, no caso concreto, "a extensão do dano
causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente" (conforme
previsão expressa contida no parágrafo único do referido artigo). Assim, é
necessária a análise da razoabilidade e proporcionalidade em relação à
gravidade do ato de improbidade e à cominação das penalidades, as quais
não devem ser aplicadas, indistintamente, de maneira cumulativa.
3. Nesse sentido, os seguintes precedentes: Resp 713.146/PR, 2ª Turma,
Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 22.3.2007, p. 324; REsp 794.155/SP, 2ª
Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJ de 4.9.2006, p. 52; REsp 825.673/MG,
1ª Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 25.5.2006, p. 198; Resp
513.576/MG, 1ª Turma, Rel. p/ acórdão Min. Teori Albino Zavascki, DJ de
6.3.2006, p. 164; REsp 300.184/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJ
de 3.11.2003, p. 291; Resp 505.068/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ
de 29.9.2003, p. 164.
227
4. Desprovimento do recurso especial.
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATO
DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. EX-PREFEITO QUE, NO
EXERCÍCIO DO MANDATO, VINCULOU SUA IMAGEM A REPASSE DE
VERBA PÚBLICA COMO SE FOSSE DOAÇÃO PESSOAL. ACÓRDÃO
QUE RECONHECEU QUE A CONDUTA DO AGENTE SE ENQUADROU
NO ART. 11, I, DA LEI 8.429/92, FUNDAMENTANDO-SE EM PRECEITOS
CONSTITUCIONAL (ART. 37, § 1º) E INFRACONSTITUCIONAL (ART. 11,
I, LEI 8.429/92). AUSÊNCIA DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SÚMULA
126/STJ. APLICAÇÃO DA PENA (ART. 12, III, LEI 8.429/92). SUSPENSÃO
DE DIREITOS POLÍTICOS POR TRÊS ANOS. PROPORCIONALIDADE E
RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO. DESNECESSIDADE DE LESÃO
PATRIMONIAL AO ERÁRIO. PRECEDENTES.
1. Tratam os autos de ação civil pública por ato de improbidade
administrativa proposta pelo Ministério Público do Estado do Paraná em
face de Jocelito Canto, ex-prefeito do Município de Ponta Grossa/PR,
acusado de aproveitar-se de acidente ocorrido na Santa Casa de
Misericórdia para divulgar na imprensa que fez uma doação ao nosocômio
no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), omitindo-se de dizer que a verba
era pública e já se encontrava consignada no orçamento municipal,
conforme previsão da Lei 6.102/98 e do Decreto 204/99. A sentença julgou
procedente o pedido, condenando o réu à suspensão de seus direitos
políticos por três anos e ao pagamento das custas processuais. Em sede de
apelação, o TJPR confirmou a decisão singular. Recurso especial do réu
fundamentado na alínea "a" apontando violação dos arts. 11, I, e 12, III, da
Lei 8.429/92. Defende que inexiste fato no processo que demonstre ter
agido com a vontade livre e consciente (dolo) de tirar proveito próprio da
situação, o que descaracteriza a tipificação do art. 11, I; a fixação de
penalização foi muito grave, com ausência de análise dos critérios da
proporcionalidade e razoabilidade, eis que não houve prejuízo ao erário.
Parecer do MPF pelo não-conhecimento do apelo em razão do teor da
Súmula 7/STJ. Ausência de recurso extraordinário.
227
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 626.204/RS; julgado em 07 de ago.
2007, Min. Denise Arruda (Relatora). Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em 07 abr. 2009.
102
2. A conclusão adotada pelo aresto de segundo grau de que ficou
configurado o ato de improbidade administrativa, enquadrando-se no
disposto no art. 11, I, da Lei 8.429/92, decorreu da constatação de que o exprefeito objetivou, aproveitando-se do incêndio ocorrido no hospital, vincular
a sua imagem ao ato de repasse da verba para obter projeção perante os
administrados. O Tribunal exprimiu esse pensamento após detida análise
do art. 37, § 1º, da CF/88. O deslinde da questão, portanto, com análise do
elemento volitivo (dolo) do agente, não pode ser dissociado do exame do
dispositivo posto na Lei Maior, hipótese absolutamente inviável em sede de
recurso especial. Como o recorrente não manejou recurso extraordinário,
sobejou fundamento de natureza constitucional inatacado suficiente para
manter a conclusão adotada. Súmula 126/STJ.
3. Não se vislumbra nenhuma ilegalidade no fato de o recorrente receber
sanção de direito de
natureza pessoal, como a suspensão dos direitos
políticos pelo período de três anos (pena mínima), medida que o artigo 12,
III, da Lei 8.429/92, com clareza, autoriza, após o reconhecimento de que a
conduta do agente se amoldou à hipótese do art. 11, I, da Lei 8.429/92. A
penalidade, portanto, sugerida em primeiro grau no mínimo legal, e
ratificada pelo Tribunal a quo, deve ser mantida pelos seus próprios
fundamentos, não havendo que se falar em desproporcionalidade ou
ausência de razoabilidade.
4. Não se visualiza hipótese de rigor extremado e excessivo na eleição da
sanção imposta, pelo contrário. Tanto a sentença quanto o aresto recorrido
ponderaram o fato de que não foi consumado dano ao erário nem a conduta
foi motivada por eventual proveito econômico, sendo adequado e razoável
deixar-se de impor as penalidades de proibição de contratar ou receber
benefícios ou incentivos fiscais do Poder Público.
5. A jurisprudência desta Corte vem-se alinhando no entendimento de que,
quanto ao art. 11 da Lei 8.429/92, por tratar-se de violação a princípios
administrativos, a lei não exige prova da lesão ao erário público. Nesse
ponto, basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar
configurado o ato de improbidade. Caso reste demonstrada a lesão, o inciso
III, do art. 12, da mesma lei, autoriza seja o agente público condenado a
ressarcir o erário. Se não houver dano ou se este não restar demonstrado,
o agente poderá ser condenado às demais sanções previstas no dispositivo
como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, a
impossibilidade de contratar com a administração pública por determinado
período de tempo, dentre outras (Resp 621.415/MG, voto-vista do Min.
Castro Meira, DJ 30/05/06). Precedentes: Resp 650.674/MG, Rel. Min.
Castro Meira, DJ 01/08/06; Resp 604.151/RS, Rel. p/ ac. Min. Teori Albino
Zavascki, DJ 08/06/06; Resp 717.375/PR, Rel. Min. Castro Meira, DJ
08/05/06; Resp 711.732/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 10/04/06.
228
6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não-provido
Como explicitado, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal tem afirmado a
possibilidade de revisão do mérito dos atos administrativos discricionários e também
o controle de mérito da constitucionalidade das leis, sobretudo com fundamento em
postulados como da razoabilidade e proporcionalidade, os quais decorrem ou
mesmo constituem o princípio do devido processo legal substantivo.
228
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 884083/PR; julgado em 18 de out.
2007, Min. José Delgado (Relator). Disponível em: http://www.stj.jus.br. Acesso em 07 abr. 2009.
103
Em que pese a existência dessa nova tendência na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, verifica-se, ainda, que o anterior entendimento tradicional
(isto é, a impossibilidade de o Poder Judiciário apreciar o mérito do ato
administrativo discricionário) não restou totalmente abandonado, como as ementas a
seguir demonstram:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PODER DISCRICIONÁRIO. ESCOLHA DE
ASSESSORES DE PRESIDENTE DE TRIBUNAL. DIÁRIAS E DESPESAS
DE VIAGENS. Os Presidentes de Tribunais, por exercerem relevante
função na estrutura administrativa do Poder Judiciário, dentro da margem
de discricionariedade que lhes é conferida, têm o poder de decisão sobre a
conveniência e oportunidade na escolha de servidores para
desempenharem funções extraordinárias relacionadas com o interesse da
229
administração. Segurança concedida.
A ementa acima refere-se a Mandado de Segurança onde os impetrantes
alegavam que (i) o Tribunal de Contas da União invadiu a competência
administrativa do Tribunal Regional do Trabalho; (ii) que o servidor pode receber,
transitoriamente, atribuições que não são inerentes a seu cargo, como acompanhar
o Presidente do Tribunal em viagens; (iii) nem mesmo o Supremo Tribunal Federal
tem examinado a conveniência e a oportunidade ou o mérito dos atos discricionários
da Administração.
A segurança foi concedida à unanimidade, tendo os demais Ministros
acompanhado o voto da Ministra Relatora Ellen Gracie, que assim sustentou:
“se a designação desse ou daquele servidor para participar de determinado
evento atende a critérios de conveniência e oportunidade que somente à
Administração Pública cabe avaliar, não seria passível a censura do Poder
Judiciário ou do Tribunal de Contas [...]
Os Presidentes dos Tribunais Superiores, por exercerem relevante função
na estrutura administrativa do Poder Judiciário, dentro da margem de
discricionariedade que lhes é conferida, têm o poder de decisão sobre a
conveniência e oportunidade na escolha de servidores para
desempenharem funções extraordinárias relacionadas com o interesse da
230
administração”.
229
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº. 23981/Distrito Federal; julgado
em 19 de fev. 2004, Min. Ellen Gracie (Relatora).Tribunal Pleno. Disponível em:
http://www.stf.jus.br. Acesso em 15 nov. 2008.
230
Voto da Ministra Relatora Ellen Gracie que pode ser consultado em: BRASIL, Supremo Tribunal
Federal. Mandado de Segurança nº. 23981/Distrito Federal; julgado em 19 de fev. 2004, Min. Ellen
Gracie (Relatora).Tribunal Pleno. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em 15 nov. 2008.
104
Outro caso em que situação semelhante foi decidida é o referente à ementa
abaixo transcrita:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 77, INCISO VII,
DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. TEXTO
NORMATIVO QUE ASSEGURA O DIREITO DE NOMEAÇÃO, DENTRO
DO PRAZO DE CENTO E OITENTA DIAS, PARA TODO CANDIDATO QUE
LOGRAR APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO DE PROVAS, OU DE
PROVAS DE TÍTULOS, DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS OFERTADAS
PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTADUAL E MUNICIPAL. O direito do
candidato aprovado em concurso público de provas, ou de provas e títulos,
ostenta duas dimensões: 1) o implícito direito de ser recrutado segundo a
ordem descendente de classificação de todos os aprovados (concurso é
sistema de mérito pessoal) e durante o prazo de validade do respectivo
edital de convocação (que é de 2 anos, prorrogável, apenas uma vez, por
igual período); 2) o explícito direito de precedência que os candidatos
aprovados em concurso anterior têm sobre os candidatos aprovados em
concurso imediatamente posterior, contanto que não-escoado o prazo
daquele primeiro certame; ou seja, desde que ainda vigente o prazo inicial
ou o prazo de prorrogação da primeira competição pública de provas, ou de
provas e títulos. Mas ambos os direitos, acrescente-se, de existência
condicionada ao querer discricionário da administração estatal quanto à
conveniência e oportunidade do chamamento daqueles candidatos tidos por
aprovados. O dispositivo estadual adversado, embora resultante de
indiscutível atributo moralizador dos concursos públicos, vulnera os artigos
2º, 37, inciso IV, e 61, § 1º, inciso II, "c", da Constituição Federal de 1988.
precedente: RE 229.450, Rel. Min. Maurício Corrêa. Ação direta julgada
procedente para declarar a inconstitucionalidade do inciso VII do artigo 77
231
da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.
Dos julgados acima transcritos vê-se portanto que se, por um lado, o
Supremo Tribunal Federal afirma ser cabível a aplicação do devido processo legal
substantivo para o controle de mérito de atos administrativos discricionários, por
outro lado não há o rompimento pleno do antigo entendimento de que o mérito dos
atos administrativos discricionários não se sujeita ao exame pelo Poder Judiciário.
Dessa forma, coexistem no sistema jurídico brasileiro duas posições
antagônicas sobre um mesmo tema: existência ou não de um controle judicial do
mérito dos atos administrativos discricionários. A jurisprudência é, como se viu,
contraditória. Resta então verificar quais são as consequências que poderão advir
dessa realidade.
231
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2931/Distrito Federal;
julgado em 24 de fev. 2005, Min. Carlos Britto (Relatora).Tribunal Pleno. Disponível em:
http://www.stf.jus.br. Acesso em 15 nov. 2008.
105
3.4 Consequências práticas da atual realidade
A coexistência dentro do sistema jurídico brasileiro de duas posições
antagônicas
sobre
a
mesma
temática
pode
desencadear uma
série
de
consequências práticas. Dentre elas destacam-se duas que, a nosso ver, exigem
maior discussão: a segurança jurídica (desde um ponto de vista dos jurisdicionados)
e (desde um ponto de vista do próprio Estado-Juiz) o voluntarismo e/ou decisionismo
do Poder Judiciário.
3.4.1 Segurança Jurídica
A segurança jurídica ou princípio da proteção da confiança, como refere
Almiro do Couto e Silva, é um conceito que possui dois elementos. O primeiro, de
natureza objetiva, relacionado aos limites da retroatividade da atividade do Estado,
como, por exemplo, a clássica proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e
à coisa julgada. O segundo, de natureza subjetiva, relacionado à proteção da
confiança das pessoas no que pertine aos atos, procedimentos e condutas do
Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação232. Esse princípio, por sua vez,
é reconhecido como princípio constitucional vigente em nossa jurisprudência, mais
exatamente como integrante do princípio do Estado de Direito, no art. 1º, caput, da
Constituição233.
Nesse contexto, analisando a existências de duas situações jurídicas
diferentes quanto à possibilidade ou impossibilidade de o Poder Judiciário apreciar o
ato administrativo discricionário, entendemos que essa situação pode colidir com o
princípio da segurança jurídica.
Isso ocorre porque o Poder Judiciário não fornece critérios objetivos para se
saber quando será (ou não) examinado o mérito das decisões administrativas
232
SILVA, Almiro do Couto. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público
brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo
decadencial do art. 54 da Lei do processo administrativo da União (Lei nº. 9.184/99). Revista
Eletrônica de Direito do Estado, Nº. 02, abril/maio/junho de 2005, Salvador. Disponível em:
http:www.direitodoestado.com.br. Acesso em 22 nov. 2008.
233
Conforme refere Almiro do Couto e Silva In. SILVA, idem.
106
discricionárias, ou seja, quando o devido processo legal substantivo deve ou não ser
aplicado, e, a contrario sensu, quando o princípio da Separação dos Poderes será
invocado para o não exame do mérito de atos administrativos.
Nesse diapasão, os administrados, frente a uma situação em que o ato
administrativo discricionário seja levado ao Poder Judiciário para análise, ficam sem
a segurança mínima de saber quando haverá (ou não) controle de mérito dessa
discricionariedade.
Depois, nos casos onde houve controle judicial de mérito, os próprios
contornos da aplicação do postulado do devido processo legal substantivo como
critério de controle da discricionariedade administrativa não estão definidos
claramente nos julgados.
Pode-se com facilidade constatar, com base na jurisprudência transcrita
supra, que a razoabilidade e a proporcionalidade são apenas e tão somente
“afirmadas” enquanto princípios legitimadores da decisão, mas essa afirmação não
vem precedida de um teste objetivo de razoabilidade e/ou de proporcionalidade, de
forma a fornecer aos administrados segurança quanto à sua forma de aplicação no
caso concreto.
Assim, por exemplo, não se encontra nos julgados a indagação quanto a
saber se existe adequação, se existe necessidade, se existe proporcionalidade em
sentido estrito no ato analisado. O Tribunal apenas afirma – em sede de decisum –
que houve ato irrazoável, ou que houve ato desproporcional.
Entretanto, também cumpre salientar que a (contraditória) manutenção da
posição mais tradicional da jurisprudência (não exame do mérito), ao lado da
posição mais recente de exame do mérito, pode ser encarada talvez como uma
espécie de consciência prudente do próprio Supremo Tribunal Federal, evitando-se
com isso que a discricionariedade administrativa seja efetivamente transformada em
discricionariedade judicial.
107
Isso pode indicar que o próprio Tribunal tem consciência de que a aplicação
do devido processo legal substantivo, como instrumento legitimador desse controle,
não se reveste ainda de critérios objetivos mínimos de aplicação, e que para o futuro
ela carece de aperfeiçoamento. Nesse sentido, talvez se possa concluir que
somente para os casos mais gritantes de desproporção ou irrazoabilidade o Tribunal
aplica o postulado do devido processo legal substantivo. De todo modo, isso não
vem explicitado nos julgados supratranscritos. Depois, isso também leva ao tema do
voluntarismo do Poder Judiciário, que passamos a analisar a seguir.
3.4.2 Voluntarismo do Poder Judiciário
Considerando os contornos acima destacados, se por um lado esse tipo de
postura dúbia da jurisprudência pátria pode levantar dúvidas quanto à sua
compatibilidade com o princípio da segurança jurídica, por outro, ao não definir os
contornos objetivos de aplicação do devido processo legal substantivo o Tribunal
acaba por permitir que se qualifique suas decisões como obra de voluntarismo ou
ativismo judicial.
Foi visto acima que a aplicação da razoabilidade e proporcionalidade pelos
Juízes e Tribunais vem ocorrendo desacompanhada de um método específico,
ocorrendo a decisão como que baseada exclusivamente no arbítrio judicial. É que o
Poder Judiciário afirma que um ato é irrazoável ou desproporcional, mas ao mesmo
tempo não realiza um teste especificamente objetivo que fundamente ou motive
essa afirmação.
Esse tipo de conduta também pode caracterizar o fenômeno denominado de
judicialização da política, que ocorre, segundo Marcos Faro de Castro, porque os
tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do
Executivo se mostra falho, insuficiente ou insatisfatório. Sob tais condições ocorre
108
uma aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se difícil distinguir
entre um “direito” e um “interesse político”.234
Essa modificação se deu em grande parte pelas transformações ocorridas pelo
Estado do bem-estar social, o Welfare State, onde o Poder Judiciário sofreu
mudanças de ordem interna e externa, que permitiram uma maior ingerência dos
órgãos jurisdicionais, ocasionando a chamada judicialização da política.
Nesse sentido, Rogério Gesta Leal refere que esse comportamento reflete
questões acerca da validade comportamental das Cortes em face de questões
sociais. Entretanto, refere que, em países como o Brasil, o surgimento de um
Judiciário, promovedor de medidas sociais compensatórias, revela-se importante
para assegurar o mínimo existencial configurador da dignidade da pessoa humana,
não podendo, entretanto, essa postura substituir as competências dos outros
Poderes instituídos. O que está em jogo é saber dimensionar as diferenças
constitutivas
das
atividades/funções
legislativas
e
judicantes
numa
ordem
democrática235.
Ainda, segundo o referido autor, o Poder Judiciário tem assumido, nos últimos
tempos, comportamento e condutas cada vez mais amplas, judicializando temas e
questões que possuem natureza política e social atinentes também a outras esferas
e espaços de deliberação pública236, o que pode ser evidenciado no tema em
estudo, já que a postura do Poder Judiciário vem se mostrando parcialmente
diferenciada, adotando postura até pouco tempo negada.
O Poder Judiciário deve agir de maneira comedida nesse tocante, já que está
adentrando seara administrativa, a fim de evitar que sua atuação seja desmedida e
então ele passe a administrar ao invés de apenas jurisdicionar. Assim, faz-se
absolutamente necessário que exames de mérito sejam feitos com base em testes
objetivos, tal qual se verifica no direito comparado, sob pena do enfraquecimento da
234
CASTRO, Marcos Faro. O Supremo Tribunal Federal e a Judicialização da Política. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, n.34, junho/1997. Acesso em: 08 ago. 2008. Disponível em:
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_34/rbcs34_09.htm.
235
LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea: uma perspectiva
procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 92/93.
236
Ibidem, p. 53.
109
própria legalidade da decisão judicial – e sem prejuízo do próprio enfraquecimento
do princípio do Estado de Direito. Nesse ponto, Gisele Citadino citando posição de
Ingeborg Maus refere que:
[...] autorizar os tribunais, especialmente as cortes supremas, a atuar como
profetas ou deuses do direito, consolidando aquilo que já é designado de
“teologia constitucional” e imunizando a “atividade jurisprudencial perante a
crítica à qual originariamente deveria estar sujeita [...], pois quando a
justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da
237
sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social.
Nesse contexto, a atuação do Poder Judiciário na aplicação do devido processo
legal substantivo como mecanismo de controle dos atos discricionários do Poder
Público, quando em jogo direitos e garantias do cidadão, deve ser cuidadosamente
pensada, sob pena de um instrumento de garantia de direitos vir a se constituir num
mecanismo de autorização de uma atuação do Poder Judiciário sem qualquer
controle.
No fundo pode-se inclusive afirmar que se trata de decisões sem
fundamentação ou motivação, um procedimento metódico, portanto, que também
colide com o art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, que prevê:
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do
direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse
238
público à informação.
Assim, somos da opinião que o recurso, pelo Poder Judiciário, aos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade sem a consequente realização de testes
objetivos de sua aferição muito mais se aproxima de um gesto de voluntarismo
judicial do que de um procedimento aceitável desde um ponto de vista tanto da
segurança jurídica e da confiança dos administrados quanto do princípio maior do
Estado de Direito.
237
CITADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo, democrático e separação de
poderes. In: VIANA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte:
UFMG, 2003, p.37.
238
Art. 93, inciso IX, BRASIL, Constituição Federal de 1988.
110
CONCLUSÃO
Pelo presente trabalho tornou-se possível elaborar algumas conclusões
acerca do problema tratado, conforme abaixo relacionado.
Discricionariedade administrativa é, resumidamente, a margem de liberdade
legal conferida ao administrador no exercício de suas funções administrativas.
Entretanto,
existem
limites
jurídicos
ao
administrador
no
exercício
da
discricionariedade administrativa, ou melhor, existem limites jurídicos para o uso da
“oportunidade e conveniência” no exercício da discricionariedade.
No decorrer da presente pesquisa foi demonstrado que a primeira posição
jurisprudencial brasileira afirmava a impossibilidade do exame judicial do mérito do
ato administrativo discricionário. Essa posição estava baseada, inicialmente, no
princípio da Separação dos Poderes, sendo o mérito do ato administrativo uma zona
insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário, sob pena de usurpação de
funções. Suas origens remontam à Lei nº. 221 que organizou pela primeira vez a
Justiça Federal no país.
A defesa dessa posição parte do pressuposto, dentre outros argumentos, de
que os três Poderes, por serem harmônicos e independentes, não podem sofrer
sobreposição de funções dentro de cada Poder, sendo vedada a recíproca invasão e
usurpação de atribuições. Assim, se a norma jurídica confere uma certa margem de
liberdade de ação ao administrador, não cabe ao Poder Judiciário substituir o
administrador na escolha de qual será a melhor conduta a ser adotada dentre as
várias que a norma legal possibilita.
Ao Poder Judiciário, segundo tal concepção, seria possível apenas apreciar
o ato administrativo segundo seus aspectos externos, isto é: tudo aquilo que não diz
respeito ao mérito, sendo a ele vedado o exame do ato sob o seu aspecto interno.
Nesse contexto, a posição tradicional defende que é vedado ao Poder
Judiciário apreciar “o merecimento dos atos administrativos, sob o ponto de vista de
sua conveniência e oportunidade”, ou seja, torna-se vedado ao Poder Judiciário
111
adentrar a análise do mérito do ato administrativo, o elemento intrínseco à
discricionariedade.
Segundo essa mesma posição, somente a atividade administrativa vinculada
(por ter todos os elementos do ato administrativo previamente estabelecidos na
norma legal) admite um controle judicial em toda a sua extensão.
A posição tradicional, entretanto, vem sendo abrandada, principalmente, pela
aplicação no país da garantia do devido processo legal substantivo. O devido
processo legal tem raízes na Carta Magna de 1215, mas sua versão substantiva é
fruto da jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana a partir do século XIX.
O processo de evolução dessa garantia nos Estados Unidos foi lento,
gradativo e marcado por trajetória instável, porém o importante é que seu
desenvolvimento se deu como efetivação de garantia concretizadora, como
instrumento de autorização e legitimação a ser utilizado pelo Poder Judiciário para
anular atos considerados como de conteúdos arbitrários e desarrazoados editados
pelos demais poderes (Executivo e Legislativo).
No país em que ele se sedimentou, sua aplicação é delineada por contornos
objetivos, ou seja, a Suprema Corte norte-americana aplica essa garantia, mediante
testes, para verificar se atos provindos do Poder Público não estão sacrificando
garantias pessoais do cidadão de maneira desarrazoada e desproporcional. Embora
o teste de razoabilidade que ela utiliza não configure uma fórmula estanque, a Corte
define uma série de parâmetros de aplicação, que então auxiliam o intérprete (no
caso, o Juiz) a verificar quando e como proceder o controle.
Nesse contexto, o estudo da evolução da cláusula substantive due process of
law foi realizado para promover a compreensão do seu funcionamento na sua
origem para, depois, verificar como o sistema jurídico brasileiro recepcionou essa
garantia e, sobretudo, se a forma de aplicação é feita de maneira similar.
No Brasil, a cláusula do devido processo legal ganhou guarida na
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso LIV, o qual dispõe: “ninguém
112
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, restando
neste dispositivo expressamente positivado a cláusula do due process of law. Para
além disso, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o devido processo legal
constitui elemento integrante do princípio do Estado Democrático de Direito, previsto
no art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988.
Em uma análise prévia, pode a norma do devido processo legal substantivo ser
classificada como princípio, porque ela prevê muito genericamente o resguardo e a
obediência de valores como vida, propriedade e liberdade. Entretanto, ela é melhor
identificada como postulado, porque estabelece diretrizes metódicas para sua
aplicação e/ou validação de normas primárias e/ou atos estatais. Conforme ensina
Carlos Roberto Siqueira Castro, “essa garantia acabou se transformando num
postulado genérico de legalidade a exigir que os atos do Poder Público se
compatibilizem com a noção de um direito justo” 239.
É necessário referir que, para a concretização do devido processo legal em
sentido substantivo, é necessária a utilização de elementos de aplicação e esses
elementos são os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade.
A razoabilidade e a proporcionalidade constituem métodos de aplicação de
normas, ou seja, constituem postulados que irão orientar a aplicação de outras
normas, até mesmo quando essas estiverem em conflito.
Em que pese a dissociação na doutrina sobre os princípios da razoabilidade
e proporcionalidade, a utilização de um ou outro na aplicação do caso concreto com
relação ao exame da discricionariedade pelo Poder Judiciário é indiferente, já que os
resultados obtidos com eles são semelhantes.
Através de pesquisa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
brasileiro, no tocante ao controle do mérito da discricionariedade administrativa, é
constatada
a
coexistência,
no
atual
sistema
jurídico
brasileiro,
de
dois
entendimentos antagônicos sobre o mesmo tema, ou seja, por um lado há julgados
239
CASTRO, 2006, 141.
113
que afirmam a impossibilidade e, por outro lado, há julgados que afirmam a
possibilidade de o Poder Judiciário analisar a parte que diz respeito à própria
discricionariedade do ato, em suma, permitir e impedir que ele ingresse na análise
dos critérios de conveniência e oportunidade dos atos administrativos.
Nesse contexto, a aplicação do devido processo legal substantivo legitima o
Poder Judiciário a adentrar o âmbito do mérito das decisões administrativas
discricionárias, a fim de se verificar se as decisões adotadas pelo agente
administrativo são razoáveis (ou, ainda, proporcionais), quebrando, com isso, toda a
tradição anterior construída sob a sombra da Lei nº. 221/94.
Ao se constatar a coexistência desses dois entendimentos contraditórios
entre si, reflexos dessa situação são caracterizados. Um deles diz respeito à afronta
à segurança jurídica, pois, diante de duas posições antagônicas vigentes, não há
como os administrados identificarem previamente como será a atuação do Poder
Judiciário frente a casos concretos idênticos.
A convivência de dois sistemas pode chegar, no extremo, a diferentes
decisões em casos semelhantes – e isso traz aparente contradição com o princípio
da segurança jurídica, que é ínsito ao Estado Democrático de Direito.
Outro reflexo ou consequência verificável é que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, ao aplicar os postulados da razoabilidade ou da proporcionalidade,
não o faz através de contornos objetivos, ou seja, não aplica esses postulados
através de testes objetivos e concretos que auxiliem na fundamentação e
argumentação quanto à invalidade do ato. A jurisprudência brasileira não comprova
efetivamente que um ato é efetivamente irrazoável ou desproporcional, em regra, a
fundamentação dessas decisões é fraca ou vaga.
Ao não definir os contornos objetivos de aplicação do devido processo legal
substantivo, o Tribunal acaba por permitir que se qualifique as suas decisões como
obra de voluntarismo ou ativismo judicial, na medida em que as decisões carecem
de fundamentação sólida nesse tocante.
114
Esse tipo de conduta também pode caracterizar o fenômeno denominado de
judicialização da política, pois neles os tribunais são chamados a se pronunciar onde
o funcionamento do Legislativo e do Executivo se mostra falho, insuficiente ou
insatisfatório, havendo uma aproximação entre Direito e Política.
A atuação do Poder Judiciário deve ser comedida em casos que adentra a
seara administrativa, a fim de evitar que sua atuação seja desmedida e então ele
passe a administrar ao invés de apenas jurisdicionar. Assim, faz-se absolutamente
necessário que exames de mérito de atos administrativos discricionários sejam feitos
com base em testes objetivos, tal qual se verifica no direito comparado, sob pena do
enfraquecimento da própria legitimidade da decisão judicial – com o consequente
enfraquecimento do princípio do Estado de Direito.
A atuação do Poder Judiciário na aplicação do devido processo legal
substantivo como mecanismo de controle dos atos discricionários do Poder Público,
quando em jogo direitos e garantias do cidadão, deve ser cuidadosamente pensada,
sob pena de um instrumento de garantia de direitos vir a se constituir num
mecanismo de autorização de uma atuação do Poder Judiciário sem qualquer
controle.
Assim, somos da opinião que o recurso, pelo Poder Judiciário, aos postulados da
razoabilidade e da proporcionalidade sem a consequente realização de testes
objetivos de sua aferição, tal como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
tem se apresentado, muito mais se aproxima de um gesto de voluntarismo judicial
do que de um procedimento aceitável desde um ponto de vista tanto da segurança
jurídica e da confiança dos administrados quanto do princípio maior do Estado de
Direito.
115
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