Artigo de Pesquisa
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Artículo de Investigación
Cuidado medicamentoso à criança HIV soropositiva
ENTRE DOSE E VOLUME: O PRINCÍPIO DA MATEMÁTICA
NO CUIDADO MEDICAMENTOSO À CRIANÇA HIV POSITIVA
BETWEEN DOSE AND VOLUME: THE PRINCIPLE OF MATHEMATICS IN
MEDICATION CARE FOR HIV-POSITIVE CHILDREN
ENTRE DOSIS Y VOLUMEN: EL PRINCIPIO DE LA MATEMÁTICA EN EL
CUIDADO MEDICAMENTOSO AL NIÑO VIH POSITIVO
Antonio Marcos Tosoli GomesI
Ivone Evangelista CabralII
RESUMO: O cuidado medicamentoso à criança HIV/AIDS é marcado por desafios e dilemas. Assim, objetiva-se
descrever e analisar a dimensão matemática do cuidado medicamentoso implementado com crianças soropositivas em
uso de antirretrovirais por parte de cuidadores familiares. Trata-se de um estudo qualitativo desenvolvido no Rio de
Janeiro, no segundo semestre de 2004, segundo o método criativo e sensível com oito cuidadores atendidos em um
ambulatório. Os dados foram coletados pela dinâmica do concreto e analisados pela análise de discurso. Os resultados
mostraram que o cotidiano de cuidado é permeado pelo ocultamento e pelo silenciamento e que os cuidadores
ressignificam a dose em volume, arredondando seus valores. Os instrumentos utilizados são priorizados em função da
facilidade em entender a sua numeração e da familiaridade estabelecida com o seu uso. Conclui-se que os cuidadores
necessitam manipular uma tecnologia em saúde antes desconhecida e destaca-se a importância do papel educador do
enfermeiro na melhoria da adesão ao tratamento.
Palavras-Chave: Síndrome de imunodeficiência adquirida; enfermagem em saúde pública; pesquisa qualitativa;
análise de discurso.
ABSTRACT
ABSTRACT:: The drug treatment for HIV-positive children is conspicuous for its challenges and dilemmas. The
purpose here was thus to describe and analyze the mathematical dimension of the drug care given to HIV-positive
children using anti-retrovirals administered by family caregivers. This qualitative study took place in Rio de Janeiro
during the second semester of 2004 using the creative-sensitive method with eight caregivers at an outpatient clinic.
Data were collected by concrete dynamics and analyzed using discourse analysis. The results showed that everyday
care is permeated by concealment and reticence and that the caregivers re-signify doses in terms of volume, rounding
the values. The instruments used were prioritized for their easy-to-understand numbering and the established familiarity
with their use. It was concluded that caregivers are required to handle previously unfamiliar health technology,
underlining the importance of nurses’ role as educators in improving treatment compliance.
Keywords: Acquired immunodeficiency syndrome; public health nursing; qualitative research; discourse analysis.
RESUMEN: El cuidado medicamentoso al niño con VIH/SIDA es marcado por retos y dilemas. Objetivo: describir y
analizar el enfoque matemático del cuidado medicamentoso implementado con niños seropositivos utilizando drogas
antirretrovirales por parte de cuidadores familiares. Estudio cualitativo realizado en Rio de Janeiro-Brasil, en el segundo
semestre de 2004, con 8 cuidadores atendidos en un ambulatorio, a través del método creativo y sensible. Los datos fueron
recolectados según la dinámica del concreto y analizados por el análisis de discurso. Los resultados mostraron que este
contexto se caracteriza por ser oculto y silencioso, donde los cuidadores dan un nuevo significado a la dosis según el
volumen, redondeando los valores. Los instrumentos utilizados son priorizados según la facilidad para entender la numeración
y por familiaridad con el uso. Se concluye que los cuidadores requieren manipular una tecnología en salud antes desconocida,
destacando la importancia del rol educador del enfermero para mejorar la continuidad en el tratamiento.
Palabras Clave: Síndrome de inmunodeficiencia adquirida; enfermería en salud pública; investigación cualitativa;
análisis de discurso.
INTRODUÇÃO
O núcleo familiar que convive diariamente com
uma criança soropositiva para o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) sente-se permanentemente desafiado a manter um bom nível de adesão ao tratamento instituído na busca de manter a vida de um de
seus membros que se encontra em pleno processo de
crescimento e desenvolvimento. Os familiares e/ou
cuidadores passam a frequentar diversas unidades de
saúde, apreendem a linguagem científica, identificam os sinais e sintomas de diversas doenças opor-
I
Doutor em Enfermagem. Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da
Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “A Promoção da Saúde de Grupos Populacionais”.
E-mail: [email protected].
II
Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da
Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Núcleo de Pesquisa em Saúde da Criança do DEMI/EEAN/UFRJ.
E-mail: [email protected].
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tunistas e desenvolvem um saber de experiência feito
e um processo de aliança de saberes com os profissionais, na tentativa de absorverem, compreenderem e
lidarem com coisas que se apresentam como estranhas
ao seu cotidiano e ao seu saber/fazer.
Os profissionais de saúde, por sua vez, procuram fazer com que todas as informações necessárias
ao cuidado cotidiano das crianças sejam repassadas e
que os responsáveis possam reproduzir da maneira
mais fidedigna possível aquilo que lhes é ensinado
com o suporte da ciência e do conhecimento
reificado. Esta situação nem sempre permite um diálogo franco em que se possam expor as dúvidas e oferecer resolutividade a diversas compreensões errôneas e aos frequentes equívocos cometidos.
Nesse contexto, é possível que exista, em determinados momentos, uma zona de silêncio entre os
usuários e os profissionais, gerando um ciclo constante e perverso de não ditos que influi diretamente
na adesão ao tratamento e na sobrevida da criança
soropositiva. Este fato se torna ainda mais importante quando se observa a progressiva pauperização e a
baixa escolarização no contexto da síndrome, fazendo com que aumente, de forma considerável, as demandas por informações1.
Define-se, então, como objetivo deste estudo
descrever e analisar a dimensão matemática do cuidado medicamentoso implementado para crianças
HIV positivas em uso de terapia antirretroviral
(TARV) por parte de familiares e/ou cuidadores.
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Quanto ao desenho da pesquisa, a abordagem qualitativa foi adotada para conduzir a produção e a análise de dados. Entre os métodos qualitativos, optamos
pelo criativo e sensível2 porque privilegiou-se a crítica
reflexiva e a estratégia da dinâmica grupal entre os
participantes da pesquisa, levando-os a interagir e a
dialogar sobre suas vivências e experiências.
Destaca-se a utilização de dinâmicas de
criatividade e sensibilidade (DCS) inspiradas nas dinâmicas de grupo, como a linha axial do método, combinado às produções artísticas delas decorrentes2. No
interior das DCS, acontecem a entrevista coletiva, a
discussão de grupo e a observação participante, mediada pela crítica reflexiva freiriana típica do círculo
de cultura3, para produzir dados para pesquisa.
O cenário de estudo foi uma unidade de saúde
ambulatorial, pública, universitária, do Município do
Rio de Janeiro, de referência para o atendimento à criança HIV/AIDS e sua família. O grupo de pesquisa foi
constituído por oito familiares e/ou cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde, HIV positivas, e foram respeitados os seguintes critérios de inclusão: o cuidador que não era o responsável legal, teve
Gomes AMT, Cabral IE
sua participação autorizada formalmente pelo responsável da criança, independente do grau de parentesco
e afinidade; o familiar e/ou cuidadora da criança foi
reconhecida pela unidade de saúde e o familiar e/ou
cuidador de crianças em uso contínuo de TARV no
domicílio. Para garantir o anonimato dos sujeitos, adotaram-se pseudônimos indicados por eles mesmos (Denise, Patrícia, Reinaldo, Luzia, Fabiana, Renata, Norma e Dimas) e a enunciação das crianças no discurso
dos participantes foram marcadas no texto em ordem
alfabética de aparecimento (A, B e C).
Para a produção de dados, realizou-se a dinâmica do concreto com oito participantes, distribuídos em dois encontros no mês de novembro de 2004,
nas dependências do Laboratório de Pesquisa e
Tecnologia Educacional em Saúde da Criança
(LAPTESC), do Núcleo de Pesquisa em Saúde da
Criança da Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Brasil. Os participantes da pesquisa responderam a duas questões
geradoras de debate: o que eu tenho feito para que
meu filho tome o remédio? O que ele ou ela sente
depois que toma o remédio?
A dinâmica do concreto inspira-se nos princípios
do role play2, tendo como característica central a
explicitação do cotidiano do familiar e/ou cuidador na
implementação de alguma prática de cuidar. No estudo
em tela, eles demonstraram e falaram sobre suas práticas no cuidado a criança HIV/AIDS em uso de TARV.
A implementação das dinâmicas aconteceu em
cinco momentos distintos: o acolhimento e apresentação do ambiente da pesquisa; a apresentação dos
participantes do grupo e a explicação sobre o encontro; a enunciação e a discussão das questões geradoras de debate; a dramatização e análise individual; e
análise e validação coletiva das produções individuais e do role play.
Cada dinâmica foi gravada em audiotape e
videotape, gerando um relatório que se constituiu na
fonte primária dos dados, após a transcrição em verbatim.
Posteriormente, conferiram- se materialidades
linguísticas ao texto, aproximando a produção verbal
das circunstâncias em que foram enunciadas. Aplicouse, em seguida, os dispositivos analíticos da análise de
discurso4,5, com destaque para o silenciamento, o
ocultamento, a formação imaginária, a paráfrase, a
polissemia e a metáfora.
Do corpus dos textos foram demarcadas as situações existenciais em uma série de quadros analíticos
procurando explicitar os mecanismos de produção de
sentido utilizados pelos sujeitos em sua discursividade,
abrangendo o dito e o não dito. Os quadros analíticos
permitiram a codificação das dimensões e das
temáticas, bem como a sua descodificação (formação
de subtemas) e a recodificação (síntese da temática ou
da dimensão)2,6.
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Ressalta-se que o projeto foi aprovado pelo comitê de ética da instituição onde os sujeitos da pesquisa faziam o seguimento ambulatorial das crianças
e todos os preceitos éticos recomendados pela resolução n° 196/96 foram estritamente seguidos (protocolo n° 013/04).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir das diretrizes do método criativo e sensível e dos princípios freirianos, o grupo de estudo codificou os princípios da matemática como um tema recorrente em sua cotidianidade e com a qual necessita
deparar-se como um desafio a ser enfrentado na
implementação do cuidado à criança HIV positiva.
Neste contexto, o referido princípio foi abordado
pelos familiares-cuidadores quando dialogaram sobre a administração do antirretroviral.
Patrícia [complementa como ela faz o cuidado
medicamentoso]: - Eu dou [o medicamento] na seringa, por causa da medida. Eu tenho pessoas que até me
ajudam, mas eu preciso esconder o remédio[...] inclusive eu tiro o rótulo deles[...]
Denise [continua, mostrando a diferença da sua
prática para a da Patrícia]: - Aí eu boto [o medicamento] no[...] no copinho mesmo, que já vem a quantidade certa. Esse [d4T, Estavudina] ela [A] toma 25
[25 ml. A prescrição médica recomenda 24 ml] aqui/,
tem outro que ela toma, mas não tem aqui , é um desses
vidros aqui[...]
Marcos [conhecendo previamente o esquema
medicamentoso, fala]: - Na verdade, esse aqui também,
o 3TC [Lamivudina]?
Denise: - É.
Marcos [após concordância da Denise, reitera e reafirma o que havia dito a respeito da medicação]: Então é esse aqui também, só está num frasco diferente.
Denise [ela então continua]: Esse [3TC] ela toma
11 [11 ml. A prescrição média recomenda 9,5 ml].
Marcos [não se sentindo satisfeito com as respostas oferecidas pela Denise, continuo perguntando]: - Como é que você faz pra medir?
Denise: - Eu boto no mesmo copinho que vem nesse
[apontando para o medicamento, o d4T] [...] Esqueci de falar[...] Eu também tenho que esconder, como
a Patrícia diz [...] e falo que o remédio é uma vitamina.
A familiar cuidadora reforça a opção por materiais que facilitam a visualização do volume e a medição
da dose do medicamento. Percebe-se, dessa maneira,
que o reajustamento da dose é uma forma de
ressignificação da prescrição médica com o propósito
de melhor operacionalizar a administração do
fármaco. A subjetividade da cuidadora é marcada pela
reinterpretação que transversaliza a objetividade que
a terapia impõe e, assim, os 9,5 ml prescritos se convertem em 11 ml, levando a criança a receber 1,5 ml
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a mais por dose administrada, de onde se pode inferir
que leituras de unidades em numerais inteiros são de
mais fácil manejo, inclusive de serem guardadas mentalmente, do que as descritas em frações.
Por outro lado, mesmo quando tratamos de questões objetivas, os discursos dos sujeitos se organizam
por um determinado grau de silenciamento e
ocultamento. Esses fenômenos podem ser observados no uso constante de pronomes demonstrativos
(esse, desse) e indefinidos (outro) que possam substituir a denominação dos fármacos, bem como a sua
relação com o vírus HIV ou a síndrome em si. Para o
cotidiano desse familiar cuidador, o princípio da matemática constitui-se como um desafio não desvelado, pois o mesmo não foi objetivado em sua formação
imaginária, indicando as ressignificações construídas
na inter-relação com o dito profissional que influem
diretamente na implementação do cuidado
medicamentoso. Ao mesmo tempo, observa-se a introdução do fármaco e de suas demandas a partir de
um estranhamento na cotidianidade das famílias que
apresentaram dificuldades com sua manipulação.
Nesse sentido, alguns autores7 pontuam as dificuldades encontradas por familiares, especialmente
mães, na compreensão de prescrições médicas na área
da Pediatria. Esse fato também se encontra presente
em nossos dados, quando a efetivação do cuidado
medicamentoso não corresponde à recomendada pelo
profissional de saúde.
No contexto do cuidado medicamentoso ao cliente HIV positivo, outros autores8 descrevem situações que dificultam a sua aplicação e a sua precisão,
diminuindo o grau de adesão ao tratamento. Essas
situações se relacionam tanto a questões sociais,
como o isolamento vivenciado pelas famílias e a falta
de uma rede social de apoio, quanto ao desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras.
Contudo, a discursividade dos familiares
cuidadores não reforçou a presença de um isolamento
como descrito na literatura sobre o HIV9,10, em que a
família e a criança encontram-se excluídas da convivência com os demais atores sociais, antes copartícipes
dos cenários comuns de contatos diários. O que se apresentou como marcante na discursividade do grupo
pesquisado foram o silenciamento e o ocultamento,
que significou uma forma própria de relacionamento
com a sociedade que impede a extensão da rede social
de apoio, bem como um diálogo relacionado ao modus
operandi do cuidado medicamentoso.
Ao mesmo tempo, a baixa escolaridade e o processo de pauperização no contexto da síndrome têm
contribuído para a implementação de um cuidado
medicamentoso diferente daquele recomendado pela
unidade de saúde, especialmente no que tange a alterações ligadas à dosagem, como percebido no caso de
Denise11. Diversos autores11, contudo, destacam que
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a qualidade e a quantidade de informações oferecidas ao familiar cuidador e à criança apresentam-se
como um desafio para os profissionais de saúde, no que
tange à sua disseminação e à sua eficácia no dia a dia
de pessoas leigas à área da saúde.
Apesar de reconhecer a importância da proposição, destaca-se a necessidade de que o repasse de informações seja superado pelo exercício do diálogo12, de forma a estimular o empoderamento dessas
famílias e a capacidade de se tornarem cada vez mais
ativas e participativas na implementação de um cuidado que atenda as necessidades clínico-imunológicas
das crianças, associadas às outras demandas.
Os sujeitos prosseguem com o diálogo:
Marcos [como achei que a explicação demorou
muito, procuro saber como ela faria de maneira sucessiva e progressiva]: - Como é que a senhora faria
[para realizar esse cuidado medicamentoso]?
Patrícia [tenta explicar resumidamente]: - Aí eu, eu
dou a ele [B], aí depois eu vou lá e pego mais um
pouquinho, porque, às vezes, a seringa se você puxar
muito [o êmbolo]/ ela sai do lugar, aí faz 21 ml. [depois
que demonstra, ela ri].
O oferecimento do medicamento se cruza com
outras unidades de medidas relacionadas aos princípios da matemática na implementação da terapia
antirretroviral, além de ser empregado como estratégia de superação da dificuldade com o manejo do material (seringa) usado para administrar. Vale-se de
unidade de medida subjetiva (pouquinho) para lidar
com os desafios impostos pela capacidade da seringa.
Assim, a necessidade desse mais um pouquinho
resulta de um aprendizado mediado pelo experimentar, pois quando há necessidade de aspirar o volume
pleno da seringa, a pressão de rebote pode deslocar o
êmbolo do corpo da seringa e haver perda do medicamento. Essa situação configura-se como um saber de
experiência feita, no modo freiriano de pensar a construção do conhecimento3, no qual destacaram-se as
vivências construídas ao longo do tempo de
implementação do cuidado medicamentoso à criança portadora do HIV/AIDS.
A Denise prossegue.
Marcos [logo que a Patrícia conclui, me volto para a
Denise]: - A Denise também faz assim?
Denise [responde]: - Não, ela [A] só toma no copinho.
Existe uma diferença de realização de cuidado
medicamentoso entre as duas participantes, pois apesar de manipularem fármacos com volumes aproximados (Denise, d4T 25 ml; Patrícia, AZT – Zidovudina 21 ml), uma prefere a seringa e a outra, o copo-medida.
Apresenta-se como possível que a utilização de
tecnologias e instrumentais na implementação do cuidado influencie a ressignificação da dose por parte dos
Gomes AMT, Cabral IE
familiares cuidadores, uma vez que a marcação existente na seringa facilita a visualização do volume que
não seja múltiplo do valor 5, embora se apresente como
mais complexa do ponto de vista de desenvolvimento
de habilidades motoras.
Simultaneamente, ambas as familiares cuidadoras apresentaram características pessoais, familiares
e sociais descritas como sendo influenciadoras de quedas no índice de adesão à terapia8,11,13. A Denise possui
uma restrita rede social de apoio e pouca experiência
no cuidado a crianças com necessidades especiais de saúde, especialmente soropositivas, enquanto a Patrícia
apresenta o fator idade – incluindo aí as limitações do
processo de envelhecimento – e a baixa escolaridade.
Percebe-se a importância de um processo de
educação que considere as particularidades dos familiares cuidadores, inclusive as suas limitações e que
construa, dialogicamente, soluções para que as mesmas sejam superadas14. Ressalta-se a falência do modelo educativo que privilegia o repasse de informações, permitindo que algumas ressignificações mantenham-se silenciadas e ocultas e, desta maneira, influenciem diretamente a prática de cuidado, sem estarem, necessariamente, adequadas do ponto de vista
clínico e/ou farmacológico.
Essas características individuais e a abordagem
educativa que transita no cotidiano desses familiares
cuidadores permitem compreender tanto as diferenças individuais explícitas na discursividade e na
teatralização concretizada na dinâmica de
criatividade e sensibilidade, quanto a implementação
de um cuidado medicamentoso divergente do instituído e do recomendado pela unidade de saúde. Não
se trata de erro, desatenção ou simplesmente ignorância como é comum se rotular, mas sim de
pragmatizar algo que é, em princípio, alheio ao seu
dia a dia e possui a obrigatoriedade de ser incorporado em suas vidas, tenham ou não condições cognitivas,
psicológicas e/ou afetivas para isso15. Mesmo porque
esse familiar cuidador responsabiliza-se pela
implementação do cuidado medicamentoso, bem
como por sua constante supervisão, o que implica no
desenvolvimento de conhecimentos e habilidades
que até então não faziam parte do seu cotidiano.
Destaca-se, então, o desafio concreto de manipulação de tecnologias com as quais os cuidadores
não tinham nenhuma familiaridade, assim como a
necessidade de incorporá-lo ao cotidiano de vida da
criança. Nesse sentido, não só a inserção mostra-se
importante, mas principalmente a transformação
dessa tecnologia em algo que faça parte do dia-a-dia
da criança, com o menor nível de estranhamento
possível. Compreende-se que o uso contínuo de medicamentos por crianças com HIV/AIDS assemelhase aquele das doenças crônicas, no qual o cuidador
deve recriar o cotidiano da mesma de forma a incor-
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porar algo não natural como parte intrínseca do cotidiano infantil16.
Além disso, as dificuldades encontradas na manipulação do frasco, nos copos-medidas e nas seringas revelam o quanto esse ainda é um desafio no cotidiano dos familiares cuidadores, que exige processos
cognitivos de adaptação e de aprendizado, nem sempre adequadamente monitorados por processos pedagógicos externos ao núcleo familiar.
Os participantes da quarta dinâmica do Concreto, quase em sua totalidade, também realizaram o
processo de codificação dessa mesma temática.
Marcos [peço que ela seja mais específica]: - Você
dá quantos ml?
Luzia [retoma o que estava falando]: - 10 ml, agora
tô dando 10 ml.
Marcos [estimula a Luzia a encenar]: - Isso aqui é
uma seringa de 10 [ml].
Dimas [mostra outra seringa]: Essa é de 20 [20 ml].
Marcos [fala, então, e mostra o instrumental]: - Essa
[seringa] aqui é de vinte [ml], essa aqui é de dez [ml].
Dimas [comenta a sua experiência]: - Eu dou na
[seringa] de 20 [ml]. Que ela [C] toma 19 ml de
[AZT][...] Como é que você aspira [Dimas faz essa
pergunta para a Luzia].
Luzia: - E a dela também. Eu não me lembro, agora.
Tem a outra [seringa] na bolsa, uma azul. Eu vou pegar. [Ela sai e vai na sala das crianças pegar na bolsa
a sua seringa que vem com o medicamento]
Essa temática nos sensibiliza para perceber e valorizar demandas que, normalmente, não são verbalizadas
pelos familiares cuidadores, como o processo de realizar
o cuidado medicamentoso com o mesmo tipo de aparelho. Os motivos pelos quais os responsáveis pela realização do cuidado medicamentoso não expõem essas situações, ao interagir com o profissional de saúde, estão
relacionados à dificuldade de demonstrarem que possuem limitações de conhecimentos matemáticos e gerais,
especialmente frente à figura do médico, que possui a
representação do saber17-19.
Essa familiar cuidadora expõe uma demanda não
só de aprendizagem acerca do fármaco e das tecnologias
utilizadas, mas de se sentirem seguras e confortáveis frente a artefatos tecnológicos com os quais são obrigadas a
conviver devido à soropositividade da criança20. Nesse
contexto, ela necessita se aproximar dessa nova realidade, apreendê-la, senti-la, familiarizar-se com ela e, assim, desmitologizá-la3.
Vale ressaltar que a proposta de uma educação
dialógica em saúde é um caminho alternativo de aproximação entre profissionais e clientes/familiares com
vistas à superação de obstáculos próprios dessas
vivências. Assim, o enfermeiro ocupa uma posição
privilegiada na equipe de saúde, por sua proximidade
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do cliente e competências profissionais para exercer a
função de educador – um agente de mudanças21-23.
CONCLUSÃO
P ara enfrentarem os desafios expostos, os
participantes baseiam-se em dois princípios fundamentais para desenvolver o tratamento com
antirretrovirais no cotidiano de cuidado à criança
HIV/AIDS como um fenômeno existencial: o da enfermagem fundamental e o da farmacologia. Na adoção de princípios na administração de medicamentos, pertencentes à esfera do cuidado de enfermagem fundamental, os familiares utilizam tecnologias
de formas nem sempre adequadas, que interferem nas
dosagens. Além disso, retiram os rótulos dos fármacos,
gerando risco de troca e de erros relacionados à administração. Simultaneamente, em função do
ocultamento, apropriam-se de processos metafóricos
para dialogar com os pares e manter a criança fora
desse diálogo, quando, por exemplo, substituem o
nome de um antirretroviral por vitamina.
Observa-se, ainda, que a discursividade dos indivíduos apresenta-se fortemente marcada pela paráfrase, ou seja, caracteriza-se por um constante retorno ao
já dito (esconder o estado de soropositividade e a
ressignificação da dose em volume, por exemplo) para
produzir sentido no ambiente coletivo da dinâmica.
Ao mesmo tempo, observa-se completa ausência de
fenômenos polissêmicos em seu dizer, possivelmente
em função da hegemonia parafrásica, o que tende a
impedir a ocorrência de deslocamentos, rupturas e a
emergência da multiplicidade de sentidos no discurso,
situação esta que possui sua raiz no silenciamento e no
ocultamento da condição soropositiva.
Quanto aos demais aspectos apresentados, observa-se coerência entre o comportamento descrito e uma
marca discursiva comum aos diferentes sujeitos. Dessa
maneira, compreenderam-se as características individuais, o processo de ressignificação, a educação em saúde e a familiaridade com a tecnologia utilizada no cuidado medicamentoso como questões decisivas para que os
princípios da matemática fossem seguidos na cotidianidade
desses familiares cuidadores e de suas crianças.
A formação discursiva dos familiares cuidadores
explicitou a maneira como o princípio da matemática
é inserido em sua cotidianidade. Em que pese a importância dessa questão na adesão à terapia antirretroviral
e o alerta com relação à resistência viral e o insucesso
terapêutico, o cuidado medicamentoso apresentou-se
mediado por ressignificações que interferiram diretamente na terapêutica instituída. A dose ressignificada
em volume associada às características do grupo e as
dificuldades encontradas na manipulação da tecnologia
em saúde conformam um cotidiano em que a não adesão parece se apresentar como uma consequência.
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Destaca-se, ainda, a proposição de uma educação dialógica em saúde como alternativa para a resolução de problemas, como os que se apresentaram
nessas situações existenciais. Nesse cenário, o enfermeiro desempenha um papel relevante em decorrência de sua relação de proximidade com a clientela e de
sua formação profissional como um agente educador,
de per si.
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