Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación Cuidado medicamentoso à criança HIV soropositiva ENTRE DOSE E VOLUME: O PRINCÍPIO DA MATEMÁTICA NO CUIDADO MEDICAMENTOSO À CRIANÇA HIV POSITIVA BETWEEN DOSE AND VOLUME: THE PRINCIPLE OF MATHEMATICS IN MEDICATION CARE FOR HIV-POSITIVE CHILDREN ENTRE DOSIS Y VOLUMEN: EL PRINCIPIO DE LA MATEMÁTICA EN EL CUIDADO MEDICAMENTOSO AL NIÑO VIH POSITIVO Antonio Marcos Tosoli GomesI Ivone Evangelista CabralII RESUMO: O cuidado medicamentoso à criança HIV/AIDS é marcado por desafios e dilemas. Assim, objetiva-se descrever e analisar a dimensão matemática do cuidado medicamentoso implementado com crianças soropositivas em uso de antirretrovirais por parte de cuidadores familiares. Trata-se de um estudo qualitativo desenvolvido no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2004, segundo o método criativo e sensível com oito cuidadores atendidos em um ambulatório. Os dados foram coletados pela dinâmica do concreto e analisados pela análise de discurso. Os resultados mostraram que o cotidiano de cuidado é permeado pelo ocultamento e pelo silenciamento e que os cuidadores ressignificam a dose em volume, arredondando seus valores. Os instrumentos utilizados são priorizados em função da facilidade em entender a sua numeração e da familiaridade estabelecida com o seu uso. Conclui-se que os cuidadores necessitam manipular uma tecnologia em saúde antes desconhecida e destaca-se a importância do papel educador do enfermeiro na melhoria da adesão ao tratamento. Palavras-Chave: Síndrome de imunodeficiência adquirida; enfermagem em saúde pública; pesquisa qualitativa; análise de discurso. ABSTRACT ABSTRACT:: The drug treatment for HIV-positive children is conspicuous for its challenges and dilemmas. The purpose here was thus to describe and analyze the mathematical dimension of the drug care given to HIV-positive children using anti-retrovirals administered by family caregivers. This qualitative study took place in Rio de Janeiro during the second semester of 2004 using the creative-sensitive method with eight caregivers at an outpatient clinic. Data were collected by concrete dynamics and analyzed using discourse analysis. The results showed that everyday care is permeated by concealment and reticence and that the caregivers re-signify doses in terms of volume, rounding the values. The instruments used were prioritized for their easy-to-understand numbering and the established familiarity with their use. It was concluded that caregivers are required to handle previously unfamiliar health technology, underlining the importance of nurses’ role as educators in improving treatment compliance. Keywords: Acquired immunodeficiency syndrome; public health nursing; qualitative research; discourse analysis. RESUMEN: El cuidado medicamentoso al niño con VIH/SIDA es marcado por retos y dilemas. Objetivo: describir y analizar el enfoque matemático del cuidado medicamentoso implementado con niños seropositivos utilizando drogas antirretrovirales por parte de cuidadores familiares. Estudio cualitativo realizado en Rio de Janeiro-Brasil, en el segundo semestre de 2004, con 8 cuidadores atendidos en un ambulatorio, a través del método creativo y sensible. Los datos fueron recolectados según la dinámica del concreto y analizados por el análisis de discurso. Los resultados mostraron que este contexto se caracteriza por ser oculto y silencioso, donde los cuidadores dan un nuevo significado a la dosis según el volumen, redondeando los valores. Los instrumentos utilizados son priorizados según la facilidad para entender la numeración y por familiaridad con el uso. Se concluye que los cuidadores requieren manipular una tecnología en salud antes desconocida, destacando la importancia del rol educador del enfermero para mejorar la continuidad en el tratamiento. Palabras Clave: Síndrome de inmunodeficiencia adquirida; enfermería en salud pública; investigación cualitativa; análisis de discurso. INTRODUÇÃO O núcleo familiar que convive diariamente com uma criança soropositiva para o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) sente-se permanentemente desafiado a manter um bom nível de adesão ao tratamento instituído na busca de manter a vida de um de seus membros que se encontra em pleno processo de crescimento e desenvolvimento. Os familiares e/ou cuidadores passam a frequentar diversas unidades de saúde, apreendem a linguagem científica, identificam os sinais e sintomas de diversas doenças opor- I Doutor em Enfermagem. Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “A Promoção da Saúde de Grupos Populacionais”. E-mail: [email protected]. II Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Núcleo de Pesquisa em Saúde da Criança do DEMI/EEAN/UFRJ. E-mail: [email protected]. p.332 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):332-7. Recebido em: 13.10.2008 - Aprovado em: 27.04.2009 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación tunistas e desenvolvem um saber de experiência feito e um processo de aliança de saberes com os profissionais, na tentativa de absorverem, compreenderem e lidarem com coisas que se apresentam como estranhas ao seu cotidiano e ao seu saber/fazer. Os profissionais de saúde, por sua vez, procuram fazer com que todas as informações necessárias ao cuidado cotidiano das crianças sejam repassadas e que os responsáveis possam reproduzir da maneira mais fidedigna possível aquilo que lhes é ensinado com o suporte da ciência e do conhecimento reificado. Esta situação nem sempre permite um diálogo franco em que se possam expor as dúvidas e oferecer resolutividade a diversas compreensões errôneas e aos frequentes equívocos cometidos. Nesse contexto, é possível que exista, em determinados momentos, uma zona de silêncio entre os usuários e os profissionais, gerando um ciclo constante e perverso de não ditos que influi diretamente na adesão ao tratamento e na sobrevida da criança soropositiva. Este fato se torna ainda mais importante quando se observa a progressiva pauperização e a baixa escolarização no contexto da síndrome, fazendo com que aumente, de forma considerável, as demandas por informações1. Define-se, então, como objetivo deste estudo descrever e analisar a dimensão matemática do cuidado medicamentoso implementado para crianças HIV positivas em uso de terapia antirretroviral (TARV) por parte de familiares e/ou cuidadores. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO Quanto ao desenho da pesquisa, a abordagem qualitativa foi adotada para conduzir a produção e a análise de dados. Entre os métodos qualitativos, optamos pelo criativo e sensível2 porque privilegiou-se a crítica reflexiva e a estratégia da dinâmica grupal entre os participantes da pesquisa, levando-os a interagir e a dialogar sobre suas vivências e experiências. Destaca-se a utilização de dinâmicas de criatividade e sensibilidade (DCS) inspiradas nas dinâmicas de grupo, como a linha axial do método, combinado às produções artísticas delas decorrentes2. No interior das DCS, acontecem a entrevista coletiva, a discussão de grupo e a observação participante, mediada pela crítica reflexiva freiriana típica do círculo de cultura3, para produzir dados para pesquisa. O cenário de estudo foi uma unidade de saúde ambulatorial, pública, universitária, do Município do Rio de Janeiro, de referência para o atendimento à criança HIV/AIDS e sua família. O grupo de pesquisa foi constituído por oito familiares e/ou cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde, HIV positivas, e foram respeitados os seguintes critérios de inclusão: o cuidador que não era o responsável legal, teve Gomes AMT, Cabral IE sua participação autorizada formalmente pelo responsável da criança, independente do grau de parentesco e afinidade; o familiar e/ou cuidadora da criança foi reconhecida pela unidade de saúde e o familiar e/ou cuidador de crianças em uso contínuo de TARV no domicílio. Para garantir o anonimato dos sujeitos, adotaram-se pseudônimos indicados por eles mesmos (Denise, Patrícia, Reinaldo, Luzia, Fabiana, Renata, Norma e Dimas) e a enunciação das crianças no discurso dos participantes foram marcadas no texto em ordem alfabética de aparecimento (A, B e C). Para a produção de dados, realizou-se a dinâmica do concreto com oito participantes, distribuídos em dois encontros no mês de novembro de 2004, nas dependências do Laboratório de Pesquisa e Tecnologia Educacional em Saúde da Criança (LAPTESC), do Núcleo de Pesquisa em Saúde da Criança da Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro/Brasil. Os participantes da pesquisa responderam a duas questões geradoras de debate: o que eu tenho feito para que meu filho tome o remédio? O que ele ou ela sente depois que toma o remédio? A dinâmica do concreto inspira-se nos princípios do role play2, tendo como característica central a explicitação do cotidiano do familiar e/ou cuidador na implementação de alguma prática de cuidar. No estudo em tela, eles demonstraram e falaram sobre suas práticas no cuidado a criança HIV/AIDS em uso de TARV. A implementação das dinâmicas aconteceu em cinco momentos distintos: o acolhimento e apresentação do ambiente da pesquisa; a apresentação dos participantes do grupo e a explicação sobre o encontro; a enunciação e a discussão das questões geradoras de debate; a dramatização e análise individual; e análise e validação coletiva das produções individuais e do role play. Cada dinâmica foi gravada em audiotape e videotape, gerando um relatório que se constituiu na fonte primária dos dados, após a transcrição em verbatim. Posteriormente, conferiram- se materialidades linguísticas ao texto, aproximando a produção verbal das circunstâncias em que foram enunciadas. Aplicouse, em seguida, os dispositivos analíticos da análise de discurso4,5, com destaque para o silenciamento, o ocultamento, a formação imaginária, a paráfrase, a polissemia e a metáfora. Do corpus dos textos foram demarcadas as situações existenciais em uma série de quadros analíticos procurando explicitar os mecanismos de produção de sentido utilizados pelos sujeitos em sua discursividade, abrangendo o dito e o não dito. Os quadros analíticos permitiram a codificação das dimensões e das temáticas, bem como a sua descodificação (formação de subtemas) e a recodificação (síntese da temática ou da dimensão)2,6. Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):332-7. • p.333 Cuidado medicamentoso à criança HIV soropositiva Ressalta-se que o projeto foi aprovado pelo comitê de ética da instituição onde os sujeitos da pesquisa faziam o seguimento ambulatorial das crianças e todos os preceitos éticos recomendados pela resolução n° 196/96 foram estritamente seguidos (protocolo n° 013/04). RESULTADOS E DISCUSSÃO A partir das diretrizes do método criativo e sensível e dos princípios freirianos, o grupo de estudo codificou os princípios da matemática como um tema recorrente em sua cotidianidade e com a qual necessita deparar-se como um desafio a ser enfrentado na implementação do cuidado à criança HIV positiva. Neste contexto, o referido princípio foi abordado pelos familiares-cuidadores quando dialogaram sobre a administração do antirretroviral. Patrícia [complementa como ela faz o cuidado medicamentoso]: - Eu dou [o medicamento] na seringa, por causa da medida. Eu tenho pessoas que até me ajudam, mas eu preciso esconder o remédio[...] inclusive eu tiro o rótulo deles[...] Denise [continua, mostrando a diferença da sua prática para a da Patrícia]: - Aí eu boto [o medicamento] no[...] no copinho mesmo, que já vem a quantidade certa. Esse [d4T, Estavudina] ela [A] toma 25 [25 ml. A prescrição médica recomenda 24 ml] aqui/, tem outro que ela toma, mas não tem aqui , é um desses vidros aqui[...] Marcos [conhecendo previamente o esquema medicamentoso, fala]: - Na verdade, esse aqui também, o 3TC [Lamivudina]? Denise: - É. Marcos [após concordância da Denise, reitera e reafirma o que havia dito a respeito da medicação]: Então é esse aqui também, só está num frasco diferente. Denise [ela então continua]: Esse [3TC] ela toma 11 [11 ml. A prescrição média recomenda 9,5 ml]. Marcos [não se sentindo satisfeito com as respostas oferecidas pela Denise, continuo perguntando]: - Como é que você faz pra medir? Denise: - Eu boto no mesmo copinho que vem nesse [apontando para o medicamento, o d4T] [...] Esqueci de falar[...] Eu também tenho que esconder, como a Patrícia diz [...] e falo que o remédio é uma vitamina. A familiar cuidadora reforça a opção por materiais que facilitam a visualização do volume e a medição da dose do medicamento. Percebe-se, dessa maneira, que o reajustamento da dose é uma forma de ressignificação da prescrição médica com o propósito de melhor operacionalizar a administração do fármaco. A subjetividade da cuidadora é marcada pela reinterpretação que transversaliza a objetividade que a terapia impõe e, assim, os 9,5 ml prescritos se convertem em 11 ml, levando a criança a receber 1,5 ml p.334 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):332-7. Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación a mais por dose administrada, de onde se pode inferir que leituras de unidades em numerais inteiros são de mais fácil manejo, inclusive de serem guardadas mentalmente, do que as descritas em frações. Por outro lado, mesmo quando tratamos de questões objetivas, os discursos dos sujeitos se organizam por um determinado grau de silenciamento e ocultamento. Esses fenômenos podem ser observados no uso constante de pronomes demonstrativos (esse, desse) e indefinidos (outro) que possam substituir a denominação dos fármacos, bem como a sua relação com o vírus HIV ou a síndrome em si. Para o cotidiano desse familiar cuidador, o princípio da matemática constitui-se como um desafio não desvelado, pois o mesmo não foi objetivado em sua formação imaginária, indicando as ressignificações construídas na inter-relação com o dito profissional que influem diretamente na implementação do cuidado medicamentoso. Ao mesmo tempo, observa-se a introdução do fármaco e de suas demandas a partir de um estranhamento na cotidianidade das famílias que apresentaram dificuldades com sua manipulação. Nesse sentido, alguns autores7 pontuam as dificuldades encontradas por familiares, especialmente mães, na compreensão de prescrições médicas na área da Pediatria. Esse fato também se encontra presente em nossos dados, quando a efetivação do cuidado medicamentoso não corresponde à recomendada pelo profissional de saúde. No contexto do cuidado medicamentoso ao cliente HIV positivo, outros autores8 descrevem situações que dificultam a sua aplicação e a sua precisão, diminuindo o grau de adesão ao tratamento. Essas situações se relacionam tanto a questões sociais, como o isolamento vivenciado pelas famílias e a falta de uma rede social de apoio, quanto ao desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras. Contudo, a discursividade dos familiares cuidadores não reforçou a presença de um isolamento como descrito na literatura sobre o HIV9,10, em que a família e a criança encontram-se excluídas da convivência com os demais atores sociais, antes copartícipes dos cenários comuns de contatos diários. O que se apresentou como marcante na discursividade do grupo pesquisado foram o silenciamento e o ocultamento, que significou uma forma própria de relacionamento com a sociedade que impede a extensão da rede social de apoio, bem como um diálogo relacionado ao modus operandi do cuidado medicamentoso. Ao mesmo tempo, a baixa escolaridade e o processo de pauperização no contexto da síndrome têm contribuído para a implementação de um cuidado medicamentoso diferente daquele recomendado pela unidade de saúde, especialmente no que tange a alterações ligadas à dosagem, como percebido no caso de Denise11. Diversos autores11, contudo, destacam que Recebido em: 13.10.2008 - Aprovado em: 27.04.2009 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación a qualidade e a quantidade de informações oferecidas ao familiar cuidador e à criança apresentam-se como um desafio para os profissionais de saúde, no que tange à sua disseminação e à sua eficácia no dia a dia de pessoas leigas à área da saúde. Apesar de reconhecer a importância da proposição, destaca-se a necessidade de que o repasse de informações seja superado pelo exercício do diálogo12, de forma a estimular o empoderamento dessas famílias e a capacidade de se tornarem cada vez mais ativas e participativas na implementação de um cuidado que atenda as necessidades clínico-imunológicas das crianças, associadas às outras demandas. Os sujeitos prosseguem com o diálogo: Marcos [como achei que a explicação demorou muito, procuro saber como ela faria de maneira sucessiva e progressiva]: - Como é que a senhora faria [para realizar esse cuidado medicamentoso]? Patrícia [tenta explicar resumidamente]: - Aí eu, eu dou a ele [B], aí depois eu vou lá e pego mais um pouquinho, porque, às vezes, a seringa se você puxar muito [o êmbolo]/ ela sai do lugar, aí faz 21 ml. [depois que demonstra, ela ri]. O oferecimento do medicamento se cruza com outras unidades de medidas relacionadas aos princípios da matemática na implementação da terapia antirretroviral, além de ser empregado como estratégia de superação da dificuldade com o manejo do material (seringa) usado para administrar. Vale-se de unidade de medida subjetiva (pouquinho) para lidar com os desafios impostos pela capacidade da seringa. Assim, a necessidade desse mais um pouquinho resulta de um aprendizado mediado pelo experimentar, pois quando há necessidade de aspirar o volume pleno da seringa, a pressão de rebote pode deslocar o êmbolo do corpo da seringa e haver perda do medicamento. Essa situação configura-se como um saber de experiência feita, no modo freiriano de pensar a construção do conhecimento3, no qual destacaram-se as vivências construídas ao longo do tempo de implementação do cuidado medicamentoso à criança portadora do HIV/AIDS. A Denise prossegue. Marcos [logo que a Patrícia conclui, me volto para a Denise]: - A Denise também faz assim? Denise [responde]: - Não, ela [A] só toma no copinho. Existe uma diferença de realização de cuidado medicamentoso entre as duas participantes, pois apesar de manipularem fármacos com volumes aproximados (Denise, d4T 25 ml; Patrícia, AZT – Zidovudina 21 ml), uma prefere a seringa e a outra, o copo-medida. Apresenta-se como possível que a utilização de tecnologias e instrumentais na implementação do cuidado influencie a ressignificação da dose por parte dos Gomes AMT, Cabral IE familiares cuidadores, uma vez que a marcação existente na seringa facilita a visualização do volume que não seja múltiplo do valor 5, embora se apresente como mais complexa do ponto de vista de desenvolvimento de habilidades motoras. Simultaneamente, ambas as familiares cuidadoras apresentaram características pessoais, familiares e sociais descritas como sendo influenciadoras de quedas no índice de adesão à terapia8,11,13. A Denise possui uma restrita rede social de apoio e pouca experiência no cuidado a crianças com necessidades especiais de saúde, especialmente soropositivas, enquanto a Patrícia apresenta o fator idade – incluindo aí as limitações do processo de envelhecimento – e a baixa escolaridade. Percebe-se a importância de um processo de educação que considere as particularidades dos familiares cuidadores, inclusive as suas limitações e que construa, dialogicamente, soluções para que as mesmas sejam superadas14. Ressalta-se a falência do modelo educativo que privilegia o repasse de informações, permitindo que algumas ressignificações mantenham-se silenciadas e ocultas e, desta maneira, influenciem diretamente a prática de cuidado, sem estarem, necessariamente, adequadas do ponto de vista clínico e/ou farmacológico. Essas características individuais e a abordagem educativa que transita no cotidiano desses familiares cuidadores permitem compreender tanto as diferenças individuais explícitas na discursividade e na teatralização concretizada na dinâmica de criatividade e sensibilidade, quanto a implementação de um cuidado medicamentoso divergente do instituído e do recomendado pela unidade de saúde. Não se trata de erro, desatenção ou simplesmente ignorância como é comum se rotular, mas sim de pragmatizar algo que é, em princípio, alheio ao seu dia a dia e possui a obrigatoriedade de ser incorporado em suas vidas, tenham ou não condições cognitivas, psicológicas e/ou afetivas para isso15. Mesmo porque esse familiar cuidador responsabiliza-se pela implementação do cuidado medicamentoso, bem como por sua constante supervisão, o que implica no desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que até então não faziam parte do seu cotidiano. Destaca-se, então, o desafio concreto de manipulação de tecnologias com as quais os cuidadores não tinham nenhuma familiaridade, assim como a necessidade de incorporá-lo ao cotidiano de vida da criança. Nesse sentido, não só a inserção mostra-se importante, mas principalmente a transformação dessa tecnologia em algo que faça parte do dia-a-dia da criança, com o menor nível de estranhamento possível. Compreende-se que o uso contínuo de medicamentos por crianças com HIV/AIDS assemelhase aquele das doenças crônicas, no qual o cuidador deve recriar o cotidiano da mesma de forma a incor- Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):332-7. • p.335 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación Cuidado medicamentoso à criança HIV soropositiva porar algo não natural como parte intrínseca do cotidiano infantil16. Além disso, as dificuldades encontradas na manipulação do frasco, nos copos-medidas e nas seringas revelam o quanto esse ainda é um desafio no cotidiano dos familiares cuidadores, que exige processos cognitivos de adaptação e de aprendizado, nem sempre adequadamente monitorados por processos pedagógicos externos ao núcleo familiar. Os participantes da quarta dinâmica do Concreto, quase em sua totalidade, também realizaram o processo de codificação dessa mesma temática. Marcos [peço que ela seja mais específica]: - Você dá quantos ml? Luzia [retoma o que estava falando]: - 10 ml, agora tô dando 10 ml. Marcos [estimula a Luzia a encenar]: - Isso aqui é uma seringa de 10 [ml]. Dimas [mostra outra seringa]: Essa é de 20 [20 ml]. Marcos [fala, então, e mostra o instrumental]: - Essa [seringa] aqui é de vinte [ml], essa aqui é de dez [ml]. Dimas [comenta a sua experiência]: - Eu dou na [seringa] de 20 [ml]. Que ela [C] toma 19 ml de [AZT][...] Como é que você aspira [Dimas faz essa pergunta para a Luzia]. Luzia: - E a dela também. Eu não me lembro, agora. Tem a outra [seringa] na bolsa, uma azul. Eu vou pegar. [Ela sai e vai na sala das crianças pegar na bolsa a sua seringa que vem com o medicamento] Essa temática nos sensibiliza para perceber e valorizar demandas que, normalmente, não são verbalizadas pelos familiares cuidadores, como o processo de realizar o cuidado medicamentoso com o mesmo tipo de aparelho. Os motivos pelos quais os responsáveis pela realização do cuidado medicamentoso não expõem essas situações, ao interagir com o profissional de saúde, estão relacionados à dificuldade de demonstrarem que possuem limitações de conhecimentos matemáticos e gerais, especialmente frente à figura do médico, que possui a representação do saber17-19. Essa familiar cuidadora expõe uma demanda não só de aprendizagem acerca do fármaco e das tecnologias utilizadas, mas de se sentirem seguras e confortáveis frente a artefatos tecnológicos com os quais são obrigadas a conviver devido à soropositividade da criança20. Nesse contexto, ela necessita se aproximar dessa nova realidade, apreendê-la, senti-la, familiarizar-se com ela e, assim, desmitologizá-la3. Vale ressaltar que a proposta de uma educação dialógica em saúde é um caminho alternativo de aproximação entre profissionais e clientes/familiares com vistas à superação de obstáculos próprios dessas vivências. Assim, o enfermeiro ocupa uma posição privilegiada na equipe de saúde, por sua proximidade p.336 • Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):332-7. do cliente e competências profissionais para exercer a função de educador – um agente de mudanças21-23. CONCLUSÃO P ara enfrentarem os desafios expostos, os participantes baseiam-se em dois princípios fundamentais para desenvolver o tratamento com antirretrovirais no cotidiano de cuidado à criança HIV/AIDS como um fenômeno existencial: o da enfermagem fundamental e o da farmacologia. Na adoção de princípios na administração de medicamentos, pertencentes à esfera do cuidado de enfermagem fundamental, os familiares utilizam tecnologias de formas nem sempre adequadas, que interferem nas dosagens. Além disso, retiram os rótulos dos fármacos, gerando risco de troca e de erros relacionados à administração. Simultaneamente, em função do ocultamento, apropriam-se de processos metafóricos para dialogar com os pares e manter a criança fora desse diálogo, quando, por exemplo, substituem o nome de um antirretroviral por vitamina. Observa-se, ainda, que a discursividade dos indivíduos apresenta-se fortemente marcada pela paráfrase, ou seja, caracteriza-se por um constante retorno ao já dito (esconder o estado de soropositividade e a ressignificação da dose em volume, por exemplo) para produzir sentido no ambiente coletivo da dinâmica. Ao mesmo tempo, observa-se completa ausência de fenômenos polissêmicos em seu dizer, possivelmente em função da hegemonia parafrásica, o que tende a impedir a ocorrência de deslocamentos, rupturas e a emergência da multiplicidade de sentidos no discurso, situação esta que possui sua raiz no silenciamento e no ocultamento da condição soropositiva. Quanto aos demais aspectos apresentados, observa-se coerência entre o comportamento descrito e uma marca discursiva comum aos diferentes sujeitos. Dessa maneira, compreenderam-se as características individuais, o processo de ressignificação, a educação em saúde e a familiaridade com a tecnologia utilizada no cuidado medicamentoso como questões decisivas para que os princípios da matemática fossem seguidos na cotidianidade desses familiares cuidadores e de suas crianças. A formação discursiva dos familiares cuidadores explicitou a maneira como o princípio da matemática é inserido em sua cotidianidade. Em que pese a importância dessa questão na adesão à terapia antirretroviral e o alerta com relação à resistência viral e o insucesso terapêutico, o cuidado medicamentoso apresentou-se mediado por ressignificações que interferiram diretamente na terapêutica instituída. A dose ressignificada em volume associada às características do grupo e as dificuldades encontradas na manipulação da tecnologia em saúde conformam um cotidiano em que a não adesão parece se apresentar como uma consequência. Recebido em: 13.10.2008 - Aprovado em: 27.04.2009 Artigo de Pesquisa Original Research Artículo de Investigación Destaca-se, ainda, a proposição de uma educação dialógica em saúde como alternativa para a resolução de problemas, como os que se apresentaram nessas situações existenciais. Nesse cenário, o enfermeiro desempenha um papel relevante em decorrência de sua relação de proximidade com a clientela e de sua formação profissional como um agente educador, de per si. REFERÊNCIAS 1. Gomes AMT. Silêncio, silenciamento e ocultamento na terapia antirretroviral: desvelando o discurso de cuidadores de criança [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2005. 2. Cabral IE. Aliança de saberes no cuidado e estimulação da criança-bebê: concepções de estudantes e mães no espaço acadêmico de enfermagem [tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1997. 3. Freire P. Conscientização: teoria e prática de libertação. São Paulo: Moraes; 1980. 4. Pêcheux M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas(SP): Unicamp; 1997. 5. Orlandi EP. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas(SP): Pontes; 2001. 6. Freire P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP; 2000. 7. Sano PY, Masotti RR, Santos Antonio AC, Cordeiro, JA. A avaliação do nível de compreensão da prescrição pediátrica. J Pediatr. 2002; 78 (2): 140-45. 8. Acúrcio FA, Guimarães MDC. Utilização de medicamentos por indivíduos HIV positivos: abordagem qualitativa. Rev Saúde Pública. 1999; 33: 73-84. 9. Sousa AS, Kantorski LP, Bielemman VL. A AIDS no interior da família: percepção, silêncio e segredo na convivência social. Acta sci, health sci. 2004;26(1):1-9. 10. Paiva V, Leme B, Nigro R, Caraciolo J. Lidando com a adesão: a experiência de profissionais e ativistas na cidade de São Paulo. In: Teixeira PR, Paiva V, Shimma E, organizadores. Tá difícil de engolir? Experiências de antirretroviral em São Gomes AMT, Cabral IE Paulo. São Paulo: NEPAIDS; 2000. p. 27-78. 11. Ceccato MGB, Acúrcio FA, Bonolo PF, Rocha GM, Guimarães MDC. Compreensão de informações relativas ao tratamento antirretroviral entre indivíduos infectados pelo HIV. Cad Saúde Pública. 2004; 20: 1389-97. 12. Freire P. Alfabetização e cidadania. São Paulo: Cortez; 2003. 13. Lignano JR, Greco DB, Carneiro M. Avaliação da Aderência aos antirretrovirais em pacientes com infecção pelo HIV/AIDS. Rev Saúde Pública. 2001; 35: 495-501. 14. Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2001. 15. Butter P, Pizzo MT. O concreto e o abstrato na vivência do HIV. São Paulo: Dom Bosco; 1992. 16. Souza AIJ, Silva KM, Silva M. Cuidando de famílias de crianças soropositivas no domicílio. Ciênc, Cuid Saúde. 2003; 2 (2): 177-85. 17. Almeida MCP, Mello DF, Neves LAS. O trabalho de enfermagem e sua articulação com o processo de trabalho em saúde coletiva-rede básica de saúde em Ribeirão Preto. Rev Bras Enferm. 1991;44(2/3):64-75. 18. Schraiber LB. Liberdade, o pressuposto do trabalho. In: Schraiber LB. O médico e o seu trabalho. São Paulo: Hucitec; 1993. p. 147-67. 19. Lunardi Filho WD. O mito da subalternidade do trabalho da enfermagem à medicina. Florianópolis (SC): UFSC; 2000. 20. Scahurich D, Medeiros HMF, Motta MGC. Vulnerabilidade no viver de crianças com Aids. Rev enferm UERJ. 2007; 15: 284-90. 21. Marta CB, Francisco MTR, Martins ER, Clós AC. A prevenção da Aids entre estudantes ao iniciar o curso de graduação em enfermagem. Rev enferm UERJ. 2008; 16: 557-61. 22. Acioli S, Heringer A, Oliveira DC, Gomes AMT, Costa TL, Formozo AF. Produção científica sobre a prática do enfermeiro frente à Aids na atenção básica. Rev enferm UERJ. 2007; 15: 400-405. 23. Oliveira DC, Costa TL, Gomes AMT, Acioli S, Formozo GA, Heringer A et al. Análise da produção de conhecimento sobre o HIV/AIDS em resumos de artigos em periódicos brasileiros de enfermagem, no período de 1980 a 2005. Texto contexto - enferm. 2006; 15: 654-62. Rev. enferm. UERJ, Rio de Janeiro, 2009 jul/set; 17(3):332-7. • p.337