EZLN E MÉXICO NO LIMIAR DO SÉCULO XXI: UM ESTUDO APARTIR DAS
DECLARAÇÕES DA SELVA LACANDONA E OUTROS TEXTOS.
Diego Marques Pereira dos Anjos ∗.
Resumo
Os objetivos da presente proposta de comunicação é apresentar os elementos fundamentais
contidos em nossa proposta de projeto de pesquisa recentemente aprovado no programa de
mestrado em Ciências Sociais Unesp/Marília. Na ocasião escolhemos como tema a produção
textual do Exército Zapatista de Libertação Nacional, movimento social originado no estado
de Chiapas, sudeste Mexicano. O problema central que levantamos é saber se há a existência
de uma concepção de utopia nessa produção textual e, caso exista, se esta aponta para a
emergência de uma utopia concreta, tal como vislumbramos nas considerações teóricas de
Ernst Bloch. Para concretizarmos tal objetivo lançaremos mão uma teoria interpretativa das
transformações nas sociedades capitalistas para se compreender as determinações que agiram
na emergência desse movimento social, tal contribuição foi dada, sobretudo, com as
interpretações de David Harvey sobre a ascensão do regime de acumulação flexível. Tendo
esses objetivos em mente a proposta dessa comunicação é apresentar nossa base teóricometodológica e os procedimentos técnicos para a viabilização e execução desse projeto.
Palavras-chave: EZLN; regime de acumulação flexível; utopia concreta.
1. INTRODUÇÃO
O tema que pretendemos desenvolver é o significado da produção textual do Exército
Zapatista de Libertação Nacional no interior das transformações na sociedade mexicana. O
nosso objetivo é compreender se os escritos do EZLN 1 manifestam a existência de um
fenômeno social que aqui consideraremos como utopia concreta. Nossa hipótese central é a
de que a emergência de um novo regime de acumulação provocou transformações nas
relações de classe na sociedade mexicana estimulando o surgimento de movimentos sociais
mesmo nas regiões mais isoladas do México; e nesse sentido, cabe à pesquisa sociológica, no
qual se baseia o projeto de pesquisa, descobrir o significado da emergência do EZLN e sua
relação com as transformações na sociedade mexicana.
Reconhece-se como neozapatista as comunidades indígenas, principalmente os
Tzotziles, os Choles, os Tojolabales e os Tzeltales que habitam o estado de Chiapas, sudeste
mexicano. No dia 1º de janeiro de 1994 essas comunidades indígenas ganharam visibilidade
internacional com a tentativa de controlar uma das principais cidades do estado de Chiapas,
San Cristóbal de Las Casas; a feição mais conhecida dessas comunidades é o grupo EZLN, e
∗
Graduando em Ciências Sociais/UFG. Email: [email protected]
Segundo Figueiredo “apenas nos sete primeiros meses de 1994 foram publicados 107 textos” (FIGUEIREDO,
2003, p. 197), articulados esses textos revelam uma nova e original visão crítica sobre a sociedade
contemporânea (HILSENBECK, 2007; FIGUEIREDO, 2007).
1
2
que tem como porta-voz o personagem intitulado Subcomandante Marcos 2. Diante de vasto e
rico material textual pouco explorado optamos pela utilização de um termo aparentemente
ambíguo no interior das ciências humanas, o conceito de utopia. As possibilidades de
desenvolvermos tal pesquisa, a partir do conceito escolhido, resultam do pressuposto de que
as ideias e representações culturais são integrantes indiscutíveis dos desdobramentos na
sociedade capitalista, concepção um tanto clara desde que Marx demonstrou que os
pensamentos da classe dominante são os pensamentos dominantes (MARX, 2007).
Para nós isto significa que, apesar dos perigos que essa proposta pode apresentar,
optamos por tal conceito numa perspectiva diferenciada, que pretende compreender seu objeto
de pesquisa nas múltiplas determinações que resultam na realidade histórica e social (MARX,
1983), assim, acreditamos que a utilização do conceito de utopia na perspectiva do
materialismo histórico e dialético permite realizarmos uma análise crítica, interna e externa,
do objeto de estudo deste presente projeto de pesquisa. Crítica interna no sentido de
compreender as formas de expressão e o significado da práxis política e social experimentadas
pelo EZLN, cujo reflexo se encontra numa vasta produção textual; e crítica externa porque
pretende compreender as transformações sociais na sociedade mexicana que possibilitaram
sua emergência. Abaixo, elencamos as principais interpretações que podem contribuir teórica
e metodologicamente para o desenvolvimento do presente projeto de pesquisa.
Na perspectiva que assumimos uma das principais contribuições ao debate sobre o
conceito de utopia foi dada por Miguel Abensour ao demonstrar que é problemática a
interpretação, no interior do marxismo, da existência da oposição entre ciência e utopia que
teria sido efetuada por Marx e Engels na crítica aos socialistas utópicos. Desta forma Miguel
Abensour propõe que para se compreender a crítica de Marx e Engels aos socialistas utópicos
seja necessário primeiramente localizarmos os principais textos onde esses autores tratam da
questão da utopia 3. Por outro lado, Abensour propõe que se deva compreender o
relacionamento sistemático da crítica marxiana à utopia com a integralidade da teoria de Marx
e, portanto, “com o ponto de vista que a funda: o comunismo” (ABENSOUR, 1990, p. 15).
2
Utilizamos o termo personagem para nos referir ao subcomandante Marcos dado o caráter enigmático de sua
figura: reconhece-se que Marcos não é indígena, nem tampouco esse é o seu verdadeiro nome. Segundo o
governo Mexicano sua identidade é Rafael Sebastián Guillén Vicente, o que nunca foi conprovado.
3
Segundo Abensour as principais obras de Marx são: Miséria da Filosofia, Crítica da filosofia do direito de
Hegel, A questão Judia, Carta-porgrama a Ruge, A Ideologia Alemã. E de Engels as principais obras são Os
princípios do Comunismo e Os verdadeiros socialistas (ABENSOUR, 1985, p. 15-16).
3
Abensour chega à conclusão de que o eixo fundamental da crítica de Marx e Engels se
localiza então na diferenciação entre revolução parcial e revolução total, e não no eixo
ciência/utopia (ABENSOUR, 1990). Para Abensour, Marx começaria a formular a questão
dessa maneira já no escrito Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel onde Marx
afirma: “Não é a revolução radical, a emancipação que é um sonho utópico para a Alemanha,
mas antes a revolução parcial, a revolução somente política, que deixa em pé os alicerces da
casa” (MARX apud ABENSOUR, p. 21).
Poucos anos depois Marx descobre, na Miséria da filosofia, a origem dessa limitação
histórica da consciência nas próprias condições históricas e sociais da época dos utopistas,
assim se estes “improvisam sistemas e correm atrás de uma ciência regeneradora” (MARX
apud ABENSOUR, 1990, p. 21) significa que as forças produtivas da sociedade capitalista
ainda não estavam suficientemente avançadas ao ponto de possibilitar a emergência das
condições materiais para a sublevação do proletariado, mas, afirma Marx, à medida que “a
história avança, e com ela a luta do proletariado se define mais claramente, eles não precisam
procurar a ciência em seu espírito” deixando de ver na “miséria apenas miséria,
compreendendo também seu aspecto revolucionário, subversivo, que subverte a sociedade
antiga” (MARX apud ABENSOUR, p. 22) e a partir desse momento a ciência na perspectiva
do movimento histórico se torna uma ciência revolucionária. Crítica similar a feita por Marx e
Engels no capítulo do Manifesto Comunista endereçado aos socialistas utópicos (MARX &
ENGELS, 2012). Algumas décadas depois Engels parece manter a mesma posição crítica ao
reconhecer, na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico, que os socialistas
utópicos criticavam, mas não podiam explicar a existência do modo de produção capitalista
isso devido às “suas teorias incipientes” que não fazem mais “do que refletir o estado
incipiente da produção capitalista” (ENGELS, 2008, p. 60).
As considerações iniciais efetuadas por Marx e Engels serão de fundamental
importância nas primeiras décadas do século XX, servindo de rica fonte para diversos
estudiosos; essa situação sofrerá um forte impulso com os impactos sociais produzidos pela
radicalização da luta de classes no período de pré-ascensão do regime de acumulação fordista,
provocando profundas transformações na organização do trabalho, na forma do estado, nas
organizações dos trabalhadores, na produção cultural, etc. (HARVEY, 2008).
Emergindo num período de transição histórica as obras de Karl Mannheim, Ideologia
e Utopia, e Ernst Bloch, Princípio Esperança, são expressões dessa época, onde cada um, de
perspectivas diferentes, respectivamente na sociologia acadêmica e no interior do marxismo,
contribui, aqui também de forma diferenciada, para a compreensão do conceito de utopia. O
4
sociólogo Húngaro Karl Mannheim construiu algumas interpretações sobre o conceito de
utopia que o levaram a conclusões interessantes. Partindo de preocupações com a sociologia
do conhecimento Mannheim admite que para se compreender o conteúdo do conceito de
utopia se faz necessário antes compreender qual a perspectiva e pertencimento de grupo da
pessoa que fala, pois,
Os extratos sociais representantes da ordem social existente irão
experimentar como realidade a estrutura de relações de que são portadores,
ao passo que os grupos de oposição à ordem presente irão se orientar em
favor dos primeiros movimentos pela ordem social por que lutam e que, por
seu intermédio, se está realizando (MANNHEIM, 1986, p. 220).
Esse modo de proceder constitui, segundo Mannheim, um entrave à sociologia do
conhecimento na medida em que se caracteriza pela unilateralidade, absolutiza a realidade
social, tornando-a estática, daí que para Mannheim a importância de esclarecer o conceito de
utopia reside em que a mentalidade utópica evita a absolutização da realidade dada como
realidade natural, passando a compreendê-la como produção histórica e social, ou seja, “uma
realidade concreta, histórica e socialmente determinada” (MANNHEIM, 1986, p. 222).
Assim, Mannheim define o conceito de utopia como sendo “as tendências não
realizadas que representam as necessidades de tal época” (Idem, p. 223). Expressando essas
necessidades estariam determinados grupos sociais portadores de uma mentalidade utópica,
que no centro do movimento da história se encontram em incongruência com a realidade e
transcendem a situação dada. Contudo, a limitação de Mannheim está em que não consegue
demonstrar concretamente as origens históricas e sociais da mentalidade utópica, esta
limitação encontra-se em seu método, baseado na tipificação ideal das utopias, comprometido
em demonstrar que nenhum indivíduo ou grupo representa a encarnação pura de qualquer um
dos tipos de mentalidade utópica dado que “os tipos puros e estágios da mente utópica
somente constituem construções na medida em que são concebidos como tipos-ideais” (Idem,
p. 234).
Contudo, Mannheim não foi o único a articular utopia e conhecimento da realidade
social; Ernst Bloch desenvolve e aprofunda essa articulação, além disso, a novidade e a
principal contribuição de Bloch é a de ter desenvolvido esse termo na perspectiva do
materialismo histórico. Isto significa afirmar que no núcleo central de sua vasta produção
teórica encontra-se a tentativa de demonstrar que a partir da análise materialista da história e
das condições sociais conjugada com o recurso analítico utopia concreta nos é possível
compreender o real-objeto e as tendências contidas nele, para Bloch:
5
A nossa época é a primeira a possuir os pressupostos socioeconômicos para
uma teoria do ainda-não-consciente e do que está relacionado a ele no que
ainda-não-veio-a-ser do mundo. O marxismo sobretudo foi o primeiro em
proporcionar ao mundo um conceito de saber que não mais tem como
referência essencial aquilo que foi ou existiu , mas a tendência do que é
ascendente(BLOCH, 2005, p. 141).
Segundo Bloch, essa compreensão da realidade social foi aprofundada por Marx e
Engels, formulando uma crítica que teve como efeito não somente a superação das ideias dos
socialistas utópicos, mas também a formação do comunismo científico, realizando a crítica da
utopia no terreno do concreto e não a partir do idealismo (BLOCH, 2005). Para um dos
principais estudiosos do pensamento de Ernst Bloch, Arno Münster, o desenvolvimento da
teoria de Bloch aponta a relevância do conceito de utopia concreta diferenciando-se
radicalmente daquilo que alguns poderiam condenar como “futurologia” ou previsão, dado
que estes se orientam e repetem o passado, ao passo que para Bloch a ciência marxista seria
uma ciência das tendências “indicando as possibilidades de transformação imanentes ao ser
econômico, político e social” (MÜNSTER, 1993, p. 20) sendo este um ponto fundamental na
ressignificação do conceito de utopia na perspectiva do materialismo histórico, a superação do
estágio anterior é, sobretudo, uma superação teórico-prática.
Na formulação do conceito de utopia concreta Ernst Bloch lança mão de alguns outros
conceitos fundamentais procurando descobrir as bases objetivas e subjetivas do movimento
histórico e dos sujeitos ativos. Para expressar o movimento da realidade concreta Bloch se
utiliza dos conceitos de front e novum; ao passo que para expressar as atividades dos sujeitos
Bloch fala em sonho diurno e ainda-não-consciente.
Para Ernst Bloch a categoria front situa-se nos limites do desenvolvimento histórico,
sendo este determinado por uma vastidão de ramificações entre o presente, o passado
pendente e o futuro possível (2005), assim, nessa concepção de história ressalta-se a
processualidade do desenvolvimento histórico como determinação da realidade social
objetiva. Nos limites do processo histórico, no seu front, emerge o realmente possível,
situação histórica e social onde as condições para a ocorrência do novum ainda não estão
suficientemente reunidas na esfera do objeto; contudo, numa produtiva aplicação do método
dialético Bloch percebe nas próprias condições para a emergência do novum um correlato na
realidade cuja mediação, conjurada com a tendência do objeto, se faz de forma transbordante
de conteúdo antecipatório. Assim, o novum é a “novidade suficientemente mediada, ou seja,
mediada em termos dialético-materialistas, confere à fantasia utópica o seu segundo correlato,
o correlato concreto” (BLOCH, 2005, p. 195).
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Assim para Bloch se trata de demonstrar que as utopias concretas emergem na
realidade social apontando uma antecipação concreta, a realidade social que ainda não veio a
ser conforme suas possibilidades e tendências, dito isto, Bloch nos insiste que o conceito de
utopia concreta somente pode ser entendido como “órgão metódico para o novo, estado
objetivo de agregação do ascendente” (Idem, p. 157). Segundo Arno Münster o conceito de
utopia concreta tal como foi formulado e desenvolvido por Bloch busca expressar o topos da
atividade humana orientada para o futuro (1993), é nesse sentido que podemos compreender
as metáforas de Ernst Bloch sobre as “primaveras da história” como épocas de transformação
social plenas de conteúdo antecipatório (BLOCH, 2005, p.119).
Segundo a perspectiva de análise de Bloch é de fundamental importância a
compreensão da realidade social como uma totalidade de determinações, daí que Bloch
também insiste que as determinações de ordem subjetivas são fundamentais. Para expressar as
determinações subjetivas das utopias concretas Bloch lança mão dos conceitos sonhar
acordado e ainda-não-consciente. Segundo Arno Münster, Bloch define os sonhos diurnos
pela capacidade de exprimir construções imaginárias, relacionadas ao cumprimento de um
desejo, diferenciada dos sonhos noturnos, pois estes se orientam para o futuro e se privam de
envolvimento mitológico-simbólico (MÜNSTER). Para E. Bloch, as principais características
dos sonhos diurnos são o livre curso e o ego preservado na plenitude da “vontade consciente
que permanece consciente para uma vida melhor” (BLOCH, 2005, p. 92); a não limitação no
eu subjetivista, comunicando “com quem está além de si mesmo” (Idem, p. 95) e o desejo de
realização, de ir “até o fim” (Idem, p. 97).
Segundo Münster, Bloch realiza a distinção de dois pontos de instigação para a
exteriorização dos sonhos diurnos, de um lado estaria o novum expressando a irrupção de algo
na realidade objetiva que estimula os sujeitos; e por outro lado, estaria a carência, cujo
exemplo maior seria a fome “como uma incitação somática mais rápida, enquanto fator
ôntico-existencial de um impulso” (MÜNSTER, 1993, p.31).
O ainda-não-consciente é outro elemento importante nas determinações subjetivas
apontadas por Ernst Bloch. Para Bloch, a psicanálise teria focalizado sua análise considerando
o que se situa fora do campo consciente como inconsciente, e este inconsciente é tido como
algo pré-consciente, situado abaixo da consciência:
O inconsciente se situa – de acordo com essa concepção – no sedimento: ele
começa recuando a partir da consciência que vai diminuindo gradativamente.
O inconsciente é aqui, portanto, exclusivamente o não-mais-consciente
(BLOCH, 2005, p. 116).
7
Segundo E. Bloch se partirmos da perspectiva do materialismo histórico o mundo não
pode ser visto como um sistema fechado ou um processo acabado, mas sim possuindo um
horizonte aberto e cheio de possibilidades ainda-não realizadas, pois a autenticidade do
mundo e dos seres humanos ainda não teriam sido conquistadas, ou desenvolvidas em sua
máxima plenitude; aqui, as limitações históricas e sociais aparecem também como limitações
da consciência, daí que emerge as contradições entre o consciente e o que se encontra ainda
não- consciente, e nesse sentido o ainda-não-consciente emerge não como pré-consciência,
mas expressando-se com um conteúdo radicalmente diferente, “como um novo tipo de
consciência que nada tem a ver com a concepção freudiana do inconsciente que se refere às
profundezas da psique humana, a uma paisagem lunática das perdas cerebrais” (MÜNSTER,
1993, p. 32), isto significa que se trata de um espaço de adaptação e de produção do novo: “O
ainda-não-consciente em seu conjunto é a representação psíquica do que ainda não veio a ser
num determinado tempo e seu mundo, no front desse mundo” (BLOCH, 2005, p. 127).
É devido ao objetivo de tentar compreender a dinâmica das utopias nos conflitos
sociais que nos é útil as considerações de Ernst Bloch a respeito das utopias concretas;
percebendo a complexidade das utopias Bloch desenvolve uma metodologia de estudo das
utopias sociais a partir das próprias utopias, na sua forma mais desenvolvida, as utopias
concretas, assim, a partir dos estudos de E. Bloch temos em mão um referencial teórico e
suporte metodológico que pretende dá conta de analisar o fenômeno das utopias sociais
através de sua inserção na realidade social:
A fantasia concreta e o imaginário de suas antecipações mediadas estão eles
mesmo fermentando no processo do real e se refletem no sonho para a frente
concreto. Elementos antecipatórios são um componente da própria realidade.
Portanto, o desejo de utopia pode ser perfeitamente ligado à tendência
objetal e nela se confirma e se sente em casa (BLOCH, 2005, p. 196).
O que estes apontamentos iniciais nos indicam para a resolução da problemática
envolvida nesse projeto de pesquisa? Sendo a categoria utopia concreta, na perspectiva do
materialismo histórico, um recurso conceitual que permite ao analista descobrir a relação de
determinado sujeito social com o seu tempo, e que antecipa concretamente uma realidade
social em formação, ela nos impulsiona a descobrir as determinações históricas e sociais em
que esse fenômeno social acontece; nesse sentido, esse presente projeto de pesquisa também
tem como objetivo compreender as transformações econômicas, sociais e políticas que
ocorreram no México nas últimas décadas e sua relação com a emergência do EZLN.
A compreensão do nosso objeto de investigação remete necessariamente à análise do
amplo quadro de mudanças estruturais caracterizados, fundamentalmente, pela consolidação
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de um “regime de acumulação flexível” acompanhado de um Estado Neoliberal que o torna
regular e, também, nas ações de empresas transnacionais sob uma nova forma de
imperialismo, via instituições internacionais tais como o FMI e o Banco Mundial
(CHOSSUDOVSKY, 1999; FERNANDEZ & RAMOS, 2001). Nesse sentido, uma discussão
teórica acerca da acumulação flexível, do neoliberalismo e do novo imperialismo se faz
necessária. Assim sendo, as discussões realizadas por David Harvey sobre a acumulação
flexível (2008), sobre o neoliberalismo (2008a) e sobre o novo imperialismo (2011) assumem
grande importância nesse estudo.
De acordo com Harvey (2008), o regime de acumulação flexível é fruto da resposta
capitalista à crise do final da década de 1960 e início da década de 1970 provocada pela
tendência declinante da taxa de lucro e marcada pela radicalização das lutas estudantis e
operárias. Com a contínua queda na taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970, o
capitalismo precisou encontrar soluções para a crise e isso levou ao engendramento de um
novo regime de acumulação marcado, tanto pelo aumento da exploração nos países
imperialistas e nos países subordinados, quanto na junção e aumento da extração de maisvalor relativo e mais-valor absoluto.
Essa busca pelo aumento da taxa de exploração ficará conhecida como “reestruturação
produtiva” e terá no sistema Toyota a forma como o capitalismo se organizará para extrair
mais-valor na contemporaneidade. A constituição do regime de acumulação flexível visando
combater a tendência declinante da taxa de lucro entre as décadas de 1960 e 1970 vem
acompanhada pela substituição do Estado do Bem-Estar Social pelo Estado Neoliberal que
terá a função de criar as condições institucionais necessárias para ampliar a acumulação de
capital via (novo) imperialismo e seu “braço direito”, o neoliberalismo (HARVEY, 2008,
2011).
Para que a reestruturação produtiva (toyotismo) seja efetivada é preciso que um amplo
processo de mudanças seja colocado em prática no campo das relações de trabalho, marcado
pela corrosão dos direitos trabalhistas, pela flexibilidade no sistema produtivo que veio a
provocar uma imensa precarização e intensificação do trabalho e um processo crescente de
exclusão social via aumento do desemprego e, consequentemente, da pobreza em escala
mundial (HARVEY, 2008).
O Estado neoliberal acaba por se apresentar como um complemento de toda essa
mudança estrutural atuando no campo da regularização dessas novas relações sociais,
necessárias à efetivação da acumulação flexível de capital. Nesse sentido, ele é marcado por
uma enorme contenção dos gastos públicos em políticas sociais em geral e por uma onda
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avassaladora de privatização de empresas públicas. Uma das consequências sociais diretas e
inevitáveis da promoção do Estado neoliberal é, sem sombra de dúvidas, o aumento do
desemprego, da pobreza e das tensões sociais derivadas dos constantes cortes nas políticas de
assistências sociais, da privatização de empresas públicas acompanhada de demissões em
massa, da diminuição drástica da oferta de empregos, da miséria, da fome e da opressão em
geral (FORRESTER, 1997; PASSET, 2002). Conforme sintetiza Harvey, o neoliberalismo
“acentuou que o papel do governo é criar um clima de negócios favorável e não cuidar das
necessidades e do bem-estar da população em geral” (2008a, p. 58). Dessa forma, segundo
Antunes & Pochmann, o estado neoliberal e a reestruturação produtiva fazem proliferar
distintas formas de flexibilização:
Salarial, de horário, funcional ou organizativa, entre outros exemplos. Desse modo,
a flexibilização pode ser entendida como “liberdade da empresa”: para desempregar
trabalhadores, sem penalidades, quando a produção e a venda diminuem; para
reduzir o horário de trabalho ou para recorrer a mais horas de trabalho; para ter a
possibilidade de pagar salários reais mais baixos do que a paridade de trabalho
exige; para poder subdividir a jornada de trabalho em dias ou semanas segundo as
conveniências das empresas, mudando os horários e as características do trabalho
(por turno, por escala, em tempo parcial, horário flexível etc.), entre outras tantas
formas de precarização da força de trabalho (Antunes & Pochmann 2007, p. 202).
Outra discussão de suma importância para esse projeto refere-se às relações entre os
países do “Primeiro Mundo” e os países do “Terceiro Mundo”, pois as mudanças no mundo
do trabalho em países da periferia do capitalismo, tal como é o caso Mexicano, remete às
discussões sobre o (novo) imperialismo, uma vez que coube a esse expandir para vastas
regiões do globo a dinâmica da acumulação flexível e suas consequências sociais. Portanto,
para se manter, o novo regime de acumulação necessita aumentar a exploração no bloco
subordinado, que a partir da queda da União Soviética se amplia com os países do leste
europeu, mas também no bloco imperialista, o que Harvey define como “acumulação via
espoliação” (HARVEY, 2011, p.129).
Tal perspectiva nos parece ser produtiva para se compreender a realidade social de
Chiapas, e da classe que sustenta o modo de produção capitalista nessa região, o campesinato.
Dada a forma específica de acumulação capitalista em Chiapas alguns analistas vêm
apontando um processo de proletarização dos camponeses de Chiapas, debate que expomos
no artigo Exército Zapatista de Libertação Nacional e campesinato chiapaneco (2012). Desta
forma um dos objetivos desse presente projeto de pesquisa é investigar a possibilidade de se
compreender tal processo de proletarização a partir da emergência do regime de acumulação
flexível no México, que reorganizando as relações sociais internas opta pela flexibilização
produtiva (FIGUEIREDO, 2003), concentração de terras (CASANOVA, 1996; ARELLANO,
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2002) reforma nos direitos sociais conquistados na revolução de 1910 (HILSENECK, 2007),
reforma fiscal (MUÑOZ, 2002) desemprego em massa, privatização de empresas estatais
(HILSENBECK, 2007) aumento da pobreza (DI FELICE e MUÑOZ, 1998) penalização dos
movimentos sociais (MONTEMAYOR, 1998; GENNARI, 2002) abertura da economia
nacional aos investimentos do capital financeiro transnacional (MORFÍN, 2000;
CHRISTLIEB, 2003), enfim, a produção social da deteriorização das condições de vida das
comunidades de camponeses indígenas da região de Chiapas.
2. OBJETIVOS
Nossa hipótese é de que a produção textual do EZLN é reflexo das transformações nas
relações de classe na sociedade mexicana, estimulando a ação política e social de
comunidades de camponeses em processo de proletarização, assim estabelecido, os nossos
objetivos são:
Geral:
Compreender se há a manifestação de representações utópicas na produção textual do EZLN,
e caso haja tal manifestação, se esta aponta para a formulação de uma utopia concreta.
Específico:
Analisar e reconstituir as recentes transformações na sociedade mexicana a partir da
emergência do regime de acumulação flexível;
Analisar a acumulação específica de capital no estado de Chiapas;
Compreender o processo de proletarização do campesinato chiapaneco.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O EZLN possui uma vastíssima produção textual, fazendo da comunicação um dos
principais eixos de ação desse movimento social, característica analisada por diversos
estudiosos (BISCO & LINO, 2012; DI FELICE, 2002; HILSENBECK, 2012a;
HILSENBECK & CABRAL, 2012b; FIGUEIREDO, 2007). Ora, essa rica fonte pode se
transformar numa armadilha caso não seja metodologicamente compreendida. Assim, levantase a questão: como ordenar nosso material informativo? Se numa perspectiva interdisciplinar,
proposta pelo presente projeto, tomamos como contribuição a periodização da história, como
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forma de se compreender as especificidades de cada tempo histórico, feita pelos historiadores
que analisam o EZLN compreenderemos algumas alterações na ação do EZLN e que podem
contribuir para a ordenação de nosso material informativo. Para o historiador Aguirre Rojas o
EZLN passou por três fases, a do fogo, que vai de 1983 até 20 de Janeiro de 1994 quando
decidem pelo cessar-fogo com o governo Mexicano; a segunda fase que vai de 1994 até 2005,
chamada de fase da palavra, e a atual, coordenada pelo projeto La Outra Campaña (ROJAS,
2012, p. 1).
Nesse sentido, delimitamos nosso material de análise a partir dos textos produzidos
durante a denominada “fase da palavra”, e, não coincidentemente, os principais textos do
EZLN, as Declarações da Selva Lacandona foram escritas nesse período, apresentando a
partir de comunicados as ações e os princípios básicos do EZLN. Nosso material empírico
encontra-se, sobretudo, no compêndio realizado por Emílio Gennari “Seleção de textos e
comunicados do Exército Zapatista de Libertação Nacional 1994 – 1998 e 1999 – 2005”;
material suplementar se encontra na publicação “Documentos y Comunicados” (1995)
realizada pelas próprias comunidades indígenas, além de outras publicações realizadas no
Brasil como o trabalho de Di Felice e Cristóbal Muñoz, A revolução invencível: cartas e
comunicados (1998). Por se tratar de compilações, isto é, seleção e reunião de textos, tal
material reúne os principais textos produzidos pelo EZLN, destacada em diferentes estudos
acadêmicos, portanto, os textos reunidos nessas compilações satisfazem os objetivos
estabelecidos neste projeto de pesquisa.
Para realizarmos esta operação pretendemos considerar metodologicamente nossas
fontes tendo por base as contribuições da análise de discurso; assim, nosso objetivo será o de
realizar uma sociologia do discurso. Segundo Bardin (1985) a contribuição fundamental desta
metodologia consiste em descobrir o espaço social, o lugar social em que os discursos são
referidos. Tendo por referência descobrir “as conexões que possam existir entre o exterior e o
discurso, entre as relações de força e as relações de sentido, entre as condições de produção e
os processos de produção” (BARDIN, 1995, p. 215) a análise do discurso pode nos oferecer
importantes recursos metodológicos a fim podermos realizar a relação entre a situação e o
contexto sócio-histórico do México e, especificamente, da região de Chiapas com a produção
textual que é o material informativo fundamental de nossa pesquisa.
Para tanto contamos, além do recurso heurístico regime de acumulação flexível, tal
como formulado por Harvey (2008), com diversas análises sobre as transformações no
México contemporâneo em relação com a situação na região de Chiapas, os principais estudos
se encontram nos livros Chiapas: construindo a esperança, de Ariovaldo Umbelino e
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Alejandro e Arellano; As raízes do fenômeno Chiapas: o já basta da resistência zapatista,
também de Arellano; VOTÁN-ZAPATA: A marcha indígena e a sublevação temporária, de
Marco Brice e Di Felice, o estudo de Gennari sobre a conjuntura do México e da região de
Chiapas em fins do século XX, Chiapas: as comunidades zapatistas reescrevem a história,
entre outras obras.
REFERÊNCIAS
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Estácio de Sá – Ciências Humanas. Revista da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESESGo.Vol. 02, nº 06, 45-57, Jul. 2011/Dez. 2011.
ANTUNES, Ricardo; POCHMANN, Marcio. A desconstrução do trabalho e a explosão do
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2007.
ARELLANO, Alejandro; OLIVEIRA, Ariovaldo. Chiapas: construindo a esperança. São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
ARELLANO, Alejandro. As raízes do fenômeno Chiapas: o já basta da resistência zapatista.
São Paulo: editora Alfarrabio, 2002.
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EZLN E MÉXICO NO LIMIAR DO SÉCULO XXI: UM ESTUDO