PARA ALÉM DE PROTOCOLOS: UM ESTUDO DE CASO A
PARTIR DA EXPERIÊNCIA NO PRONTO SOCORRO MUNICIPAL DE
ANGRA DOS REIS
INSTITUCIÓN:
Prefeitura Municipal de Angra dos Reis
Estado do Rio de Janeiro – Brasil
ÁREA TEÓRICO/PRÁCTICO: Trabajo Social
EJE: Lógicas colectivas: Grupos, Derechos Humanos, conciencia crítica y potencias inventivas
AUTORES:
Fernanda Silva de Sena
[email protected]
Brasil
Giselle Soares Azevedo
[email protected]
Brasil
Patrícia Ferrás Araújo da Silva
[email protected]
Brasil
Septiembre, 2010.
A loucura sempre acompanhou o homem em sua evolução, fazendo parte também da
história da exclusão social, vivenciada por grande parte dos sujeitos, sejam eles loucos ou nem
tanto, porém situados à margem dos sistemas dominantes de uma determinada sociedade. Cabe
ressaltar que a psiquiatria é, por essência, social. Sua história ilustra sempre as relações da
loucura com a sociedade. Ela é da mesma forma e ao mesmo tempo, o espaço no qual a loucura é
um drama e uma aventura individuais (KARAVOKYROS, 1997 apud CAVALCANTI, 2001).
Bravo e Mattos (2006) destacam que na década de 80 no Brasil foi o período de grande
mobilização política, além do agravamento da crise econômica que se originou na ditadura
militar, numa conjuntura onde os movimentos sociais se apresentam de forma significativa na
saúde coletiva. Em 1986, aconteceu a 8ª Conferencia Nacional de Saúde, que é o marco histórico
mais importante na trajetória da política pública de saúde neste país, assim como, posteriormente
a promulgação da Constituição Federal de 1988, que destaca reconhecimento do sujeito enquanto
cidadão de direitos, com garantias previstas em lei1.
Nesse período de efervecência política foi gestada a Reforma Psiquiátrica 2 que se
constitui em uma das conquistas consequentes da Reforma Sanitária, da qual é contemporânea,
porém com características distintas ao longo de suas trajetórias. Como um movimento, a
Reforma Psiquiátrica é um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e
sociais em torno do “louco” e da “loucura”, mas especialmente em torno de políticas públicas
para lidar com a questão, adquirindo princípios e diretrizes que orientam a Política de Saúde, em
especial a universalidade, integralidade, descentralização e participação popular (Ministério da
Saúde, 2007).
Integralidade3 e a Intersetorialidade4: reflexões a partir do caso M.
1
Conforme o Art. 196, CF: “A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
2
Ocorreu a partir do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental – MTSM – que, no bojo dos movimentos
sociais, denunciavam o modelo de assistência psiquiátrica vigente no país, no contexto do final dos anos 70, após
um longo período de repressão em virtude da ditadura militar.
3
Mattos (2004) caracteriza a integralidade como a apreensão ampliada das necessidades, mas principalmente
habilidade de reconhecer a adequação de nossas ofertas ao contexto específico da situação no qual se dá o encontro
do sujeito com a equipe de saúde.
4
A intersetorialidade é: "articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações para
alcançar efeito sinérgico em situações complexas visando o desenvolvimento social, superando a exclusão social"
(JUNQUEIRA & INOJOSA, 1997 apud JUNQUEIRA, 1997).
M. é paciente do CAPS II5 há aproximadamente 8 anos. Reside com o filho de 7 anos e a
mãe idosa, que é acamada e completamente dependende. Não possui família em Angra dos Reis,
tendo vindo do Nordeste diretamente para o município. Faz tratamento ambulatorial,
comparecendo ao CAPS mensalmente para acompanhamento e entrega de medicação, sendo
independente e bastante ativa, já que sua casa depende essencialmente de sua presença para a
realização de atividades diárias.
Após enchente que assolou a região, M. que residia em um determinado bairro e já havia
estabelecido vínculos com a vizinhança, teve sua casa devastada e ao receber moradia da
prefeitura teve que se mudar para outro bairro, ficando distante da rede que ora estabelecera, o
que acarretou mudanças importantes em sua vida. Ainda assim mantinha alguns contatos, pois
inclusive uma dessas antigas vizinhas tornara-se madrinha de seu filho. Ao entrar em crise, M.
foi encaminhada ao Pronto Socorro Municipal (PS), apresentando dentre outros sintomas,
tremores involuntários que a impediam até mesmo de ficar em pé. Na mesma ocasião, a mãe
idosa também foi levada, apresentando problemas clínicos que logo se solucionaram, resultando
em sua alta bem antes de qualquer previsão de alta para M. Em atendimento, M. relata profunda
preocupação, tanto com seu filho quanto com sua mãe, sem saber ao certo o que aconteceria com
os dois diante de sua inevitável ausência. Diante dos protocolos a serem observados em casos
como este, logo foi acionado pela equipe do PS o Conselho Tutelar e o CREAS6, o que
acarretaria de antemão o abrigamento tanto de seu filho, quanto de sua mãe, ações estas que
poderiam ter repercussões importantes na recuperação de M..
Algumas antigas vizinhas, do bairro onde residia, ao saberem do ocorrido, se
mobilizaram e estiveram no PS para visitá-la e saber de que forma poderiam ajudar. A esta
altura, o filho de M. já estava com a “madrinha” porém todos tinham muitas dúvidas quanto à
legalidade do envolvimento, já que a situação envolvia uma criança e uma idosa. A todo
momento, demonstravam a preocupação em separar esta família, relatando que a vida de M. era
cuidar da mãe e filho e que sem estes ela não teria razão de existir, de acordo com a fala dela
mesma. No decorrer do caso, a questão que se coloca é que a mãe de M. já estava de alta
hospitalar há alguns dias e em se tratando de uma unidade de alta complexidade para
atendimento de emergências, uma pessoa de alta não poderia permanecer internada apenas pelo
fato de não ter para onde ir.
5
6
Centro de Atenção Psicossocial II.
Centro de Referência Especializado em Assistência Social
Apesar de todas as dificuldades, M. a todo momento expressa tranquilidade em saber que
seu filho está com a madrinha, dizendo o quanto confia e tem certeza de que está bem cuidado,
entretanto em relação ao destino da mãe mostra-se extremante preocupada, sentindo-se inclusive
culpada por tê-la “colocado nessa situação”, pois acredita ser sua “obrigação cuidar dela”, o que
já vem fazendo há muitos anos. A partir da interface entre a Saúde Mental e o PS foi possível
refletir acerca da situação para além dos protocolos7, no sentido da integralidade, propondo ações
intersetoriais e contínuas, com um trabalho em conjunto, identificando e estabelecendo contatos
com as redes em potencial, construindo soluções com base em estratégias que privilegiassem a
não dissolução da família frente à situação adversa. Na direção de um trabalho interdisciplinar,
entendendo que saúde não é apenas ausência de doença e possui componentes biopsicossociais,
não bastava “tratar” M. desconsiderando as questões sociais evidentes, já que para estas não
havia remédio prescrito.
O trabalho envolveu além da equipe do PS, o CAPS II, CREAS, Conselho Tutelar, Posto
de Saúde, Associação de Moradores, Secretaria de Ação Social e a comunidade. O desafio
consistia na garantia dos direitos sociais, observando porém a necessidade de manutenção dos
vínculos familiares, que seriam rompidos em virtude do abrigamento quase inevitável. Um dos
princípios fundamentais foi construir as alternativas com M. e não para, pois desta forma ela
pôde se colocar e participar do processo. As vizinhas foram encaminhadas ao Grupo de Família
no CAPS II, onde a equipe de Saúde Mental se colocou como parceira, informando acerca do
tratamento e principalmente esclarecendo quanto às responsabilidades legais, pois as mesmas
temiam que ao se envolver pudessem ser penalizadas por algum motivo.
A princípio algumas equipes questionavam: se M. não tinha condições de cuidar dela
mesma, como poderia tomar conta da mãe e do filho? Esta seria uma tarefa árdua para a equipe
de Saúde Mental, em desmistificar a crise e ressaltar que apesar desse momento muito específico
de fragilidade, M. era completamente capaz de gerir a própria vida. Por fim, a vizinhança se
organizou e em acordo com M. alugou uma casa provisória para que voltassem a morar próximo,
possibilitando que fosse dada a assistência necessária. Em contato com o Posto de Saúde local,
7
Nesse sentido: “(...) não se trata de simplesmente desenvolver protocolos ou rotinas capazes de identificar e
oferecer ações preventivas não demandadas diretamente pelas pessoas que procuram os serviços de saúde. Há que se
compreender o contexto específico de cada encontro entre membros da equipe de saúde e as pessoas. Há que se
adotar uma postura que identifica a partir do conhecimento técnico as necessidades de prevenção e as assistenciais, e
que seleciona as intervenções a serem ofertadas no contexto de cada encontro” (MATTOS, 2004).
eles se comprometeram em acompanhar de perto a família, principalmente a idosa que dependia
de cuidados clínicos diários.
Vale ressaltar que diante da condução do caso, M. que ora havia sido internada por
problemas psiquiátricos, foi acompanhada integralmente no PS, evitando assim sua internação
em hospital psiquiátrico, podendo se recuperar da crise sem necessariamente acessar este
dispositivo. Fazendo valer a premissa da Lei 10.216 de 2001, conhecida como lei da Reforma
Psiquiátrica, onde a internação psiquiátrica só será indicada no esgotamento de todos os recursos
disponíveis, e o caso descrito nos promove esta reflexão, ao sinalizar que os recursos precisam
ser acionados e acima de tudo estimulados em prol dos direitos humanos e de cidadania.
Pudemos vivenciar com este caso que é possível trabalhar em consonância com os princípios da
Reforma Psiquiátrica, reconhecendo a complexidade das questões mas fundamentalmente a
existência e importância de diferentes atores, que podem contribuir no processo de recuperação e
autonomia dos sujeitos. Os desafios ainda são muitos, pois verificamos a necessidade de
sensibilização, inclusive dos profissionais, para a superação de práticas conservadoras que ainda
permeiam os serviços, numa rigidez que não reconhece a subjetividade e, por conseguinte,
engessa as possibilidades de ação, com atitudes de medicalizantes e até mesmo punitivas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde/DAPE. Saúde Mental no SUS:
acesso ao tratamento e mudança de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília: MS,
2007.
_______. Secretaria de Atenção à Saúde/DAPE. Saúde Mental no SUS: os centros de atenção
psicossocial. Brasília: MS, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
_______. Congresso Nacional. Lei n° 10.216 de 1996, Brasília-DF, 2001.
BRAVO, M. I. S. & MATOS, M. C. Reforma sanitária e o projeto ético-político do Serviço
Social: elementos para o debate. In: Saúde e Serviço Social, (Org). 2ª ed, São Paulo: Cortez; Rio
de Janeiro: UERJ, 2006.
CAVALCANTI, M. T. et al. “A psiquiatria e o social: aproximações e especificidades”. In:
VENANCIO, A. T. A. & CAVALCANTI, M. T. (Org). Saúde Mental: campos, saberes e
discursos. Rio de Janeiro: Edições IPUB/CUCA, 2001.
JUNQUEIRA, L. A. P. Novas formas de gestão na saúde: descentralização e intersetorialidade.
Saude soc., São Paulo, v. 6, n. 2, Dec. 1997.
MATTOS, R. A. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). In: Cad. Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, Oct. 2004.
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