Machado de Assis
Quincas Borba
Não fosse o otimismo intrínseco à doutrina humanitista,
Quincas Borba (1891) talvez pudesse ter como título alternativo
Triste fim de Pedro Rubião. Do esplendor do palacete da praia de
Botafogo – parte dos mais de trezentos contos de réis que o filósofo
Quincas Borba lhe deixa em testamento – até o retorno humilhante
a Barbacena, doente e maltrapilho, o romance retrata o ingênuo
Rubião em meio à implacável rapina de seu patrimônio, paralela à
degradação de sua saúde mental. A exemplo do nacionalista
Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto, o malfadado
professor mineiro é uma trágica vítima de suas obsessões
quiméricas.
Tal como Flora Batista, que sucumbe ao fascínio
autodestrutivo pelos gêmeos Pedro e Paulo em Esaú e Jacó (1904),
Rubião é dominado pela loucura antes de uma enfermidade fatal.
Em seus momentos de agonia, entretanto, ele não conta, como
Flora, com a solidariedade da família e dos amigos. Pobre e
delirante – ele acredita ser o imperador francês Napoleão III; sua
amada Sofia, a esposa do amigo Cristiano Palha, é ninguém menos
que a imperatriz Eugênia –, Rubião é abandonado por todos aos
primeiros sinais de loucura e bancarrota, fazendo jus à segunda
sentença da divisa do Humanitismo: “Ao vencido, ódio ou
compaixão”. Em especial, portam-se de modo vil aqueles que
haviam se aproveitado sem pudores de sua generosidade e fortuna.
A ironia é certamente uma das maiores inovações da fase
madura, “realista”, de Joaquim Maria Machado de Assis (18391908) em relação a sua produção anterior à década de 1880. A
análise arguta das relações sociais e da psicologia das personagens,
levada ao ápice na primeira pessoa de romances emblemáticos
como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro
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(1899), materializa-se em Quincas Borba por meio de um narrador
mais distanciado, em terceira pessoa, mas não menos ferino. Tratase de um sarcasmo quase sempre bem-humorado, conquanto
carregado da “tinta da melancolia”, marca registrada machadiana.
Como explica John Gledson na introdução ao volume, apesar
das vicissitudes enfrentadas pela escrita do livro – cuja publicação
em folhetim demorou mais de cinco anos –, o narrador de 1891
rivaliza em maestria com Bentinho e Brás Cubas. Machado
demonstra um infalível poder de observação sobre as aparências da
vida social, ao mesmo tempo que penetra profundamente na
consciência das personagens. A trajetória de desenganos do caipira
Rubião oferece ao escritor diversas oportunidades de vergastar a
fatuidade dos novos-ricos, as politicagens e negociatas realizadas à
sombra do Estado e as crueldades do regime escravista. Nesse
sentido, as leituras de críticos como Gledson e Roberto Schwarz
sobre o significado alegórico da sina de Rubião – o anti-herói
mineiro seria uma representação do Brasil – permitem enxergar
uma demolidora crítica social por trás das peripécias desse
precursor de Policarpo Quaresma. Machado satiriza males
tipicamente brasileiros como o subdesenvolvimento, a dilapidação
das riquezas naturais e a imitação servil de modelos culturais
estrangeiros.
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1. Sob qual condição Rubião, um empresário malsucedido e um
modesto professor em Barbacena, Minas Gerais, herda o vasto
patrimônio de Quincas Borba?
Para que Rubião se torne herdeiro universal de todos os seus bens,
o fundador do Humanitismo apenas exige que seu cachorro, também
chamado Quincas Borba, seja guardado e cuidado com toda a atenção.
Rubião deve alimentá-lo, limpá-lo e protegê-lo de doenças e de eventuais
ataques de pessoas malévolas, tratando-o como se ele fosse o próprio
finado. Após a morte do animal, prossegue o testamento, seus restos
devem ser respeitosamente sepultados; os ossos, limpos e resguardados
numa urna a ser colocada em lugar de destaque. Assustado, pois
desdenhosamente havia dado Quincas Borba a Angélica, sua comadre, ele
corre para recuperar o bicho. (cap. XIV-XVII)
2. Por que Rubião teme o resultado do inventário, mesmo tendo sido
expressamente designado como herdeiro universal de Quincas Borba?
O comportamento de Quincas nos últimos tempos da doença deixara
claro, em especial para o médico, que sua sanidade mental estava
seriamente comprometida. Rubião fica aflito com a possibilidade de que
algum inimigo invejoso denuncie a loucura do finado e, assim, questione
legalmente sua posição de herdeiro universal. O testamento naturalmente
seria invalidado caso se conseguisse provar que, ao redigi-lo, Quincas
não gozava da plenitude de suas faculdades mentais. A denúncia de
fato acontece, mas a questão é resolvida com o auxílio do novo e bem
relacionado amigo de Rubião, Cristiano Palha. O processo corre no foro
do Rio de Janeiro, e o sucesso da causa – comemorado num jantar festivo
com a escandalosa presença do advogado, do escrivão e do procurador
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do foro – sugere que a objeção sobre o estado mental de Quincas foi
descartada com o pagamento de subornos. (cap. XX-XXV)
3. Que revelação Cristiano faz a Sofia, sua esposa, depois que ela lhe
conta sobre a declaração de amor de Rubião?
Sofia, indignada com o assédio de Rubião – o narrador afirma que
sua honestidade como esposa sempre havia sido exemplar, a despeito
das investidas de numerosos admiradores –, conta tudo ao marido na
mesma noite, e propõe que o mineiro seja excluído de seu círculo de
relações. Palha inicialmente concorda com a ideia, mas é obrigado a
recuar pelos interesses financeiros envolvidos em sua amizade com
Rubião. Ele revela que deve muito dinheiro ao herdeiro de Quincas
Borba. Essa informação modera o acesso de virtude de Sofia, que
apenas promete ter mais cuidado com os futuros arroubos do novo
admirador, sem, contudo, deixar de recebê-lo. (cap. l)
4. O que influencia a decisão de Rubião de não retornar a Minas depois
de sua declaração de amor fracassada e, lateralmente, estimula seu
interesse pela política?
Acabrunhado pelo fiasco de sua declaração de amor a Sofia, Rubião
deixa de visitar o casal Palha por alguns dias; chega a planejar o retorno
a Barbacena. Quando o amigo e devedor vai a Botafogo tentar reatar
relações (e interesses), leva consigo o dr. João Camacho, político e jornalista
de tendências oposicionistas. Algum tempo depois, Rubião recebe em casa
um exemplar do jornal Atalaia. Animado pela nova quimera da política,
ele decide ir pessoalmente à redação fazer uma assinatura; lá descobre
que o editor do periódico é o próprio Camacho. Na rua, a caminho do
escritório causídico e polemista, ele arrebata uma criança das patas dos
cavalos de um carro desgovernado e se torna o herói do bairro. O próprio
Rubião narra sua proeza a Camacho – que, posteriormente, vislumbrando
a oportunidade de arrebatar bons contos de réis ao envaidecido ricaço,
publica um relato enaltecedor do feito (como ficará claro no capítulo
c, o nortista bajula Rubião, chegando a fazê-lo acreditar que será eleito
deputado por Minas Gerais). Entrementes, ao sair do escritório do político,
logo após a narrativa do salvamento do menino, Rubião reencontra-se
com Sofia. A beleza fulgurante da amada o convence a voltar a frequentar
a casa de Santa Teresa, e ele acaba desistindo de se restabelecer em Minas.
(caps. LIV-LXVII)
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5. Por que Rubião acredita que Sofia e Carlos Maria mantêm um caso
amoroso?
A sensibilidade de apaixonado do ex-professor não deixa de
perceber o fascínio mútuo que se esboça entre Carlos e Sofia,
mas exagera todos os indícios em sua espiral de ciúme paranoico.
Rubião chega a cronometrar os minutos em que os dois dançam sem
interrupção num certo baile. No retorno de uma visita ao amigo Freitas,
morador da praia Formosa, instala-se a desconfiança obsessiva. Um
caso mencionado pelo cocheiro do tílburi faz o enciumado milionário
crer que Carlos Maria – seu amigo, moço bonito e de bigodes morador
da rua dos Inválidos, tal como o aventureiro da anedota – tem se
encontrado secretamente com Sofia. O esconderijo dos amantes seria
a modesta casa de uma costureira dos Palha, moradora da rua da
Harmonia. Na época da narração, as vizinhanças dessa via eram pouco
frequentadas pelas elites da cidade – a não ser em casos de adultério ou
outras transações inadequadas à publicidade dos bairros centrais. Os
acessos de ciúme se agravam quando, alguns capítulos adiante, Rubião
encontra por acidente uma carta endereçada pela mulher de Palha a
Carlos Maria, e pensa ter capturado uma correspondência da paixão
clandestina. Rubião só fica completamente convencido de seu engano
algum tempo depois, quando Carlos Maria se casa com Maria Benedita,
a prima interiorana de Sofia. (caps. LXXXIX-XCIX)
6. Palha gradativamente atinge seus reais objetivos em relação a
Rubião. Qual é seu método de atuação?
Valendo-se em parte dos decotes ousados e dos olhos convidativos
de Sofia, Palha aos poucos conquista o controle das finanças do
imprudente amigo mineiro. O negociante trata de fixar Rubião no Rio
de Janeiro por meio de uma sociedade comercial – cujo capital inicial é
naturalmente extraído dos contos herdados de Quincas Borba. Com o
tempo e o aprofundamento da “amizade”, Palha se torna depositário de
todas as apólices e ações de Rubião. (caps. LIX-CVIII)
7. Como se manifestam os primeiros sintomas da loucura de Rubião?
Admirado por todos os amigos e conhecidos, confundido na rua
com senadores e desembargadores, Rubião vive a plenitude de suas
visões de grandeza. Enquanto isso, sua fortuna diminui de modo
alarmante. Ironicamente, o ex-professor chega a sonhar com o
enobrecimento – seria o marquês de Barbacena – e a carreira política,
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sempre estimulado pela esperteza de Camacho. Ainda obcecado por
Sofia, que administra com sagacidade sua paixão platônica, Rubião
começa a dar sinais de perder o juízo quando instala em seu gabinete
bustos de Napoleão I e Napoleão III. Em seguida, seus anseios de
luxo e riqueza dão lugar a visões alucinatórias de pessoas inexistentes.
A metamorfose se consuma quando ele pede ao barbeiro que imite
a barba e o cabelo do busto de mármore de Luis Napoleão. Rubião
mergulha em miragens dos palácios do imperador e imagina governar
a França. (cap. CXXXIV-CXLXVII)
8. O que acontece quando o protagonista, já totalmente louco, faz
uma visita a Sofia?
A pretexto de saber notícias sobre o joelho de Sofia, que ela
machucara durante um passeio à Tijuca (cap. CXLIII), Rubião se
comporta de modo aparentemente normal. Porém, ao se despedir, já
dentro de seu coupé (espécie de antiga carruagem fechada), ele arrasta
Sofia num torturante passeio pelo centro da cidade. Com as cortinas
fechadas, o carro percorre várias ruas enquanto Rubião, em pleno
delírio, dá vazão a sua paixão não correspondida. Entre ameaças
veladas, lembranças e desvarios, ele aterroriza Sofia ao revelar que
é Napoleão III e que ela, sua amante, será nomeada duquesa. Após
desesperadas tentativas, a “duquesa” consegue descer do coupé e se
livrar do perigo. (cap. CL-CLIII)
9. Como os acontecimentos da política europeia contemporânea se
relacionam com os delírios de Rubião?
Durante a Comuna de Paris e a invasão prussiana da França, em
1871 (eventos que resultam na abolição definitiva da monarquia e
no banimento do imperador Napoleão III), Rubião acredita que é
o sobrinho de Napoleão – ou seja, ele mesmo – que triunfa sobre
as forças operárias e as tropas do kaiser Guilherme I. Indiferentes à
enfermidade, seus amigos interesseiros preferem não contrariá-lo e
não cessam de aproveitar os confortos do casarão de Botafogo, cada
vez mais decadente. (cap. CLVI)
10. Endividado, Rubião abandona Botafogo e é levado para uma casa
alugada na modesta rua do Príncipe. Como reagem seus antigos amigos?
Os comensais aproveitadores, os confrades da política e todos os
conhecidos se afastam dele. Enquanto redecoram seu novo palacete
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em Botafogo, Sofia e Cristiano Palha não escondem o incômodo
com a obrigação de aturar as esquisitices do louco. Carlos Maria e
Maria Benedita, de volta da lua-de-mel na Europa, assustam-se com
seus delírios bonapartistas. Camacho, o jornalista e político que lhe
sugara diversos contos de réis, finge não ter tempo de falar com o excandidato a deputado. Além do cachorro Quincas Borba, o amigo de
todas as horas, a única a demonstrar algum interesse pelo bem-estar
de Rubião é d. Fernanda, a amiga de Maria Benedita que tivera papel
decisivo na trama de casamento com Carlos Maria. Movida talvez
pela compaixão devida aos vencidos segundo o lema humanitista, a
mulher de Teófilo (outro político arrivista) arranja uma consulta com
o dr. Falcão, deputado e médico que afirma ser capaz de curar o mal
de Rubião. (cap. CLXV e seguintes)
11. Assim que o médico afirma que Rubião – já internado numa casa de
saúde – apresenta grandes melhoras, o que acontece com o paciente?
Ele e seu inseparável cachorro fogem da casa da saúde. Algum
tempo depois, durante uma forte tempestade, os dois reaparecem em
Barbacena, exaustos e doentes. São amparados pela comadre Angélica –
a mesma que havia cuidado de Quincas Borba antes de Rubião
conhecer a cláusula central do testamento de seu benfeitor. Dono e cão,
muito enfraquecidos, não demoram a morrer, separados por apenas três
dias de diferença. (cap. CXCIII-CCI)
12. Segundo os postulados do Humanitismo, que interpretação pode
ser extraída do destino trágico do protagonista de Quincas Borba?
Rubião pode ser comparado à tribo perdedora do conflito
por batatas com que o filósofo Quincas Borba ilustra a teoria de
Humanitas. Ao cabo, toda a riqueza herdada por Rubião serve
ao triunfo de homens inescrupulosos como Palha e Camacho. As
alucinações de grandeza do ex-professor, estranhamente semelhantes
às de Quincas, teriam portanto uma função análoga à da morte
acidental da avó do filósofo: atendem a uma necessidade ditada
pelo funcionamento imutável do universo. (cap. VI) Assim, numa
chave irônica o calvário do generoso Rubião se deixa ler como uma
ilustração satírica dos insondáveis desígnios de Humanitas. Sua
tragédia é o necessário prólogo da comédia dos vencedores na vida.
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Leituras recomendadas
Faoro, Raimundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de
Janeiro: Globo, 2001.
Fausto, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.
Gledson, John. “Quincas Borba” in: Machado de Assis: ficção e
história. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
Hobsbawm, Eric. A era do capital. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
Lopes, José Leme. A psiquiatria de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Agir, 1974.
Passos, Gilberto Pinheiro. O Napoleão de Botafogo: presença francesa
em Quincas Borba de Machado de Assis. São Paulo: Annablume, 2000.
Sousa, Ronaldes de Melo. O romance tragicômico de Machado de
Assis. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2006.
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