Autran Dourado
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UMA VIDA
EM SEGREDO
Contendo em apêndice
História de uma História
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QUEM DEU A IDEIA DE TRAZER prima Biela para a cidade foi
Constança. Deixa, Conrado, traz ela cá para casa, disse. Biela
fica morando com a gente, pode até me ajudar com as meninas, fazer companhia. Olha, quando você vai para a roça, tem
dias que eu sinto uma falta danada de alguém para conversar.
De noite, então... Tem Mazília, se limitou Conrado na resposta. Mazília, disse ela, ainda é menina. Já é mocinha, disse
Conrado, de pouca conversa.
A princípio Conrado não deu muito ouvido, tinha outra
coisa em mente. A ele, como homem, competia decidir. Ainda mais agora, tutor e testamenteiro. Era calado, ordeiro, sério, compenetrado.
Às vezes punha a questão em forma de pergunta, mas
não era para a mulher responder, ela sabia: mais uma forma
de pensar alto. Quem sabe não era melhor mandá-la para o
convento das freiras, lá em Ubá? Ela podia dar um bom dote, e
depois a herança, as freiras a aceitariam logo com gosto.
Constança, que não percebeu que o marido estava apenas
pensando, ou fez que não percebeu, ponderou, não ia dar certo, Biela não tinha com certeza nem cartilha nem aritmética,
nem educação direito, criada lá na roça, só com o pai, homem
fechado e meio maníaco, que nunca saía do Fundão. E já era
moça velha, para aprender. As freiras não aceitariam.
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Não digo pra ser freira, disse Conrado esquecido de que
estava apenas pensando. Que não sei nem se ela tem vocação. Pra morar lá com elas. Depois, quem sabe? se lhe desse
vontade, podia até ser irmã serva ou leiga, sei lá como elas
dizem. Pode prestar serviço. Constança, senhora da brecha
que o marido abria na sua decisão, disse não fica bem, o que
é que vão dizer de nós, de você que foi nomeado tutor e testamenteiro, mandar ela para longe, quando tem tanto lugar
aqui em casa?
Conrado não gostava da ideia. A mulher não conhecia a
prima, não sabia como ela era, como eram seus hábitos. Capaz
de não dar certo. Moça criada na roça, sem mãe desde cedo,
com suas maneiras lá dela, talvez não se desse bem morando
na cidade com eles. Ele mesmo mal a conhecia, só vira a prima umas duas ou três vezes, quando tinha ido à Fazenda do
Fundão tratar de uns negócios de gado com o primo Juvêncio
Fernandes. Primo Juvêncio era seu primo por parte de pai. Se
lembrava da primeira vez que viu Biela. Prima Biela só o cumprimentou porque primo Juvêncio disse vem cá dar bom dia
pro primo. Ela o cumprimentou arisca, meio de longe, estendendo-lhe as pontas dos dedos, os olhos no chão. Depois saiu
ligeira para os fundos da casa, não apareceu mais. E a prima?
disse ao se despedir, já no cavalo. Deixa pra lá, tem dessas esquisitices de ausência de moça solteira, desculpou o pai. Mas
não está certo, foi Conrado pensando enquanto calcava de leve
as esporas nos vazios do cavalo. Criar moça assim tão sozinha,
desde menina, sem nenhuma mulher mais velha para gerir.
Primo Juvêncio, quando prima Gasparina morreu, devia ter
tomado de novo estado, ou vindo com a menina para a cidade. Mas não, primo Juvêncio era de outros tempos. Cismado,
meio louco-manso-enfezado nas suas opiniões, ficou para sempre reinando sozinho no território do Fundão. O primo era de
umas ausências de vista estranhas, ficava olhando enviesado
uns longes para além dos cimos. Tinha até, de raro em raro,
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uns ataques de repelão e espuma, diziam que ficou bom no
fim da vida, com umas ervas de seu Querêncio Gouveia. Conrado no fundo tinha medo, a coisa podia se repetir na filha
Biela, essas histórias de herança de corpo e da alma. Nada,
tem disso não, procurava se acalmar, histórias de gente sem
ofício e ocupação. Depois, nunca tinha ouvido dizer nada de
prima Biela, vocês sabem como estas coisas correm.
Conrado não gostava da ideia, cismarento. Pesava no prato
de sua decisão uma razão muito escondida, que ele não queria
nem pensar: primo Juvêncio Fernandes deixou escrito, foi o
que explicou o tabelião, que o usufruto dos bens seria dele, enquanto Biela estivesse em sua guarda, menor que era, como
convinha. Esta parte ele não contou a ninguém, nem à mulher,
para que Constança não o ajudasse a pensar claro demais.
Conrado não gostava da ideia mas acabou cedendo. No
fundo já se decidira, quaisquer que fossem as consequências.
Agora era arranjar as razões de espírito, para a alma quieta,
tranquila, no remanso. Não foi difícil, as artimanhas, os esconde-escondes da alma. Afinal não era sua prima? Juvêncio
não lhe queria tanto, não tinha tanta confiança nele, não o
encarregara de tudo em testamento e por boca? Da Fazenda
do Fundão, do dinheiro no banco, dos títulos e joias de prima
Gasparina. Depois, tinha as suas vantagens ela ficar morando com eles – podia, com ela perto, cuidar melhor de seus
negócios, ouvi-la nas suas vontades, ver juntos o que iam fazer
da Fazenda do Fundão. A Fazenda do Fundão era de muitos e
muitos alqueires de terra. Tudo terra boa, terra roxa de café.
Os cafezais eram velhos, é verdade, mas havia ainda muita
terra livre, pastos sem fim, o gado, muito gado. Conrado fazia
o arrolamento, pensava e repensava. Com ela perto, seria mais
fácil defender os interesses de prima Biela. Depois, Constança
queria tanto, fazia tanto gosto, alvoroçada com a novidade.
Está bem, disse ele, que já tinha concordado com a ideia
da mulher mas não queria dar parte de fraco; vou pensar e
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depois que eu decidir, a gente se fala. Constança se alegrou,
sabia que vencera. Não disse nada, escondeu a alegria, conhecia Conrado, respeitava-o, sabia como lidar com ele.
Daí a uns dias Conrado mandou arrear a besta Gaúcha, encher os alforjes, e foi buscar prima Biela na Fazenda do Fundão.
A chegada de Biela marcou época para os meninos. Mazília, Gilda, Fernanda, Alfeu e Silvino ficavam impacientes, toda
hora chegando na janela para ver o pai apontar no fim da rua:
a sua grande figura na besta Gaúcha toda branca, leve e firme,
os peitos largos e trotando, o melhor animal de sela da Fazenda
do Quebra. De vez em quando, a própria Constança chegava
para ver se já vinham vindo. Tudo pronto, o quarto da sala
onde ficaria prima Biela preparado, ela também se impacientava com a chegada.
Só chegaram lá pela tardinha.
Evêm eles, gritou Alfeu para dentro de casa, chamando os
outros, que tinham desistido de esperar. As meninas se atropelaram para ver quem chegava primeiro e garantia melhor
lugar na janela, de onde podiam ver bem o pai na besta Gaúcha e a prima Biela num cavalo que não sabiam como era.
Alfeu e Silvino na verdade se preocupavam mais com a
besta Gaúcha, gostavam de cavalos, queriam saber como era
a montaria da prima. Já imaginavam que poderiam no outro
dia sair para umas voltas pela cidade e pelos matos ali por
perto, cavalgando desabalados. As meninas é que cuidavam
mais da figura de prima Biela. Queriam saber como era o jeito
dela, os modos de moça fazendeira, os vestidos dela. Faziam
planos, preparavam conversas, urdiam as histórias que haviam
de contar, muito perguntadeiras.
O pai vinha na frente. O vulto alto, o chapelão para trás,
senhor do animal, bom cavaleiro.
Os meninos desceram para a rua, queriam ser os primeiros
a ver; queriam, já montados, levar os animais para dentro do
quintal, ajudar Gomercindo a desencilhar.
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A besta Gaúcha trotava grande, bem balanceado, branca,
o peito empinado, batendo picado os cascos ferrados de pouco. O pai deixava o corpo seguir o molejo da besta. Mais perto
puderam ver que apressava o passo. Como o pai fazia quando
desejava que Gaúcha trotasse ligeiro: esporeava em pequenos
arrancos os vazios do animal. Mais atrás, na poeira do pai, o
cavalo de prima Biela, um pampa meio ronceiro. O corpo malhado, vermelho e branco, a cara branca. Se o pai deixasse, Alfeu, que era o mais velho, ficaria com a Gaúcha e Silvino com
o pampa.
Olha ela, disse Fernanda, a menorzinha, para as irmãs,
apontando a prima que chegava da Fazenda do Fundão.
E viram como prima Biela, para alcançar o trote da besta
Gaúcha, batia desajeitada e deselegante o chicote nas ancas
do cavalo malhado. Não disseram nada, olharam apenas meio
desiludidas a figura miúda e socada que vinha encilhada no
cavalo pampa, debaixo de uma sombrinha vermelha desbotada.
Enquanto os meninos seguravam as rédeas dos animais
que impavam resfolegantes, cansados da caminhada de muitas léguas, o pai procurou ajudar Biela a descer do silhão. Não
foi preciso, ela fez que não queria, de um salto estava no chão.
Meio cambaleante ainda, primeiro cuidou de ajeitar as pregas
da saia de chitão amarrotada; depois verificou se os botões da
blusa estavam nas suas casas; finalmente alisou os cabelos
pretos empoeirados que tinham escapulido do coque. Compunha um tanto envergonhada, num recato medido de quem
queria aparentar bem, a sua figura. Em nenhum momento
ergueu o olhar para as janelas onde as meninas se apinhavam,
para Constança. Como os pés procuravam se acostumar ao
chão, os olhos baixos também buscavam raízes na terra.
As meninas repararam em tudo: a sombrinha vermelha
desbotada de cabo comprido, as botinas de cordão que apareceram quando ela saltou do cavalo, a saia muito comprida
quase se arrastando no chão, a blusa de botõezinhos fechada
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até o pescoço, os gestos todos que ela fez. Não viram a cara,
que ela trazia sempre baixa. Mas viram o coque grosso, baixo,
de longas tranças, empoeirado.
Constança, gritou o pai já na porta da sala, a prima chegou.
Vai entrando, a casa é sua, voltou-se para trás.
Parada na soleira da porta, prima Biela esperava, esperava
não sabia o quê, assustada feito súbito um animal para na estrada, estranhando.
Só se mexeu quando Constança pegou-a pelo braço e puxou-a para o centro da sala. Então, esta é a prima, ia dizendo
cordial, acolhendo-a, amparando-a, pondo-a à vontade. Não
tem tempo que estamos esperando. Então, fez boa viagem?
Cansada, com certeza. Essas viagens a cavalo cansam muito
mesmo. Sei o que é isto. Depois, acompanhar Conrado nesta
besta assanhada não é brincadeira. Imagino como não deve
de estar. Vou preparar um banho bem esperto, você fica boa
logo. Trouxe suas coisas? Você vai ficar neste quarto aqui da
sala. Está mais à vontade, tem vista para a rua. Pode até ficar
namorando janeleira, mas isso não é bom, dá reparo, se barateia. Se alguma coisa não agradar, diga logo, não faça cerimônia. Pensei que fosse moça, mas pensei que fosse moça novinha, e é uma moça já feita. Conrado, as coisas dela quando
vêm? Depois a gente arranja tudo. Vamos ter muito assunto
para conversar. Não precisa fazer cerimônia, você agora é de
casa. A casa agora é sua. É diferente lá da fazenda, o casarão
todo era seu, mas você ficará bem aqui, vai ver. Me fale claro,
quero ser sua amiga, não apenas prima, não é?
Constança não parava de falar, aflita porque Biela não dizia
uma palavra, estonteada, estranha no ambiente. Quando viu
que não tinha mais nada a dizer, ficou sem jeito olhando para
a prima, depois para as filhas, depois para Conrado, pedindo
auxílio.
Ela deve estar cansada, disse Conrado. É melhor ir pro
quarto. Vai, prima Biela. Depois a gente conversa.
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Só então Biela levantou os olhos do chão, viu as primas
todas que olhavam curiosas para ela. Devia parecer bicho do
mato, nunca-me-viu. O olhar de prima Biela feito o de um bichinho assustado medroso que procura se acostumar. Os olhos
miúdos piscavam rápidos, não mostravam a cor. Quando deu
com aquela porção de olhos em cima dela, recuou medrosa assustada, como se alguma coisa a ameaçasse não só por
fora mas por dentro. Que mundo aquele em que ia entrar.
Meu Deus, me ajude, talvez ela tenha pensado. Quero voltar
pro Fundão, pra minha toca tão sossegada, talvez tenha querido dizer.
Mas nada disso ela disse. Disse com muito esforço, como
se juntasse num grande alento toda a alma sufocada, disse, a
voz apagada que todos ouviram porque havia um imenso silêncio de montanha, disse apenas me desculpe se fiz esperar.
Constança não podia entender uma fala assim tão sem
sentido, tão carregada de medo. A pobrezinha devia de estar
confusa vendo tanta gente assim reunida em sua volta, à sua
espera. Vivendo durante tantos anos sozinha com o pai no casarão da Fazenda, um convívio humano mais amplo tocou-a
de certo bem fundo, perturbou-a.
Vamos, prima Biela, vamos para o quarto que preparei para
você. Você descansa um pouco, se refaz. Depois vem comer a
janta que guardei. E como Biela continuasse atarantada no
meio da sala, puxou-a pelo braço, levando-a para o quarto.
Quando voltou, viu as filhas comentando baixinho qualquer coisa com o pai.
O que é que vocês estão falando aí? disse. Nada, mãe, disse Mazília. A gente dizia como achamos ela meio esquisita.
É meio pancada, disse Alfeu, que voltara do quintal e apenas
viu a prima um finzinho. E que vestidos, mãe disse Gilda.
Ninguém veste mais assim. De chita, umas roupas assim tão
pobres pra ela que pode. Vocês não têm nada com isso, disse
Constança. É prima de vocês, vai ficar morando com a gente,
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da família, vocês têm de respeitá-la, gostar dela. Ah, mãe, disse Mazília, que era a mais velha e não queria se mostrar infantil, é que a gente esperava uma coisa tão diferente!
Realmente, não só as meninas, mas Constança esperava
uma coisa diferente. A primeira impressão foi péssima, prima
Biela parecia mesmo pancada. Tomara que seja só impressão,
coisa de primeiro dia. Tem gente que não se mostra logo, guarda tempo pra se mostrar. Vai ver até depois se mostra falante,
sirigaita. Às vezes isto acontece, um se mostra esquisitão, depois se acostuma, vai ver até é uma moça bem boa e dada.
Deus queira eu esteja enganado, pensou Conrado, que viera
observando-a durante toda a viagem. Que ela não seja como
primo Juvêncio. Os repelões do ataque, a espuma da baba na
boca. Fora ouvir a mulher, ele não gostava muito de ouvir ninguém, tomar conselho. Melhor teria sido lá com as freiras. Se
fosse mansa, ainda podia ser. E se fosse como primo Juvêncio?
Se tudo desse errado, será que ainda não tinha jeito de internála com as freiras? Se tudo desse errado, se ela fosse braba, as
freiras veriam logo, não aceitariam. O jeito era mandá-la para
Barbacena, como uma vez mandaram seu Clodomiro, ruim
da cabeça, que quis matar o pai com uma acha de lenha. Bobagens, desvio da ideia, cisma, procurou se acalmar.
Ninguém disse mais nada. Conrado se retirou para o quarto, queria descalçar as botas, lavar os pés antes da janta, trocar
a roupa suada e suja. Constança foi para a cozinha ver como
iam as coisas lá dentro. As meninas se reuniram no quarto de
Mazília, para trocar impressões, e os meninos estavam agora
no quintal ocupados com a besta Gaúcha e o cavalo pampa,
inteiramente esquecidos de prima Biela.
No quarto, sentada na cama de mola, que se afundou rangendo ao peso do corpo, tão diferente do seu catre de tábuas,
Biela fincou os cotovelos nos joelhos, apoiou o queixo nas
mãos e ficou de olhos grudados no espelho de moldura em
cima da cômoda. O espelho refletia uma figura encurvada,
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o rosto pálido e apático, uns olhos inexpressivos que pareciam não ver, afundados além da superfície polida. Na verdade,
Biela não reparou sequer na figura que o espelho lhe mostrava.
Voltava-se toda para um centro de força, para uma pequena
semente nas sombras que se adensavam, para o oco no peito,
para o miúdo coração desamparado. Sentia-se miserável, um
trapo sujo, um tronco podre que o riacho leva. Tão miserável
que não conseguia nem ao menos sentir pena de si mesma,
atordoada, perdida. Tão miserável que nem lágrimas lhe vinham aos olhos sem brilho, mortos. Talvez ela tivesse desaprendido de chorar.
Depois, muito depois, foi que começou a dar conta de si,
como se voltasse de um mundo de brumas, como se acordasse de um sono pesado, despovoado de sonhos.
E começou a sentir o próprio corpo, o cheiro novo do quarto. Tudo limpo, tudo arrumado para ela. Não precisavam. Os
dedos correram de leve a fronha lisinha e cheirosa. O cheiro
de alfazema que recendia do lençol. Afundou a mão no travesseiro e o tato lhe revelou a macieza que ali dormia, e as suas
narinas captaram, com o tato, o cheiro seco da macela do travesseiro afofado de pouco. Os olhos percorreram lentos as paredes nuas, os móveis, o retângulo da janela aberta. Deram
com o espelho e se voltaram rápidos para a brancura da cama.
Reparou que a cama era de molas e balançou o corpo feito
menina numa gangorra, e sentiu uma longínqua ponta de alegria no brinquedo que sem querer descobrira. O rosto porém
continuava sério e parado. Vagarosamente, como a gente procura se acostumar com a escuridão, procurava compor o mundo em volta, e as sensações todas eram novas para ela, nascidas
naquele mesmo instante.
De repente se sentiu plena no mundo, via onde estava.
Aquele mundo agora seria o seu mundo. O quarto era na casa
de primo Conrado, a casa ficava na cidade. Não era mais o casa-
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rão da fazenda, lá atrás, muito longe, perdido, como se tudo
tivesse se passado há muitos anos.
E como deu acordo de si, foi juntando os farrapos de lembrança da viagem; os matos todos por onde passou, os riachos
que atravessou, os passarinhos que voavam assustados, as
árvores todas que viu, a entrada da cidade, a chegada na casa
do primo. E teve uma visão da casa, da sala, do móvel escuro
que ela não sabia o que era, de prima Constança, das meninas, de tudo aquilo que de agora em diante fazia parte de sua
vida, tinha de ser a sua vida. E como era de novo um ser no
mundo, teve a percepção do mundo em que agora ia viver.
Era outra vez Biela, e como era outra vez Biela, disse num
leve sorriso a descoberta – Biela. E ficou dizendo muito tempo
Biela, Biela, Biela.
Agora via que a penumbra do quarto se fechava. Via que
aos poucos a noite ia se fazendo lá fora. Via que o quarto já estava escuro.
Uma luz na sala clareou a bandeira de vidros coloridos da
porta. Ouviu passos, gente andava na sala. Ouviu vozes e um
riso claro, alto. Eles viviam.
Súbito sentiu pela primeira vez uma sensação definida,
uma emoção que conhecia. Um medo duplo: do mundo detrás
da porta e de se sentir esquecida no quarto.
Um jorro de luz caiu sobre ela. Levantou-se de um salto.
Era prima Constança que chegava.
Como é, disse Constança, está melhor? Quer que lhe arranje alguma coisa? A janta? É tarde, Conrado já jantou, estava
com fome, não quis esperar. Achei melhor não chamá-la, vi
que estava muito cansada. Agora está bem?
Biela estava mais calma, mais dona de si. A presença de
prima Constança era boa, dava-lhe mesmo uma certa confiança, uma certa ternura. Lembrou-se de uma bondade assim,
de uma beleza assim. Uma lembrança antiga, muito distante,
neblina gostosa. Como de manhã o pasto molhado de orvalho.
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No canapé, uma mulher colocou a sua cabeça no colo, alisoulhe os cabelos compridos, começou a cantar de mansinho,
tão brancamente feito um anjo do céu, a cantiga bonita que
ela jamais ouvira.
Não, prima, não carece, disse, não tenho fome. Constança
sorriu para ela num sorriso aberto, todo alegria. Não quer mesmo, ou é cerimônia? Quero não, não tenho fome. Comi na
viagem, duma matula que trouxe comigo. Então fique à vontade, disse Constança. Deite, descanse. Quer luz? Biela disse
que não.
A porta se fechou. Biela jogou-se na cama. O corpo afundou
no macio da cama de molas. Sentiu os estalidos que a palha do
colchão fazia. Ficou sentindo as sensações todas, novas.
E assim passou algum tempo, muito tempo, quanto tempo?
E os olhos cerrados, o corpo solto no espaço, começou a
viver uma lembrança, a antiga lembrança.
E ouviu a cantiga mais bonita, mais mansa, mais feita das
cores do céu. Uma sensação assim tão boa, mas tão diferente,
só de noite na roça, o riachinho correndo, quando esticava o
ouvido para ouvir o chuá-pá do monjolo: a água enchendo
o cocho, o silêncio, o ranger do cepo na tranqueta, o chuá da
água, o barulho chocho da mão caindo no pilão quando se pilava arroz, mais duro quando se esfolava milho, e tudo se repetia
feito um choro monótono e sem fim, o monjolo rangendo.
Nos ares de pureza em que a cantiga a envolvia, foi se perdendo em cismas, e a mãe vinha de novo abraçá-la. Tão bonita,
tão mansinha, tão pura como ninguém. E era a voz da mãe
que ouvia enquanto ela própria cantarolava baixinho. Em pouco não podia mais distinguir se sonhava ou se era a doce lembrança da mãe a embalar o pensamento.
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