Os vestidos de Biela. O papel da roupa nas relações identitárias da personagem
Geraldo Carlos do Nascimento e Sandra Fischer
Doutores UTP
Guardiã do corpo segredoso da mulher, a vestimenta, ao mesmo tempo obstáculo e desejo de
transgressão, é criadora de um espaço onde o interdito – como em outros domínios – pode
plenamente preencher seu papel de instaurador do sentido ...
Algirdas J. Greimas
Uma vida em segredo, o nome do filme; também o nome do livro em que este se
inspirou – agora opcionalmente deixado de lado. Segredo tem um pouco de enigma, e
enigma é algo que se oferece à decifração: algo que “não parece, mas é”, intriga. Uma
vida, a de Biela? Com certeza. Biela posta em imagens no filme e que acabamos por
revertê-la em palavras (tivemos a pretensão) para constituir um corpus e nele debruçar a
fim de encontrar fios, tramas e figuras por onde pudéssemos começar nossa
investigação – afinal, é de segredo que se trata.
Biela (duas ela?). O nome, acreditamos, pode ser considerado como uma espécie
de máscara da identidade; a roupa, viés de nossa leitura, pode ser vista com uma espécie
de invólucro do corpo, que camufla, mas que, por isso mesmo, pode revelar. Falseariam
ambos, nome e roupa, as identificações do sujeito manifestas em suas escolhas, seus
modos de se dar a ver e de viver? Ou ao contrário, seriam estas nossas pistas? Este
nosso ponto de partida. Deixaremos, no entanto, o nome de lado e de reserva, para nos
concentrar neste trabalho na indumentária – outra opção forçada pelo tempo e espaço de
que aqui dispomos.
A espera
“Será que cor o vestido dela?”, indaga a menina Mazília, enquanto espera.
Revolve-se em expectativas, tão curiosa quanto Constança, a mãe, um pouco mais
contida, para manter a elegância recatada de uma senhora da aristocracia rural mineira
do início do século XX; ambas emolduradas pelo quadro da janela que dá para a rua. As
palavras da menina constituem a fala inaugural do filme Uma vida em segredo (2002),
de Suzana Amaral, baseado na obra literária homônima de Autran Dourado. É prima
Biela quem está para chegar. Rica fazendeira, órfã de mãe, sempre vivera sozinha com o
pai, como que escondida, distante do mundo e dos demais familiares, nos confins da
fazenda do Fundão. Como seria, ela? As roupas, certamente lindas, que tons trariam?
Olhos ávidos por novidades, a menina-adolescente imagina.
A expectativa de Mazília e de Constança, no entanto, não é a mesma que têm os
espectadores do filme. Estes puderam acompanhar a longa e calada seqüência da
viagem a cavalo, em que Conrado, marido de Constança, acompanhado de um capataz,
traz para o seio de sua casa a agora também órfã de pai – Biela, sua prima
consangüínea.
Reunida nas janelas à espera da novidade (em outra delas que também dava para
a rua encontrava-se a criadagem), a família de Conrado – com exceção do menino, que
se adiantava até a próxima esquina para ver mais longe – teve frustradas suas
expectativas ao ver chegar aquela figura miúda e socada, encilhada no lombo de um
cavalo seu, debaixo de uma sombrinha vermelha.
De um salto, sem esperar pela ajuda que Conrado lhe oferece, prima Biela se põe
no chão. Desconfortavelmente estaqueada em frente a seus observadores, que a
contemplam do alto das janelas, agarra-se à sombrinha, agora fechada, e esforça-se,
timidamente, por ajeitar o cabelo, a blusa, a saia desalinhada pela viagem.
A câmera, em sincronia com os olhos dos parentes ─ nenhum som na banda
sonora ─ se aproxima e passeia pela sombrinha, pelas botinas gastas e empoeiradas,
pela saia larga e comprida, pela blusa cerrada até o pescoço. Detém-se uns instantes em
perscrutar a personagem: magra, angulosa, desprovida de quaisquer adereços,
indumentária simples, quase grosseira, de um cinzento meio amarronzado, indefinido,
apagado.
Nela, repararam em tudo, em tudo o que ali dava para ver. Os gestos todos,
viram. Toscos, desarranjados. Visível era até o movimento das palavras, encurraladas, a
debaterem-se na garganta, buscando uma frase de cumprimento apropriada para a
chegada. Só não viram mesmo foi o rosto. Porque a cara Biela mantinha sempre baixa.
Esta seqüência inicial funciona como uma espécie de prólogo para a narrativa
fílmica. Ela anuncia aquilo de que se vai tratar no filme: onde o ser nessa mulher que
chega da sombra, que vida?
Primeiras costuras
Prima Constança fez de um tudo para tentar acomodar e integrar Biela.
Destinou-lhe o quarto da frente, lugar marcado na mesa, franqueou-lhe a sala, as
conversas, as visitas. Mostrou como se comia, como se fazia isso e mais aquilo e mais
aquele outro. Ensinou modos e modas, fez-lhe notar que era rica, fazendeira abastada
agora vivendo longe da roça. Tinha posses, carecia se aprumar, reconhecer seu lugar. E,
para começar, precisava vestir-se nos conformes.
Biela por sua vez, embora com renitência, esforça-se por agradar Constança. Na
impossibilidade de falar com a desenvoltura que admirava na prima, imitava-lhe os
cumprimentos que fazia ao receber visitas ou nos encontros casuais com conhecidos;
desajeitada, porém, papagueava em torno de frases feitas sem dar seqüência às
conversas. Mas progredia. Numa ocasião, apareceu na sala de jantar para a refeição com
um coque que tentava reproduzir o penteado da prima. Todos, até Mazília, que se
apressou em retocar-lhe o penteado, viram no gesto um sinal de que nem tudo estava
perdido, prima Biela começava a apreender. Constança não perde a oportunidade, elogia
e anima a prima. Feliz por ter conseguido agradar aos primos, Biela decide não opor
maiores resistências aos conselhos recebidos. Nada de chitas, decreta a senhora, ela
própria embalada em panos preciosos, cuidadosamente trabalhados, que lhe delineiam –
com sensual recato de babados, fitas, rendas – as formas femininas e arredondadas,
condizentes com sua situação de esposa abastada, realizada.
Decepcionada que ficara com a figura desbotada e sem graça de Biela,
Constança tinha se imposto como tarefa transformar a prima numa moça fina da cidade.
Assim que possível, não perde tempo: combina levar Biela à loja de “seu” Gaudêncio,
era necessário comprar panos para lhe reformular o guarda-roupa.
Constança naturalmente tinha muitas idéias para colocar seu projeto em prática.
Estava verdadeiramente empenhada em sua missão, entusiasmada. Ela própria, sabia
bem, vestia-se com elegância e bom gosto apurados: a prima certamente estava em
boas mãos, iria sair-lhe à imagem e semelhança.
A contemplar as vestes largas e despojadas que cobrem o corpo magro e
anguloso de Biela, Constança sugere surás, veludos, tafetás. Ainda que objetando “Não
posso, prima, não posso”, Biela, fantoche relutante, deixa-se conduzir ao quarto de
costura. Nesta seqüência, sob os sons de uma máquina de costura que não pára de
trabalhar, entre fios e agulhas, uma Biela já destituída de suas vestes originais aparece
com novas roupas sendo modeladas em seu próprio corpo. Com o auxílio da costureira,
Constança vai fazendo experimentos, dispondo tecidos e guarnições sobre o manequim,
duro feito um pau, apesar de vivo. No rosto contrafeito de Biela, as expressões da única
manifestação a que se permite: caretas discretas, enquanto apertam-lhe o talhe esbelto, o
pescoço longo e magro.
Não obstante o apuro dos vestidos, cosidos em ricos tecidos, Biela não se ajeita
neles. Apertada, andava dura. Seu passo de matuta não se coadunava com a elegância
das roupas, parecia mais um espantalho ambulante, um robô. É motivo de riso para as
crianças, principalmente do menino, que a ridicularizava pelas costas e flagrou-a no
quintal urinando em pé, como era seu hábito na roça, criada que fora apenas pelo pai.
O tormento que o menino Alfeu lhe impunha era como que compensado pela
lembrança recorrente do monjolo batendo no Fundão. Mas bom de verdade era sonhar
com a mãe. Em imagens, também recorrentes, vê-se ao lado dela ou a brincar com os
seixos do riachinho, deixando-se embalar por uma voz feminina figurativizada numa
cantiga de ninar. Talvez por isso ficou tão maravilhada ao surpreender a menina Mazília
um dia no piano a tocar. A música, mesmo singela, ou talvez por isso mesmo, era um de
seus refinamentos genuínos – na banda sonora da fita incluem-se outras cantigas
infantis, mas elas não estão diretamente vinculadas às lembranças pregressas da
protagonista, ficam por conta do narrador extradiegético.
Um noivo para Biela
Quando os primos já não ligavam mais muita importância às suas esquisitices,
um acaso veio quebrar a rotina da casa. Conrado, de gênio forte, mas controlado, andava
irascível. O motivo não era ignorado: “a farta do jogo”, nas palavras de Joviana, a
cozinheira. Tendo arrumado uma briga no clube que costumava freqüentar, Conrado de
lá se afastara, e agora sentia falta das rodas de jogo com os amigos. Nas horas vagas,
perambulava pela casa, dividido entre a irritação e o tédio. Constança, com habilidade e
sutileza, sugere que o marido passe a trazer os companheiros para jogar em casa, ao que
ele acede – e assim foi que, inesperadamente, vislumbrou-se para Biela um pretendente.
Perspicaz e atenta, Constança não tardou a perceber que Modesto, filho de um dos
parceiros do jogo e ele próprio jogador, parecia interessado pela prima. Verdade é que o
rapaz não era lá essas coisas – um tanto esquisito, meio desajeitado, certa fama de
espiritado, de vadio –, mas talvez pudesse vir a dar bom noivo, afinal era de muito boa
família. Notou, também, que a moça não lhe era indiferente: daí a tramar planos para
um possível casório foi, para Constança, uma questão de duas ou três laçadas. Não
tardou a convencer o marido de tal possibilidade, o qual a princípio achou a idéia
engraçada, senão mesmo absurda; não tardou o pedido formal, feito a Conrado por
intermédio do pai do moço. Mais difícil foi convencer Biela, avessa a essa tal história de
casamento. Mas Constança tinha lá os seus meios, era competente nessas artes, seria
apenas uma questão de tempo, de um ponto a ser bem trabalhado. Tanto teceu que afinal
a prima concordou em entrar no jogo: se era do gosto dos primos, então casava. Outra
vez os moldes, novamente as agulhas, os bordados, o quarto de costura de novo. Desta
feita, costuras para uma boda: enxoval e vestido de noiva.
Não demorou para que a novidade se espalhasse pela cidade, não demorou para
que tudo ficasse pronto – só faltava aprontar o noivo, que se embrenhara no sertão para
buscar cabeças de gado, a mando do pai. A noiva, pronta, esperava. Ocorre que
Modesto não voltou. Retornaram apenas os dois capatazes que lhe haviam
acompanhado: dele e do gado, nem sinal.
Revoltada, prima Biela agride Constança: “Eu não queria mesmo se casar. Foi
pra fazer o gosto da prima que eu fiquei noiva.”
Só, no espelho
A câmera, inicialmente em plongée, aproxima-se vagarosamente e enquadra
Biela deitada em posição fetal, remoendo em silêncio a desfeita. Num gesto lento, sentase na cama. No espelho tríplice da penteadeira, contempla-se demoradamente. Engole
em seco, a face crispada. Sorri, e do sorriso passa ao riso, depois às gargalhadas.
Novamente engolindo em seco, começa um pranto silencioso que se transforma em
choro convulsivo, ao mesmo tempo em que arrebenta os botões da parte de cima seu
traje, arrancando-a. De saia e corpete, violentamente desmancha o coque, liberando os
longos cabelos, espalhando-os pelo rosto desfeito em lágrimas. Acalmando-se, passeia
as mãos pelo colo, pelos seios, pelos braços nus. Contempla-se outra vez, longamente,
agora já sem chorar.
Não mais a mesma
Na manhã seguinte, Biela apresenta-se frente à prima vestindo os trajes que
usava quando chegara do Fundão. Nos ombros, o xale de crochê que fora da mãe.
Cumprimenta Constança com voz firme, mirando-a nos olhos. Deixa a sala, dirigindo-se
à cozinha. Lá chegando, fala aos empregados, com doçura. Em passos firmes, vai até o
pilão. Despe o xale, toma a mão do pilão, e começa socar. Com força, decisão.
Biela deixa de freqüentar a mesa da sala de jantar, passando a comer na cozinha
com os empregados. Desocupa o quarto da frente, que lhe fora destinado por Constança,
mudando-se para um outro, de pequenas dimensões, situado nos fundos do quintal da
casa. Começa a movimentar-se sozinha em andanças pela cidade, visitando as casas – à
procura não das donas, as senhoras, mas sim das empregadas. Entra pelos fundos,
encaminhando-se direto para a área de serviço, para as cozinhas, ao encontro das
Marias, das Milurdes, das Jovianas, que passaram a ser as suas amigas. Ajuda a todas
elas, colaborando nas lidas de forno e fogão, nos trabalhos de limpeza. Conversa
desinibida, sorridente, sem constrangimentos. Gradativamente, passa a assumir, na
íntegra, algumas das tarefas domésticas em casas alheias. Prepara biscoitos, balas,
quitutes. Começa a receber pequenas pagas pelos serviços prestados. Constança,
sabendo, não gosta nada, nada mesmo, aquilo não ficava bem para a família. Reclama
para o marido, que concorda: era mesmo uma vergonha.
Conrado chama Biela para um particular e pondera, a prima era rica, não carecia
daquilo. Biela, decidida e bem à vontade, replica: não via mal nenhum no que fazia,
além de que gostava de dinheiro. O primo insiste, pois, que se era esse o caso, bastava
que ela, invés dele, tomasse conta do próprio dinheiro. Não houve conversa: Biela não
concorda, dinheiro seu estava bem guardado na mão do primo, pessoa de sua confiança.
Sucinta e objetiva em seus argumentos, convence Conrado e pronto, assunto encerrado.
Com o tempo, prima Biela passa a guardar sob a cama, armazenadas em jarros
de barro, as moedas amealhadas; por vezes, espalha algumas delas sobre a colcha, e
brinca – como fazia com os seixos à beira do rio, quando criança.
Vismundo, um encontro
Numa noite de frio, a caminho de casa, enrolada em xale preto e tossindo muito,
Biela percebe estar sendo seguida: na calçada, atrás dela, um vira-lata perdido, sujo e
faminto. Acaba adotando o cachorro, o que marca o início de uma grande amizade: os
dois se tornam inseparáveis. Uma vez alimentado, banhado e tratado, o animal
desconhecido recebe de Biela um nome: Vismundo. Nomeado, Vismundo passa a viver
no quarto, na cama de sua, agora, dona – e com ela aprende truques, maneiras,
brincadeiras. Assim foram vivendo, ele e Gabriela, Biela pros de casa, até o fim do
filme. E o fim colheu prima Biela pouco depois do encontro com Vismundo. Uma
doença grave, de pulmão, após ter tomado muita chuva. Médico chamado às pressas;
Biela quase desfalecida, com sua camisola branca, é carregada pelo primo para o
primeiro quarto que ocupara. O cachorro fica do lado de fora, a entrada proibida por
Constança. A prima perdia-se, mergulhada em febre alta. Em seus instantes derradeiros,
Vismundo, onde Vismundo?, ela se ergue da cama, buscando a saída da casa: na mão,
um bolinho de milho para o amigo, que gania arranhando a porta, onde, onde Biela?
Na tela, Biela caindo ao chão, lentamente, a queda, Vismundo, o bolinho partido,
Vismundo, Biela de novo, as derradeiras imagens, o monjolo batendo, a música da água.
O Fundão.
* * *
Percursos e programas
Antes de tratar de nosso tema específico, a roupa, temos de reconstituir e balizar,
mais ou menos esquematicamente, o percurso de Biela a fim de organizar os nexos
dessa já também nossa história, na medida mesmo em que interagimos com ela e
selecionamos apenas uma de suas isotopias: as relações entre identidade e alteridade.
Sob esse ponto de vista, discernimos três momentos ou programas na versão da
narrativa apresentada, que se quer fiel, na medida do possível, ao filme. No primeiro,
vemos uma Biela que, vinda de fora, do campo, fica perdida no novo mundo em que se
imiscui – a casa dos primos, metonímia da cidade. Neste mundo, seu Outro é prima
Constança, que lhe passa os parâmetros para ser como eles, os da casa, os da cidade, e
está pronta para recebê-la com boa vontade; basta à prima querer, se comportar com
convém, vestir-se adequadamente. Biela é levada a querer, seduzida pela beleza e apuro
da prima, ademais pronta a admiti-la, a corrigir seus erros, ensiná-la e dar proteção Mas
tem muitas dificuldades, ainda sem atinar o porquê, para assimilar os valores que lhe
são oferecidos. Procura satisfazer a expectativa de Constança, como se temesse
decepcionar os da casa e acabar excluída, mas é difícil sua tarefa. Também não pode se
livrar do Fundão, das querenças que traz dentro de si. Não lhe resta outra saída nesta
cizânia senão adotar a estratégia de um camaleão1, ou seja, tentar parecer com seu
outro, o esnobe (papel que cabe como luva a Constança), mas sufocando e, ao mesmo
tempo, afirmando em si mesma os valores que trouxe junto à bagagem. A dramaticidade
deste conflito atinge seu ápice no episódio da ruptura do noivado, que motiva Biela a
1
Para explicar as diferentes trajetórias do que chama figuras sociais, Landowski (2002, pp. 37-39), parte
de uma metáfora zoossocial na qual distingue, ao lado das do esnobe e do dândi, as figuras do camaleão e
do urso, figuras que, articuladas, compõem os eixos dos contrários e dos subcontrários do quadrado
semiótico, respectivamente, tendo como referência uma figura central, caracterizada como a do
gentleman, ou senhor “Todo Mundo”.
renunciar suas tentativas e esforços para se integrar ao mundo dos primos.
Compreendeu, não sem antes ter amargado a humilhação, que não queria, não podia
nem sequer sabia ser Constança. Definiu-se, assumiu ser si mesma.
Inaugura então um segundo programa. Se antes se comportara como camaleão,
agora mostra-se urso2. Com ela, não mais conversas dúbias; não mais fingimentos.
Isola-se no quarto dos fundos, não faz mais suas refeições com os familiares, passa a
ser, antecipando uma decisão dos primos, um segregado, como o são os empregados da
casa, com os quais se identifica e tem afinidades. O que não quer dizer, absolutamente,
que seja uma excluída. Biela, embora pela negação, ainda se referencia na família.
Assimilou uma ou outra coisa da prima da qual não pode mais se desvencilhar, como se
livrara dos ricos vestidos. Nem se quisesse, por exemplo, poderia voltar ao Fundão. Está
só, e se reconhece no seu agora. Anda sozinha pela cidade. Trabalha por gosto, apesar
de não dispensar as pagas – gostava das moedas que recebia, brincava com elas,
guardava-as. À vontade, de avental e mangas arregaçadas, ri e conversa descontraída
com as amigas, suas iguais: cozinheiras, doceiras, arrumadeiras. E pôde sustentar sua
posição com facilidade e desenvoltura ao ser questionada pelo primo que, instigado pela
mulher, queria colocar fim à sua loucura de andar fazendo serviços domésticos em casas
alheias, e, além do mais, receber dinheiro por isso, sendo ela tão rica... Agora, talvez,
pudesse dizer com convicção o que disse certa vez ao ser apresentada pela prima, num
encontro casual, ao padre da cidade: “Eu me chamo Gabriela da Conceição Fernandes,
Biela pros da casa”. Sua casa, porém, já agora era outra e era sua.
Mas há uma falta a ser preenchida que Biela não se havia dado conta: não basta
ser si mesmo, é preciso, na condição humana, ser junto. Quem lhe revela isso,
paradoxalmente, é Vismundo, um cachorro vira-lata, tão só e tão carente de
reconhecimento, de amor, quanto ela. Neste terceiro programa, Biela é para o outro, que
lhe devolve o ser, a completude, além do solipsismo em que mergulhara. Por Vismundo
ela vive e poderia morrer, e morre conciliada consigo mesma. Conseguiu o que talvez
poucos na vida conseguem – firmar o seu desejo. Este o seu segredo?
* * *
A roupa
Ao longo da narrativa fílmica, o percurso da protagonista (situada como Outro) é
pontuado pela composição do figurino. A indumentária de Biela, enfaticamente
tematizada, compõe as figuras assumidas em suas diferentes trajetórias (a do camaleão
quando se identifica com Constança; a do urso, quando se afasta dela), produzindo
efeitos de sentido que definem posturas que lhe são próprias (em relação ao Um,
representado por Constança), além de marcar o lugar por ela ocupado em cada um de
seus “estilos”.
Assumindo a trajetória do esnobe, Constança, dona de rico e variado guardaroupa, parece ter saído de um baú de belezuras. Tecidos sedosos misturados a outros, de
textura mais pesada, em cores combinadas, tons claros penetrando matizes mais escuros.
Padrões lisos, florais, estamparias miúdas; xadrez, petit-pois. Variedade animada,
matéria-prima para confecções esmeradas, algumas até bem originais, peculiares;
outras, provavelmente, copiadas de modelos franceses, ou neles inspiradas. Vestidos
ardilosos, que por meio de cuidadosa e acertada articulação de pregas, cortes e recortes
2
Esta nova configuração explica-se bem a partir do que Landowski (2002, p. 50) denomina estratégias do
Um e do Outro, nas quais se distiguem as “políticas” do Um (assimilação, exclusão, admissão,
segregação) dos “estilos” do Outro (esnobe, dândi, camaleão, urso); práticas paralelas que podem ser
expressas a partir da categoria geral da “junção”.
– acentuando uma curva ali, provocando um trejeito acolá – criam formas arredondadas,
de uma feminilidade tendendo para o exuberante. Saias cintadas, sobrepostas ou não,
abrindo-se em pregas amplas, bem talhadas, cuidadosas em sua tarefa de cobrir/revelar
ancas, nesgas de anáguas insistentes, sapatinhos mimosos. Blusas e paletozinhos
debruados, mangas trabalhadas, por vezes bicolores, bufantes ou sobrepostas, pequenos
botões recobertos de pano. Toilettes primorosas: delicadezas urdidas nos bordados, nos
apliques caprichados, nas golas rendadas. Arremates preciosos, precisos. Por cima,
sobre os ombros, xales variados: uns rendados, outros em crochê, tramas bem abertas,
pontos mais fechados, franjas, triângulos, movimentos. Isso para não falar nos broches,
nos brincos, leques, bolsas, sombrinhas de sinhá. Nenhum despojamento, é certo, mas
também nenhuma indiscrição, nenhum exagero leviano. Tudo sempre com a devida
distinção, tudo sempre no ponto certo, exato, uma roupa para cada ocasião: batas
singelas para os interiores domésticos, trajes requintados e completos para a rua, um
entremeio desses dois para receber visitas. Capricho, decoro, alinhamento. Elevando ao
máximo sua postura esnobe, Constança identifica-se e pode ser vista como Um, o
parâmetro, um modelo a ser seguido.
Biela, que quando chega à cidade dispõe de um guarda-roupa que cabe numa
trouxa, parece ter saído do armário das vassouras. Figura quase andrógena, atenuada
por alguma delicadeza de traços no rosto, emoldurado por cabelos apanhados em
arranjos sem arte. Vestidos simples e escorridos, definindo uma compleição magra e
angulosa; caimentos retos, sem recursos artificiosos: busto não delineado, quadris
escondidos por cortes retos ou por modelagens frouxas. Trajes de tecidos simples,
algodões e chitas. Panos carentes de estamparias, padronagens ou combinações
elaboradas. Cores apagadas ou escuras: ocre, azul escuro, tons de cinzas e marrons.
Nada de laços, fitas, rendas ou babados. Nenhum adereço, nada que não tenha utilidade
prática: saias amplas para movimentos largos, pregas simples. Dois xales apenas: um
deles, peça antiga, de crochê, confeccionada em linha amarelo-mostarda, ponto
complicado, visivelmente trabalhoso. Herdado da mãe. O outro, também em crochê,
preto, ponto simples e trama aberta.
A postura corporal das duas, Biela e Constança, determinada pelo figurino
escolhido, é radicalmente oposta: enquanto uma, seja por onde for que estiver
circulando, mantém os ombros aprumados, o rosto altivo, os gestos precisos e o andar
desenvolto, a outra deixa os ombros parcialmente encurvados, apresentando o rosto
quase sempre baixo, o andar desengonçado, por vezes vacilante. Os gestos de Biela –
salvo quando se encontra em ambientes como o próprio quarto, a cozinha e o quintal
dos fundos – são desajeitados, tímidos e hesitantes.
Na mesma medida em que os tecidos sofisticados que compõem o figurino de
Constança conseguem emprestar-lhe uma certa naturalidade elegante ao porte, a
simplicidade dos tecidos de fibras naturais – como o algodão e a chita – presentes nas
roupas de Biela imprime-lhe um ar de desalento, de pobreza desleixada3. As vestes de
Constança, bem talhadas, cingidas rente ao corpo, favorecem posturas corporais da
ordem da verticalidade e da firmeza – próprias aos que, ocupando posições centrais,
desempenham papéis alinhados com o poder, com a segurança, com a certeza; as de
Biela, frouxas e de corte pouco definido, favorecem posturas corporais desaprumadas e
vacilantes, condizentes com a dúvida e a não assertividade características daqueles que,
ainda que por escolha própria, não ocupam posições de centrais.
3
Evidentemente não se pode ignorar que esta é uma questão polêmica, uma vez que a roupa só funciona
em situação: ou seja, corpo e roupa atuam em estreita consonância. Aqui mesmo, Biela, na sua fase urso,
ainda que trajando as mesmas roupas, apresenta aspecto distinto.
A esnobe Constança tende a manter-se sempre a mesma: em qualquer estado de
espírito, esteja onde estiver, durante todo o desenrolar do filme sua figura é altiva e
elegante no porte – ainda que seja uma altivez tranqüila, sem arrogância ou excessos. Já
a camaleoa Biela é mutante, vai sendo tecida, destecida, re-tecida: sua imagem se forma
e se transforma na primeira metade da narrativa fílmica.
Biela camaleão
Seduzida pelo fazer persuasivo da prima, Biela tenta mudar e começa pela
substituição dos trajes. Embora faça isso com relutância, o que se evidencia em
expressões faciais contrafeitas ao provar os vestidos, na rigidez em que caminha quando
enverga os novos trajes, repletos de adereços, bem elaborados e confeccionados em
panos caros, de boa qualidade: membros rígidos, esticados, pernas e braços abertos além
do que seria necessário; passos duros, como se fora um autômato, uma boneca de pau
animada, porém parcamente provida de movimentos articulatórios. Muito distintas
daquelas a que estava acostumada, as roupas agora são acinturadas, apresentando
camadas e superposições; misturam cores e tecidos, laços e babados, tudo isso
articulado em composições elaboradas que parecem amarrá-la, tolhendo a expansão
corporal, impedido-lhe a espontaneidade do caminhar e dos gestos. A transformação
operada no quarto de costura resulta numa espécie de reificação: Biela, portando vestes
que não lhe permitem ser nem fazer, parece um objeto. Que não agrada aos outros nem
a si própria.
A vez do urso
O xale de novo, a trouxa outra vez. A sombrinha vermelha. Sem se importar com
a opinião alheia, com o seu modo de se dar a ver, Biela recupera as vestes originais com
que chegara à cidade. Passa a olhar de frente, não mais de soslaio. Os gestos adquirem
firmeza e vigor, anda com mais desenvoltura. Ainda assim, cumpre ressaltar, são gestos
e passos que a personagem desenvolve atuando nos espaços periféricos pelos quais
optou: o quarto isolado, localizado na parte dos fundos do terreno na casa dos primos, as
áreas de serviço. Dentre os dois xales que desfila no filme um, recorrente e de elaborada
tessitura, chama a atenção: pertencera à mãe perdida na infância – também perdida – e
aparece deslocado para os ombros de Biela; resquício metonímico, herança da mãe,
tramas que remetem à Fazenda do Fundão. Retoma todos os seus vestidos escorridos,
desprovidos de pregas artificiosas, de recortes insinuantes; as saias amplas e
confortáveis, as blusas simples: nada de amarrações elaboradas, de botõezinhos
minúsculos enlaçados por alcinhas de pano; nos pés, outra vez as velhas botinas.
Cabelos apanhados em tranças singelas, despretensiosas. Significado especial pode ser
atribuído à recuperação do xale da mãe – o mesmo usado na ocasião em que, ao ser
apresentada ao padre da cidade, anunciara-lhe protocolarmente seu nome completo,
prenúncio do auto-batismo que só agora, ao final de seu percurso, poderia
verdadeiramente enunciar: “Eu me chamo Gabriela da Conceição Fernandes”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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