“EU QUERO UMA VIDA-LAZER”
Vinicios Kabral RIBEIRO1
RESUMO: Vidas-lazer é uma proposta de investigação, a partir das expressões artísticas cinematográficas, da
reemergência do afeto na vida cotidiana. A ideia de uma vida-lazer parte das personagens dirigidas por Karim
Aïnouz: Tabu e Patrícia Simone da Silva, respectivamente de Madame Satã (2002) e Viajo Porque Preciso,
Volto Porque te Amo (2009) e caminha para uma discussão dos afetos como possibilidades de formas de
viver/estar juntos. Aqui aspiro discutir, a partir do olhar dessas personagens e no rastro de uma virada afetiva
(Clough, 2010), as possibilidades de vidas-lazer na contemporaneidade. O que esperamos, sonhamos,
vislumbramos aos nos levantarmos cotidianamente? De que maneira os encontros, os amores, as mortes, as
paixões nos conduzem ou nos afastam de uma vida-lazer? Mais ainda, o que seriam essas vidas-lazer? O
referencial teórico sustenta-se nos estudos contemporâneos do cinema, dos afetos e das emoções, em uma
perspectiva transdisciplinar com a História, Sociologia, Filosofia e Antropologia. O objetivo é mapear outras
experiências estéticas que tenham o afeto como central na construção de imagens, paisagens e personagens.
Vidas-lazer que podem ser frágeis, silenciosas, secretas. Que podem ser abertas, em trânsito e mutáveis.
Pequenas histórias que engendram uma revolução estética, como dito por Rancière (2005). Narrativas que se
atentem ao comum, ao cotidiano, ao anonimato da existência. E, também, maneiras de discutir as potências de
uma imaginação afetiva.
PALAVRAS-CHAVE: Vidas-lazer. Cinema brasileiro. Afeto.
1. O que é uma vida-lazer?
Pelos becos da Lapa, nos anos de 1930, ecoa o desejo de Tabu2: “comprar uma
máquina Singer, de pedal, pra costurar as fardas do meu anjo de bondade, meu marido. E
viver uma vida lazer”. Em outro filme, realizado sete anos depois, Patrícia Simone da Silva
conceitua de forma mais precisa o que seria a tal vida lazer, almejada por Tabu. Ao ser
interpelada por José Renato (aquele geólogo amargo, ressequido e espinhoso de Viajo Porque
Preciso, Volto Porque te Amo3) sobre seus sonhos, ela prontamente afirma:
Eu desejava de ser tanta coisa na minha vida. Mas e seja lá o que for, se for o melhor
tô indo pro melhor, e se for o pior tô indo pro pior. Eu queria ter realmente, meu
sonho é tão alto nesse momento, era uma vida lazer pra mim e pra minha filha e
mais nada.
José Renato, curioso, pergunta a Patty o que seria uma vida lazer. E naquele instante
ela revela:
Uma vida lazer é assim: eu na minha casa, eu e a minha filha, o companheiro que eu
tiver ao meu lado, pra esquecer esses momentos todos porque não dá certo. É triste a
pessoa gostar sem ser gostada.
2. Primeiro traçado, pista ou caminho:
1
Doutorando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Mestre em
Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás e graduado em Comunicação Social: Publicidade e
Propaganda; Relações Públicas pela mesma instituição.
2
Madame Satã, 2002, direção Karim Aïnouz.
3
2009, direção Karim Aïnouz e Marcelo Gomes.
1
Vida-lazer nos fala do gostar, de ter seu companheiro, de um amor conjugal e filial.
Nos fala de afetos. Separemos, pois, os termos:
2.1. Vida
Giorgio Agamben (2000) pensa em formas-de-vida. E o que seriam? Apostemos nas
singularidades da vida; em existências não se constituindo apenas como fatos ou evidências,
mas como potencialidades. Formas de individuação em constantes reinvenções. Rancière, ao
propor uma partilha do sensível, ressalta que da vida cotidiana devemos nos atentar ao banal,
sendo ele o que “torna-se belo como o rastro do verdadeiro (2009, p.50)”.
Vida-lazer não é estática, está em constante reinvenção. A vida-lazer é uma vida banal. Ela
nos fala de exemplaridades, de narrativas, de histórias de si. A vida-lazer é uma
potencialidade. É um devir?
Edgar Morin em suas proposições sobre o pensamento complexo dedica um, de seus
sete princípios da complexidade, para ressaltar que a vida, especialmente a humana, é autoecoorganizadora. Dessa maneira, nossa autonomia está intimamente ligada à dependência da
cultura e da natureza, da sociedade e de seu universo geoecológico. A vida e seu pensamento
complexo “é capaz de reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo de reconhecer
o singular, o individual, o concreto (MORIN, p.77, 2003)”.
A vida-lazer é uma forma de conhecimento, de pensamento, de energia. Da vida-lazer
extraímos modos e maneiras de sentir e estar no mundo. Habitar o cotidiano. A vida-lazer é
uma constante produção de sentidos e saberes. Ela é quereres, prazeres, dizeres.
Vida-lazer como promessa de vida. A vida como produção colaborativa de lazeres. “A vida
como o aprendizado de regras e a feitura do dever de casa, o mundo como uma escola
(BAUMAN, 1998, p.162)”.
Na passagem acima, entoada pelo sociólogo da liquidez Zigmunt Bauman, é quase
automático pensar em uma sociedade disciplinar, como bem notada e esmiuçada por Foucault.
Mas a vida-lazer de que quero tratar é reinvenção, certo? Logo, a escola acionada não é
aquela de cadeiras enfileiradas, currículos disciplinares, punições e normatizações. A escola
do mundo, ou a escola da vida-lazer, é onde aprendemos e mediamos às paixões e os amores.
Onde partilhamos os afetos e os blocos de sentimentos (Deleuze; 1992). A escola-vida-lazer
está aberta para matrículas, em sua ementa e proposta nos diz que:
É preciso fazer aparecer o inteligível sobre o fundo da vacuidade e negar uma
necessidade; e pensar que o que existe está longe de preencher todos os espaços
possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e
como inventar um jogo? (FOUCAULT, 1981, p.5)
Como inventar uma vida-lazer? Quase dormindo, José Renato deseja: “Eu quero uma
vida-lazer”. A questão, José Renato, é: qual sua vida-lazer? Falamos de vida, de escola, de
jogos. Então,
A vida-lazer pede passagem, quer romper fronteiras. Ela é um jogo, um complexo
jogo. É lúdica, é tácita, é íntima. A vida-lazer, herança de Foucault, tem a amizade como
linhas de vida e propulsora de outras gramáticas afetivas.
2.2. Lazer
2
Ilana Feldman (2010) ao escrever sobre a vida em cena versa sobre a vida-produto, a
vida-lazer, a vida-trabalho, a vida-performance. Ela abre caminhos para reflexão de uma
subjetividade capturada pelos dispositivos do capitalismo cognitivo (Lazzarato, 2006). Para
Feldman, a apresentadora Ana Hickmann é um exemplo de vida-produto. O filme Pacific
(Marcelo Pedrosa, 2009) trata de vida-trabalho. Já a exposição da intimidade na cultura
midiática (Sibilia, 2008) e a subjetividade empreendedora enquanto sintomas da vidaperformance. A vida-lazer é citada brevemente e é feita ao acarinhar Viajo porque preciso,
volto porque te amo. Das vidas em cena, apresentadas por Feldman, fico com a última, a que
desejo: a vida-lazer.
Em princípio seduzi-me em articular o que eu imaginava de vida-lazer com uma
discussão sustentada pelo conceito deleuziano de dispositivo. Posteriormente, associaria a
ideia de lazer acoplada ao discurso contemporâneo do trabalho imaterial e a indistinção entre
os momentos “lazeres e laborais”. Buscaria discussões travadas sobre a nova condição do
capitalismo, onde a mais-valia é uma auto-expropriação do proletário. O indivíduo
concebendo sua vida como um investimento, calculando seus riscos e lucros (Lazzarato,
2006). E, por fim, imaginei compreender o discurso de uma vida-lazer – especialmente na
enunciação de Tabu e Patty – como uma reprodução de modelos e discursos enraizados em
nossa cultura. Se uma travesti almeja uma vida-lazer onde a costura e a conjugalidade ocupam
seu cotidiano, seria a matriz heteronormativa operando. A prostituta saindo das ruas e sendo
salva por um de seus clientes, como uma higienização das práticas sexuais dissidentes. A
mudança de rota, a fuga, as dobras veio no momento em que me recordei de três frases: duas
de Deleuze e outra de Foucault.
1. “A arte que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha.”
(DELEUZE, 2010, p. 219).
2. “Um pouco de possível, senão eu sufoco” (2010, p. 132).
3. “Não há poder sem recusa ou revolta em potencial” (FOUCAULT, 2003, p. 384).
Lançando-me aos desejos despertados pelas frases acima, assumo e entendo uma
hipótese de vida-lazer que se configure como espaços de liberdade nas redes de poder. A vida
como um sopro, um respirar calmo e contemplativo dos territórios que habitamos. A vida
como imagem, vida-lazer como obra de arte.
Finalmente, Corroboro com a discussão proposta por Gustavo Gutierrez (2001), onde
o prazer e o lazer devem ser reavaliados sobre novas perspectivas, distantes das concepções
herdadas de um modelo industrial, pautadas em um binarismo trabalho/lazer. Prazer-lazer
articulados com a política, intimidade, trabalho. “Uma política dirigida à extensão e
redistribuição do tempo livre, no qual o lazer como busca do prazer possa ser perseguido e
reivindicado como bem fundamental e imprescindível à vida humana (GUTIERREZ, 2001,
p.108).”
A vida-lazer é individual e coletiva. É colaborativa, é política, econômica, ecológica.
É a intimidade, a amizade, os arranjos afetivos. É um projeto de felicidade, prazer. É
intensidade, é um tratado, um contrato4, um caminho.
3. A vida-lazer é romântica:
Eu queria ter um amor, assim, que seja reservado só pra mim. Todo instante, toda
hora que eu chegar, encontrar ele, encontrar aquela pessoa só pra mim. Eu acho
romântico. Apesar de todos os preconceitos que a gente tem que aguentar, bafo de
4
Ao fim do texto proponho um contrato da vida-lazer, inspirado no contrato contra-sexual de Beatriz Preciado
(2002).
3
cachaça, cigarro e de outras coisas. Mas o que importa é que a gente tem que dar
valor e dar lazer a quem dá a gente (PATTY, 2009).
Nesse momento retomo a viagem de José Renato. Volto em seu caminho antes do
encontro com Patty e a definição de uma vida lazer. Em companhia de melodias de Odair
José, Lairton e seus teclados, Peninha, Noel Rosa... Observamos o esboço de um sujeito em
busca de sua vida-lazer. Em sua jornada pelo sertão nordestino, em um estudo para a
transposição de um rio, ele nos deixa embalar pela saudade de sua paixão:
Galega bom dia, bom dia meu amor. Hoje é dia 28 de outubro, dia do funcionário
público. Em Fortaleza ninguém trabalha na repartição e eu aqui nesse torrão seco,
dando um duro danado. Faltam 27 dias e 12 horas pra acabar a viagem, parece uma
eternidade. Do dia que eu sai de Fortaleza até aqui quase num vi ninguém aqui na
estrada. Fico com o rádio ligado, pensando em você a viagem toda, e só. Chega me
cansa de tanto pensar em ti. Hoje parei num posto e vi uma coisa pintada na parede,
meio hippie, nem tinha reparado. Quando sai é que me caiu a ficha da frase que tava
escrito: viajo porque preciso volto porque te amo
José Renato faz jus ao título do filme: ele viaja porque precisa. Para além de suas
atribuições laborais, vamos pouco a pouco entendendo a amargura e secura daquele sujeito.
Suas palavras doces dirigidas à galega, o ar blasé para a paisagem, os encontros esporádicos
com moradores da região, permitem em determinado momento perceber que o geólogo
vivencia um abandono afetivo. Sua galega, bióloga apaixonada por plantas, lhe plantou um pé
na bunda. Abandonos...
Ficar ou Partir?
E Por Falar em Amor, de Marina Colasanti (1986), é um daqueles livros que me afeta
(adiante trataremos das afecções) e enamoro para uma tentativa-pesquisa-teima de construir
argumentos para delinear uma vida-lazer. Assumo o primeiro risco: a vida-lazer é imagem e é
para além dela. E a vida-lazer é plural, são vidas-lazer. São imagens vivas. Vidas que habitam
imagens (Mitchell, 2005).
É preciso falar de amor, e no contexto experimentado de José Renato e teorizado por
Colasanti, é preciso falar sobre o “ficar ou ir embora”:
Todo dia, sem perceber, decidimos ficar ou ir embora. Uma parte de nós decide, em
doses secretas e homeopáticas. Uma parte de nós faz contas, avaliações, e acumula
forças na direção para a qual o todo se encaminha. Sem que o todo saiba
(COLASANTI, p.243, 1986).
A viagem de José Renato cai como uma luva em suas calejadas mãos e em seu
atordoado coração. Viajar para esquecer, elaborar a perda, o laço que se rompe. Viajar para
entender que a promessa de vida-lazer não se cumpriu e que agora o “nós” a que ele estava
habituado com sua galega, volta a ser o “eu”.
Como notado por Clifford (1997) a viagem age como uma modificação. Mais ainda,
possibilita a aparição de outras noções de pertencimento. Nela estamos em movimento,
desdobramos nossos sentimentos, nossas paixões. Sentimos saudades do lar, dos amigos, do
que fomos ao deixarmos nosso território. E nesse pêndulo pelo mundo, no incessante fluxo de
paisagens e passagens, podemos nos questionar “o que é uma volta para casa? (hooks, 2009)”.
Deixamos histórias e vamos à busca de histórias. Há quem diga que o melhor da viagem é
compartilhar as experiências acumuladas com os que ficaram. Outros dizem, como Mario
Quintana, que a viagem é:
4
A louca agitação das vésperas de partida!
Com a algazarra das crianças atrapalhando tudo
E a gente esquecendo o que devia trazer,
Trazendo coisas que deviam ficar...
Mas é que as coisas também querem partir,
As coisas também querem chegar
A qualquer parte! — desde que não seja
Esse eterno mesmo lugar...
E em vão o Pai procura assumir o comando:
Mas acabou-se a autoridade...
Só existe no mundo esta grande novidade:
VIAJAR! (QUINTANA, 2006, p.23)
Para Mario Quintana a viagem é uma grande novidade, o acontecimento, o
extraordinário que sacode o cotidiano. Esse eterno mesmo lugar não está tanto para o
território físico. O mesmo lugar é o local do conformismo, das verdades sedimentadas, da
perda do lúdico e do pueril. O viajante pode ser nômade, e mesmo assim não sair do lugar
(Deleuze, 2010). Viajar é se soltar pelo pensamento, encontrar o outro, a nós mesmos. Viajar
é um dos princípios de uma vida-lazer.
Cecília Meirelles difere o turista do viajante. O primeiro é um acumulador de
experiências, de fotografias, cartões-postais. Quase uma atividade profissional, com metas,
traçados, percursos. Planejamento estratégico, gestão das experiências. Enquanto o
viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em
afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente
cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do
passado, do presente até o futuro – um futuro que ele nem conhecerá (MEIRELES,
1999, p.101).
A vida-lazer de um turista é quase uma vitrine. A vida-lazer de um viajante é morada.
Acredito que de maneira mesmo inconsciente, José Renato corresponda ao viajante.
Sua atribuição é produzir um relatório sobre a viabilidade de transposição de um rio. Mas sua
viagem-trabalho é também viagem-lazer. A cada encontro, a cada folha seca e tronco
retorcido, é possível atinar para as potências afetivas insurgentes do seu olhar. Ele, assim
como nos diz Cecília Meireles, se enreda em uma trama afetiva. Recolhendo, como bem
específico da sua profissão, fragmentos e sinais de sua vida-lazer. O geólogo observa o casal
de idosos, que nunca se separou. O rapaz que faz colchão de chita, viril e tem cara de quem
não brocha. Carlos e Selma “que passaram a noite namorando na bilheteria do circo”. Nessa
paisagem afetiva, José Renato se modifica na viagem. Contorna suas dores. E mesmo às
avessas, e mesmo com a máscara de amargura, ele é afetado “porque precisa, porque ama”.
Ele sonha com sua vida-lazer.
4. Nem tem linha da vida
Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) é, também, sobre viagens. A
bordo de um caminhão o alemão Johann cruza uma parte esquecida do Brasil a serviço da
Bayer, empresa que havia formulado a aspirina. Para convencer seus novos clientes ele utiliza
pequenos filmes, propagandas. Para quase totalidade daquela população, era a primeira
experiência de exibição cinematográfica.
5
Pelas ondas do rádio, pela voz do repórter Esso, sabemos que se trata do ano de 1942,
da segunda guerra mundial. Nas palavras de Ranulpho, natural de Bonança com desejos
cosmopolitas, o país é tão atrasado que nem guerra chega. Ranulpho, como muitos errantes
daquela região encontrou-se ao acaso com o “galego”. Conversas, comparações, choques
culturais. Para o alemão empoeirado tudo era lindo. Para o natural da terra, tudo era feio, sem
jeito, sem esperança. Aos olhos de Johann o Brasil era a terra dos sonhos, não caíam bombas
do céu. Já Ranulpho só imaginava ir para o sudeste, vivenciar a experiência “sudestina”.
Talvez sua vida-lazer seja ter carteira assinada, jornada de trabalho e dinheiro para mandar
remessas à sua mãe. Chegar orgulhoso como nordestino entre os sudestinos. Não ser mangado
por sua fala, não ser associado ao cangaço ou qualquer estereótipo estático que o Brasil de cá
enxerga o de lá.
O grande impasse entre os dois sujeitos se dá nesse encontro intercultural. Ranulpho
não compreende onde os olhos de Johann enxerga beleza. O que há de encantador, curioso,
poético em um lugar sem água, com bichos morrendo pelo caminho e sujeitos entregues à
sorte? Vidas calejadas, faces estriadas pelo trabalho, sofrimento, privações. Johann pensa em
liberdade, no poder redentor da viagem, das tramas escondidas no banal e no comum. Johann
se alimenta do afeto e do exotismo brasileiro. Embebeda-se com nossa cachaça, satisfaz-se
com leitos brasileiros. Experimenta a picada de uma cobra. Refestela-se no luar do sertão.
Temos aquela velha história, aos do norte o avanço e a tecnologia, aos do sul o
exotismo e o folclore. Serão nossos olhos tão atormentados e colonizados, nossa afetividade
exaurida e execrada que somos incapazes de enxergar a beleza que nos circunda? O binarismo
reaparece nos muitos brasis que temos. De um lado o discurso tecnológico e
desenvolvimentista: sudestinos. De outro lado, as lendas, as tradições, o folclore, o sotaque:
nordestinos.
Mas a vida-lazer não é binária. Não quer se valer das divisões geopolíticas e
mentalidades enraizadas. Ela quer liberdade. Melhor que pensar em colonizados e
colonizadores, Ranulpho versus Johann, é assumir esse entre-lugar rente ao transcultural
(Lopes, 2012). A globalização nos toma, nos envolve, nos enreda. Somos locais/globais.
Somos o muro do artista baiano Marepe5: “tudo no mesmo lugar pelo menor preço”.
4.1. Buscar a felicidade
Pouco depois do encontro entre Johann e Ranulpho, Jovelina pede carona, deseja
chegar a uma cidade próxima e seguir em um trem para Recife. Foi expulsa de casa pelo pai.
Logo os dois pavões põem-se a cortejar a moça. Oferecem cigarro, o som do rádio, consolo.
Ao levantarem acampamento, uma repentina insônia acomete os dois rapazes. Ranulpho cede,
amua-se na rede. Jovelina e Johann gemem, se entregam ao prazer e ao encontro dos corpos.
Antes, porém, Johann promoveu uma exibição particular à Jovelina e Ranulpho.
Jovelina deixa escapar lágrimas. O alemão quer saber o que houve. “É que esse filme é tão
triste… É feliz, mas, mas é triste. A gente começa a pensar na vida, e a pensar na vida da
gente. Uma vida que devia ser assim, buscar a felicidade e mais nada”.
A vida-lazer é a busca da felicidade... E mais nada
A ideia de uma vida-lazer levanta questões que conclamam uma reflexão detida para a
possibilidade de uma visada ao cinema a partir do afeto, imbricada numa imaginação afetiva
que permeia o cotidiano. Assim como em aproximações e urdiduras de expressões artísticas
5
Esta obra é um muro de uma loja no recôncavo baiano, trazida pelo artista e apresenta na Bienal de São Paulo
em 2002. Ver Anjos (2005).
6
que tornam o afeto como uma possibilidade de experiência (Ramalho, 2010), uma forma de se
conhecer e se aventurar pelo mundo.
O afeto como intensidade é uma maneira de aproximação do campo cinematográfico e
de análise da imagem considerando o corpo, tanto o imaterial que desliza nas telas quanto o
espectorial, dos sujeitos que se põe frente a essas imagens. Nesse sentido, Del Rio (2008)
investe seus esforços para uma questão levantada por Espinosa, atualizada por Deleuze e
urgente para a contemporaneidade: o que pode o corpo? Ainda para a autora, Deleuze
compreende o corpo como um conjunto de forças que afetam e são afetadas em consonância
com uma gama de outras forças e devolve ao corpo o seu campo de intensidades anuladas nos
modelos de representação.
Elena Del Rio (2008) sustenta que essa força corporal e essa capacidade de afetar são
extremamente criativas e performativas. E esse poder de afecção e imanência criativa dos
corpos contribuem nos processos geradores da existência. O corpo como performativo, como
força da e na cultura. O corpo que não se encerra em um molde de representação. Um corpo
que conclama o outro, o toque, o encontro. Corpos vibráteis. O corpo como lócus de
criatividade anárquica, e por sua visão performativa como um meio de passagem do afeto, das
emoções, dos sentimentos.
Mas de que falamos, portanto, quando falamos, dos afetos e das emoções? Aos modos
de Espinosa o afeto é potência de agir. As emoções seriam a interpretação e codificação
cultural das afecções, os sentimentos, como a raiva, a alegria, a tristeza. Os filmes que
proponho visitar nos falam de encontros, laços ora frágeis ora intensos, abandonos e
despedidas; acima de tudo encontros. Como pensar esses encontros de outra maneira que não
recaia nos recorrentes discursos de fragmentação, individualidade, obsolescência e tantos
outros sintomas de uma dita pós-modernidade? Como esses encontros são capazes de
potencializar nossas afecções? E de que maneira conduzir a discussão e a pertinência do afeto
nos corpos de imagem que tomam o mundo? (Ramalho, 2010).
Ramalho (2010) recupera Elena Del Rio (2008) para problematizar as maneiras em
que ocorre uma sobreposição entre o narrativo e o afetivo no cinema, tendo o afeto uma
potência de afetar e mobilizar a narração do filme. E, assim, considerar não só o corpo
encenado, o corpo-coletivo e corpo-espectorial, mas todo o conjunto de corpos que se
imbricam e potencializam o agir. Um afetivo-performativo comandado pelos corpos-vivos:
simbiose de todos os corpos possíveis. Acredito que essa noção de afetivo-performativo pode
ser um ponto de partida futuro para situar e contextualizar personagens como Patty, José
Renato, Ranulpho, Johann, Everlyn.
Essa virada afetiva é, também, a possibilidade do afeto emergir como potência
estética, conceitual e contemporânea de compreensão da experiência humana. Quebrar os
muros que separam as produções artísticas, os saberes, as formas de se conhecer e
experimentar o mundo. Buscar nas imagens mais que suas dimensões técnicas e aspectos
formais de elaboração, e sim seus vestígios, suas partilhas, sensibilidades e vibrações. Por
fim, corroboro com a ideia de Ramalho: “e se, enfim, as imagens que veiculamos têm o poder
de afetar aqueles que as confrontam, podemos então discernir uma forma de articular a
estética e a política, e sustentar que o conceito de afeto pode nos dizer mais do mundo visivo e
das imagens em circulação do que simplesmente qualificar um conjunto de procedimentos,
uma forma de registro ou uma “tendência contemporânea (RAMALHO, 2010, p.9-10)”.
É necessário definir estritamente o que seria um afeto? Ganhamos ao pensar no afeto
como possibilidades plurais? O afeto como sinônimo de medos, de emoções, de potências de
agir, da efemeridade do instante? De que maneira pensar os afetos como potências
aglutinadoras de vidas comuns, singulares, lazeres? De que modo se pode entender os afetos
7
como contribuintes para uma ética, estética e política na possibilidade de se viver juntos em
um espaço heterogêneo, reconhecendo a profundidade do outro? E qual o espaço da amizade
(Foucault, 1981), dos arranjos para além de dados genéticos, propulsados pelo encontro, pelas
viagens, pelo corpo? De onde emergem os afetos de uma puta, de uma transexual, de um
retirante, de um desertor de guerra, de uma puta transexual? Que podem esses corpos? Que
vidas-lazer podem esses corpos?
Jeudy (2002), ao retomar aos estudos de Deleuze sobre Espinoza, também recupera a
questão “que pode o corpo?” e logo garante que “nenhuma pessoa tem condições de sabê-lo,
pois ninguém conhece os limites de nossas afecções (JEUDY, 2002, p. 109)”. Portanto, é
sobre esse terreno desconhecido, em saber o que pode o corpo, é que podemos relacionar as
possibilidades de experimentação, de ativação de potências, de sensibilidades vibráteis
(Deleuze, 2010). Nesses terrenos onde também podemos perguntar quem são esses e essas
que habitam as vidas-lazer?
Nesta investigação que se inicia, nas vidas-lazer que invento, busco, fujo, deixo muitas
perguntas e algumas pistas. Uma dessas pistas é de vidas-lazer das pessoas/personagens
inscritas em uma lógica de visibilidade das práticas comuns e do banal (Rancière, 2009).
Personagens/pessoas que se diluem no fluxo das grandes cidades, no espaço doméstico, no
cotidiano. Formas-de-vida (Agamben, 2000), tomadas de potencialidades, singularidades,
criatividade. Formas de individuação em constantes reinvenções. Personagens que
desaparecem, “pessoas que escapam, se escapam, se evadem de si do outro da tela. Talvez um
momento de fulguração (LOPES, 2012, p. 219)”. Vidas-lazer de Pattys, Tabus, Ranulphos e
tantas outras vidas em fluxo incessante de sonhos em movimento.
O Contrato da vida-lazer
Voluntário e afetivamente eu_______________________________ busco uma vida-lazer.
Uma vida-lazer que é assim, buscar a felicidade e mais nada. Reconheço a vida-lazer como
formas de vida, como postura política, como encontros e desencontros, como chegadas e
partidas. Uma vida-lazer para mim e meu companheiro (s), companheira (s), ou para uma vida
no singular. Uma vida-lazer que tenha na amizade sua maior autoridade. Mas uma autoridade
terna, tenra, afetiva. Um exercício de forças, de sujeitos desejantes. Assumo e entendo a vidalazer como um risco, e vivo por esse risco. Persigo a vida-lazer como se fossem vagalumes na
penumbra. Quero a linha da vida, uma máquina singer desejante. Quero costurar os devires da
minha existência. Quero veredas, sertão e praia. Quero corpos e sensações. E quero a
felicidade de estar só, tomando uma xícara de café. Quero o coração do Pará. Quero um rádio
ligado, pra pensar em você e só. Quero me cansar de pensar em ti, vida-lazer.
Este presente contrato tem a duração de quantas vidas-lazer for preciso. Pode ser feito, refeito,
acordado e descordado.
______________________________, ________ de _________ de ________________
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1 “EU QUERO UMA VIDA-LAZER” Vinicios Kabral RIBEIRO 1. O