EM CENA, AS OUSADAS E EM ALGUNS CASOS
MIRABOLANTES PERSONAS PÚBLICAS DO ESCRITOR
CONTEMPORÂNEO BRASILEIRO,
COMO O PERNAMBUCANO MARCELINO FREIRE
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Foto: Cia. de Foto/Divulgação
por Rafael Pereira
A
gosto de 1984. Oito horas em ponto. A escritora Maria Amélia Mello assiste ao Jornal Nacional. Na vinheta de
abertura, o slogan da marca Technos (“o Jornal Nacional
começa às oito em ponto”). “Às Oito, em Ponto” é também
o título de um conto que ela havia escrito dias antes. A
coincidência não lhe saiu da cabeça. Dias depois, Maria
Amélia apresentou um projeto para o lançamento de seu
novo livro, homônimo ao conto. Jazz, blues e piano, seguido de sorteio de relógio, displays e convites estampados
com a famosa marca.
“Você está completamente maluca!”, disse-lhe um amigo do meio literário. Emissoras como a Rede Globo fazem reportagens a respeito da surpreendente interação
entre música, poesia, conto, sorteio, brindes, autógrafos
e uma autora tão empreendedora. Foi uma festa. “O que
agora é banal”, resume Maria Amélia, hoje editora da
José Olympio.
O que há 26 anos causou espanto – vincular a figura
pública do autor e sua obra a uma empresa comercial – hoje é café pequeno na frenética busca de visibilidade no mercado literário. O escritor tornou-se
uma figura pública, que pontifica em congressos,
festas, palestras, feiras de livros etc. Ao lançar seu livro, espera-se que ele dê entrevistas, aceite convites
para maratonas de autógrafos, leituras públicas e aparições em talk-shows da moda. Todos recordam que,
um tempo depois de receber o Nobel de Literatura,
em 1998, o escritor português José Saramago declarou que não lhe sobrava mais tempo para escrever. A
clássica pergunta “Como você escreve?” divide agora
as atenções com outra pergunta: “Como você divulga
o que você escreve?”
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Para o escritor paranaense Cristovão Tezza, escrever e não divulgar é sua principal preocupação como escritor. Foto: Guilherme Pupo/Divulgação
NO CONTEMPORÂNEO, O
ESCRITOR É TRANSFORMADO
EM PERSONAGEM E
PARTICIPAR DE FESTAS
LITERÁRIAS, DEBATES,
PROGRAMAS DE TV, BLOGS,
TWITTER É IMPORTANTE PARA
SUA PROJEÇÃO
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“Se aceitasse todos esses compromissos, não escreveria
mais”, diz o escritor Cristovão Tezza, que, com o romance
O Filho Eterno, colecionou os principais prêmios literários
do país. O resultado é que, desde então, passou a receber
em média um convite por dia para participar de eventos.
Não aceita todos, mas ainda assim os cachês pagos pelas
palestras, leituras etc. lhe permitiram realizar o sonho de
abandonar a universidade.
Até mesmo escritores mais jovens, como Nelson de Oliveira – que desde 2007 passou a assinar seus livros como
Luis Brás –, conseguem sobreviver não propriamente da
venda de livros, mas de sua presença no sistema literário.
“O que me faz participar desses eventos é a remuneração.
Não conheço escritor da minha geração que sobreviva só
com direitos autorais”, diz o autor do Pequeno Dicionário
de Percevejos, que é também conhecido por suas oficinas
literárias e projetos editoriais. Essa necessidade de estar
em evidência é reforçada por uma das principais vozes do
mercado editorial, Luciana Villas-Boas, editora do Grupo
Record, a editora que mais publica editores brasileiros na
atualidade. Ela acredita que é inevitável exigir do novo escritor essa postura quase teatral. “O autor precisa mostrar
sua persona literária em eventos”, diz.
Não é de hoje que se valoriza a persona pública do
escritor. Os banquetes na Antiguidade e os saraus do
século XIX são duas provas de que ser escritor não é só
escrever; ele tem que aparecer. Mas há nuances nessa história. Nos anos 1970, por exemplo, a questão era
política. Quase sempre sem receber cachê, mas impulsionados pela luta contra a ditadura, escritores como
Lygia Fagundes Telles, João Antonio e Ignácio de Loyola Brandão viajavam pelo país muitas vezes de ônibus,
dormindo em locais abaixo da linha das três estrelas
para se aproximar de seus leitores. A essência da performance era outra.
“Desde sempre existiu esta atuação do autor. O que mudou foi a forma como o mercado passou a enxergar essa
figura”, sintetiza Joca Terron, autor de Sonho Interrompido
por Guilhotina. Há um grande circuito criado para que o
escritor apareça. “Caso o autor queira sobreviver no mercado, é preciso entrar neste sistema de celebridades”, reitera Joca.
Coisas estranhas passam a acontecer na vida literária
brasileira. “Na verdade, quase não escrevo”, diz Marcelino
Freire, que viaja o país com o espetáculo Contos Negreiros,
baseado em seu livro homônimo e que conta com a participação da cantora Fabiana Cozza. Ex-ator, o pernambucano Freire tornou-se o mais completo exemplar dessa
nova função do escritor. O local da entrevista é sugestivo:
a famosa (graças a ele) Mercearia São Pedro, no badalado
bairro da Vila Madalena, na Zona Oeste de São Paulo. No
caso de Marcelino, as figuras do escritor, agitador cultural
e autoempresário se misturam.
Alguns minutos em sua companhia bastam para você
entender por que ele mesmo afirma que escreve tão
pouco. Atende ao celular, que já tocava havia um bom
tempo. “Sim... Amanhã, claro, que horas? Afe Maria! Tudo
bom, o.k., abraço”, era um novo convite que surgira. No
dia anterior à nossa conversa, Marcelino esteve presente
em dois eventos. Após a entrevista, participaria de um
sarau na Brasilândia, periferia norte de São Paulo. No dia
seguinte, uma participação especial em um show no
centro da cidade. Dias depois, uma viagem para o Rio,
onde o Marcelino oficineiro entraria em ação. E ainda
tem o blog, a produção da Balada Literária, o Twitter...
“Minha agenda é lotada. Mas o que me interessa é deixar a literatura próxima à vida. Literatura é uma festa,
mas que me cansa às vezes.”
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Foto: Divulgação
Foto: Felipe Hellmeister/Divulgação
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A internet é o novo palco de atuação do escritor personagem. A divulgação é enorme, mas é também um
espaço em que as pessoas não controlam totalmente
sua própria imagem. “A internet é o foco da construção
de personagens públicos”, diz Joca Terron. “Parece que
fazem uma confusão entre o que eu sugiro ser e aquilo
que realmente sou.”
Vender a imagem mais do que os próprios livros pode ser
uma contradição com a qual escritores contemporâneos
precisam conviver. “Não crio conscientemente um personagem para mim mesmo. Mas me vejo em situações em
que incorporo uma persona, ou sou interpretado como
um personagem pelo outro”, declara Terron. Apesar dessas dúvidas, ele se diz viciado no mundo virtual. Diariamente, posta textos e imagens em seus dois blogs (Sorte
& Azar S/A e Terronismos!), Facebook e Twitter.
O “escritor tatuado” Santiago Nazarian segue outra linha
de atuação. Figura andrógina, gótica, monocromática,
Joca Terron e Santiago Nazarian, o “escritor tatuado”, são dois dos escritores que estão presentes na internet, nos encontros de escritores...
AS EXPRESSÕES DA PERSONA
ENTRE OS ESCRITORES
PODEM ASSUMIR VÁRIAS
FORMAS, COMO O ESCRITOR
PERFORMÁTICO, O ESCRITOR
BIZARRO, O ESCRITOR
PRODUTOR CULTURAL, O
ESCRITOR PALESTRANTE
maquiagem pesada, que já praticou body art, ele admite que já tentou. “No início de minha carreira, quis realmente criar um personagem, ou, pelo menos, forçar um
personagem criado pela mídia”, diz Santiago Nazarian, conhecido como o “escritor tatuado” e autor de Mastigando
Humanos. Acredita, porém, que a onda dos personagens
se esgotou. “O escritor não é tão bom personagem como
um pop star ou um ator, ele não vende tão bem com a
vestimenta pop.”
Apesar da autocrítica, ser personagens de seus livros
ainda é uma das principais características da obra de
Nazarian. Ele está em orelhas de seus livros, em fotos
nas quais aparece sangrando (em referência à body art)
ou babando um líquido viscoso. Em sete anos, Santiago
publicou cinco livros. Thomas Schimidt é o personagem
que mais se repete na obra, uma figura obscura, sempre
sob suspeita. “Pessoas próximas afirmam que Thomas
seria o próprio alter ego do autor. E que, usando essa
identidade, teria ele realmente vivido algumas das his-
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tórias posteriormente narradas em seus livros”, diz o link
um tanto obscuro do escritor no site da Wikipedia, que
ele mesmo atualiza.
“Sou parte deste mundo do bizarro. Por isso, talvez nem
crie um personagem para mim. Eu sou o próprio”, diz Nazarian, confundindo aqueles que querem separar o criador da criatura. Não dá para saber onde isso vai dar. Mas,
se a literatura é boa ou não, é o leitor quem vai decidir. A
criatividade dos escritores contemporâneos surpreende
a maioria dos leitores. No início de 2010, a escritora Paula
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PARA ALGUNS ESCRITORES
CONTEMPORÂNEOS VENDER A
IMAGEM É TÃO IMPORTANTE
QUANTO VENDER OS LIVROS.
CONTRADIÇÃO?
Nelson de Oliveira (ou Luis Brás, sua persona) escreve em cafés e sobrevive mais com a participação
em encontros literários do que com a venda de seus livros. Foto: Rubens Chiri
Para Luciana Villas-Boas, faz parte da vida literária do escritor
se apresentar em público. Foto: Divulgação
Parisot, autora de Gonzos e Parafusos, transformou o lançamento de seu livro em um grande espetáculo. Durante
sete dias e sete noites, ficou confinada em um cubo de
acrílico dentro da Livraria da Vila, em São Paulo. Ela tinha
uma razão: Paula realizou uma performance em que assumia o papel de personagem da obra, uma psicanalista
em crise. Gravado em vídeo hoje disponível na internet, o
espetáculo tornou-se mais grandioso com a visita do até
então sempre esquivo José Rubem Fonseca, um escritor
conhecido por praticar um esporte impensável para a
maioria dos jovens escritores: desaparecer.
E o leitor?
Se existe a persona do autor, também existe a persona do
leitor: a mineira Isis Costa McElroy, tradutora e professora
de literatura brasileira da Universidade Estadual do Arizona (EUA), brinca na internet, mas frisa que é brincadeira
séria, puro trabalho. Ela cria personas. Já fez, por exemplo,
um perfil fictício de si mesma num site de relacionamento
gay. Queria entender como seria o encontro virtual entre
homens. Quando um amigo a convidou para entrar no
Facebook, encontrou na rede social colegas acadêmicos,
artistas e escritores latino-americanos, e ali repetiu a experimentação performática (que ela também chama de
antropológica): “Já que um autor cria uma persona para si
próprio, decidi eu mesma criar uma persona como leitora
para interagir com eles”. Santiago Nazarian – a quem Isis
considera “brilhante”, “excepcional” e outros adjetivos dispersos em uma curta conversa por telefone – entendeu
o recado e, por meio de encontros virtuais com a leitora,
discutiu sua obra num insólito diálogo entre personas,
sem nem imaginar que sua interlocutora era, na verdade,
uma pesquisadora do assunto. “A partir do momento em
que o escritor cria uma personagem para si próprio – e, no
meu caso, quando o leitor faz o mesmo –, a relação com
o texto muda completamente”, argumenta a professora.
Quando a leitora partia para interpretações dos enredos
psicodélicos do escritor, respondia em tom irônico o “animal poluído e masturbado pela natureza” (como Santiago, o personagem, se define socialmente): “Não entendo
nada do que você diz, mas acho bonito”. Isis McElroy não
perde a brincadeira – e a coesa análise, ainda que sob
paradoxos. “Na medida em que eles criam esse espaço
performático, forma-se um relação verdadeira e sincera
com o leitor. É a inversão da ideia de prostituição ao meio
acadêmico”, declara, sem medo, em um tom que varia do
acadêmico ao performático.
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