UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO
NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
RODRIGO DE SOUZA FILHO
Rio de Janeiro
Dezembro / 2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO
NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Rodrigo de Souza Filho
2006
ii
Souza Filho, Rodrigo de
Estado, burocracia e patrimonialismo no desenvolvimento da
administração pública brasileira. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
Orientador: José Paulo Netto
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Serviço Social/Programa de Pós-graduação em Serviço Social, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 387-397
1. Administração, a questão do Estado e o fenômeno burocrático:
fundamentos da gestão pública. 2. Gênese da administração pública
brasileira. 3. A dialética da administração pública brasileira sob hegemonia
burguesa: burocracia e patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar. 4.
Neoliberalismo e contra-reforma administrativa: burocracia monocrática e
patrimonialismo em transformismo. À guisa de conclusão: referências para
a resistência ao gerencialismo na administração pública. I Netto, José
Paulo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social,
Programa de Pós-graduação em Serviço Social. III. Estado, burocracia e
patrimonialismo no desenvolvimento da administração pública brasileira.
iii
ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO
NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Rodrigo de Souza Filho
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Serviço Social.
Orientador: Prof. Dr. José Paulo Netto.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2006
iv
ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO
NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Rodrigo de Souza Filho
Orientador: Professor Dr. José Paulo Netto
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social.
Banca examinadora:
________________________________
Presidente, Prof. Dr. José Paulo Netto
______________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Mazzeo
______________________________________
Profa. Dra. Elaine Behring
______________________________________
Prof. Livre Docente. Carlos Nelson Coutinho
______________________________________
Profa. Dra. Virgínia Fontes
v
Lucas, trabalho e disciplina são
tarefas árduas e necessárias até
mesmo para adultos. Porém,
podem
ser,
também,
muito
prazerosas.
Célia, espero que mais este produto
de nossa cumplicidade possa servir
de estímulo para continuarmos
enfrentando juntos os desafios da
vida. E a valsa continua a tocar...
vi
AGRADECIMENTOS
Sem dúvida alguma, meu principal agradecimento direciona-se ao meu
orientador, Prof. Dr. José Paulo Netto. Não é um agradecimento de praxe. José
Paulo Netto é um orientador experiente, um verdadeiro “lobo-do-mar”, capaz de
estimular e viabilizar a navegação autônoma do orientando, sempre atento em
assegurar a manutenção do rumo, mesmo que o navegante enfrente mares revoltos
e mareie demasiadamente. No caso desta “travessia doutoral”, se o rumo não foi
mantido, a responsabilidade é inteiramente de um marinheiro que continua tendo
muitas dificuldades em viajar de navio...
No percurso realizado na companhia deste grande mestre (e
educador), fui orientado não apenas no que diz respeito ao trabalho específico da
tese. Com ele, descobri e redescobri práticas, valores e sentimentos inestimáveis à
arte de ensinar/pesquisar – pérolas raras que certamente
influenciarão o
desenvolvimento de minha carreira como docente e pesquisador. Por isso, os
agradecimentos a José Paulo Netto são necessariamente diversificados: obrigado
pela competência, firmeza, apoio, acolhida, humor, disponibilidade e amizade
dispensados no decorrer deste trabalho.
Aos mestres Carlos Nelson Coutinho, José Maria Gomez e Yves
Lesbaupin, referências fundamentais para minha formação acadêmica.
À Profª. Ilda Lopes, responsável pela minha iniciação profissional e por
me fazer entender a importância do Serviço Social.
Aos amigos Cláudia, Rubens e Malu, pela leitura crítica e carinhosa
que fizeram da tese, pelo incentivo permanente e pelo acolhimento que me deram
nos momentos de fraqueza.
À Leila, por ter me possibilitado enxergar com leveza e senso de humor
as lacunas e os limites de minha formação intelectual.
Ao amigo Glauco pela oportunidade de compartilhar a vida – alegrias,
tristezas e possibilidades – e, principalmente por acreditar em mim.
À torcida doméstica: mãe, irmãs e cunhado que mesmo distantes
estiveram sempre presentes.
À Fundação Escola de Serviço Público (FESP) por ter me propiciado
coordenar o curso de Gerência de Programas Sociais, experiência que foi essencial
para levantar elementos sobre meu objeto de estudo e para “testar” minhas reflexões
e “descobertas”.
À Escola de Serviço Social/UFRJ e à Faculdade de Serviço
Social/UFJF, pelo afastamento parcial concedido.
vii
RESUMO
Esta tese, a partir da reflexão teórica sobre a questão do Estado e o
fenômeno burocrático, realizada à luz da tradição marxista, sustenta a idéia segundo
a qual a sociedade capitalista, para desenvolver ações voltadas para a
universalização e aprofundamento de direitos, requer duas condições básicas:
Estado forte na área social e estrutura burocrática ampla como ordem administrativa.
Neste sentido, analisou-se a origem e o desenvolvimento da administração
pública brasileira, para compreender as razões históricas que levaram à imbricação
da burocracia com o patrimonialismo na constituição da nossa ordem administrativa.
A relação estabelecida entre setores não capitalistas e capitalistas da economia
constituiu a base estrutural do pacto de dominação conservador que operou a
industrialização brasileira e forjou a necessidade de uma ordem administrativa que
combinasse elementos racional-legais (componente burocrático) e tradicionais
(componente patrimonialista).
Sobre esta base se processa, nos anos de 1990, a contra-reforma do Estado
e, no seu bojo, a contra-reforma administrativa de cunho gerencialista. A análise foca
o gerencialismo, em termos gerais, como uma proposta que não se refere a um
modelo pós-burocrático, pois nem supera nem suprime a burocracia - pelo contrário:
indica a manutenção da burocracia através de um processo que combina
“burocracia monocrática”, para os centros de decisão, com “flexibilização
burocrática”, via descentralização, para a periferia da ordem administrativa,
possibilitando a incorporação de traços patrimonialistas na gestão pública.
Na argumentação exposta nesta tese, a “administração pública gerencial” no
Brasil, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, configura-se
como
uma
programática
que
trata
a
burocracia de
forma paradoxal
–
monocratização burocrática dos centros de decisão e enfraquecimento da burocracia
para o conjunto das ações do Estado, principalmente as da área social –,
combinando-a com elementos de um patrimonialismo em transformismo.
PALAVRAS CHAVE: burocracia, patrimonialismo, administração, direitos.
viii
Résumé
Cette thèse – écrite sous la tradiction marxiste et basée sur l’aspect théorique
à propos de l’État et du phénomène bureucratique – soutient l’idée que la société
capitaliste, afin de developper des actions tournées vers l’universalisation et
l’approfondissement des droits, demande deux condictions fondamentales: un État
fort en ce qui concerne l’aspect social et une large structure bureucratique en tant
qu’ordre administratif.
Dans ce sens, on a analisé l’origine et le developpment de l’administration
publique brésilienne ayant pour objectif de comprendre les raisons historiques
responsables pour l’imbrication de la bureucratie avec le patrimonialisme dans la
constitution de notre ordre administratif. La relation établie entre les secteurs
capitalistes et pas-capitalistes de l’économie constitue la base structurale du pacte
conservateur de domination qui a opéré l’industrialisation brésilienne et engendré la
nécessité d’un ordre administratif laquelle associe des éléments rationaux-légaux
(élément bureucratique) et traditionnels (élément patrimonialiste).
Sur cette base se passe, aux anées 90, la contre-reforme de l’État et la
contre-reforme administrative de caractère gestionnaire. L’analyse met l’accent sur le
gestionisme de façon générale comme une proposition qui n’a pas de relation avec
un modèle pós-bureaucratique car elle ne surpasse pas la bureaucratie ni la
supprime; au contraire, elle indique le maintien de la bureaucratie à travers un
processus lequel ajoute “bureaucratie monocratique” (aux centres des décisions) et
“flexibilité bureaucratique” (à la périphérie de l’ordre adniminstratif) ce qui permet
l’incorporation des traits patrimonialistes dans une gestion publique.
Dans notre argumentation, “l’administration publique de gestion” au Brésil,
mise en jour par le Plan Directeur de la Reforme de l’Apparat de l’État, elle se
structure comme une proposition qui traite la bureaucratie de manière paradoxale –
la monocratisation bureaucratique des centres des décisions et l’affaiblissement de la
bureaucratie pour l’ensemble des actions de l’État, surtout en ce qui concerne
l’aspect social – en l’associant à des éléments d’un patrimonialisme en
transformisme.
Mots clés: bureaucratie, patrimonialisme, administration, droits.
ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................13
CAPÍTULO I – ADMINISTRAÇÃO, A QUESTÃO DO ESTADO E O FENÔMENO BUROCRÁTICO:
FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA
..................................................................................34
1.1. O conceito de administração em geral
1.2. O Estado em questão
..................................................................................34
............................................................................................................38
1.3. O fenômeno burocrático: contradição, dominação e racionalidade
...............................65
CAPÍTULO II – GÊNESE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
.............................114
2.1. Patrimonialismo: da tradição ibérica à particularidade colonial brasileira .........................117
2.2. Consolidação do patrimonialismo e a origem burocrática da ordem administrativa
brasileira: o período imperial e a primeira república ....................................................................135
CAPÍTULO III - A DIALÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA SOB HEGEMONIA
BURGUESA: Burocracia e Patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar
.................171
3.1. A inflexão de 1930: burocracia e patrimonialismo imbricados como elementos estruturais
da ordem administrativa brasileira .............................................................................................171
3.2. A expansão da burocracia no contexto da irrupção do capitalismo monopolista
....210
3.3. Intensificação do insulamento burocrático como estratégia da consolidação da fase
monopólica do capitalismo brasileiro
................................................................................226
CAPÍTULO IV - NEOLIBERALISMO E CONTRA-REFORMA ADMINISTRATIVA: BUROCRACIA
MONOCRÁTICA E PATRIMONIALISMO EM TRANSFORMISMO
..........................................253
4.1. Antecedentes: anos 80, início dos 90 e a resistência ao modelo neoliberal
................ 253
4.2. Consolidação do neoliberalismo no Brasil e a reforma administrativa .............................289
V - À GISA DE CONCLUSÃO: REFERÊNCIAS PARA A RESISTÊNCIA AO GERENCIALISMO NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..........................................................................................................351
5.1. As razões históricas da imbricação do patrimonialismo com a burocracia na administração
pública brasileira: breve síntese
.............................................................................................351
5.2. Referências para a constituição de uma administração pública democrática
BIBLIOGRAFIA
.................366
.......................................................................................................................387
x
Naturalmente enfatizar a importância de uma perspectiva de
longo prazo não significa que possamos ignorar “o aqui e
agora”. Pelo contrário, a razão pela qual devemos nos interessar
por um horizonte muito mais amplo que o habitual é para poder
conceitualizar de maneira realista uma transição para uma ordem
social diferente, a partir das determinações do presente. A
perspectiva de longo prazo é necessária porque a meta real da
transformação só pode estabelecer-se dentro de tal horizonte
(...). Por outro lado, a compreensão das determinações objetivas
e subjetivas do “aqui e agora” é igualmente importante. Pois a
tarefa de instituir as mudanças necessárias se define já no
presente, no sentido de que ao menos comece a realizar-se no
“exatamente aqui e agora” (mesmo que o seja de maneira
modesta, mas com plena consciência das limitações existentes e
das dificuldades para sustentar a jornada em seu horizonte
temporal mais distante) ou não chegaremos a parte alguma.
Embora ninguém deva encorajar uma ação irresponsavelmente
precipitada e prematura, não se pode excluir o risco de que seja
prematura quando se empreende uma grande mudança
estrutural mesmo que os indivíduos atuem da maneira mais
responsável. A verdade é que não se poderá conseguir nada se
ficarmos esperando as condições favoráveis e o momento
adequado.
As pessoas que advogam por uma grande mudança estrutural
devem estar sempre conscientes das limitações que terão de
enfrentar. Ao mesmo tempo, devem estar atentas para evitar que
o peso de tais limitações se congele e se transforme na força
paralisante de alguma “lei objetiva” fictícia que possa desviá-las
de seus objetivos declarados” (Mészáros, 2003: 122).
O gestor público de que se necessita hoje é um técnico
altamente diferenciado, seja vis-à-vis os gestores do passado
(...), seja vis-à-vis seus congêneres privados. (...) precisa ser
técnico e político, isto é, operar como um agente de atividades
gerais que possui conhecimentos específicos, como um
planejador que trabalha “fora” dos escritórios, com os olhos no
processo societal abrangente, em seus nexos contraditórios e
explosivos; como um profissional cujo êxito depende de uma
dinâmica que não é friamente controlável, mas é essencialmente
política e, como tal, não se deixa isolar dos interesses e das
paixões humanas. Seu raio de ação está colado aos problemas
da democracia, da representação e da participação. Entre suas
novas atribuições, aliás, encontra-se precisamente, em lugar de
destaque, a de atuar como difusor de estímulos favoráveis à
democratização, à transparência governamental, à cidadania, à
redefinição das relações entre governantes e governados,
Estado e sociedade civil (Nogueira, 1998: 189-190).
xi
INTRODUÇÃO
Diferentemente de Oliveira (2003: 29) que,
ao desenvolver seu célebre estudo sobre o
processo de expansão do capitalismo no Brasil,
não
possuía
como
objetivo
“avaliar
a
performance do sistema numa perspectiva
ético-finalista de satisfação das necessidades
da população”, a perspectiva da tese ora
apresentada é a de contribuir com o debate
sobre
“gestão
social”,
entendendo-a
como
instrumento de universalização e aprofundamento
de direitos, ou seja, pretendemos analisá-la
como
uma
dimensão
do
processo
de
democratização voltada para a construção de uma
sociedade efetivamente emancipada.
No capitalismo, a possibilidade de existência de uma “gestão social” nessa
perspectiva ético-finalista exige, no mínimo, uma estrutura que atenda à sociedade
de forma global. Historicamente, o Estado moderno foi um dos mecanismos criados
que possibilitou esse tipo de intervenção para o conjunto da população e, como
instrumento do Estado, as políticas sociais apresentaram-se como o campo, por
excelência, de viabilização dos interesses das classes trabalhadoras na ordem do
capital.
Por outro lado, o tema “gestão social” e
suas variantes (gerência social, gerência de
programas sociais, gestão de políticas sociais),
problematizados na atualidade, inserem-se, de
xii
forma mais direta, nos debates referentes à
alteração do “paradigma” da administração
pública
do
“modelo
burocrático-weberiano”
para o “modelo gerencial”. Esse debate, por sua
vez, encontra-se inserido no contexto de crise e
reforma do Estado - portanto, num debate
político (Diniz, 1997). Dessa forma, a crise do
Estado
só
pode
contextualizada
no
ser
compreendida
processo
histórico
se
do
desenvolvimento do Estado capitalista - no
nosso caso, um Estado capitalista periférico –
para,
então,
mudanças
situá-la
na
conjuntura
das
societárias que vêm ocorrendo,
principalmente, nestas últimas décadas.
Nesse sentido, o processo histórico de desenvolvimento do Estado brasileiro
e de sua ordem administrativa, no quadro da introdução e expansão das relações
capitalistas, e o contexto atual de globalização, reestruturação produtiva e ideologia
neoliberal1, que têm ditado as orientações políticas de enfrentamento do atual
contexto, ganham dimensões de extrema importância para decifrar a conjuntura
contemporânea da chamada “gestão social”.
Sendo assim, consideramos a questão do Estado e o desenvolvimento da
administração pública como as determinações fundamentais para o aprofundamento
do debate sobre a chamada “gestão social”. Dessa forma, realizamos a
investigação de que derivou esta tese centrando na análise da performance da
administração pública e dos desafios e limites colocados ao longo da história
1
Sobre os temas globalização, reestruturação produtiva e neoliberalismo ver, respectivamente: Ianni (1993, 1995 e 1996);
Antunes (1995 e 1999); e Anderson (1995) e Netto (1995).
xiii
brasileira para o seu desenvolvimento, a partir de uma perspectiva éticofinalista de satisfação das necessidades da população voltada para a
superação da sociedade de classes.
Nesse sentido, consideramos oportuno,
sempre que possível, no limite do nosso objeto
de estudo – administração pública –, inserir a
reflexão sobre a administração pública de
políticas
sociais,
concretamente
formulações
intervenção
os
explicitarmos
rebatimentos
numa
do
para
esfera
Estado
e
de
nossas
particular
assim,
da
mais
diretamente, articularmos com a discussão
sobre gestão social.
O destaque que será dado a essa esfera
particular da administração pública também
está
vinculada
ao
fato
dela
ser
a
área
predominante da intervenção profissional dos
assistentes sociais.
Por isso, além do objeto em si –
administração pública – ser
estritamente
relacionado à gestão da área social e à
intervenção profissional do assistente social,
na medida em que o Estado é o grande
implementador de ações sociais e o principal
empregador
de
assistentes
sociais,
a
articulação com a área das políticas sociais
servirá de mediação mais próxima para o
xiv
interesse do serviço social e para a participação
no debate sobre gestão social.
Nesses
fundamental,
termos,
antes
de
consideramos
analisarmos
a
administração pública, determinar, em linhas
gerais, a relação entre Capitalismo, Políticas
Sociais e Democratização para explicitarmos,
nas palavras de Fernandes, a “nossa maneira de
ver as coisas” (Fernandes, 1981:14).
Obviamente, a finalidade dessa reflexão, no limite desta introdução, não é
desenvolver um debate crítico com a polêmica a respeito da democratização como
estratégia de superação da ordem burguesa no seio da tradição marxista. Muito
mais modesto, nosso objetivo restringe-se a explicitar a concepção que temos sobre
o tema a partir das posições defendidas por Carlos Nelson Coutinho (1980) e José
Paulo Netto (1990), assim mesmo sem a pretensão de fazer uma exegese dos
textos ou explorar a polêmica entre os autores. Nosso enfoque visa apenas salientar
as convergências entre os ensaístas para fundamentar nossa posição sobre a
questão. A escolha desses autores, além da qualidade e importância de suas
produções no campo das ciências sociais, foi também realizada devido a influência
de ambos na formação e no debate do Serviço Social e, como trata-se de uma tese
que pretende contribuir com o debate e a formação profissional, nada mais
adequado do que a utilização dessas referências.
Democratização e transição socialista
xv
Em primeiro lugar, cabe apontar a defesa que ambos fazem da democracia
ou, mais precisamente, do processo de democratização, como estratégia para a
construção do socialismo.
De acordo com Coutinho (1980), a “renovação democrática do conjunto da
vida nacional” não pode ser vista como um elemento tático, mas sim como “conteúdo
estratégico” da revolução. Na mesma linha de argumentação, Netto (1990: 86)
afirma que “a democracia (...) não é degradável ao estatuto de expediente tático e
permutável no bojo do processo revolucionário”2 e a defende como valor
instrumental estratégico.
Apesar de não ser objetivo entrar na divergência existente entre os autores,
cabe aqui mostrar o que considero central nessa polêmica. O ponto nodal de embate
está na definição da qualidade do valor que a democracia possui. Ou seja, para
Coutinho ela possui valor universal e para Netto ela se apresenta como um valor
instrumental estratégico.
Valor universal x valor instrumental estratégico - eis o cerne da polêmica. Mas
o que significa cada uma dessas perspectivas?
Resumidamente, a democracia (ou democratização, como posteriormente formula
Coutinho, ao agregar a perspectiva lukacsiana que concebe a democracia como processo e
não como estado – Coutinho, 1992: 20) como valor universal pressupõe o entendimento de
que ela “contribui para explicitar e desenvolver os componentes essenciais do ser genérico
do homem (...) em diferentes formações econômico-sociais” (Coutinho, 1992: 21). Ou seja:
para o autor, a democracia é o instrumento que possibilita resolver determinadas situações
oriundas das divergências existentes na sociedade (capitalista ou socialista) de forma mais
positiva para o enriquecimento do gênero humano.
2
Destaque no original.
xvi
O autor, ao fazer tal assertiva, não está
querendo dizer que a democracia socialista será
a continuidade da democracia liberal; muito
pelo
contrário,
Coutinho
indica
que
“...
impulsionado por condições econômico-sociais
mais favoráveis, o processo de democratização
poderá
alcançar
novos
patamares
no
socialismo” (Coutinho, 1992: 22). Para o autor,
na sociedade socialista teremos a criação de
novos institutos democráticos e a mudança de
função de alguns velhos institutos. No entanto,
afirma que seria equivocado supor que esse
novo patamar do processo de democratização
só se manifestaria após a consolidação do
socialismo, sinalizando que:
Assim como as forças produtivas necessárias à criação de uma nova
ordem econômico-social já começam a se desenvolver no interior da sociedade
capitalista, também esses elementos de uma nova democracia – de uma democracia
de massas – já se esboçam e tomam corpo, em oposição aos interesses burgueses
e aos pressupostos teóricos do liberalismo clássico, no seio dos regimes políticos
democráticos ainda sob hegemonia burguesa (Coutinho, 1992: 22-23).
A ponderação central realizada por Netto a essa abordagem refere-se à
qualidade universal que Coutinho atribui à democracia. Para o polemizador, a
democracia no máximo pode ser considerada, numa perspectiva socialista, como
objetivo-meio, pois o objetivo-fim do processo revolucionário é a criação de novas
relações sociais que se desenvolverão no seio da sociedade sem classes cuja
estrutura e conteúdo não se pode vislumbrar sem correr o risco de “lançar sobre a
sociedade futura as hipotecas ideológicas do presente” (Netto, 1990: 86). Ou seja:
para Netto, indicar a democracia como a melhor forma de resolução das
xvii
divergências de opiniões e interesses na sociedade socialista é antecipar e restringir
possibilidades que uma outra ordem societária poderia desenvolver como prática
política superior e mais enriquecedora que a democrática, para o gênero humano.
No entanto, segundo Netto, a construção dessa sociedade que pode vir a
oferecer um instrumento mais avançado que a democracia para o convívio humano
só pode ser forjada a partir da própria democracia. Por isso, apoiado em Cerroni, o
autor trabalhará com as categorias de democracia-método e democracia condição
social.
A democracia-método é entendida como “o conjunto de mecanismos
institucionais que (...) permitem, por sobre a vigência de garantias individuais, a livre
expressão de opiniões e opções políticas e sociais”. Por outro lado, a democracia
condição-social refere-se a um “ordenamento societário em que todos, a par da livre
expressão de opiniões e opções política e sociais, têm iguais chances de intervir
ativa e efetivamente nas decisões que afetam a gestão da vida social”3 (Netto, 1990:
84-85).
O autor explica que essa distinção efetivada sobre a democracia é
fundamental pois evidencia as conexões existentes entre a estrutura política
(método) e o ordenamento econômico (condição social); explicita o motivo da crítica
à ordem democrática capitalista, na medida em que ela se restringe ao método; e
determina que é a democracia-condição social que organiza uma nova ordem sóciopolítica que inaugura uma nova etapa do desenvolvimento da sociedade humana
(Netto, 1990).
Nesses termos, a democracia-método, possível no marco do capitalismo, é
considerada como instrumento privilegiado e insubstituível para construir a
3
Itálico no original.
xviii
democracia condição social que só se efetiva a partir do momento de tomada do
poder pela classe operária. Pois, só a partir desse estágio é possível “transformar a
estrutura econômica de forma a criar as condições da democracia-condição social”
(Netto, 1990: 95). Em outras palavras, apenas a partir de uma nova ordem societária
é viável possibilitar chances iguais para que todos possam participar da gestão da
vida social. Segundo o autor, no capitalismo isso não é possível4.
Portanto, de acordo com Netto (1990), a ampliação de direitos civis e políticos
no capitalismo é o caminho para o processo de tomada de poder da classe
trabalhadora. A partir do estabelecimento desse novo marco societário, configurado
pelo fato dos trabalhadores assumirem o poder político, num quadro de expansão de
direitos civis e políticos, potencializa-se a incidência política sobre a estrutura
econômica, visando adequá-la às exigências sociais qualitativamente novas,
promovendo a socialização da economia o que, por conseguinte, facilitará a
socialização da política, criando um movimento simultâneo e dialético de produção
de novas relações sociais.
Apesar de não ser explicitado pelo autor, consideramos que essa abordagem
não impede de vislumbrarmos, no contexto do capitalismo, a possibilidade da
ampliação de direitos sociais - através de políticas sociais - ser compreendida como
um elemento que venha a facilitar, posteriormente à supressão da dominação
burguesa, a construção da democracia-condição social.
Ou seja, apesar da ampliação de direitos sociais não significar a efetivação da
democracia-condição social, ou, de outra forma, apesar das “políticas que incidem no campo
da distribuição não serem capazes de afetar substantivamente o modo de produção” (Netto,
4
Fica nítido que a proposição de Netto não se identifica, em nenhum aspecto, com a visão tática sobre a democracia. Apenas
abre a possibilidade histórica de numa sociedade sem classes (sem exploração, onde as riquezas produzidas socialmente são
usufruídas por todos e o poder esteja efetivamente socializado) poder gerar uma nova forma e conteúdo de gestão societária,
radicalmente diferente daquilo que hoje vislumbramos como imaginável a partir das experiências democráticas existentes.
xix
1994: 86), não quer dizer que essa ampliação não seja fundamental para a construção
futura dessa dimensão democrática.
Entendemos que Coutinho, por outro caminho, explicita mais claramente a
relação entre a ampliação de direitos civis, políticos e sociais e a construção do
socialismo, a partir do que ele vai denominar de reformismo-revolucionário.
A partir da definição de democracia como sendo a “presença efetiva das
condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a
participação ativa na formação do governo e, em conseqüência, no controle da vida
social” (Coutinho, 1997: 145), e considerando a articulação existente entre
democracia e cidadania em sua acepção moderna, temos que esse processo de
ampliação de direitos pode levar a uma colisão com a lógica capitalista. Conforme
salienta Coutinho, “a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e
permanente de construção dos direitos democráticos que caracteriza a
modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital”5 (Coutinho, 1997:
158).
Para chegar a essa conclusão, o autor parte da compreensão de que um dos
conceitos que melhor expressa a democracia é o conceito de cidadania, entendido
como “a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma
democracia efetiva) por todos os indivíduos de apropriarem-se dos bens socialmente
criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela
vida social em cada contexto histórico determinado” (Coutinho, 1997:146).
Segundo o autor, a história da modernidade pode também ser entendida
como a história das lutas sociais travadas pela ampliação dos direitos de cidadania
em suas dimensões civil, política e social. Tais lutas enfrentaram forte reação dos
setores capitalistas e foram vitórias significativas da classe trabalhadora que
xx
possibilitaram a constituição do chamado welfare state, a configuração sócio-estatal
que expressou a garantia dos direitos de cidadania, apesar de limitada, pois
subordinada à lógica do capitalismo e, portanto, não assegurando direito social à
propriedade.
Nesse sentido, tornar realidade direitos
sociais, é, também, uma condição fundamental
para o processo de ampliação da cidadania.
A política social como instrumento de materialização dos direitos sociais
assume, portanto, um caráter estratégico de luta social e política para ampliação da
cidadania.
De acordo com a interpretação de Coutinho da obra marxiana, há um
entendimento de que Marx, ao referir-se à vitória dos trabalhadores em relação à
regulação da jornada de trabalho, “fundamentou a legitimidade e a possibilidade
concreta de obter transformações sociais substantivas através de reformas”
(Coutinho, 1997: 158), na medida em que percebeu na vitória da classe trabalhadora
a vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital.
Portanto, conclui-se que o que limita o mercado em favor de direitos sociais
universais fortalece a economia política do trabalho.
Nesse sentido, ocorre do ponto de vista histórico-social uma mudança
significativa no processo de luta social. A variação da correlação de forças, num
cenário de Estado “ampliado”, característica dos Estados que desenvolvem-se na
fase monopólica do capitalismo, permite que interesses das classes populares, por
vezes limitem, ou até mesmo se sobreponham aos interesses capitalistas. Isso
tornou-se possível, pois a sociedade burguesa a partir do final do século XIX e,
principalmente no século XX, tornou-se extremamente complexa, constituindo um
5
Negrito no original.
xxi
espaço público entre a esfera econômica e estatal, onde os diversos projetos de
sociedade buscam hegemonia e condições para suas respectivas implementações.
Essa situação possibilita, hoje, o desenvolvimento de estratégia política de
transformação à qual Coutinho denomina de “reformismo-revolucionário”.
“Esta nova configuração do Estado abriu a possibilidade concreta
de que a transformação radical da sociedade - a construção de um
ordenamento socialista capaz de realizar plenamente a democracia e
a cidadania - se efetue agora não mais através de uma revolução
violenta, concentrada num curto lapso de tempo (...) Essa nova
estratégia política poderia também ter o nome de “reformismo
revolucionário”. Através da conquista permanente e cumulativa de
novos espaços no interior da esfera pública, tanto na sociedade civil
quanto
no
próprio
Estado,
tornou-se
factível
inverter
progressivamente a correlação de forças, fazendo com que, no limite,
a classe hegemônica já não seja mais a burguesia e, sim, ao
contrário, o conjunto dos trabalhadores. Nesse novo paradigma de
revolução, o socialismo é concebido não mais como a brusca irrupção
do completamente novo, mas como um processo de radicalização da
democracia e, consequentemente, de realização da cidadania”
6
(Coutinho, 1997: 164) .
Nesse quadro de ações voltadas para a socialização da política e socialização
da economia, a despeito das divergências entre os autores, o que cabe destacar,
mais uma vez, é que ambos defendem o caminho democrático como sendo o
caminho7 para a construção socialista.
No entanto, convém explicitar que esse processo de democratização, que
pode levar à hegemonia da classe trabalhadora e sua efetivação através da
conquista do poder político, será realizado no campo das lutas de classes8. Ou seja,
6
Encontramos, neste momento, uma outra divergência entre os autores - apesar de não considerá-la central, merece ser
destacada. O processo cumulativo de conquistas e radicalização da democracia, apontado por Coutinho, provoca, em
determinado momento do processo histórico, uma mudança qualitativa que implica a efetivação da hegemonia da classe
trabalhadora e, consequentemente, a ruptura com o capitalismo – lembre-se que segundo Coutinho a ampliação da cidadania
choca-se com a lógica do capital. Esse processo de supressão da dominação política burguesa pode acontecer, segundo Netto
(1990), revestido ou não de violência, dependendo das condições históricas e correlação de forças. O que não significa dizer
que a estratégia revolucionária defendida seja o assalto frontal e violento para a tomada de poder político. Essa possibilidade
de ocorrência de momentos violentos nesse processo de mudança de padrão societário não é explicitado claramente por
Coutinho, dando margem a interpretações que conduzam ao entendimento de que o autor não cogita que possa ocorrer
violência no movimento de construção socialista, dependendo das condições históricas existentes.
7
De acordo com Netto a democracia não é “(...) um instrumento alternativo (...), mas o único que, na sua operacionalização,
antecipa um modo de comportamento social genérico que, no desenvolvimento do processo revolucionário, através de rupturas
sucessivas, tenderá pela prática política organizada e direcionada pela teoria social, a permear todas as instâncias da vida
social” (Netto, 1990: 86). Coutinho, na mesma direção, resume a questão citando o documento político para o 18º Congresso
do Partido Comunista Italiano (1989), o qual afirma que “a democracia não é um caminho para o socialismo, mas sim o
caminho do socialismo” (grifos em Coutinho, 1992: 22).
8
Como vimos na nota anterior, o processo de construção do socialismo, via democratização, implica um dado momento em que
os elementos fundamentais da sociedade capitalista deixam de existir e a direção social (hegemonia) passa a ser da classe
trabalhadora; ou seja: implica na transição socialista, identificada, segundo Netto (1990), pela tomada do poder de Estado pela
xxii
não se trata da construção de consensos com base numa suposta ação fundada na
racionalidade interativa, tal qual formulou Habermas (1988). Refere-se, isso sim, a
uma luta estratégica desenvolvida na arena da sociedade civil, em que disputa-se
projetos políticos distintos, visando a construção da hegemonia da classe
trabalhadora, conforme postulado por Gramsci9.
Nesse sentido, entendemos que é na disputa política entre as classes
fundamentais do capitalismo, em torno do poder de Estado, que localiza-se o cerne
do processo de democratização. Essa disputa, em termos gerais, encontra sua
expressão determinante nas lutas sociais desenvolvidas pelas organizações da
sociedade civil vinculadas à classe trabalhadora, mediadas e totalizadas pelos
partidos políticos do campo democrático-progressista, liderado por aqueles que
tenham como proposição a construção socialista.
Como conseqüência dessa compreensão, as intervenções sociais e
políticas em outros espaços e que não tenham como objetivo imediato a luta pelo
poder de Estado, apesar de não se apresentarem como determinação central do
processo de democratização, configuram-se como ações fundamentais para a
ampliação das condições que venham a contribuir para o fortalecimento e
aprofundamento da democracia-método e para a construção da democraciacondição social, nos termos de Netto, ou, se quisermos, para a ampliação da
cidadania na perspectiva reformista-revolucionária, na formulação de Coutinho.
Portanto, considerando essas questões, cabe indicar como conclusão que a
possibilidade de pensarmos a ampliação de direitos sociais, via políticas sociais, apesar de
classe trabalhadora. Aqui encontramos mais uma divergência central entre os autores, na medida em que Coutinho não define
objetivamente, em sua proposição reformista-revolucionária, o momento em que se dá a efetivação da hegemonia da classe
trabalhadora. No entanto, para o objetivo do presente trabalho, o central não é precisar a questão da transição socialista - o
problema da ruptura com a ordem capitalista (Netto, 1990: 87) - ou definir a partir de que momento passa a se efetivar tal
transição. Para o tema proposto o que interessa é, por um lado, explicitar a importância do processo de democratização para a
superação da ordem capitalista e construção do socialismo e, por outro lado, demonstrar que a gestão, como uma dimensão da
intervenção social, pode ser pensada e implementada como um dos elementos que compõem o processo de democratização
numa perspectiva de construção socialista.
xxiii
não se configurar como espaço central da luta por hegemonia, inserida no processo
reformista-revolucionário ou como contribuição para a construção da democracia-condição
social, implica, também, a possibilidade de concebermos a questão da administração de
tais políticas no campo do fortalecimento do processo de democratização. Visto que, por um
lado, a gestão de políticas sociais configura-se como o modus operandi para implementar os
direitos sociais e, por outro lado, a socialização da economia, de acordo com Netto (1990:
94), depende da socialização da gestão pública para sua promoção.
Sendo assim, consideramos que a experiência de administração pública no campo
da distribuição (gestão social), além de contribuir com a expansão de direitos sociais, pode,
também, favorecer a criação de estratégias e instrumentos para a gestão da produção no
sentido geral e, dessa forma, ser um elemento fundamental para o processo de socialização
da economia, a partir do desenvolvimento da socialização da política.
A apresentação dessas possibilidades teóricas e suas respectivas particularidades é
a tarefa para ser desenvolvida ao longo do trabalho.
Capitalismo
e
Política
Social:
determinações
fundamentais
e
a
construção de uma nova sociedade
As políticas sociais surgem no mundo capitalista, a partir da segunda
revolução industrial (último quartel do século XIX), como estratégia de intervenção
contínua, sistemática e estruturada do Estado na área social, conseqüência da
refuncionalização sofrida pelo Estado para responder à fase monopólica do
capitalismo.
A fase conhecida como “capitalismo monopolista”10 caracteriza-se por ser
uma etapa do capitalismo onde ocorre a tendência à monopolização dos mercados
para obtenção de super-lucros. Cartéis, oligopólios, trustes e “acordos de
9
Sobre minha interpretação em relação às concepções de Habermas e Gramsci, ver Souza Filho (2001).
10
A abordagem desenvolvida neste texto sobre a relação política social e capitalismo monopolista tem como referência o livro
xxiv
cavalheiros” passam a ser as estratégias dos capitalistas para forçarem a elevação
de preços e reduzirem os processos de concorrência, visando a produção de superlucros. Além dessa estratégia, esse período é marcado pela aumento da
produtividade advindo das inovações tecnológicas do período, tanto em relação à
maquinaria, quanto em relação à organização do trabalho.
Esse arranjo econômico-produtivo provoca a médio prazo uma grave crise
sócio-econômica, gerada pela combinação de desemprego, devido à economia de
“trabalho vivo”, alta produção de bens, como conseqüência da introdução de novas
tecnologias, e queda da taxa média de lucro. Essa situação transcorre num processo
político em que a classe trabalhadora já possui um razoável patamar de
organização, o que provoca amplas lutas sociais com o objetivo de superar os limites
do capital, tendo, também, como perspectiva o atendimento de demandas dos
trabalhadores.
Nesse contexto, realiza-se a refuncionalização do Estado, que até então
estruturava-se como “vigilante noturno”, resguardando vida, propriedade e liberdade.
O Estado, a partir de então, passa a assumir funções na área econômica (investe
em infra-estrutura, assume empresas com dificuldades, subsidia o setor produtivo...)
e também na área social, através das políticas sociais.
Entretanto, o formato e o conteúdo das políticas sociais que serão
implementadas dependerão da correlação de forças sociais existentes em cada
sociedade em determinado contexto histórico. Portanto, o nível de organização da
classe trabalhadora, mediada pelo grau de desenvolvimento societal de cada nação,
irá influenciar, sobremaneira, na constituição das políticas sociais e na configuração
“Capitalismo Monopolista e Serviço Social” de José Paulo Netto (Netto, 1992).
xxv
estatal que será estruturada nas diversas nações. Resumindo esse processo, Netto
explicita:
... o capitalismo monopolista pelas suas dinâmicas e contradições, cria
condições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política
através do jogo democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que
podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos. E que este
processo é todo ele tensionado, não só pelas exigências da ordem monopólica, mas
pelos conflitos que esta faz dimanar em escala societária (Netto, 1992: 25).
Portanto, no marco do capitalismo monopolista, as políticas sociais, a partir de
seu objetivo imediato de garantir a reprodução da força de trabalho, atuam em
determinadas expressões da “questão social”11 como forma de construir uma base
ampla de legitimidade e consenso social, através do atendimento concreto de
demandas e necessidades da classe trabalhadora. No entanto, elas encontram-se
intrinsecamente
relacionadas
às
políticas
econômicas
como
estratégia de
intervenção do Estado, visando a realização da lógica monopólica de maximização
dos lucros pelo controle dos mercados. A forma e o conteúdo das políticas
econômicas e sociais, por conseguinte, dependerão dos processos de lutas sociais
concretas que produzirão a morfologia do Estado interventor e de sua política social,
num determinado contexto histórico (Netto, 1992).
Assim, se por um lado o Estado interventor e a política social apresentam-se
como funcionais ao capital, por outro eles também atendem a interesses da classe
trabalhadora. Esse movimento contraditório processa o limite e a possibilidade da
ação política junto ao Estado, no aspecto geral, e à política social, especificamente,
numa perspectiva de transformação da sociedade. Em outras palavras, o Estado, em
sua dimensão de gestor de políticas sociais, não se configura como o centro das
11
Entendemos “questão social”, conforme destaca Iamamoto, como o “...conjunto das expressões das desigualdades sociais
engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter
coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana - o trabalho -, das condições necessárias
à sua realização, assim como de seus frutos (...) A questão social expressa portanto disparidades econômicas, políticas e
culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais,
colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal” (Iamamoto, 2001: 16-17). Para
um mapeamento das determinações teóricas e históricas da categoria “questão social” no marco da tradição marxista, ver,
xxvi
lutas para a transformação da sociedade; no entanto, é um espaço importante para
acumulação
de
conquistas
dos
trabalhadores,
através
da
ampliação
e
aprofundamento de direitos. Portanto, para refletir sobre as organizações da
sociedade civil e a execução de políticas sociais é necessário ter clareza dessa
relação de limite e possibilidade estrutural.
Um outro aspecto que expressa o limite e a possibilidade da intervenção junto
à política social diz respeito à sua relação com a política econômica. Nesse sentido,
para um enfrentamento das expressões da “questão social” que venha a atender de
forma mais ampla os interesses da classe trabalhadora, exige-se uma política
econômica também com este objetivo. Portanto, uma política econômica que reforça
as desigualdades sociais, que não potencializa o enfrentamento das iniquidades
sociais determina as (im)possibilidades de construção de uma política social voltada
para os interesses das classes subalternas. Nesses termos, a as políticas sociais
públicas, por mais que sejam orientadas para a efetivação de objetivos
democráticos12, não viabilizarão um enfrentamento mais amplo das expressões da
“questão social”. O que determina, por sua vez, a (im)possibilidade de debitarmos à
administração das políticas públicas sociais os condicionantes necessários à
reversão do quadro de “exclusão social”13, como se o problema fosse meramente de
“reforma institucional”14.
Assim posta, uma política social voltada
para o atendimento das necessidades das
classes
subalternas
exige
uma
política
também, Netto (2001).
12
Para efeito desse trabalho estaremos qualificando como democrática a política social de “padrão institucional,
redistributivista”. É o padrão que se orienta pelo universalismo de direitos, a ampliação e a garantia, por parte do Estado, da
proteção e da promoção social, através da organicidade das políticas sociais de caráter público.
13
Para um mapeamento do debate sobre “exclusão social” ver Lesbaupin (2000).
14
Acredito ter deixado claro que a concepção ora apresentada procura se desvincular de qualquer vício “politicista” (Menezes,
1993), apesar de possuir como objeto central de análise à política e a questão institucional.
xxvii
econômica que privilegie as demandas pela
universalização e aprofundamento de direitos,
se
se
pretende
que
seu
desenvolvimento
obtenha êxitos na luta contra a pobreza. De
outra forma, a política social enfrentará entraves
estruturais vinculados à política econômica, não
viabilizando a expansão de direitos sociais,
apenas
agindo
independentemente
compensatoriamente,
de
sua
configuração
institucional.
Essas características mostram as articulações necessárias que devem existir
entre a política social e a política econômica, no marco do capitalismo, para produzir
ampliação e universalização de direitos.
Nesses termos, e considerando a perspectiva da estratégia democrática como
caminho para a construção socialista e a articulação existente entre democracia e
cidadania em sua acepção moderna, temos que esse processo de alargamento da
cidadania pode levar a uma colisão com a lógica capitalista15.
Em outras palavras, a política social
como
instrumento
de
materialização
dos
direitos sociais assume, portanto, um caráter
estratégico de luta social e política para
ampliação da cidadania e o aprofundamento
democrático, num movimento que, por um lado,
fortalece a luta mediata anti-capitalista e, por
15
Como vimos na seção anterior, “a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e permanente de construção
dos direitos democráticos que caracteriza a modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital” (Coutinho,
1997: 158).
xxviii
outro lado, possibilita o atendimento imediato
das necessidades das classes subalternas16.
Portanto, a perspectiva de construção de políticas sociais pode ter como orientação
uma proposição “reformista-revolucionária”, nos termos de Coutinho, ou ser um passo para
a constituição da “democracia-condição social”, nas palavras de Netto. Ou seja, as políticas
sociais podem contribuir com o processo de ampliação da cidadania e aprofundamento da
democracia, vinculado a um projeto de sociedade da classe trabalhadora. Entretanto, o
centro de construção desse projeto e o núcleo da luta social que deve ser travada para a
viabilização de um novo padrão societário não estão posicionados no campo das políticas
sociais, conforme pôde ser verificado ao longo da primeira seção. Vale ressaltar, mais uma
vez, após todas as considerações já levantadas, que isso não significa dizer que esse
espaço não se configura como um local onde deva-se travar, também, a batalha pelo
socialismo.
Sintetizando, poderíamos dizer que a premissa que norteia nossa concepção
considera que a sociedade capitalista nunca permitirá a “emancipação humana”; no
entanto, a construção de uma sociedade emancipada deve pautar-se em melhoras
imediatas para a população. Dessa forma, as políticas sociais podem ser efetivadas
num duplo sentido: acumular mudanças para uma radical transformação societária e
possibilitar melhorias imediatas na condição de vida das classes subalternas.
A partir dessa “maneira de ver as
coisas”, partimos da proposição de que no
sistema capitalista, para atender à satisfação da
população numa perspectiva de universalização
e aprofundamento de direitos, necessita-se da
intervenção
do
Estado
para
implementar
16
Navarro corrobora com essa concepção ao afirmar que: “As reformas gerais baseadas em políticas de redistribuição de
recursos entre o capital e o trabalho fortalecem as classes trabalhadoras e as massas populares em sua luta diária contra o
capital. Essas reformas guardam uma lógica que conflita com a lógica do capitalismo e com os interesses do capital” (Navarro,
1993: 195).
xxix
políticas
sociais.
A
mediação
entre
a
intervenção do Estado e a implementação de
políticas sociais é realizada pela estrutura
administrativa. Assim, a administração pública
para implementar políticas públicas, no geral, e
políticas sociais, especificamente, orientadas
para
a
finalidade
da
universalização
e
aprofundamento de direitos, necessita estar
estruturada de forma adequada para atingir o
fim proposto.
Dessa forma, a determinação em última
instância para a efetivação de uma gestão social
nos
termos
propostos
está
centrada
na
possibilidade (condições objetivas e subjetivas)
de uma construção hegemônica na sociedade
civil que conduza o Estado e sua ordem
administrativa a desenvolver políticas públicas
econômicas e sociais que venham a garantir a
radicalização de direitos. Por outro lado, a
determinação em primeira instância deve ser
buscada na formação estatal constituída ao
longo do
desenvolvimento capitalista
ordenamento
administrativo
e o
correspondente
para verificar nessa instância os elementos que
obstam e aqueles que podem potencializar a
organização estatal e administrativa no sentido
da universalização de direitos. Obviamente,
esse raciocínio deve ser desenvolvido à luz da
xxx
particularidade
do
desenvolvimento
do
capitalismo brasileiro.
Sendo
assim,
conhecer
as
particularidades do capitalismo brasileiro e sua
relação com as condições sociais, políticas e
culturais manifestadas nas lutas de classes e
seu rebatimento na estruturação do Estado e de
sua ordem administrativa nos leva a ter uma
visão
de
totalidade
sobre
as
tensões,
contradições, desafios e possibilidades sobre a
constituição, no Brasil, de uma “gestão social”
voltada
para
a
universalização
e
aprofundamento de direitos. E permite, ademais,
que identifiquemos estratégias, mecanismos e
instrumentos que possam contribuir com a luta
imediata e mediata necessária para a efetivação
dessa
perspectiva,
principalmente,
aquelas
estratégias e mecanismos possíveis de serem
desenvolvidas pelos atuais gestores sociais.
São essas questões que constituem o
nosso objeto e que pretendemos abordar ao
longo desta tese. E queremos destacar quatro
aspectos, que, no trato desse objeto, parecemnos as contribuições centrais do presente
estudo para o tema em questão.
O primeiro refere-se à contribuição que
procuramos oferecer ao debate teórico sobre as
questões do Estado e do fenômeno burocrático, no
xxxi
quadro da sociedade capitalista. A escolha da
problematização teórica sobre esses temas está
relacionada ao fato da expansão do Estado e da
burocracia (configuração hegemônica da ordem
administrativa no capitalismo) estar inserida no
processo de democratização e ampliação de
direitos, principalmente sociais, ocorridos na
sociedade capitalista, a partir do final do século
XIX e, mais intensivamente, ao longo do século
XX.
Ao
final
de
nossa
reflexão
teórica,
defendemos a tese da impossibilidade de uma
sociedade
(atendimento
de
de
classes
expandir
necessidades
das
direitos
classes
dominadas na sociedade capitalista, principalmente
sociais), se não possuir Estado forte e burocracia
estruturada. Desenvolvemos essa argumentação
ao longo do Capítulo I.
O segundo aspecto diz respeito à tentativa
de precisarmos melhor a análise da constituição
do Estado e da sua ordem administrativa no
Brasil, no sentido de aprofundar a explicação,
através da análise histórica, da reiterativa
presença do patrimonialismo como traço de
nossa administração pública. Dessa forma,
identificamos a imbricação do patrimonialismo com
a burocracia como resultado mediato da relação
estabelecida
entre
setores
não-capitalistas
e
capitalistas da economia; tal relação constituiu a
xxxii
base estrutural do pacto de dominação conservador
que operou a industrialização brasileira e forjou a
necessidade de uma ordem administrativa que
combinasse
elementos
racional-legais
(burocráticos) e tradicionais (patrimonialistas). Essa
análise é detalhada nos Capítulos II e III.
Em
seguida,
através
das
reflexões
desenvolvidas e das conclusões alcançadas,
realizamos a crítica da chamada “reforma
gerencial
da
administração
pública”.
Analisamos o gerencialismo, em termos gerais,
como uma proposta que não se refere a um
modelo pós-burocrático, pois nem supera nem
suprime a burocracia; pelo contrário, indica a
manutenção da burocracia através de um
processo
que
combina
“burocracia
monocrática”, para os centros de decisão, com
“flexibilização
burocrática”,
via
descentralização, para a periferia da ordem
administrativa, possibilitando a incorporação de
traços patrimonialistas na gestão pública. Nesse
contexto, a “administração pública gerencial” no
Brasil, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado, configura-se como uma
programática que trata a burocracia de forma
paradoxal
centros
–
de
monocratização
decisão
e
burocrática
enfraquecimento
dos
da
burocracia para o conjunto das ações do Estado,
xxxiii
principalmente as da área social –, combinando-a
com
elementos
transformismo.
de
um
patrimonialismo
Transformismo
consistente
em
na
conversão da lógica de fidelidade existente entre o
senhor e o servidor baseada na tradição, em uma
lógica fundada em base racional-legal, tipicamente
burocrática. A fundamentação dessa análise
encontra-se no Capítulo IV, que apresenta o
terceiro aspecto que julgamos central nesta tese.
Por fim, à guisa de conclusão, apontamos
as dimensões que consideramos fundamentais
para a implementação de uma gestão pública que
se oriente para o fortalecimento do processo de
universalização e aprofundamento de direitos no
marco do capitalismo, de forma imediata, mas que
colabore com o movimento de superação de tal
ordem
numa
perpectiva
estratégica.
Então,
voltamos ao ponto de partida e levantamos os
elementos que devem configurar o perfil de um
gestor público e sua organização institucional,
de modo a fortalecer o Estado, em sua
intervenção social, e estruturar uma burocracia
permeada pelo controle público e social.
Esta tese insere-se no marco da teoria
social crítica e busca, a partir das reflexões
acumuladas sobre a realidade da sociedade
capitalista
contemporânea
e
seu
desenvolvimento no Brasil, indicar pistas para
xxxiv
solucionar
alguns
dilemas
relativos
à
estruturação de nossa administração pública.
Essa orientação advém do entendimento
de que sendo o Serviço Social uma profissão
eminentemente interventiva, a tarefa propositiva
e normativa deve estar, também, no campo das
preocupações acadêmicas. E dela decorre que,
no campo do Serviço Social, é necessário um
aprofundamento teórico-prático que interrogue
criticamente a realidade e que produza, também,
sugestões para uma conseqüente intervenção
na sociedade. A produção global na área deve
atender a essa perspectiva, o que não significa
dizer que toda a produção da área deve tratar da
análise crítica da realidade e de indicações
propositivas.
xxxv
CAPÍTULO I – ADMINISTRAÇÃO, A QUESTÃO DO ESTADO E O
FENÔMENO BUROCRÁTICO: FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA
1.1. O conceito de administração em geral
O educador Vitor Henrique Paro nos fornece uma chave heurística que
consideramos precisa para a análise do fenômeno administrativo. Segundo o autor,
o primeiro passo a dar para realizar a análise da administração é distinguir o
conceito em geral
da administração de sua manifestação historicamente
determinada na sociedade capitalista. Nesse sentido, a administração em geral é
conceitualizada como “utilização racional de recursos para realização de fins
determinados” (Paro, 2000: 18).
Esse conceito abstrato da administração permite desvelar a conexão
existente entre os fins e os meios da administração e o papel da razão como
elemento de mediação dessa conexão. Dessa forma, identifica que a administração
refere-se à organização de recursos (meios) para atingir uma dada finalidade; ou
seja: a finalidade determina os recursos que serão utilizados e a racionalidade
envolvida na ação. Essa relação dialética estabelecida entre meio-racionalidade-fim
apresenta as diferentes articulações que podem ocorrer: fim-meio, racionalidade-fim
e racionalidade-meio. Em outras palavras, para uma perspectiva/finalidade
democrática e emancipatória não podemos utilizar meios e racionalidade
instrumentais17.
Isso significa dizer que, embora seja possível
uma administração
democrática, é necessário que suas dimensões sejam depuradas ao máximo, para
que a incorporação de uma racionalidade instrumental na administração e/ou a
17
Para o debate sobre racionalidade e sua relação com as escolhas de estratégia e os meios de intervenção, ver Guerra
(1995) e Santos (2006).
xxxvi
utilização de recursos/meios comprometidos com as relações de dominação sejam
evitadas. Cabe, então, detalharmos um pouco mais o conceito de administração
desenvolvido por Paro.
Para reafirmar a possibilidade e a necessidade de situar a administração
numa perspectiva democrática e emancipatória e, por conseguinte, voltada para a
transformação da sociedade, Paro mostra, por um lado, que a administração é uma
atividade exclusivamente humana, pois teleológica. Por outro lado, a administração é
necessária porque, na medida em que o homem propõe-se a realizar objetivos,
precisa utilizar racionalmente os meios de que dispõe para efetivá-los.
A utilização racional dos meios/recursos pressupõe, segundo o autor, duas
dimensões: a adequação dos recursos aos fins e o emprego econômico dos
recursos. Ou seja, dentre os recursos existentes deve-se utilizar aqueles que mais
se prestam para atingir os fins determinados, de forma que se consuma o menor
tempo possível e o dispêndio dos recursos seja mínimo. A razão assim considerada
é meramente instrumental. Entretanto, como veremos adiante18 e de forma mais
detalhada, Paro não se limita a tratar a razão apenas através de sua dimensão
instrumental. O autor incorpora a questão da emancipação na sua forma de trabalhar
a razão. Sendo assim, a razão não se limita à utilização dos recursos, mas implica,
também, na racionalidade dos fins. A finalidade racional é aquela destinada à
liberdade humana, é aquela, nas palavras do autor, que coloca “como questão
fundamental a busca de objetivos que atendam aos interesses de toda a sociedade
e não de grupos privilegiados dentro dela” (Paro, 2000: 57).
Portanto, os fins - a dimensão ético-política da administração, sua orientação
e seus princípios – devem ser analisados do ponto de vista racional, em seu sentido
18
Ver item 1.3
xxxvii
emancipatório, enquanto os recursos19 devem passar pelo crivo da racionalidade
instrumental. Para a nossa questão - administração pública -, a análise dos fins
remete à avaliação da orientação da política pública, seus princípios e diretrizes,
enquanto a crítica da utilização dos recursos refere-se aos arranjos institucionais e
aos procedimentos gerenciais operacionalizados para atingir as finalidades
determinadas.
Essa concepção busca articular a dimensão política (finalidade) com a
dimensão técnica (utilização racional dos recursos) da administração, evitando a
cisão entre o político e o técnico. Dessa maneira, rejeita-se a forma tradicional de
conceber a administração apenas pelo foco da utilização dos recursos, pois
administrar é agir racionalmente para definir fins e utilizar recursos.
Assim, a abordagem da administração em sua expressão geral nos permite
explicitar dimensões que viabilizam uma análise crítica do fenômeno administrativo,
sem perdermos de vista a importância dessa atividade para a sociedade. Como o
próprio Paro assinala, é necessário evitar tanto a posição daqueles que identificam a
administração capitalista/empresarial como algo de valor universal, quanto combater
os radicais ingênuos que identificam a administração como instrumento capitalista de
dominação e, portanto, não enxergam as reais determinações da dominação vigente
na sociedade. Ambas as abordagens não contribuem para a concepção de uma
administração pública numa perspectiva democrática, pois ou reiteram as relações
de dominação presentes na sociedade - como ocorre com a abordagem que
pretende
dar
um
caráter
de
universalidade à
administração
empresarial,
reproduzindo, dessa forma, o status quo -, ou negam a administração – posição
assumida pela abordagem que não considera as determinações sociais e
19
Segundo Paro os recursos “envolvem, por um lado, elementos materiais e conceituais que o homem coloca entre si e a
natureza para dominá-la em seu proveito; por outro, os esforços dispendidos pelos homens e que precisam ser coordenados
xxxviii
econômicas
da
administração
empresarial/capitalista
e
imputa
à
própria
administração (e não às relações sociais presentes na sociedade) o caráter de
dominação (Paro, 2000).
Nessa ótica, o tema administração ganha substância para além de modismos
e vinculações estreitas e exclusivistas da questão à ordem burguesa. Ou seja, nas
palavras do autor:
Captada em sua [da administração] especificidade (ou seja, sua
forma geral, aquela que é comum a todo o tipo de estrutura social), é
possível identificar quais os elementos que, em sua existência
concreta, se devem às determinações históricas próprias de um dado
modo de produção. Numa perspectiva de transformação social, é
possível além disso, raciocinar em termos dos elementos dos quais
esta forma, historicamente determinada numa sociedade de classes,
precisa ser depurada para que, numa sociedade mais avançada, se
possa pô-la a serviço de propósitos não autoritários (Paro,2000: 18).
A concepção apresentada evita tanto a visão “tecnicista” da administração
quanto a “politicista”, pois pressupõe uma perspectiva que concebe a administração
como uma relação entre a dimensão ético-política e técnico-operativa. Nesse caso,
contribui seja para evitarmos a noção que identifica gestão com a dimensão técnica
(e que, portanto, não deve confundir-se com a política) seja com aquela que
considera que resolvida a questão ético-política a dimensão técnico-operativa
resolve-se naturalmente.
Assim, o tratamento do tema referente à gestão deve ser realizado inserindoo no campo da política como questão pública, resgatando a articulação dialética
entre política/finalidades e utilização de recursos/meios/técnica. A conjuntura
neoliberal que privilegia as análises tecnicistas, partindo do entendimento que a
finalidade da administração está dada (expansão da sociedade capitalista), não
pode ser argumento para que não tratemos da questão da gestão/administração;
com vistas a um propósito comum” (Paro, 2000: 20).
xxxix
muito pelo contrário, devemos enfrentar essa disputa revelando as conexões entre
fins e meios de qualquer expressão concreta da administração.
Em conseqüência, para avançarmos no debate sobre a fundamentação da
administração pública, numa perspectiva democrática, a partir dessa concepção
geral de administração, precisamos situá-la no contexto do Estado capitalista e
explorar sua forma administrativa concreta de expressão fenomênica, qual seja: a
burocracia. Só assim podemos pensar numa perspectiva de administração pública
que supere a atual configuração administrativa da sociedade, realizada através do
Estado.
1.2. O Estado em questão
Tratar a questão do Estado e, posteriormente, refletir sobre o
fenômeno
burocrático requer retomar criticamente os fundamentos do Estado moderno no
marco do desenvolvimento e consolidação da sociedade capitalista.
Nesse sentido, torna-se fundamental, por um lado, resgatar a concepção
hegeliana de Estado e burocracia, na medida em que foi esse clássico quem
primeiro formulou teoricamente a descrição do Estado burguês moderno. Por outro
lado, é essencial retomar a análise weberiana sobre a burocracia e o
desenvolvimento do capitalismo, pois ela nos possibilita identificar categorias
imprescindíveis para decodificarmos os fenômenos em pauta. Esse movimento de
resgate da formulação desses autores sobre o tema será tratado a partir de
produções marxianas e marxistas, visando o aprofundamento crítico-dialético
necessário
para
estruturar
a
base
dos
fundamentos
teórico-políticos
da
administração pública, a partir da concepção geral de administração apresentada
anteriormente.
xl
A partir do enquadramento enunciado acima, um primeiro aspecto a ser
destacado na produção hegeliana20, diz respeito ao fato do filósofo alemão - por
dominar economia política - compreender as desigualdades existentes na sociedade
capitalista. Ou seja, Hegel considera o modo de produção capitalista, como veremos
adiante - independentemente se sua visão sobre a sociedade capitalista é positiva
ou negativa -, um modo de produção anárquico, devasso e irracional do ponto de
vista da produção e distribuição das mercadorias e da construção do interesse
comum. De acordo com Marcuse, Hegel reafirma o caráter negativo do sistema
econômico na medida em que “(...) a própria natureza da estrutura econômica
impede o estabelecimento de um autêntico interesse comum” (Marcuse 1978: 67).
No entanto, apesar da estrutura econômica fundada na propriedade privada
impedir a construção do interesse comum, Hegel não vê possibilidade de supressão
dessa ordem na medida que ela expressa a realização da liberdade.
Para o filósofo alemão, o homem tem o direito de manifestar a sua vontade
em qualquer coisa; essa manifestação da vontade humana torna a coisa desejada
um fim substancial que não existe “em si”, mas passa a existir na medida em que a
coisa transforma-se na realização da vontade. A realização da vontade sobre a coisa
efetiva-se através da apropriação.
O movimento que leva o sujeito a expressar sua vontade através da
apropriação da coisa para satisfazer suas necessidades, desejos e livre-arbítrio é o
movimento que permite ao homem tornar-se objetivo para ele próprio. Em outras
palavras, é através da apropriação que o homem objetiva-se como vontade livre.
20
Utilizaremos como referência central para tratarmos a concepção de sociedade em Hegel sua obra “Princípios da Filosofia do
Direito” (Hegel, 1997).
xli
Nesse sentido, como afirma Hegel, a liberdade tem na propriedade a sua
primeira existência, o seu fim essencial para si. Apesar de que, do ponto de vista da
necessidade, ela (propriedade) aparece, apenas, como meio e não como fim.
A propriedade é a base da liberdade. Como ressalta Marcuse em sua análise,
para Hegel “o indivíduo só é livre quando se conhece como livre, e só atinge este
conhecimento quando põe a prova sua liberdade. Essa prova pode consistir na
demonstração do seu poder sobre os objetos que deseja, deles se apropriando”
(Marcuse, 1978: 181). Portanto, uma sociedade que suprime a propriedade privada
é injusta com os indivíduos, pois não lhes permite exercer a liberdade.
A concepção de liberdade vinculada à propriedade leva Hegel a estruturar o
seu sistema buscando garantir a manutenção da propriedade privada. Essa
perspectiva é um componente central da resignação hegeliana com a realidade de
sua época, na medida em que nitidamente assume o ponto de vista burguês e não
vislumbra alternativa para a ordem do capital.
Por outro lado, o autor alemão, ao entender que a vontade, em sua verdade,
é o Bem – isto é, a essência da vontade em sua subjetividade e universalidade
(Hegel, 1997: 115), na medida em que o Bem é a substância universal da liberdade,
a liberdade realizada como unidade do conceito da vontade e da vontade particular
(idem: 114) -, apresenta uma outra dimensão da vontade que exige outras condições
para a realização da liberdade, não sendo suficiente, portanto, sua manifestação
através da propriedade privada.
Dessa forma, afirma Hegel:
Por isso o Bem, que é necessidade de se realizar por intermédio da
vontade particular e, ao mesmo tempo, substância dessa vontade,
tem o direito absoluto em face do direito abstrato da propriedade e
dos fins particulares do bem-estar. Cada momento destes, separado
do Bem, só tem valor quando lhe é conforme e subordinado” (ibdem:
115).
xlii
Podemos dizer que Hegel, assim, estabelece uma ordem social em que a
propriedade e os fins particulares de bem-estar devem estar subordinados à
dimensão universal do Bem. Ou seja, dialeticamente, a primeira expressão da
liberdade que é a realização da vontade particular através da propriedade está
preservada sob a condição de existir na sociedade a expressão da vontade em sua
universalidade que é o Bem e, dessa forma, ser possível a realização da liberdade
em sua totalidade. Em outras palavras, a liberdade está vinculada simultaneamente
à propriedade - condição básica para o indivíduo objetivar sua liberdade através da
vontade - e ao Bem - a liberdade realizada através da unidade do conceito da
vontade com a vontade particular.
Portanto, diferentemente de Rousseau, para Hegel não se pode fundar a
questão da vontade apenas num postulado moral que parte do indivíduo. Para o
filósofo alemão, na medida em que a vontade geral é o racional em si e para si da
vontade, que pode ser de conhecimento ou não do indivíduo que pode aceitá-la ou
não pelo seu livre-arbítrio, ela estrutura-se de forma objetiva. Ou seja, a vontade
individual, subjetividade da liberdade, “apenas contém um momento unilateral da
idéia de vontade racional” (Hegel, 1997: 219). Conforme esclarece Coutinho:
... [Para Hegel] a vontade geral tem uma base objetiva, ou seja, sofre
um processo de determinações histórico-genéticas que transcende a
ação dos indivíduos e seu projetos volitivos singulares. Enquanto
componente essencial do mundo ético, a vontade geral não resulta de
um postulado moral, não é mero resultado da ação ‘virtuosa’ dos
indivíduos ouvindo a ‘voz própria da consciência’, como pensava
Jean-Jacques, mas se apóia numa comunidade objetiva de
interesses, que o movimento da realidade (que Hegel preferia chamar
de ‘razão’ ou de ‘Espírito’) produz e impõe aos indivíduos,
independentemente da consciência e do desejos deles, ainda que o
faça ‘astuciosamente’, ou seja, valendo-se das ‘paixões’ singulares
dos próprios indivíduos (Coutinho: 1998: 63).
A partir dessa concepção de liberdade, que implica a expressão da vontade
em suas dimensões particular e universal, o autor da Filosofia do Direito
desenvolverá, na terceira parte dessa obra, sua concepção de Moralidade Objetiva
xliii
como o “conceito de liberdade que se tornou mundo real” (Hegel, 1997: 141). Ou
seja, a Moralidade Objetiva é a Idéia de liberdade, portanto o conceito de liberdade
realizado concretamente. Segundo o filósofo alemão, esse conceito realiza-se na
sociedade através de três momentos: família, sociedade civil e Estado.
Para Hegel, como bem sinaliza Marcuse, “toda a terceira parte da Filosofia do
Direito pressupõe que não exista nenhuma instituição objetiva que não esteja
fundada na vontade livre do sujeito, e nenhuma liberdade subjetiva que não seja
visível na ordem social objetiva” (Marcuse, 1988: 188). A partir desse pressuposto,
ao discutir a sociedade civil, principalmente na esfera do sistema de necessidades21,
Hegel analisa as desigualdades existentes na sociedade capitalista.
Para o autor, a sociedade civil é uma esfera onde predominam os interesses
particulares, apesar de encontrarmos, também, espaços de constituição da
universalidade e a formação do interesse comum. Porém, esses espaços presentes
na sociedade civil são mediações para o estabelecimento do universal na sociedade,
realizado pelo Estado. Ou seja, não são dimensões com força para instituir o
universal na sociedade, são apenas expressões do universal (jurisdição e
administração) na sociedade civil - penetração do Estado na sociedade civil - e
expressão de elementos universais da sociedade civil (corporações) - presença da
sociedade civil na constituição do Estado - que realizam a passagem entre o
particular e o universal, entre a sociedade civil e o Estado, evitando, dessa forma, a
dualidade desses momentos.
A sociedade civil, portanto, a despeito de seus momentos universalizantes,
configura-se como o espaço para o desenvolvimento e expansão da particularidade
(idem: 168), através da satisfação das exigências, livre-arbítrio contingente e
21
A sociedade civil em Hegel é formada por três momentos: sistema de necessidades, jurisdição e administração e corporação.
xliv
preferência subjetiva, via propriedade e/ou trabalho, e, dessa forma, apresenta-se
como “o espetáculo da devassidão bem como da corrupção e da miséria” (idem:
168). Pois, conforme o autor, a propriedade é racional, mas a quantidade e natureza
da posse é contingente, o que leva a sociedade civil expressar a situação de
desigualdade.
Em outras palavras, a propriedade, primeira existência da liberdade, decorre
da capacidade individual de satisfazer suas exigências, livre-arbítrio e desejos, ou
seja, a quantidade e a natureza da propriedade de um indivíduo é contingencial.
Portanto, a desigualdade é um elemento constitutivo da sociedade civil, na medida
em que cada indivíduo possui uma determinada capacidade a partir de determinada
contingência. Sendo assim, no momento da sociedade onde o vetor predominante é
a expansão da particularidade, via constituição de propriedade e desenvolvimento
do trabalho, forja-se um movimento de acúmulo de riqueza, por um lado, e miséria,
por outro lado.
Esse quadro é mais nítido no sistema das necessidades, onde o particular
apresenta-se como o oposto ao que em geral é determinado à universalidade da
vontade (idem: 173) - diferentemente do que ocorre na jurisdição e na administração
e corporação, que são os outros momentos que compõem a sociedade civil, onde o
particular apresenta-se como passagem para o universal e não como sua oposição.
Nas palavras do autor:
A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza
particular, está desde logo condicionada por uma base imediata e
adequada (o capital); está depois condicionada pela aptidão e
também pelas circunstâncias contingentes em cuja diversidade está a
origem das diferenças de desenvolvimento de dons corporais e
espirituais já por natureza desiguais. Neste domínio da
particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em
todos os graus e associada a todas as causas contingentes e
arbitrárias que porventura surjam. Consequência necessária é a
desigualdade das fortunas e das aptidões individuais (idem: 179).
xlv
Isso não quer dizer que Hegel considera que os indivíduos devam ser
entregues à sua própria sorte. Para o autor da Filosofia do Direito, as contingências
físicas e ligadas a condições exteriores, assim como a vontade subjetiva, podem
levar os indivíduos à pobreza e à miséria (idem: 206). Essa situação exige que se
organize ajuda aos indivíduos necessitados, suprimindo as contingências que
inviabilizam o bem-estar de cada particular. Pois, como afirma o filósofo, “o bemestar deve ser tratado como um direito e realizado como tal” (idem: 203).
Portanto, a concepção hegeliana reconhece, por um lado, as desigualdades
existentes na sociedade e a produção de pobreza e miséria, como resultado da
satisfação das carências por meio da propriedade - primeira existência da liberdade e do trabalho. Por outro lado, na medida em que o Bem é a liberdade em sua
universalidade que deve estar presente em cada particular, há necessidade de
estabelecer mecanismos na sociedade que propiciem o bem-estar particular.
Sendo assim, o bem-estar particular, como direito, deve ser viabilizado sem
comprometer a ordem da propriedade privada, através de instituições que
salvaguardem o momento universal presente na sociedade civil. Para Hegel, essa é
a função da “administração”:
A previdência administrativa começa por realizar e salvaguardar o
que há de universal na particularidade da sociedade civil, sob a forma
de ordem exterior e de instituições destinadas a proteger e assegurar
aquelas infinidades de fins e interesses particulares que,
efetivamente, no universal se alicerçam (idem: 211).
É interessante notar que, dessa forma, Hegel aceita o ideal liberal da
propriedade privada e, ao mesmo tempo, reivindica uma estrutura universal de
intervenção na sociedade para proporcionar o bem-estar particular, numa
perspectiva de interesse comum.
A administração, apesar de compor a sociedade civil, busca garantir o bemestar particular como condição para o Bem universal, ou seja, é um momento da
xlvi
sociedade civil que estabelece a mediação com a estrutura universal do Estado.
Dessa mesma forma, a jurisdição é o momento da sociedade civil que prima por
manter o que nela existe de substancial para a construção da universalidade: a
defesa da propriedade. Por outro lado, essas funções exercidas pela administração
e pelos poderes jurídicos são funções de domínio do governo que procura aplicar e
conservar o que já foi decidido, as leis existentes, as administrações e institutos que
têm fins coletivos. Portanto, o poder governativo compreende também os poderes
jurídicos e administrativos que diretamente estão vinculados à sociedade civil (idem:
266).
Por fim, a corporação que compõe, juntamente com a administração, um dos
três momento da sociedade civil, também configura-se como reconstituição do
universal que perde-se nas particularidades do sistema de necessidades. Na
corporação, o indivíduo encontra-se enquanto grupo, rearticulando o que está
fragmentado na sociedade civil, visando recuperar o universal em si no caminho de
sua realização para si, o que somente ocorrerá na dimensão do Estado (idem:215).
Assim, Hegel traça uma teia de articulação entre o Estado e a sociedade civil,
evitando a dicotomia entre público e privado presente na tradição liberal. Anderson,
ao comentar esse fato, afirma:
O ponto crucial do esquema reside no modo como ele [Hegel] encara
a integração da sociedade civil no Estado. Temos aqui uma dupla
sobreposição. Por um lado, funções públicas hoje normalmente
atribuídas ao Estado - educação, bem-estar social, saúde,
comunicações - estão localizadas no espaço da sociedade civil. Por
outro lado, as associações corporativas originárias da sociedade civil
estão inseridas na estrutura política do Estado, como as unidades
eletivas da Assembléia dos Estados (Anderson, 1992: 21).
O fundamental a destacar é o fato de
Hegel procurar construir um sistema onde
exige-se um profundo respeito à liberdade
individual
xlvii
-
a
partir
da
manutenção
da
propriedade privada -, numa ordem onde o
privado esteja subordinado ao público.
Entretanto, o momento da sociedade civil não é suficiente para ordenar a
sociedade na perspectiva de realização da liberdade em sua totalidade, ou seja,
para a efetivação do bem-estar comum, do interesse público. Pois, como vimos, a
sociedade civil é o espaço da manifestação e garantia das particularidades, via
propriedade - o que acaba produzindo pobreza e miséria -, e não da efetivação da
universalidade - apesar de também estarem presentes nela elementos que
constituem a passagem para o universal.
Assim, Hegel necessita de um momento constituinte da sociedade que tenha
como principal função garantir a universalidade; um momento que seja a expressão
do racional em si e para si, que garanta a realização da liberdade em sua totalidade.
Ou seja, um momento que, a partir da propriedade, primeira existência e expressão
particular da liberdade, faça com que a liberdade realize-se em sua universalidade
enquanto Bem. O Estado, para o filósofo alemão, possui essas determinações, o
que o leva a projetá-lo como uma estrutura forte de intervenção social para que
possa cumprir essa função.
Hegel não visualiza saída definitiva para a situação de produção de pobreza e
miséria. Por isso, o Estado apresenta-se como a forma de garantir a vigência do
interesse comum, num mundo sob a égide do capital. Para Hegel, a sociedade
individualista burguesa precisa da contraposição do Estado para propiciar a
realização da liberdade. Nesse sentido, para o autor da Filosofia do Direito,
conforme sinaliza Marcuse:
O papel do Estado, ou de qualquer organização política adequada, é
o de zelar para que as contradições inerentes à estrutura econômica
não destruam todo o sistema. O Estado deve assumir a função de
frear os processos sociais e econômicos anárquicos (Marcuse, 1978:
67).
xlviii
que:
O sistema hegeliano, dessa forma, indica
(...) a ordem social dada, baseada sobre a integração das
necessidades através da troca de mercadorias, era incapaz de
assegurar e estabelecer uma comunidade racional. Essa ordem
permanecia essencialmente uma ordem de anarquia e de
irracionalidade, governada por mecanismos econômicos cegos –
permanecia uma ordem de contradições sempre repetidas, na qual
todo o progresso era apenas uma temporária unificação de opostos.
A exigência hegeliana de um Estado forte e independente deriva de
sua compreensão das contradições inconciliáveis da sociedade
moderna. Hegel foi o primeiro na Alemanha a atingir esta
compreensão. Sua justificação de um Estado forte fundava-se em que
este seria um suplemento necessário à estrutura contraditória da
sociedade individualística por ele analisada (idem: 68).
Hegel identifica no Estado a capacidade e o dever de realizar o
Bem/universal. Para ele, numa sociedade baseada na propriedade privada (e, para
Hegel, a propriedade privada é a condição da liberdade), só o Estado pode atuar de
forma a produzir o Bem e garantir o universal, preservando a sociedade civil e seu
fundamento: a propriedade privada.
Portanto, diferentemente da perspectiva liberal clássica, Hegel defendeu a
necessidade de intervenção do Estado na sociedade, visando a eliminar distorções
do sistema para garantir a efetivação do interesse comum. Ao mesmo tempo, o autor
alemão, em conformidade com os teóricos gregos clássicos, identifica a vida coletiva
como o verdadeiro fim do indivíduo e o Estado como a expressão objetiva da vida
pública.
Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à
segurança e proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o
interesse dos indivíduos enquanto tais é o fim supremo para que se
reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado.
Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o
espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem
objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o
verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa
vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades
de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu resultado neste
ato substancial e universal (Hegel, 1997: 217).
xlix
Como podemos perceber, do ponto de vista político, Hegel não compartilha
com os ideais liberais clássicos. Entretanto, do ponto de vista social, o horizonte
hegeliano esgota-se na sociedade fundada na propriedade privada e produtora de
mercadorias. Sendo assim, ao reconhecer os limites dessa ordem social e,
simultaneamente, estar racionalmente comprometido com a realização do Bem, o
autor alemão estrutura seu sistema depositando no Estado a capacidade e as
condições de realização do universal - que é o verdadeiro ponto de partida e de
chegada do indivíduo -, através de diferentes mecanismos institucionais (poder
soberano, legislativo e governativo; administração; jurisdição; corporações, entre
outros) que organizam a sociedade a fim de evitar a fragmentação, a anarquia e a
produção de miséria, elementos característicos do sistema de necessidades.
Esse conjunto de mecanismos, sejam eles vinculados diretamente ao Estado
(poder soberano, legislativo e governativo) ou componentes da sociedade civil
(administração, corporação e jurisdição), cumpre a função de constituição da
universalidade na sociedade fundada na propriedade privada, através de
intervenção sistemática na dinâmica social.
Entre as instituições do Estado, cabe ao poder de governo efetivar a
“integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais” (Hegel, 1997:
246). Hegel, ao tratar do poder de governo em sua relação com a sociedade civil,
claramente influencido pela abordagem hobbesiana do estado de natureza, afirma:
Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses
individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre este interesse
geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado, entre as duas
espécies de interesses reunidos e o ponto de vista mais elevado do Estado e suas
determinações” (idem: 267).
De forma geral, portanto, Hegel vislumbrou a necessidade de intervenção do
Estado na sociedade, visando a eliminar distorções do sistema para garantir a
l
efetivação do interesse comum. E, como vimos anteriormente, o pensador alemão,
ao conceber o bem-estar como direito, postula a necessidade de se organizar a
ajuda aos indivíduos que, por contingências exteriores ou devido à vontade
subjetiva, encontram-se em situação de pobreza e miséria. Dessa forma, Hegel
pensa num sistema público amplo como componente de um Estado perfeito. Ou seja
a ajuda aos pobres e miseráveis é tarefa do Estado através de “instituições públicas
de assistência, hospitais, iluminação das ruas, etc.” Esse fato não elimina a
existência de espaços para a ação da beneficência privada; no entanto, o autor é
taxativo em afirmar que tal tarefa não pode ser reservada “à particularidade do
sentimento e à contingência das suas disposições e informações”; muito pelo
contrário, “deve o Estado ser considerado tanto mais perfeito quanto menor, em
comparação com o que está assegurado de modo universal, for a parte que se
abandona à iniciativa do indivíduo e à sua opinião particular” (idem: 207-208).
Em outras palavras, numa versão atual, Hegel está defendendo um sistema
público e amplo de políticas sociais, ou seja, o filósofo alemão antecipa, do ponto de
vista filosófico, os traços gerais do Estado interventor de bem-estar22.
Na esteira hegeliana, vê-se que o Estado no capitalismo possui uma
dimensão vocacionada para o atendimento de diferentes interesses presentes na
sociedade. E é a instância que Hegel chama de universal que possibilita a
intervenção estatal buscando a garantia do bem-estar do conjunto da sociedade,
incluindo assim as classes sociais não dominantes.
22
Nessa mesma pista, podemos inferir que a contradição levantada por Hegel entre o sistema econômico e o interesse geral
expressa a tensão, muito bem formulada por Marshall sobre cidadania e classe social. Ou seja, o autor inglês ao indicar as
lógicas contraditórias entre o funcionamento da sociedade capitalista e a ampliação da cidadania, através da efetivação dos
direitos individuais, políticos e sociais, explicita a tensão entre o interesse universal de cidadania e os interesses particulares
das classes sociais. Nas palavras do autor: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros de uma
comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status (...)
A classe social, por outro lado, é um sistema de desigualdade (...) É, portanto, compreensível que se espere que o impacto da
cidadania sobre a classe social tomasse a forma de um conflito entre princípios opostos” (Marshall, 1967: 76). Adiante o
sociólogo afirma que o crescimento da cidadania “coincide com o desenvolvimento do capitalismo, que é o sistema não de
igualdade, mas de desigualdade” (Marshall, 1967: 76).
li
Em resumo, podemos ressaltar que Hegel atribui a tarefa de reconciliação
entre classes antagônicas ao Estado por não encontrar saída estrutural, objetiva e
material para a realização da liberdade fora do sistema de produção de mercadorias,
fundado na propriedade privada. Para Hegel, só a partir da propriedade privada é
possível realizar a liberdade. No entanto, como ele mesmo analisa, o sistema
baseado na propriedade privada leva a anarquia para a sociedade, produzindo
desigualdades e miséria que, dessa forma, impede a realização da liberdade para
determinados grupos sociais. A partir dessa contradição, Hegel identifica no Estado
a capacidade de enfrentar a contraditoriedade existente na sociedade, garantindo,
por um lado, a manutenção do sistema produtor de mercadorias – fundamento da
liberdade, pois baseado na propriedade privada – e, por outro lado, evitando o
acirramento da anarquia, desigualdade e miséria produzidas por esse mesmo
sistema, através da viabilização do interesse comum / universalidade. Então, como
bem sinaliza Marcuse, para Hegel “só o Estado pode emancipar, embora não possa
oferecer a verdade perfeita e a liberdade perfeita” (Marcuse, 1978: 95). Nesse
sentido, Hegel não pensa em superar as contradições da sociedade capitalista, mas
sim controlá-las através da “dimensão universal” do Estado.
No entanto, o Estado, diferentemente do que Hegel pensava, não é “o”
momento da universalidade que em última instância constitui a sociedade em sua
verdade objetiva para a efetivação da liberdade em sua totalidade.
O jovem Marx, em 1843, demostrou, dentro de seus limites teóricos (ainda
não dominava a economia política e encontrava-se preso ao materialismo
feuerbachiano) e práticos (ainda não havia se inserido no movimento operário
revolucionário) da época, a inversão hegeliana traduzida pelo “misticismo lógico”
com que Hegel altera de posição o predicado e o sujeito. Ou seja, o Estado, para
lii
Hegel, não é o produto da família e da sociedade civil, mas sim, o elemento que
funda essa família e a sociedade civil. Para Hegel, o universal é racional e
manifesta-se na família e na sociedade civil, através de um espírito que não é
próprio nem da família nem da sociedade civil. A família e a sociedade civil “devem
sua existência a outro espírito que não o seu próprio, são determinações estatuídas
por um outro, e não autodeterminações” (Marx, 1978: 323); os sujeitos, pois, são
transformados em predicado.
Marx, de uma forma mais precisa, escreve, no Prefácio da obra Para a Crítica
da Economia Política (1859), a real relação que se estabelece entre o Estado e a
sociedade civil23:
“...relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser
compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado
desenvolvimento geral do espírito humano, mas pelo contrário, elas se enraízam nas
relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de
`sociedade civil`, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a
anatomia da sociedade burguesa, deve ser procurada na Economia Política” (Marx,
1996a: 51).
Portanto, Marx desmistifica a concepção
hegeliana, mostrando que o Estado, na verdade,
deve ser analisado a partir da constituição da
sociedade civil:
...na produção social da própria vida, os homens contraem relações
determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações
de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência (Idem: 52).
O
expressão
23
Estado,
da
dessa
forma,
universalidade,
não
mas
é
a
sim
a
Como muito bem observa Bobbio (1982), em sua análise sobre o conceito de sociedade civil, diferentemente de Hegel, que
além do sistema das necessidades inclui na sociedade civil a justiça, a administração e a corporação, Marx considera
sociedade civil apenas como sendo as relações de produção que formam a estrutura da sociedade, portanto, identifica-a
liii
expressão das relações sociais de produção
existentes na sociedade capitalista, portanto,
uma “universalidade alienada”. No caso da
sociedade capitalista, o Estado será estruturado
tendo como base a relação de exploração
estabelecida pelo capital. O Estado, assim,
representa a dominação de classe presente na
sociedade civil, para garantir a manutenção e a
reprodução das relações sociais estabelecidas
pela ordem do capital. Nas palavras de Marx e
de Engels (1998), o executivo do Estado
configura-se como “um comitê para administrar
os negócios coletivos da classe burguesa”
(Marx, 1998: 7).
Apesar dessa concepção restrita de Estado em Marx (Coutinho, 1994), o
autor d`O Capital, ao tratar criticamente a concepção hegeliana do Estado como
universalidade, desenvolve uma argumentação que não descarta a dimensão
universal presente no Estado capitalista. O que Marx aponta é que esta dimensão é
limitada pela estrutura da sociedade civil e não configura-se como essência do
Estado.
No texto de 1843, quando Marx ressalta que Hegel foi quem melhor
descreveu a aparência do Estado capitalista, ou seja, como o Estado capitalista
apresenta-se para a sociedade e não o que ele é efetivamente, o autor, nesses
termos, considera o caráter universal do Estado como aparência24.
apenas com o que Hegel denomina de sistema das necessidades.
24
Segundo Marx: “Não devemos censurar Hegel porque descreve o ser do Estado moderno tal e como é, mas sim por
apresentar o que é como essência do Estado” (Marx, 1978: 375)
liv
Para Marx, então, a dimensão universal do Estado não é falsa, pois compõe a
estrutura estatal, na medida em que configura-se como aparência do fenômeno.
Aqui cabe uma pequena digressão sobre a relação entre aparência e
essência no materialismo dialético, para melhor explicitarmos a assertiva acima.
Na concepção ontológica do conhecimento, o movimento de análise do objeto
inicia-se com o contato do sujeito com o dado, o fato objetiva e sensivelmente
presente. Dessa forma, o primeiro contato do sujeito com o objeto se dá pela
aparência do objeto. Portanto, a aparência do fenômeno é a primeira instância sobre
a qual o sujeito deve interrogar o objeto para que se atinja a sua essência25.
Nesse sentido, o dado, a aparência, o fato em si não é um elemento menor da
reflexão dialética26. Ela (aparência) constitui-se como a dimensão a partir da qual o
sujeito procurará apreender a essência do objeto em questão, seu movimento
interno, suas conexões, estruturas e contradições, para que seja possível captar as
determinações do fenômeno e, dessa forma, através da razão, via processo de
abstração, expressá-las como categoria lógica, para, posteriormente, retornar ao
objeto, visando verificar a adequação da reprodução ideal (categoria construída)
com o movimento real do fenômeno e reiniciar todo o processo de novo, a fim de
realizar abstrações cada vez mais sutis e, sendo assim, apreender o objeto em sua
totalidade27.
Esse movimento descrito é o processo de “reprodução do concreto por meio
do pensamento” (Marx, 1996b: 40). Portanto, fica claro que a aparência constitui o
25
Cabe sinalizar que a importância do dado, do empírico, não resvala em nenhum posicionamento empirista. Para uma crítica
ao empirismo, ver Lukács (1981: 65 - 67)
26
De acordo com Tonet, “(...) para uma perspectiva ontológica, as aparências não são meros epifenômenos, coisas sem
importância, trivialidades. Elas constituem um momento do ser social de igual consistência ontológica que a essência” (Tonet,
1995: 42).
27
Lukács destaca, de forma enfática, a relação dialética existente entre aparência e essência, ressaltando sua unidade e
distinção, necessárias para um estudo científico. Nas palavras do autor: “Trata-se, de uma parte, de arrancar os fenômenos de
sua forma imediatamente dada, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados a seu núcleo e a sua
essência e tomados em sua essência mesma, e, de outra parte, de alcançar a compreensão deste caráter fenomênico, desta
aparência fenomênica, considerada como sua forma de aparição necessária (...) Esta dupla determinação, este
lv
objeto e que, dessa forma, a dimensão de “universalidade” é parte constitutiva do
Estado, apesar de não ser sua essência.
Na realidade, para sermos mais preciso, essa “dimensão universal” diz
respeito às ações do Estado que atendem a interesses das classes subalternas. Ou
seja, o Estado não expressa o interesse geral e nem está voltado para o bem
comum, simplesmente ele também atua atendendo a determinados interesses das
classes subalternas, na medida da necessidade de garantia da estrutura de
dominação fundada na propriedade privada. Em outras palavras, uma sociedade
estruturada em classes sociais não há como haver interesse geral, pois os
interesses estão vinculados às estruturas de classe.
Marx, ao fazer a análise crítica da Filosofia do Direito, no que refere-se ao
poder governativo e à administração corporativa, explicita a antítese que Hegel
estabelece entre “propriedade privada e interesses das esferas particulares frente ao
interesse superior do Estado: contraposição entre propriedade privada e Estado”
(Marx, 1978: 361). Continuando, o crítico analisa que a solução da antítese,
apresentada por Hegel, nada mais é que “uma simples acomodação, um pacto, uma
confissão do dualismo irredutível” (idem). Em outras palavras, Marx mostra que
Estado não viabiliza interesse geral, no máximo ele promove uma acomodação entre
interesses. Assim, na medida em que o Estado acomoda interesses ele incorpora,
também, interesses das camadas dominadas da sociedade.
No capitalismo, as classes fundamentais que representam o capital e o
trabalho possuem interesses, do ponto de vista estrutural, antagônicos e
inconciliáveis, pois a participação nas decisões fundamentais da produção (o que
produzir, quanto produzir e como distribuir) são assimétricas, já que o poder está nas
reconhecimento e esta ultrapassagem simultâneos do ser imediato é precisamente a relação dialética. (Lukacs, 1981: 68)
lvi
mãos de quem detém os meios de produção e se apropria da riqueza produzida e
não daqueles que participam do processo a partir de sua força de trabalho.
No entanto, isso não significa dizer que alguns interesses da classe
trabalhadora não possam ser atendidos no capitalismo. Nesse sentido, o Estado
mostra-se
como
o
elemento
viabilizador
desses
determinados
interesses,
apresentando-se, ideologicamente, como representante dos “interesses gerais”,
“expressão da racionalidade e universalidade”.
Determinados textos da juventude de Marx, numa nítida perspectiva radical
democrática, apresentam essa possibilidade; seja quando o autor afirma que Hegel
apresenta a antítese entre propriedade privada e Estado e descreve a aparência do
Estado moderno (Critica del derecho del Estado de Hegel, 1978: 361 e 375), seja
quando constata que a filosofia alemã do direito e do Estado é coerente com o
mundo moderno (Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução,
2002b: 51 e 52), ou, então, quando, ao fazer a crítica aos direitos humanos, Marx
discute a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, mostrando
que a emancipação política liderada pela burguesia é um avanço em relação à
sociedade feudal, mas não leva à emancipação humana (A Questão Judaica, 2002a:
34-37)28.
Poderíamos dizer que essas observações marxianas são do tempo em que o
autor ainda não tinha amadurecido suas reflexões sobre o funcionamento da
sociedade burguesa e, também, não tinha assumido uma clara perspectiva
revolucionária de classe. Entretanto, se analisarmos com atenção alguns textos da
década de 50 e 70 (Mensagem do Comitê Central à Liga de março de 1850, Crítica
28
Bobbio, numa precisa análise da “Questão Judáica” concorda com a tese de que a emancipação humana é mais ampla que a
emancipação política, no entanto resgata a necessidade da emancipação política como elemento da emancipação humana.
Nas palavras do autor: “Tese incontestável, contanto que não nos esqueçamos que se a emancipação política não é suficiente,
é no entanto sempre necessária, não podendo existir emancipação humana que não passe pela emancipação política”
(Bobbio, 1979: 54).
lvii
ao Programa de Gotha e Anotações ao livro Estatismo e anarquia de Bakunin)
podemos perceber com clareza a importância dada por Marx ao Estado, no sentido
de que, através dele, alguns interesses das classes dominadas podem ser
alcançados.
O texto Mensagem do Comitê Central à Liga de março de 1850, cuja
centralidade
encontra-se
no
desenvolvimento
da
estratégia
da
revolução
permanente, expressa em suas conclusões a clareza de Marx e Engels em relação
ao processo de mudanças necessárias para a construção do comunismo.
Em primeiro lugar, deixam claro que os trabalhadores não poderão, num
primeiro momento, propor medidas diretamente comunistas. Em segundo lugar,
indicam: 1) a necessidade dos trabalhadores obrigarem os democratas a “concentrar
nas mãos do Estado o maior número possível de forças produtivas”; e 2) a pressão
que deve ser exercida junto aos democratas para que sejam ampliadas e
radicalizadas as propostas reformistas que forem levantadas (Marx e Engels, 1984:
229-230).
O texto, então, mostra que mesmo num
quadro
revolucionário,
na
perspectiva
da
revolução permanente, as mudanças não são
imediatas e a mediação do Estado, ainda sob
direção da classe dominante, apresenta-se
como
fundamental
interesses
dos
para
a
conquista
trabalhadores,
por
dos
isso
a
necessidade da pressão junto ao Estado sob
direção burguesa. Se a ação junto ao Estado
para a ampliação do atendimento dos interesses
da classe trabalhadora é estratégica num
lviii
quadro revolucionário, devido à impossibilidade
de, num primeiro momento, viabilizar “medidas
diretamente comunistas”, num contexto fora do
horizonte
revolucionário
essa
ação,
por
conseqüência lógica e prática, mostra-se, muito
mais
ainda,
como
fundamental
para
o
aprofundamento das conquistas de interesses
da classe trabalhadora. Esta concepção reforça
o entendimento de que o Estado, enquanto
estrutura de dominação, possui uma “dimensão
universal”,
ou
melhor,
intervém,
também,
atendendo a interesses das classes dominadas.
Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx, ao tratar da divisão da totalidade do
produto social, esclarece que antes de ocorrer qualquer divisão entre os produtores
individuais da coletividade, deve-se deduzir do produto social o necessário para
repor os meios de produção, ampliar a produção e construir um fundo de reserva
contra acidentes e transtornos devido a fenômenos naturais. Após essa dedução,
segundo o pensador alemão, inicia-se a repartição do ponto de vista do consumo.
Despesas de administração não concernentes à produção, necessidades coletivas
(escolas, instituições sanitárias, etc.) e fundo de manutenção das pessoas não
capacitadas para o trabalho conformam um segundo conjunto de itens que deve ser
garantido pelo produto social antes de ocorrer a repartição individual (Marx, sd: 212213).
Nesse segundo conjunto de itens o que temos, numa linguagem atual, são as
ações do Estado para área social. Dessa forma, fica claro que Marx não despreza a
tarefa de organizar recursos na sociedade para garantir as necessidades sociais da
lix
população. Portanto, do ponto de vista da distribuição em relação ao consumo
coletivo, ampliar as chamadas políticas sociais é uma necessidade para o
desenvolvimento de uma sociedade que ultrapasse os marcos do capitalismo.
Conforme o próprio Marx ressalta, ao comentar sobre os recursos destinados às
necessidades coletivas, “esta parte aumentará consideravelmente desde o primeiro
momento, em comparação com a sociedade atual, e irá aumentando à medida que a
nova sociedade se desenvolva” (Marx, sd: 213). Ou seja, nos termos indicados, a
ampliação dos recursos destinados às necessidades coletivas e a manutenção das
pessoas não capacitadas para o trabalho são tarefas de extrema importância para a
construção do comunismo, sendo a estrutura para a administração dessas ações
uma necessidade decorrente. Portanto, a ampliação de políticas sociais, via Estado,
é compatível com ações que pretendam a superação da ordem burguesa.
Por fim, em suas Anotações sobre o livro Estatismo e anarquia de Bakunin,
Marx, além de sublinhar que “uma revolução social radical está vinculada a
determinadas condições históricas do desenvolvimento econômico” (Marx, 2003:
152), eliminando qualquer possibilidade de interpretação voluntarista e politicista de
sua concepção, explicita que é o Estado que garante ao proletário, no momento em
que esse assume a posição de classe dominante – portanto o momento posterior à
derrubada da burguesia do poder –, utilizar “meios universais de constrangimento“
para combater as classes economicamente privilegiadas. Nesse sentido, o proletário
não se encontra mais isolado em sua luta. O poder do Estado, a partir desse
momento, passa a servir aos interesses da classe trabalhadora, enquanto classe
dominante, até que medidas cada vez mais amplas sejam implementadas no sentido
da coletivização dos meios de produção, visando a supressão da propriedade
privada e da condição de assalariado dos trabalhadores, portanto, eliminando a
lx
divisão de classes e, conseqüentemente, a estrutura utilizada para dominação. Ou
seja, extinguindo o próprio Estado.
Vemos nesse processo a dialética do Estado: a necessidade de sua
intervenção na sociedade, sob a direção dos trabalhadores, para estabelecer o
processo de sua própria
extinção. Na interpretação leniniana no Estado e a
Revolução, o Estado sob a ditadura do proletariado não é mais o Estado
propriamente dito, pois está voltado para sua extinção - ou seja, para extinção da
sociedade de classes - e não para a manutenção da dominação de classe.
Ainda na polêmica com Bakunin, Marx destaca a necessidade da divisão de
trabalho e da organização para a administração da sociedade e distingue a estrutura
organizativa da estrutura de dominação (idem: 152). O Estado, enquanto estrutura
de dominação, extingue-se na medida da constituição do comunismo. No entanto,
existirá uma estrutura organizativa/administrativa dessa nova sociedade que não se
confundirá com dominação de classe. A idéia utópica de inexistência de estrutura de
administração e organização da sociedade não se aplica à concepção marxiana.
O autor, portanto, nos três textos tratados acima, procura mostrar que o
Estado é a mediação estratégica para implementação de mudanças na sociedade
visando a construção do comunismo. Marx reconhece no Estado uma estrutura que
deve ser utilizada em favor dos interesses da classe trabalhadora que é a única com
possibilidade de expressar-se como classe universal, pois “não pode emancipar-se a
si mesma, nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem as
emancipar a todas (...) só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do
homem” (Marx, 2002b: 58).
Cabe aqui registrar que o tratamento dado ao Estado por Marx - apesar de
partir, em nossa compreensão, do entendimento de que o Estado possui uma
lxi
dimensão
“universal”
(atendimento
a
determinados
interesses
da
classe
trabalhadora) - indica que para ocorrer uma intervenção mais ampla do Estado
voltado para os interesses da classe trabalhadora numa perspectiva socialista, o
operariado precisa tomar o poder de Estado, através de uma revolução explosiva.
Esse fato, no entanto, não anula a compreensão da existência da dimensão
universal do Estado, pelo contrário, reforça essa compreensão, na medida em que
identifica no Estado a função de mediação numa sociedade de classes, para garantir
a manutenção do poder da classe dominante, onde diferentes interesses, de forma
diferenciada, são atendidos. Haja vista as propostas presentes no “Manifesto”, na
“Mensagem de 1850”, na “Crítica ao Programa de Gotha” e na “Guerra Civil na
França” que possuem um nítido caráter progressivo, indicando, portanto, que até a
conclusão das reformas para suprimir a sociedade capitalista alguns interesses do
capital serão preservados.
Essa interpretação pode ser identificada também em Lênin, quando afirma
que a justiça e a igualdade só serão realizadas na segunda fase da sociedade
comunista. Ou seja, para o autor, durante a existência do “Estado de transição”
(ditadura do proletariado) - “primeira fase da sociedade comunista” - a justiça e a
igualdade não se realizarão plenamente. Se isso acontece é porque determinados
interesses do capital ainda estão em vigência, ratificando o entendimento de que o
Estado atende aos diferentes interesses presentes na sociedade. Então, enquanto
houver classes sociais haverá Estado, dominação de uma classe sobre a outra e
atendimento de diferentes interesses. Paradoxalmente, o Estado só deixa de
atender a interesses de diferentes classes sociais quando da extinção das mesmas
e, portanto, de sua própria existência. Em outras palavras, enquanto houver classes
sociais haverá Estado e enquanto houver Estado os diferentes interesses da
lxii
sociedade, sob dominação de uma determinada classe, serão atendidos de forma
diferenciada, mostrando a aparente perspectiva universal do Estado.
Além dos aspectos já destacados, cabe ainda ressaltar que Marx,
diferentemente
de
certas
interpretações
sobre
seus
escritos,
reconhece
explicitamente as diversas formas de expressão estatal no capitalismo, não
igualando, de forma alguma, uma estrutura monárquica absolutista com uma
república democrática. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx, utilizando a dialética
particular-universal, deixa claro que o Estado modifica-se com as fronteiras de cada
país e de acordo com o desenvolvimento da sociedade burguesa daquela região,
apesar de manter “certos caracteres essenciais comuns” (Marx, sd: 221).
A interpretação de Lênin sobre a concepção de Estado em Marx e Engels
reforça esse entendimento na medida em que o autor assinala que “na sociedade
capitalista, nas condições de seu desenvolvimento mais favorável, temos um
democratismo mais ou menos completo na república democrática”. Ou seja, a
república democrática expressa uma formação sócio-estatal capitalista mais
favorável à classe trabalhadora que outras formas de Estado, apesar, como reitera
Lênin, de ser uma formação social comprimida “nos limites estreitos da exploração
capitalista e, por isso, permanece sempre, em essência, um democratismo para a
minoria, apenas para as classes possuidoras, apenas para os ricos” (Lênin,
1980:281)
A partir de nossa interpretação sobre a concepção de Estado em Marx,
caberia indagar: se Marx pensava o Estado de forma contraditória, como assinalada
acima, por que ele não desenvolveu uma teoria mais explícita e “ampliada” de
Estado,
buscando
apresentar
determinações
lxiii
mais
precisas
sobre
essas
contradições e, por outro lado, por que o pensador alemão manteve uma concepção
“explosiva” e violenta de revolução?
Em nosso entendimento, duas ordens de questões estão presentes no
desenvolvimento da produção marxiana.
A primeira delas diz respeito à questão que Marx se colocou após elaborar a
“Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, em 1843. Qual seja: se é a partir da
sociedade civil que devemos compreender o Estado, o que é a sociedade civil
burguesa? Nesse sentido, seu objetivo passou a ser compreender a sociedade civil
e desvelar as conexões existentes entre ela e o Estado para poder desmistificá-lo,
dessacralizá-lo. Essa passou a ser a tarefa principal de Marx em relação ao Estado.
Por outro lado, e aqui já entro na segunda questão, o século XIX foi um século
fundado no clima revolucionário, Marx participou ativamente dos levantes de 48,
viveu a crise dos anos 50 e acompanhou a experiência da comuna de 71. Em que
pese seu equívoco, para ele, em sua época, havia condições objetivas para a
tomada do poder de Estado pelo proletariado. Portanto, do ponto de vista teóricoprático, os objetivos em relação ao Estado estavam mais evidentes no que se refere
à necessidade de dessacralizá-lo frente à classe trabalhadora e criar estratégias
para a tomada de poder e não levantar alternativas para uma atuação institucional
de conquista de espaço. Além disso, é fato também que nesse período, mesmo nos
países centrais do capitalismo com estrutura mais democrática, a dimensão de
coerção presente no Estado era muito mais acentuada que a de consenso. As bases
materiais para o desenvolvimento da concepção de Estado ampliado, nos termos
gramscianos, só se efetivarão a partir do final do século XIX e início do século XX,
lxiv
no marco da passagem do capitalismo concorrencial para o monopólico29. E como
ressalta Coutinho:
...parece-nos válido dizer que a ampliação do conceito de Estado em
pensadores marxistas mais recentes, quando comparados com Marx,
Engels, Lênin ou Trotski, não resultou apenas da escolha de um
ângulo de abordagem mais rico (menos abstrato); resultou também, e
sobretudo, do próprio desenvolvimento objetivo tanto do modo de
produção quanto da formação econômico-social capitalistas
(Coutinho,1994: 17).
Com as observações desenvolvidas acima, queremos destacar uma visão
mais complexa da concepção de Estado em Marx, ressaltando, parafraseando
Abensour (1998), o momento maquiaveliano do pensador alemão. Ou seja, o que
nos interessa na reflexão desenvolvida acima é explicitar, do ponto de vista político,
o traço geral apontado por Marx da dimensão contraditória do Estado - a qual lhe
permite atuar atendendo interesses divergentes da sociedade e, portanto, aparecer
como ente acima das classes -, para mostrar que, o Estado, apesar de ser
essencialmente expressão de dominação de classe, é a única estrutura na
sociedade capitalista capaz de realizar interesses das classes e camadas
dominadas, mesmo que faça isso apresentando-se acima da sociedade.
Nesse sentido, o que realizamos foi uma análise, com uma nítida ênfase
política, de textos de Marx, diferindo de Abensour numa questão fundamental: não
estabelecemos uma dualidade em Marx entre uma leitura científica – crítica
materialista da sociedade e do Estado - e uma filosofia política fundada na liberdade
(Idem:60). Muito pelo contrário, consideramos que a crítica materialista da sociedade
é fundamental para compreendermos a essência do Estado, e este fato não elimina,
em nosso entendimento, a particularidade do momento político em Marx, vinculando,
29
A categoria “Estado ampliado” não é um fenômeno decorrente do capitalismo em sua fase monopólica. No entanto, Gramsci
só pode desenvolver a teoria ampliada do Estado, a partir da fase monopólica do capitalismo. O capitalismo monopolista é a
condição objetiva e necessária para o desenvolvimento teórico da concepção do Estado Ampliado.
lxv
dessa forma, o pensador alemão na tradição da reflexão política moderna
inaugurada por Maquiavel no início do século XVI.
Por outro lado, o cerne do pensamento marxiano, como afirmou Lukács, está
em justamente analisar as questões da sociedade capitalista sob o ponto de vista da
totalidade. Sendo assim, pensar o político isolado da dinâmica global do capitalismo
é ferir a essência do método marxiano. Segundo Netto, ao comentar o fato de Lênin
arrancar uma teoria geral do Estado com base em Engels e não no próprio Marx:
Salvo erro meu, em Marx inexiste uma teorização deste teor – há
sempre, nele, determinações teóricas do Estado moderno (burguês) e
em relação, sempre, com a totalidade histórico-social mobilizada pela
dinâmica (e não somente pela lógica) do capital; a possibilidade de
uma teoria do Estado sem esta imbricação – com tudo o que ela
implica para a compreensão do Estado moderno (burguês),
imanentemente, e não só como referencialidade ‘econômica’ da
célebre ‘última instância’ – tem todas as características, a meu ver, de
ilegitimidade enquanto consequência do projeto marxiano (Netto,
2004: 136).
Como podemos perceber, nos termos tratados anteriormente, a questão do
Estado e de sua extinção na perspectiva marxiana evoca um quadro que distancia
essa concepção das análises estatistas de Lassalle, da visão anarquista de Bakunin
e da tradição mecanicista e economicista que imperou a partir do chamado
“marxismo-leninismo”.
Resumindo o balanço sobre a concepção de Estado em Hegel e Marx,
poderíamos dizer, utilizando a linguagem e a concepção hegeliana de razão e
liberdade, que a essência do Estado é a universalidade e que portanto a tarefa é
potencializar essa dimensão do Estado que é uma dimensão racional voltada para a
liberdade. Entretanto, segundo Marx, o Estado não pode desenvolver-se nos termos
da universalidade se não for superada a estrutura de desigualdade que está
presente na sociedade civil, nos termos marxianos ou no sistema de necessidades,
conforme Hegel.
lxvi
No entanto, o Estado atua, também, atendendo a interesses não dominantes
da
sociedade,
o
que
lhe
permite,
ideologicamente,
apresentar-se
como
representante de “interesses gerais”.
Ao dessacralizar e desvelar a essência do Estado, Marx não descartou a
necessidade da classe trabalhadora pressioná-lo e assumi-lo como classe
dominante para ampliar a conquista de seus interesses de classe. Ou seja, para
Marx o Estado é um elemento estratégico de mediação para o processo
revolucionário. A tomada do poder de Estado precede à mudança societária, por
isso a transição socialista, na perspectiva marxiana, é estruturada a partir da
ditadura do proletariado, que busca, através das ações do Estado, implementar
mudanças voltadas para a supressão da propriedade privada dos meios de
produção e, por conseguinte, para a extinção da estrutura de classes.
Entretanto, com a supressão da divisão da sociedade em classes sociais não
existiria mais Estado (expressão da dominação de classe), mas apenas uma
administração da sociedade – administração que não seria feita sem conflitos e
tensões, porém esses conflitos e tensões não teriam como fundamento
antagonismos de classe.
A partir da crítica marxiana à concepção de Estado em Hegel, podemos dizer,
para finalizar, que a Filosofia do Direito defende um Estado possível, no marco do
capitalismo, para viabilizar certas condições que amenizam a desigualdade e
promovam a realização da liberdade de forma concreta, ou seja frente as condições
objetivas postas.
Em outras palavras, só o Estado, tanto para Hegel quanto para Marx - apesar
das concepções distintas que os autores têm sobre a sociedade capitalista e o
lxvii
Estado -, tem poder e capacidade, numa sociedade de classes, de atuar viabilizando
interesses das classes e camadas da sociedade não dominantes.
Portanto, pensar no aprofundamento e universalização de direitos sociais, ou
seja, a ampliação e melhora das condições sociais da vida das classes e camadas
não dominantes da sociedade requer, necessariamente, ter o Estado como o
elemento estratégico central para a implementação dessa proposição.
Nesse sentido, refletir sobre a burocracia, como estrutura clássica de
organização e administração estatal, passa a ser uma questão/categoria que deve
ser tratada cuidadosamente tanto do ponto de vista teórico quanto prático-político.
1.3. O fenômeno burocrático: contradição, dominação e racionalidade
A função da burocracia no Estado
Antes de iniciarmos a reflexão sobre a burocracia gostaríamos de deixar claro
que nossa abordagem sobre o tema procurará fugir da tentação de defendê-la
entusiasticamente, ou de atacá-la enfurecidamente. Evitaremos, portanto, que nossa
concepção seja enquadrada, conforme Guerreiro Ramos (1983) propõe, como
conceito positivo ou como conceito negativo da burocracia30.
Utilizaremos como referências centrais, conforme ressaltado anteriormente,
Hegel e, principalmente, Weber, a partir da perspectiva da teoria social crítica
vinculada à tradição marxista. Porém, de acordo com a sugestão de Tragtenberg,
procuraremos:
...despertar do sono dogmático, pensar e refletir criticamente com
Weber [e Hegel] e não polemizar contra Weber [e Hegel], sem
subterfúgios, escamoteação dos problemas centrais, penetrando na
reflexão efetiva para superar, isto é, absorver a contribuição de
30
Guerreiro Ramos classifica os conceitos sobre a burocracia como sendo negativos (interpretação de Robert Michels, L. von
Mises, Mannheim, Merton, Selznick e Crozier, além dos escritores marxistas) ou como sendo positivos (Weber e Eisenstadt).
lxviii
Weber [e Hegel] e excedê-la. Superar em Weber [e Hegel] as
limitações do tempo e contexto social em que situa a sua obra;
discuti-la sem compromissos ideológicos que impliquem o sacrifício
do intelecto com o respeito que uma obra do porte que ele nos legou
implica (Tragtenberg, 1992: 156-157).
Nesse sentido, ao analisarmos criticamente as determinações da burocracia,
buscaremos captar as categorias que efetivamente correspondam ao fenômeno e
que estão presente nas obras de Hegel e Weber. Em relação a Marx e à tradição
marxista, o tratamento não será diferente.
Dessa forma, não estamos preocupados em definir a burocracia como
positiva ou negativa, mas sim extrair os traços essenciais e universais do fenômeno
para, nos capítulos seguintes, articulá-los com o desenvolvimento da administração
burocrática no Brasil. Assim, conforme ocorreu nos itens anteriores deste capítulo, o
tratamento que daremos ao fenômeno encontra-se num nível mais alto de abstração.
Isto posto, consideramos que podemos iniciar nossa reflexão a partir de Hegel.
O filósofo alemão identificará a burocracia, apesar de não usar esse termo,
como a classe universal:
A classe universal ocupa-se dos interesses gerais da vida social.
Deverá ela ser dispensada do trabalho direto requerido pelas
carências seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma
indenização dada pelo Estado que solicita sua atividade, de modo
que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar satisfação o seu
interesse privado (Hegel, 1997:182).
A burocracia, sendo um dos componentes da materialidade do Estado - que,
como vimos, é a instituição no capitalismo capaz de atender interesses de camadas
não dominantes -, expressa, também, as contradições presentes no Estado.
Portanto, diferentemente do que Hegel apontava, ela não se efetiva como uma
classe universal.
A burocracia, por um lado, é a responsável por viabilizar, manter, conservar a
ordem social capitalista e, dessa forma, garantir os interesses da classe dominante.
Por outro lado, ela também implementa as ações do Estado destinadas ao
lxix
atendimento de interesses das classes dominadas, na perspectiva de manter a
ordem da propriedade privada/liberdade, garantindo, porém, o Bem. Por isso, a
aparência de classe universal. Pois, numa perspectiva que não encontra saída
estrutural para a sociedade, como é no caso da concepção hegeliana, a classe
universal é aquela que permite a realização de interesses das classes antagônicas.
Nos termos hegelianos, através da burocracia garante-se a propriedade
privada/liberdade e o Bem como expressão da racionalidade em si e para si, que é o
Estado (Hegel, 1997: 216-217).
Dando continuidade à sua caracterização da burocracia, o filósofo alemão, ao
tratar do poder do governo (idem: 266-272), mostra que assim como a sociedade
civil é o campo da disputa dos interesses individuais de todos contra todos, o
governo é o espaço em que se expressa a luta entre os interesses particulares e o
interesse geral. Dessa forma, a tarefa de garantir
a conservação do interesse geral do Estado e da legalidade entre os
direitos particulares, a redução destes àqueles exigem uma vigilância
por representantes do poder governamental, por funcionários
executivos e também por autoridades mais elevadas com poder
deliberativo, portanto colegialmente organizada (Hegel, 1997: 266267 – negrito nosso).
Aqui Hegel apresenta a determinação central do servidor, qual seja: garantir o
interesse geral do Estado frente aos interesses particulares. A burocracia, portanto,
é um instrumento do governo com responsabilidade de Estado para garantir o
interesse geral frente ao interesses particulares apresentados pelas corporações.
Marx, em sua glosa da Filosofia do Direito, mostra que na verdade não se
trata da garantia do interesse geral frente a interesses particulares, mas sim da
garantia de determinados interesses particulares frente a outros interesses
particulares.
Marx destaca que a burocracia age como uma corporação do Estado ao
enfrentar as corporações como se fossem uma burocracia da sociedade civil.
lxx
Segundo o autor, “na realidade, a burocracia se contrapõe, enquanto ‘sociedade civil
do Estado’ ao ‘Estado da sociedade civil’, às corporações” (Marx, 1978: 358).
Mesmo não possuindo ainda uma perspectiva revolucionária, Marx consegue
perceber que não há na burocracia uma orientação voltada para o interesse geral,
identificando nela a materialização de interesses particulares presente no Estado.
Nesse sentido, conforme Marx sinaliza, existe uma relação de afirmação-negação da
burocracia com as corporações.
A relação com a corporação torna-se essencial para a existência da
burocracia, pois sua razão de ser encontra-se na existência das particularidades da
sociedade civil, expressas pelas corporações, que devem ser subordinadas ao
interesse geral, que é vigiado e fiscalizado pela burocracia. Nessa perspectiva, a
burocracia tem que negar a corporação. Por outro lado, se não houver corporação,
ou melhor, se houver identidade entre os interesses particulares e o interesse geral,
não será necessário a existência de um aparato para subordinar o particular ao
geral. Nesse sentido, não seria necessária a existência da burocracia. Por isso, a
burocracia precisa restaurar a corporação como forma de manutenção/preservação
de sua existência. Desse ponto de vista, ocorre a afirmação da corporação por parte
da burocracia. De acordo com Marx:
O mesmo espírito que cria na sociedade a corporação cria no Estado
a burocracia. Portanto, tão logo se vê atacado o espírito corporativo é
também objeto de ataques o espírito burocrático, e se antes a
burocracia combatia a existência das corporações para afirmar sua
própria existência, agora trata de defender violentamente a existência
das corporações para salvar o espírito corporativo que é seu próprio
espírito (Marx, 1978: 358).
A existência de corporações está vinculada a interesses particulares que têm
no antagonismo de classe o conflito central. Essa situação de antagonismo é o
cerne das contradições e tensões a serem enfrentadas pela burocracia como
representante dos “interesses gerais” da sociedade. Portanto, a determinação
lxxi
fundamental da burocracia deve ser encontrada na estruturação da sociedade de
classes, na medida em que são os interesses antagônicos de classe que conformam
os conflitos substantivos numa sociedade, exigindo a intervenção do Estado, através
de sua ordem administrativa. Dessa forma, encontramos o limite estrutural da
burocracia como instrumento de realização da ampliação radical da universalização
e aprofundamento de direitos.
Em outras palavras, a burocracia, como um dos elementos da materialidade
do Estado, expressa também as contradições da sociedade de classes que exigem a
existência do Estado como estrutura de dominação política. Portanto, a burocracia
apresenta-se como uma das mediações entre o Estado e as classes sociais, visando
a manutenção da ordem. Nesses termos, a existência da burocracia está
vinculada ao Estado e, por conseguinte, à dominação de classe. Sendo assim, a
burocracia responde a uma dada organização social que supõe a existência de
dominados e dominantes, social e economicamente falando. Portanto, uma
sociedade que não comporta a radicalização e o aprofundamento dos direitos. Eis,
então, os limites da organização burocrática.
Entretanto, se é correto afirmar que existe um limite estrutural para a
burocracia atuar como instrumento de realização da ampliação radical da
universalização e aprofundamento de direitos, é também correto afirmar que a
burocracia como expressão do Estado capitalista, ou seja de uma sociedade dividida
em classes, deve atuar administrando interesses antagônicos para manter a ordem
e, nesse sentido, tem que atender a interesses das classes dominadas, como vimos
anteriormente. Sendo assim, a burocracia, como estrutura administrativa, ganha
relevância para processos de redução de desigualdade.
lxxii
Assim, encontramos na filosofia hegeliana e na crítica marxiana a relevância e
o limite da burocracia enquanto forma de organização administrativa para conduzir
as ações do Estado, através do poder governativo.
Entretanto, cabe aprofundarmos as determinações centrais da burocracia
para explicitarmos de forma mais concreta elementos que podem se apresentar
como potencialidades ou como limites desse tipo de organização administrativa para
a realização de uma finalidade voltada para ampliação de direitos sociais.
O caráter de dominação presente na burocracia e a racionalidade de sua
estruturação são determinações centrais que merecem destaques ao analisar a
burocracia. E, sem dúvida alguma, Weber é um autor indispensável para refletirmos
essas questões.
Burocracia e dominação
A dimensão de dominação de classe da burocracia já foi apontada
anteriormente - mas voltaremos a ela nos momentos que fizerem-se necessários.
Agora trataremos de uma outra dimensão da dominação que também está presente
na burocracia.
Segundo Weber, a burocracia implica dominação na medida em que ela é
uma estrutura administrativa e, para ele, toda administração é dominação pois
remete à obediência (Weber, 1999a: 32-34). Nas palavras do autor:
Toda a dominação manifesta-se e funciona como administração.
Toda administração precisa de alguma forma, da dominação, pois,
para dirigi-la, é mister que certos poderes de mando se encontrem
nas mãos de alguém (Idem, 1999b: 193).
Dominação, para Weber, significa “a probabilidade de encontrar obediência
para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas”
lxxiii
(Weber 1999a: 139). Nesses termos, Max Weber define a burocracia como sendo a
forma de dominação legítima de caráter racional, a dominação legal (idem: 141).
Em outras palavras, a ordem administrativa implica dominação na medida em
que é um conjunto de normas que procura regular a ação associativa, através da
orientação do comportamento do quadro administrativo e dos membros em relação à
associação. Ou seja, orientar o comportamento implica poder de mando e
“obediência” às normas estabelecidas para atingir determinado fim. E, como vimos
anteriormente, o conceito weberiano de dominação é justamente a probabilidade de
existência de obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre
determinadas pessoas. Assim, administração implica dominação.
O conceito de dominação utilizado por Weber tem um sentido mais estreito do
que o condicionado “pela situação de mercado ou por situações de interesse”, pois
implica apenas a questão da “obediência” (Weber, 1999b: 191). Esse sentido “mais
estreito” permite trabalhar com a dominação em diversos tipos de relação de
obediência, tornando-se, portanto, paradoxalmente, um conceito mais elástico.
A partir da perspectiva marxista, podemos dizer que esse tipo de dominação,
apontado por Weber, não desaparece com a extinção do Estado. A extinção do
Estado implica a extinção da dominação de uma classe sobre a outra. Assim, a
dominação exercida pelo quadro administrativo estatal como probabilidade de
encontrar obediência a determinadas ordens por determinadas pessoas pode
perpetuar numa sociedade sem classes.
A tarefa de eliminar esse tipo de dominação não se limita à estruturação de
uma nova ordem social, visto que se um quadro administrativo apropria-se
exclusivamente ou majoritariamente do poder de decidir a finalidade da
administração e dos meios objetivos para sua consecução (mesmo sendo essa
lxxiv
apropriação uma possibilidade teórica abstrata), esse quadro administrativo
transforma-se numa classe privilegiada em relação aos outros membros da
associação, perpetuando a relação de dominação, no sentido marxiano. Ou seja,
mesmo estabelecendo uma nova ordem social e econômica, se o poder de mando
ficar concentrado nas mão de um pequeno grupo responsável pela condução política
e administrativa, a dominação exercida poderá resultar numa dominação de classe,
na medida em que esse grupo se apropria, também, dos meios de produção. O que
efetivamente apresenta-se como mais opressivo que a dominação como mecanismo
de obter obediência. Nas palavras do próprio Weber:
...a dominação puramente condicionada pela situação de mercado ou
por situações de interesse pode ser sentida, precisamente por sua
falta de regulamentos, como algo muito mais opressivo do que uma
autoridade regulamentada na forma de determinados deveres de
obediência (Weber, 1999b: 191).
Portanto, do ponto de vista social, Weber concorda com Marx em que a
questão da dominação econômica é mais opressiva que a dominação como
mecanismo para obter obediência. Porém, diferentemente de Weber, Marx enfoca a
questão da dominação na sociedade não pelo caráter de “obediência” que ela
evoca, mas pelo o caráter político e econômico de classe que ela possui.
Por outro lado, convém também ressaltar que Marx não despreza ou minimiza
a dominação enquanto relação de mando-obediência, exercida pela burocracia, haja
vista a sua valorização da experiência da administração da Comuna de Paris. O
autor verifica naquela experiência a realização de uma República democrática: sua
essência estava no fato de ser “um governo da classe trabalhadora,(...) a forma
política, finalmente descoberta, na qual podia ser feita a libertação da economia do
trabalho” (Marx, 1984: 299).
Ou seja, apesar da questão central da dominação estar vinculada à questão
da classe e sua superação depender da “libertação econômica do trabalho”, Marx
lxxv
analisa positivamente a estrutura de gestão da Comuna, na medida em que ela
procura enfrentar a dominação estabelecida na relação de mando-obediência
presente na organização burocrática, a partir da reestruturação da administração,
realizada através da incorporação de mecanismos democráticos31.
Na tradição marxista, também é significativo lembrar algumas posições de
Lênin e Gramsci sobre a burocracia e a questão da dominação em seu sentido
estrito. Vejamos rapidamente algumas dessas observações.
A primeira questão a ser considerada, a partir da reflexão leniniana, diz
respeito à distinção que o autor faz entre burocracia e quadro técnico32. Ou seja, a
necessidade de superar a organização burocrática não significa desconhecer a
importância da especialização e do conhecimento para as questões da
administração da sociedade. Segundo o autor:
Não se deve confundir a questão do controle e do registro com a
questão do pessoal com formação científica, dos engenheiros, dos
agrônomos, etc.: estes senhores trabalham hoje subordinando-se aos
capitalistas e trabalharão ainda melhor amanhã subordinando-se aos
operários armados (Lênin, 1980: 290).
Lênin, dessa forma, distingue, na organização burocrática, a questão do
conhecimento e especialização da questão do controle da produção e da distribuição
e do registro do trabalho e dos produtos. Ou seja, a dominação da burocracia em
sentido estrito está vinculada à forma de controle e registro estabelecidos por ela.
Essa dimensão deve ser superada e o controle e registro devem ser realizados pelos
trabalhadores. Esse é um passo importante para a extinção da dominação, mas é
apenas um elemento restrito dela.
Gramsci aborda a dominação em seu sentido estrito quando trata da relação
entre comandar e obedecer e quando discute a disciplina.
31
Voltaremos a essa questão quando tratarmos da administração pública democrática.
32
Esta questão foi muito bem observada por Netto (2004: 118).
lxxvi
Para o autor, todo comando implica obediência e em toda obediência está
presente o comando. O comando sempre está relacionando a um fim que deseja-se
alcançar e esse comando pode ser hierarquicamente imposto ou ser efetivado por
acordo prévio e colaboração (Gramsci, 2000: 273).
Nesse sentido, a relação comando-obediência, que Weber considera como
dominação, é tratada por Gramsci como uma questão não vinculada diretamente à
dominação política, mas presente em toda relação que envolve comando; dessa
forma, Gramsci procura distinguir um comando autoritário de um comando exercido
por acordo e colaboração, a que poderíamos chamar de democrático.
Gramsci deixa mais explícita sua posição quando trabalha a questão da
disciplina. Segundo o marxista italiano, a disciplina pode ser autônoma e livre quando apresenta-se “como uma assimilação consciente e lúcida da diretriz a
seguir” - ou um acolhimento servil e passivo de ordens - quando realiza-se “como
execução mecânica de uma tarefa”. A distinção entre as duas expressões da
disciplina encontra-se na “origem do poder que ordena a disciplina”. Se a origem for
“democrática” – autoridade exercida num grupo socialmente homogêneo, através de
uma função técnica especializada – a disciplina será autônoma e livre; se a origem
do poder for arbitrária ou uma imposição extrínseca e exterior, ela será servil
(Gramsci, 2000: 308-309).
Como vê-se, a questão da dominação, em seu sentido weberiano, não deixa
de ser tratada pelos marxistas, apesar da questão central, para autores vinculados à
essa tradição, vincular-se à dominação de classe.
Retomando nossa argumentação, neste ponto cabe observar que a definição
de administração como dominação não é compartilhada pela concepção de
administração em geral desenvolvida por Paro: como não trabalha com a concepção
lxxvii
“estreita” de dominação, mas sim com a concepção da tradição marxista, não faz
sentido a sua utilização para determinar o conceito em geral de administração. Paro,
em sua definição de administração utiliza a racionalidade como categoria central,
seja na perspectiva da utilização dos recursos para atingir os fins, seja na
perspectiva da definição dos próprios fins33. Entretanto, se considerarmos o sentido
weberiano de dominação (sua relação com a obediência) e analisarmos a
formulação de Paro, verificaremos que a questão da obediência está implícita em
sua concepção. Pois, segundo o autor, coordenar o esforço humano coletivo é uma
das dimensões da utilização racional dos recursos para atingir fins, ou seja, é uma
das dimensões da administração. E coordenar o esforço coletivo implica,
necessariamente, em mando e obediência, por mais democrática que seja a
coordenação realizada.
Parafraseando Paro, pode-se dizer que Weber generaliza uma concepção de
administração situada historicamente. Ou seja, até hoje, a administração
concretamente falando, historicamente determinada, sempre apresentou-se como
uma estrutura de dominação, onde o poder de mando do quadro administrativo é
exacerbado, devido à dominação da classe dirigente. Portanto, a dominação
presente na administração é a expressão das relações de dominação presentes até
então em nossa sociedade. Assim, esse conceito de administração não está
totalmente depurado. É um conceito que expressa a forma de administração até
então existente, onde a dimensão de dominação, enquanto relação poder de mandoobediência, se sobressai na medida que é determinada pela dominação política e
econômica de classe.
33
Desenvolveremos o tema da racionalidade e suas implicações na administração, de forma geral, e na burocracia,
especificamente, nas próximas duas seções.
lxxviii
Esse fato não desqualifica o significado do conceito weberiano, apenas indica
que devemos trabalhá-lo compreendendo que ele compõe o movimento real da
administração na sociedade atual e não se identifica com o conceito em geral de
administração.
O caráter de dominação é próprio, portanto, a toda ordem administrativa
existente até então. Porém, só a administração burocrática exerce a dominação de
forma racional, ancorada em parâmetros formais e legais. Ou seja, a definição de
Weber de burocracia nos remete a uma forma racional de administração necessária
para obter a obediência de um grupo de pessoas. Em resumo, a burocracia é uma
estrutura administrativa racional de dominação.
Cabe ainda ressaltar que o fato de Weber tratar a dominação sob o ponto de
vista da autoridade e da obediência não significa dizer que o sociólogo alemão
relativiza os problemas advindo da dominação exercida pela burocracia. Muito pelo
contrário, como Tragtenberg sublinha:
O que é real é que Weber estudou a burocracia porque via na sua
expansão no sistema social o maior perigo ao homem. Estudou para
criar os mecanismos de defesa ante a burocracia (Tragtenberg, 1992:
139).
Não é sem propósito que o autor de Economia e Sociedade mostra como a
burocracia possui e procura manter seu poder, através da articulação entre o
conhecimento técnico do especialista e o “saber oficial”34, que transforma em “saber
secreto” mediante a utilização do conceito de “segredo profissional”. Dessa forma, a
burocracia busca excluir o público da análise de suas ações, sugerindo que não
possuem conhecimento adequado para avaliar a ação administrativa ou alegando
ser o segredo um elemento da natureza de sua função (Weber, 1999b: 565).
34
Para Weber, o saber oficial é “o conhecimento somente acessível aos funcionários pelos meios do aparato oficial, dos fatos
concretos que determinam suas ações” (Weber, 1999b: 565).
lxxix
Sem desconsiderar a questão do segredo como constituinte de determinadas
funções objetivas da burocracia (por exemplo: determinadas funções diplomáticas,
estratégias de intervenção econômica, programas de segurança militar, ações
estratégicas empresariais), Weber nos esclarece que:
O poder da burocracia plenamente desenvolvida é sempre muito
grande e, em condições normais, enorme. E o ‘senhor’ ao qual serve
(...) encontra-se sempre, diante dos funcionários especializados
ativos na administração, na situação de um ‘diletante’ diante do
‘especialista’. Toda a burocracia procura aumentar mais ainda esta
superioridade do profissional instruído, ao guardar segredo sobre
seus conhecimentos e intenções (Weber, 1999b: 225)
Weber continua sua exposição com a seguinte observação:
A tendência ao segredo resulta em determinadas áreas
administrativas, de sua natureza objetiva(...). Mas muito além destas
áreas em que se guarda segredo por motivos puramente objetivos,
atua por parte da burocracia o puro interesse no poder. O conceito do
‘segredo oficial’ é sua invenção específica, e nada é defendido por ela
com mais fanatismo que precisamente esta atitude (...) (Weber,
1999b: 225-226).
O alerta weberiano sobre os perigos da burocracia, no entanto, vai além das
considerações acima. O pensador alemão, ao relacionar o processo de
burocratização com o processo de racionalização, como veremos detalhadamente
na próxima seção, conclui de maneira enfática que é um fato fundamental da
sociedade moderna “o avanço irrefreável da burocratização” (Weber, 1999b: 542).
Sendo assim, o autor apresenta como essenciais para se pensar formas de
organização política as seguintes questões:
1) Como é possível, diante desta tendência irresistível à
burocratização, salvar pelo menos alguns resquícios de uma
liberdade de ação ‘individualista’ em algum sentido?
2) Em face da indispensabilidade crescente (...), da posição de poder
do funcionalismo estatal (...), como pode haver alguma garantia de
que existam poderes capazes de manter dentro de seus limites a
prepotência enorme desta camada cada vez mais importante, e que a
controlem eficazmente? Como será possível uma democracia pelo
menos neste sentido limitado?
3) A terceira questão, a mais importante de todas, resulta da
consideração daquilo que a burocracia como tal não realiza, pois é
fácil constatar que sua capacidade, tanto na área da organização
pública, política-estatal, quanto na da economia privada, tem firmes
limites internos. O espírito dirigente (...) é algo distinto do ‘funcionário’.
Não necessariamente pela forma, mas pela essência (...). Quando
lxxx
uma figura dirigente é um ‘funcionário’, segundo o espírito de sua
direção, mesmo um funcionário muito competente – alguém, portanto,
que está acostumado a realizar seu trabalho de acordo com os
regulamentos e a ordem dada, cumprindo honestamente seus
deveres – então não presta para ocupar uma posição à cabeça de
uma empresa da economia privada, nem à cabeça de um Estado” (
Weber, 1999b: 543).
Weber, assim, nos oferece três elementos centrais para refletirmos sobre os
“perigos” da burocratização para a sociedade. A questão da liberdade individual, a
questão do controle da sociedade sobre a burocracia e a questão do “dirigente” da
sociedade numa ordem dominada pelo “funcionário”. Nesse sentido, diferentemente
do que muitos afirmam, Weber não possui uma atitude positiva, simplista e
esquemática sobre a burocracia.
Para finalizar a breve reflexão sobre a expressão da dominação presente na
burocracia, torna-se mister relacionar, sinteticamente, os elementos centrais
presentes na concepção marxiana e da tradição marxista tratada aqui com aqueles
trabalhados por Weber.
Em termos gerais, pode-se afirmar que tanto a concepção weberiana quanto
a marxiana e a da tradição marxista acima referida (Lênin e Gramsci) consideram a
dominação exercida pela burocracia como um problema a ser enfrentado.
Do ponto de vista weberiano, a preocupação concentra-se na dominação
administrativa que a burocracia exerce e a tendência dela vir a assumir o poder
governativo, a direção estatal, pois a dominação econômica não é considerada
sociologicamente por Weber.
Por outro lado, o ponto de vista marxiano e marxista, apesar de considerar a
dominação em sua dimensão tipicamente sociológica, como diria Weber
(probabilidade de obtenção de obediência), analisa que o elemento central de
enfrentamento deve ser localizado na relação que a burocracia possui com a
lxxxi
dominação de classe - ou seja, dominação política, segundo Marx - e sua tendência
a atuar para a perpetuação dessa dominação.
Até aqui, pode-se considerar, em tese, que o fato da burocracia exercer
dominação administrativa e política - no sentido marxiano do termo – exige como
tarefa para transformação da sociedade um movimento que articule a eliminação
processual da dominação administrativa exercida pela burocracia, com a superação
mediata da dominação de classe efetivada pela ordem burocrática, que está
relacionada com o modo de produção baseado na exploração do trabalho.
Nesse sentido, as indicações weberianas podem ser úteis para a definição de
estratégias mais imediatas de intervenção, desde que não se perca o horizonte da
transformação da atual ordem social.
A racionalidade burocrática
Do ponto de vista da sociedade capitalista, numa perspectiva que pretenda-se
de intervenção democrática de aprofundamento e ampliação de direitos, o problema
central que se coloca é o da identidade entre os valores burocráticos e os valores
capitalistas. Ou seja, até que ponto a estrutura burocrática serve apenas aos
interesses da classe dominante (burguesia) e até aonde sua racionalidade é apenas
instrumental, visando a ordem capitalista. A resposta a primeira questão foi dada a
partir da reflexão sobre a função da burocracia no capitalismo. A segunda questão
nos leva a refletir sobre a racionalidade burocrática e sua expressão material, o que
faremos a partir deste momento.
O primeiro aspecto a ser observado é o fato de Weber, ao definir uma
administração de caráter racional, pressupor a existência de administrações não
lxxxii
racionais vinculadas a outros tipos de dominação legítima (dominação tradicional35 e
dominação carismática36). Portanto, weberianamente falando, administração implica
dominação (onde há administração há dominação, apesar do contrário não ser
necessariamente verdadeiro, pois pode haver dominação sem a existência de
quadro administrativo), porém não implica racionalidade. Apenas a administração
burocrática é uma administração racional. Por isso, Weber afirma que “só existe
escolha entre ‘burocratização’ e ‘diletantização’ da administração” (Weber, 1999a:
146).
Sendo assim, a concepção weberiana de administração difere daquela que
apresentamos inicialmente fundamentada em Paro. Este, como vimos, define
administração pelo seu caráter racional, portanto descarta a possibilidade de
encontrarmos administração em atividades irracionais. No entanto, devemos,
também, nos perguntar sobre se o conceito de racionalidade de ambos se equivale,
pois, se assim não for, a diferença entre as concepções pode ser mais ampla, sutil e
complexa que aquela estabelecida apenas entre o corte racional/irracional.
Devemos, então, primeiramente e de forma sucinta, discutir a questão da
racionalidade, para depois refletirmos sobre a racionalidade da burocracia.
Paro trabalha com a concepção de razão vinculada à tradição marxista,
portanto tributária da razão moderna. Dessa forma, a razão constitui-se de duas
dimensões: a dimensão instrumental-analítica e a dimensão de emancipação.
35
De acordo com Weber: “Denominamos uma dominação tradicional quando sua legitimidade repousa na crença na santidade
de ordens e poderes senhoriais tradicionais(...). O dominador não é um ‘superior’, mas senhor pessoal; seu quadro
administrativo não se compõe primariamente de ‘funcionários’ mas de ‘servidores’ pessoais, e os dominados não são ‘membros
da associação’, mas 1) ‘companheiros tradicionais’ ou 2) ‘súditos’. Não são os deveres objetivos do cargo que determinam as
relações entre o quadro administrativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal de servidor” (Weber, 1999a: 148).
36
A dominação carismática é a dominação baseada na “qualidade pessoal considerada extracotidiana (...) e em virtude da qual
se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas, ou, pelo menos, extracotidianos
específicos(...)” (Weber, 1999a: 158-159). Conforme o autor explicita, o “quadro administrativo do senhor carismático não é um
grupo de ‘funcionários profissionais’, e muito menos ainda tem formação profissional. Não é selecionado segundo critérios de
dependência doméstica ou pessoal, mas segundo qualidades carismáticas (...). Não há ‘colocação’ ou ‘destituição’, nem
‘carreira’ ou ‘ascenso’, mas apenas nomeação segundo a inspiração do líder, em virtude da qualificação carismática do
invocado” (Weber, 1999a: 159-160).
lxxxiii
Contudo, como o surgimento e o desenvolvimento da razão moderna está
intimamente relacionado ao processo de socialização da sociedade, viabilizado pela
sociedade burguesa, implicando no processo de industrialização e urbanização, o
que provoca a crescente necessidade de controle da natureza, ocorre - como
consequência desse desenvolvimento e amadurecimento do capitalismo - uma
supervalorização da dimensão instrumental-analítica da razão em detrimento da
dimensão emancipatória (Netto, 1994a: 31).
Essa hipertrofia é decorrente da própria lógica do capital que exige uma
crescente capacidade de manipulação da natureza, provocando a exacerbação da
dimensão instrumental da razão, inclusive estendendo essa racionalidade para o
“domínio das relações sociais” (Netto, 1994a:32).
Nesse sentido, a dimensão emancipatória da razão, vinculada aos fins
universalistas, voltada para a liberdade efetiva de todos os seres humanos,
apresenta-se como contraditória aos fins da sociedade burguesa.
Assim, porque a razão moderna, enquanto racionalidade instrumental, é
extremamente funcional ao capitalismo - na medida em que possibilita o
desenvolvimento de forças produtivas e processos de produção cada vez mais
sofisticados -, a dimensão emancipatória da razão moderna foi inibida e substituída
por uma finalidade particularista de manutenção da exploração do trabalho
assalariado.
Dessa forma, na sociedade burguesa a razão moderna não se realiza por
completo e é crescentemente reduzida à sua dimensão instrumental, na medida em
que não se questiona a finalidade para qual está sendo desenvolvida e aplicada.
Netto, ao abordar esse processo, afirma que:
a consolidação da ordem burguesa tende a reduzir a racionalidade à
intelecção(...). É a esta tendência que, em termos histórico-culturais,
deve-se creditar a hipertrofia prática do comportamento instrumental e
lxxxiv
a redução teórica da razão à racionalidade analítica (Netto: 1994a:
32).
Weber, conforme Tragtenberg sinaliza, ao não colocar em questão, em sua
sociologia, a legitimidade dos fins - devido a seu posicionamento sobre o juízo de
valor na ciência -, mas apenas referir-se à análise sobre os meios utilizados para
atingir fins determinados37, identifica razão e técnica. “A técnica é a mais perfeita
expressão da razão e a razão é a técnica do comportamento e da ação”
(Tragtenberg, 1992: 115-116). Weber, então, só trabalha com a dimensão da razão
instrumental, conforme sublinha Paro, apoiado em Mannheim:
a análise dos meios indica uma racionalidade em sua utilização, na
medida em que se procura adequá-los da melhor forma possível à
consecução do fim visado. É a racionalidade no sentido weberiano,
chamada por Mannheim de racionalidade funcional (Paro, 2000: 55).
Paro nos esclarece que a dimensão instrumental da razão (ou a racionalidade
funcional) se expressa
quer pelo emprego econômico (dispêndio mínimo de tempo e de
recursos na consecução do fim visado), tanto dos recursos materiais e conceptuais
quanto do esforço humano coletivo, quer pela adequação desses recursos aos fins
visados” (Paro, 2000: 54).
Portanto, o sociólogo alemão trabalha apenas com essa dimensão da razão.
Assim sendo, Weber opera uma cisão da realidade entre o mundo da racionalização
técnica e a área do irracionalismo que corresponde à esfera dos valores
(Tragtenberg, 1992:116).
Ao pensarmos na tipologia ideal weberiana sobre a ação social, podemos,
apressadamente, julgar que as análises dos autores acima elencados em relação à
racionalidade em Weber estão equivocadas, pois o sociólogo alemão trabalha com
ação racional relativa a fins e ação racional relativa a valores. Devemos, portanto,
esclarecer qualquer tipo de dúvida que possa pairar sobre este tema.
37
Conforme assinala Silva, segundo Weber a ciência contribui para definir os meios mais adequados a determinados fins,
indicar as previsíveis consequências da realização dos nossos objetivos, esclarecer a importância do que se procura atingir e
ajudar a explicitar os valores relacionados aos fins desejados. “Ou seja - o único dilema a que a ciência não responde é
lxxxv
A ação racional referente a fins, na definição de Weber, é aquela realizada
por
quem orienta sua ação pelos fins, meios e consequências
secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às
consequências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis
entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo38 nem de modo
tradicional39 (Weber, 1999a: 16).
A racionalidade encontra-se na ponderação dos fins e dos meios
estabelecidos para a ação. Ou seja, pondera-se o fim, não se define racionalmente o
fim.
Por outro lado, a ação racional referente a valores é aquela determinada “pela
crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua
interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal,
independentemente do resultado” (Weber, 1999a: 15).
Em relação às ações afetiva e referente a valores, o sociólogo alemão nos
esclarece que “distinguem-se entre si pela elaboração consciente dos alvos últimos
da ação e pela orientação conseqüente e planejada com referência a estes, no caso
da última” (Weber, 1999a: 15).
Portanto, o conceito de ação racional referente a valores relaciona-se com a
ação realizada a partir da consciência que o ator tem dos valores que a
fundamentam e pela orientação planejada com referência a estes. Ou seja, a
racionalidade nesse caso está na consciência dos valores que orienta a ação, sejam
eles quais forem, e no planejamento estabelecido em função deles. Dessa forma, a
racionalidade não se encontra no valor, mas sim na consciência que se tem sobre o
valor estabelecido e pela ação planejada desenvolvida.
precisamente o mais importante; que fins fixar, que valores escolher” (Silva, 1988: 53)
38
Ação social afetiva é aquela determinada por afetos ou estados emocionais atuais (Weber, 1999a: 15).
39
Ação social tradicional é aquela determinada por costume arraigado (Weber, 1999a: 15).
lxxxvi
Assim sendo, os fins definidos, na ação racional referente a fins, e os valores,
na ação racional referente a valores, não são categorias que Weber atribuía à
racionalidade. Essa postura é coerente com a “neutralidade axiológica” defendida
por Weber, a partir da distinção que ele estabelece entre “julgamento de valor” e
“relação com valores”.
Para a concepção weberiana, conforme destaca Aron, a ciência não valida os
juízos de valor: ela baseia-se em premissas de valor, relacionando, inclusive, a
matéria estudada com valores, mas nunca julgando-os (Aron, 1990: 470).
Silva aprofunda essa análise indicando que existe um duplo sentido na
neutralidade axiológica de Weber:
Duplo já que a radical separação entre conhecer e julgar implica,
como sabemos, a incapacidade de fundamentar analiticamente
tomadas de posição, mas implica também que, dentro dos limites
impostos pelo subjetivismo das operações de seleção, a
demonstração científica está ou deve estar liberta de avaliações
normativas (Silva, 1988: 59).
Mesmo
diferentes
quando
relações
Weber
que
mostra
podem
as
ser
estabelecidas entre as ações racionais referente
a fins e valores, não está em questão a
racionalidade dos fins/valores.
Ao tratar essa
questão, o sociólogo afirma o seguinte:
...pode suceder que esta [racionalização da ação] corra, de maneira
positiva, em direção a uma racionalização consciente de valores,
porém de maneira negativa, às custas não apenas do costume, mas
igualmente da ação afetiva, e finalmente também em direção à ação
puramanente racional referente a fins e não crente em valores, às
custas da ação racional referente a valores (Weber, 1999a: 19).
Em nenhum momento está em pauta a racionalidade do fim e/ou do valor
proposto. Apenas sinaliza que a racionalização da ação pode ser positiva em
direção a um valor conscientemente determinado, independente de questões de
costume ou afetiva, e, também, puramente relacionada a fins e não a valores.
lxxxvii
Essas relações ficam ainda mais intricadas quando o autor afirma que:
A decisão entre fins e consequências concorrentes e incompatíveis, por
sua vez, pode ser orientada racionalmente com referência a valores: nesse caso, a
ação só é racional com referência a fins no que se refere aos meios (Weber, 1999a:
16).
Essa formulação pode sugerir ao leitor desavisado que Weber, ao indicar que
a polêmica entre os fins pode ser resolvida pela racionalidade referente a valores,
estaria imputando racionalidade ao valor que servirá de orientação para os fins que
se quer atingir, através de meios racionais. Ou seja, o leitor pode interpretar que a
racionalidade referente aos valores definirá o fim a ser perseguido por uma avaliação
axiológica. Em outras palavras, dentre os fins incompatíveis opta-se pelo mais
racional.
No entanto, o que está presente na afirmação de Weber é o fato de que a
polêmica entre os fins será resolvida fundamentada nos valores que o sujeito em
ação opta conscientemente devido às suas referências éticas, estéticas e religiosas,
sejam elas quais forem. Vejamos:
Do ponto de vista da racionalidade referente a fins, entretanto, a
racionalidade referente a valores terá sempre caráter irracional, e tanto mais quanto
mais eleve o valor pelo qual se orienta a um valor absoluto; pois quanto mais
considere o valor próprio da ação (atitude moral pura, beleza, bondade absoluta,
cumprimento absoluto dos deveres) tanto menos refletirá as consequências desta
ação (Weber, 1999a: 16).
Assim sendo, Weber expõe o caráter “irracional” da racionalidade referente
aos valores em relação à racionalidade referente aos fins, na medida em que, para
ele, os valores não são racionais - racional é a consciência dos valores que orienta a
ação.
Weber, então, ao tratar da ação racional referente a fins, não a define
adequadamente, pois na verdade não discute a racionalidade dos fins, apenas
refere-se à racionalidade instrumental (a definição do melhor caminho e dos
lxxxviii
melhores instrumentos para a tingir determinados objetivos). Por outro lado, a ação
racional referente a valores seria a ação voltada para a definição dos objetivos e
finalidades ético-políticas de uma ação, sem levar em consideração, também, a
racionalidade dos objetivos definidos.
O importante a ressaltar é que sempre teremos uma ação racional referente a
fins relacionada a uma outra referente a valores. Ou seja, a ação racional
instrumental não existe abstratamente nem de forma neutra; a busca de um objetivo
pressupõe uma estrutura axiológica, apesar de nem sempre ela estar explícita ou ser
consciente. Por isso, a definição de administração de Paro é mais precisa, pois
explicita essa relação dialética entre fins e meios presente na ação racional
administrativa.
Resumindo, a racionalidade trabalhada por Weber, como já havíamos
indicado a partir de Tragtenberg e Paro, refere-se, substantivamente, às questões
relacionadas à adequação dos meios aos fins/valores definidos. A problemática da
racionalidade não atinge as questões sobre a pertinência racional dos fins e valores
definidos.
Como vimos, o conceito weberiano de burocracia é definido como a forma de
dominação legítima de caráter racional. A partir da explicitação das definições de
dominação e de racionalidade, referenciadas acima, podemos dizer que, para
Weber, a burocracia é a forma legítima de obter obediência de um grupo de
pessoas para atingir determinados objetivos, através do emprego econômico
de recursos materiais e conceituais e do esforço humano coletivo, assim como
da adequação desses recursos aos fins visados. Ou seja, a burocracia é
definida, por Weber, através de um conceito “estreito” de dominação e da dimensão
instrumental da racionalidade. Como destaca Tragtenberg:
lxxxix
A burocracia para ele é um tipo de poder. Burocracia é igual à
organização. É um sistema racional em que a divisão de trabalho se
dá racionalmente com vista a fins. A ação racional burocrática é a
coerência da relação de meios e fins visados (Tragtenberg, 1992:
139).
Dessa forma, o conceito de burocracia weberiana não explicita a relação de
dominação de classe presente na burocracia (como vimos na seção sobre
dominação) e nem o fim a que se propõe tal ordem administrativa.
A menção que Weber fará sobre a finalidade da burocracia é mostrar que ela
é adequada e necessária ao capitalismo, contribuindo para o desenvolvimento do
mesmo. No entanto, o autor não apresenta, diretamente, o capitalismo como
determinação de seu conceito de burocracia, pois trabalha com a dimensão
instrumental da razão dando ênfase aos aspectos de “emprego econômico” e
“adequação” na utilização dos recursos. Essa ênfase dada por Weber à
caracterização da burocracia será tratada adiante. Neste momento, cabe
explicitarmos melhor a relação entre burocracia e capitalismo no pensamento
weberiano.
Apesar de Weber apresentar a existência de estruturas burocráticas no Egito
na época do Novo Império, no principado romano tardio, na Igreja Católica Romana
e na China (Weber, 1999b: 204-205), ele deixa claro que a expressão definitiva da
burocracia só se dá com a intensificação do intercâmbio de mercadorias, propiciado
pelo desenvolvimento da economia capitalista.
Para Weber, o capitalismo ao mesmo tempo em que exige uma administração
burocrática oferece as condições para sua existência.
O capitalismo necessita de uma “administração contínua, rigorosa, intensa e
calculável”, por isso requer uma forma racional de dominação (Weber, 1999a: 146).
Por outro lado, o capitalismo possibilita, através dos recursos monetários a
existência da estrutura burocrática.
xc
Do mesmo modo que o capitalismo, em sua fase atual de
desenvolvimento, exige a burocracia – ainda que os dois tenham
raízes históricas diversas -, ele constitui também o fundamento
econômico mais racional – por colocar fiscalmente à disposição dela
os necessários meios monetários – sobre o qual ela pode existir em
sua forma mais racional (Weber, 1999a: 146).
Weber, quando analisa os pressupostos sociais e econômicos da burocracia,
mostra que a ampliação quantitativa e, principalmente, qualitativa das tarefas da
administração intensifica-se a partir do desenvolvimento da economia monetária que
tem no capitalismo seu mais alto grau de manifestação. Essas demandas para a
administração vão repercutir tanto na forma de administração privada (empresa
capitalista) quanto na pública (Estado).
Em relação à administração privada, Weber afirma:
A exigência da realização mais rápida possível das tarefas oficiais,
além de inequívoca e contínua, é atualmente dirigida à administração,
em primeiro lugar pela economia capitalista moderna. As modernas
empresas capitalistas de grande porte são elas mesmas, em regra
modelos inigualados de uma rigorosa organização burocrática. Suas
relações comerciais baseiam-se, sem exceção, em crescente
precisão, continuidade e, sobretudo, rapidez das operações (Weber,
1999b: 212).
Ele mostra que a grande empresa capitalista moderna é um dos exemplos
históricos mais importantes de um burocratismo claramente desenvolvido (Weber,
1999b: 205), na medida em que é por excelência fundada na economia monetária,
produzindo receitas contínuas, advindas do lucro privado, o que propicia o
surgimento e possibilita a manutenção da estrutura burocrática e de seu quadro
administrativo (Weber, 1999b: 208).
Em relação à administração estatal, o autor, ao tratar da ampliação qualitativa
das tarefas administrativas, afirma:
As exigências culturais crescentes, por sua vez, estão condicionadas,
ainda que em grau diverso, pelo desenvolvimento das camadas mais
influentes no Estado. Neste sentido, a burocratização progressiva é
uma função da propriedade crescentemente disponível para o
consumo e empregada neste e de uma técnica cada vez mais
refinada, correspondente às possibilidades assim criadas, do estilo de
vida. Quanto á repercussão na situação geral de necessidades, isto
condiciona a crescente indispensabilidade subjetiva de uma
xci
previdência interlocal e organizada em economia pública, isto é:
burocrática, para as mais diversas necessidades da vida, que
antigamente eram desconhecidas ou satisfeitas localmente ou pela
economia privada (Weber, 1999b: 211).
Essa relação entre burocracia e capitalismo revela um aspecto fundamental
da racionalidade burocrática. Como a racionalidade trabalhada por Weber é
instrumental - emprego econômico e adequação dos meios aos fins visados -, a
racionalidade atribuída à burocracia é a da utilização do pensamento, do raciocínio,
na manipulação dos meios necessários para atingir um fim determinado (Paro, 2000:
55). No entanto, o fim a que se destina a burocracia não fica explícito diretamente.
Mas ao desvelar as conexões entre capitalismo e burocracia, Weber explicita os fins
a que serve a burocracia. Ou seja, a burocracia apresenta-se como a ordem
administrativa racional para os fins da expansão capitalista.
Dessa forma, a racionalidade de fins implícita na concepção weberiana de
burocracia identifica-se com a racionalidade da economia capitalista. Ou seja, uma
racionalidade irracional, pois de caráter particularista, não universal, baseada na
exploração do homem pelo homem, enfim, uma racionalidade não libertária, não
emancipatória (Paro, 1990: 54-58).
Então, a racionalidade funcional, utilizada por Weber é ideológica, pois
escamoteia a existência de um fim determinado, na medida em que não existe
emprego econômico e adequação de recursos sem referência a fins. E como no
caso o fim não é racional no sentido moderno do termo, os meios também não o
são, pois o caráter racional da burocracia é limitado pela finalidade de sua
constituição.
Entretanto, Weber não analisa a racionalidade da burocracia como sendo
adequada apenas à economia capitalista. O sociólogo alemão aponta, também,
devido à “disciplina” – obediência às regras – e à “impessoalidade” da estrutura
xcii
burocrática, a possibilidade da burocracia colocar-se à disposição de diferentes
interesses de dominação: inclusive socialista (Weber, 199b: 223-224).
A questão, então, é: como a burocracia pode se colocar à disposição de
diferentes interesses, se afirmamos, anteriormente, que a utilização racional de
recursos para atingir fins determinados necessita de adequação entre fins e meios?
Ou seja, como a burocracia pode atender às finalidades distintas do capitalismo e do
socialismo?
Em nosso entendimento, isto acontece por dois motivos. Primeiro, porque ao
trabalhar com a concepção de racionalidade funcional e não explicitar os fins que
correspondem a determinado emprego econômico e adequado de recursos, Weber
confunde traços da burocracia - relativos ao referido emprego dos recursos para o
capitalismo -, que podem ser econômico e adequado, também, aos fins do
socialismo, com a totalidade da estrutura burocrática. Em outras palavras, o que
ocorre é que certas determinações da burocracia podem servir ao socialismo na
medida em que ele (socialismo) refere-se a uma sociedade em transição, portanto,
ainda com caráter de classe e necessitando de intervenções planejadas do Estado
na sociedade. E, dessa forma, tal como a sociedade capitalista, o socialismo exige
uma administração, ainda, com a dimensão de dominação.
O segundo motivo refere-se à autonomia relativa entre meios e fins. Apesar
de estarmos, até agora, mostrando que não há meios/recursos absolutos e neutros,
pois eles sempre estão relacionados a algum tipo de finalidade, isto não significa
dizer que os
meios/recursos são operacionais apenas quando colocados à
disposição daquelas finalidades que os geraram ou às quais eles estão mais
diretamente vinculados. Ou seja, as tecnologias produzidas - inclusive as
administrativas - em determinado contexto histórico, com determinada finalidade,
xciii
apesar de não serem neutras, não estão condenadas a servir apenas àquela
finalidade. Podemos encontrar, na relação entre fins e meios/recursos, situações
diferenciadas, onde determinados meios/recursos, pela sua qualidade, estão
visceralmente vinculados a fins específicos e outros que apresentam-se como maior
autonomia frente aos fins estabelecidos.
Nesse sentido, a necessidade da burocracia para o socialismo está correta
parcialmente, pois é uma sociedade em transição e estamos considerando a
autonomia relativa entre meios e fins.
Na transição, as mudanças fundamentais ainda não foram realizadas, uma
nova sociedade, uma sociedade sem classes, ainda não está consolidada e, por
isso, são necessários Estado e burocracia como instrumentos de dominação, mas
que tenham como perspectiva a superação dessa estrutura. Por outro lado, a
autonomia relativa existente entre meios e fins permite vislumbrar meios que possam
ser utilizados para fins diversos.
Essa compreensão reforça a análise realizada anteriormente sobre o caráter
contraditório da burocracia, na medida em que ela possui como uma de suas
funções o atendimento a demandas das classes dominadas.
Do ponto de vista do conceito de administração de Paro, podemos dizer que a
burocracia weberiana é a forma determinada historicamente da administração na
sociedade capitalista. A burocracia é a expressão da administração capitalista, na
medida em que define racionalmente o emprego econômico e adequado dos
recursos para atingir os fins da expansão do capital. Nesse sentido, devemos
entender a burocracia não como um dos modelos de administração existente no
capitalismo, mas sim como a própria administração capitalista, que pode ser
xciv
organizada de diferentes maneiras, para garantir a dominação de classe, através de
ações que acabam atendendo determinadas demandas das classes dominadas.
Então, a partir da análise crítica do conceito weberiano de burocracia,
devemos aprofundar a definição explicitada anteriormente e entender que a
burocracia é a forma legítima de obter obediência de um grupo de pessoas e
exercer o poder de classe para atingir objetivos voltados para a expansão
capitalista, através do emprego econômico de recursos materiais e conceituais
e do esforço humano coletivo, assim como da adequação desses recursos aos
fins visados, que se expressam, também, pela necessidade de atender
determinadas demandas da classe dominada. Consideramos que dessa forma o
conceito de burocracia fica completo em suas determinações essenciais.
Concluindo nossa reflexão, podemos dizer que, ao trabalhar a racionalidade
instrumental como racionalidade, Weber não explicita determinados valores que
estabelecem e que influenciam o formato de determinada ação social.
O tratamento que o sociólogo dá a questão da burocracia é típica. Ou seja,
para ele, a burocracia é uma ação racional que possui validade independente da
finalidade a que destina-se. Como vimos, em nosso entendimento, esse pressuposto
é equivocado, pois é necessário que os recursos sejam adequados às finalidades.
Por isso, é fundamental explicitar que, do ponto de vista da perspectiva que
pretendemos desenvolver, o valor que define a ação racional administrativa - ou
seja: a orientação pautada na ampliação e aprofundamento de direitos sociais -,
demarca as possibilidades de analisarmos a interação entre fins e meios.
A partir da compreensão da racionalidade, na perspectiva vinculada à tradição
marxista, e do entendimento de que a burocracia em Weber identifica-se com a
administração capitalista, veremos agora os traços essenciais da expressão material
xcv
da racionalidade da administração burocrática e suas implicações para uma
perspectiva que se pretenda comprometida com uma administração pública
democrática.
Ou seja, partindo da concepção geral de administração desenvolvida por
Paro, buscaremos articular uma finalidade racional - no sentido do atendimento “às
necessidades humanas em sua globalidade”, considerando o homem em sua
“especificidade e universalidade” (Paro, 2000: 57) - com a utilização racional de
recursos para tal fim. Assim, procuraremos explicitar formas de racionalização do
trabalho e coordenação do esforço humano coletivo, a partir da crítica da
administração burocrática, que possam ser referências para uma administração
pública democrática, na medida em que a burocracia expressa uma forma de
administração com certo nível de racionalidade, oferecendo condições para atender
determinadas
demandas
das
classes
dominadas,
devido
ao
seu
caráter
contraditório, destacado anteriormente.
Portanto, procuraremos mostrar, tendo como perspectiva a idéia de que existe
uma certa autonomia dos meios em relação aos fins, que alguns parâmetros da
administração burocrática podem e devem ser incorporados para uma proposição de
ampliação e aprofundamento de direitos. Até porque, essa proposição só se
apresenta incompatível com o capitalismo se for efetivada de forma radical, tanto
quantitativa quanto qualitativamente.
Expressão material da racionalidade burocrática
Consideramos como núcleo da “expressão material da racionalidade
burocrática”
as
características
concretas
dessa
experiência
histórica
de
administração, sistematizadas por Weber. A partir da apresentação dessas
xcvi
características procuraremos problematizá-las e destacar, na seção seguinte, a partir
da
contradição
burocrática,
alguns
traços
que
são
importantes
para
o
desenvolvimento de uma administração pública democrática, ou seja, uma
administração pública voltada para o aprofundamento e a ampliação de direitos.
A racionalidade da burocracia, segundo o sociólogo alemão, está presente,
principalmente, na sua estrutura teórico-formal e sua superioridade encontra-se no
conhecimento
profissional
de
seus
quadros
(Weber,
1999a:
146).
A
burocratização é o processo racional e de especialização da administração.
Diferentemente do que comumente atribui-se à burocracia e, pior, ao conceito
weberiano de burocracia, ela não se configura como “um” modelo de administração
racional. Para Weber, ela é “a” administração racional.
Como vimos anteriormente, administrar, para Weber, é exercer dominação,
ou seja, obter obediência de determinadas pessoas para determinados objetivos.
Porém, nem toda a dominação é exercida através da administração. A burocracia,
então, é uma forma racional de dominação exercida por um quadro administrativo. A
racionalidade burocrática, segundo Weber, expressa-se através das seguintes
características, enquanto um tipo puro, no que refere-se à sua estrutura:
a) Princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos
administrativos;
b) Princípio da hierarquia de cargos e da sequência de instâncias, isto é, um
sistema fixamente regulamentado de mando e subordinação das
autoridades, com fiscalização das inferiores pelas superiores;
c) Baseada em documentos;
d) Pressupõe, em regra, uma intensa instrução da matéria;
xcvii
e) Requisição do emprego da plena força de trabalho do funcionário, quando
o cargo está plenamente desenvolvido, independentemente da carga
horária fixada;
f) Realização da administração dos funcionários de acordo com regras
gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem
ser aprendidas (Weber, 1999b: 198 – 200).
Em relação ao poder de mando e obediência, a burocracia estrutura-se de
forma que o senhor legal típico, enquanto ordena e manda, obedece à ordem
impessoal pela qual orienta suas disposições. Por outro lado, quem obedece,
obedece às regras e não ao senhor. A obediência, nesse sentido, está vinculada às
regras impessoais. (Weber, 1999a: 142).
Em relação ao quadro administrativo burocrático, enquanto funcionários, a
burocracia expressa-se da seguinte forma:
a) São livres e obedecem às obrigações objetivas;
b) São nomeados por uma hierarquia rigorosa;
c) Têm competências funcionais fixas;
d) São contratados formalmente, através de seleção, segundo a qualificação
profissional, avaliada mediante prova e certificada através de diploma;
e) São remunerados com salários em dinheiro;
f) Exercem o cargo como profissão única e principal;
g) Têm perspectiva de uma carreira;
h) Trabalham em separação absoluta dos meios administrativos e sem
apropriação do cargo;
i) Estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e
controle do serviço. (Weber, 1999a: 144).
xcviii
São essas características, tanto da estrutura quanto do quadro administrativo,
que fazem da burocracia uma administração com características de racionalidade,
que vem responder a determinadas tarefas que crescem quantitativamente e que
intensificam-se qualitativamente, a partir do desenvolvimento da economia monetária
capitalista.
Porém, não só Weber identifica racionalidade na burocracia. Hegel, na
medida em que conceitua burocracia como a classe universal, aquela responsável
para garantir os “interesses gerais” do Estado, e sendo o Estado a razão em si e
para si, atribui a ela (classe universal) uma intervenção na sociedade segundo as
determinações da razão. Mas, diferentemente de Weber, Hegel, um expoente do
pensamento iluminista, considera a razão em sua dimensão finalística e não só
instrumental.
Concretamente, para Hegel, a burocracia é a responsável por executar e
realizar os atos do governo. Os indivíduos destinados às funções governamentais
(ou seja, a compor a burocracia) são escolhidos através de “provas” de aptidão.
Dessa forma, qualquer indivíduo pode vir a compor a burocracia e, nesse sentido,
fazer parte da classe universal e, assim, cumprir o dever relativo à profissão oficial
que exerce, que é a substância de sua situação. Para isso, deve o profissional ser
remunerado e não voluntário, pois a ação voluntária, como ressalta Hegel, tende a
ser desenvolvida por finalidades subjetivas e não objetivamente como deve ser uma
função de Estado (Hegel, 1997: 266-270 / §287-§294).
Como podemos perceber, a expressão material da burocracia em Hegel não
difere substantivamente da apresentada por Weber, apesar deste último determinar
com mais precisão sua configuração.
xcix
Por outro lado, Hegel, por que trabalha com uma concepção de racionalidade
na esteira do iluminismo, atribui uma racionalidade à burocracia - enquanto classe
universal, expressão do Estado racional - voltada para os interesses universais. No
entanto, como pudemos constatar anteriormente, através da crítica marxista, a
concepção hegeliana é uma concepção fortemente ideológica, na medida em que
não existe interesse geral numa sociedade de classe.
Assim sendo, a crítica que Marx direciona às determinações hegelianas da
burocracia, mostrando que Hegel apenas apresenta elementos que conformam a
descrição empírica da burocracia, em parte como ela realmente é e, em parte, como
ela se vê40, pode também ser utilizada em relação as características que Weber
atribui à administração burocrática.
A expressão material da administração burocrática (estrutura e quadro
administrativo), nas descrições de Hegel e Weber, manifesta-se formalmente.
Parafraseando Marx, podemos dizer que o formalismo é como a burocracia
realmente é.
Por outro lado, os conteúdos dessa ordem administrativa não são analisadas
de forma consistente pelos autores. Hegel ideologiza a burocracia como a
responsável em garantir os interesses gerais da sociedade e Weber atribui à
burocracia uma racionalidade abstrata. Ou seja, poderíamos dizer que a burocracia
racional e responsável pelos interesses gerais é como ela própria se vê. Podemos
afirmar que a descrição empírica realizada por Hegel e Weber corresponde a traços
efetivos que a burocracia possui e, por outro lado, a finalidade universal, de cunho
hegeliano, e a racionalidade abstrata weberiana expressam-se como aparências do
fenômeno burocrático.
40
“Hegel nos oferece uma descrição empírica da burocracia, em parte tal e como realmente é e em parte de acordo com a
opinião que ela tem de si mesma” (Marx, 1978: 358).
c
Isto significa que a base material da burocracia expressa possibilidades de
uma configuração com algum nível de racionalidade e voltada para interesses
diversos, na medida em que a aparência, como vimos anteriormente, faz parte do
fenômeno. Na próxima seção, a partir dessa discussão sobre a relação formaconteúdo da burocracia, destacaremos as possibilidades da organização burocrática
atuar na perspectiva de ampliação e aprofundamento de direitos.
Burocracia e administração pública democrática
Como já antecipamos anteriormente, o servidor livre é uma das expressões
da materialidade da burocracia que deve ser preservado, na medida em que
possibilita a entrada no quadro administrativo de funcionários com conhecimento e
liberdade que pode vir a oferecer resistência a determinados projetos colocados em
pauta. Vejamos melhor esse aspecto.
A possibilidade da burocracia ser um instrumento para uma finalidade de
administração pública voltada para ampliação e aprofundamento de direitos está,
primeiramente, vinculada diretamente à sua função contraditória como aparelho de
Estado. No entanto, é na sua particularidade, enquanto ordem administrativa, que
encontramos os elementos concretos de sua potencialidade, no sentido de operar
interesses das classes dominadas.
Uma das determinações da burocracia, segundo Marx, é o fato dela ser o
formalismo de um conteúdo que está fora dela (Marx, 1978: 358). Essa
determinação marxiana explicita que o suposto interesse geral que a burocracia
procura garantir na sociedade, enquanto expressão material da razão universal do
Estado, nada mais é do que um interesse particular privado frente a outros
interesses privados.
ci
Portanto, os fins formais da burocracia, entendidos como a preservação do
interesse geral na sociedade, entram em conflito com os seus fins reais que é a
garantia de determinados fins particulares. Dessa forma, os fins do Estado são
convertidos em fins burocráticos e os fins burocráticos em fins do Estado. Ou seja, a
burocracia opera a finalidade real do Estado, enquanto dominação de classe, e o
Estado apresenta-se, através da finalidade formal da burocracia, enquanto
universalidade. Concluindo, Marx afirma:
Na burocracia, a identidade do interesse do Estado e do fim privado
particular se estatui de tal modo que o interesse do Estado se
converte em um interesse privado particular frente aos outro fins
privados (Marx, 1978: 360).
De certa forma, a análise do formalismo da burocracia realizada por Marx é
também compartilhada por Weber, quando este afirma que “a burocracia puramente
como tal é um instrumento de precisão que pode colocar-se à disposição de
interesses de dominação muito diversos, tanto puramente políticos ou econômicos
quanto outros quaisquer” (Weber, 1999b: 224). Ou seja, para Weber o conteúdo da
burocracia também encontra-se fora dela.
No entanto, como já verificamos, a administração burocrática não é um
instrumento
racional abstrato, ela está vinculada a determinado fim (o fim de
expansão capitalista). Isto não a impossibilita de expressar-se concretamente
através de mecanismos que podem servir a fins não capitalistas, na medida em que
ela apresenta contradições inerentes à sua função na sociedade burguesa.
A “mecanização rigorosa do aparato burocrático”, estabelecida através de
salário, carreira que não depende da arbitrariedade, sentimento de honra estamental
e possibilidade de crítica pública, além de ser compatível com a “subordinação
incondicional aos superiores”, estrutura o caráter profissional “objetivo” do cargo,
facilitando a adaptação às condições objetivas dadas (Weber, 1999b: 207).
cii
Portanto,
segundo
Weber,
esses
elementos
que
estabelecem
a
“mecanização” remetem à subordinação do servidor/funcionário ao senhor e à
própria estrutura do Estado. Essa subordinação manifesta-se, para o sociólogo,
devido à centralidade que a disciplina e a obediência hierárquica possuem como
atributos da burocracia.
É interessante notar que Marx, nos anos 40 do século XIX, já indicava essa
análise sobre a burocracia. Segundo ele, para a burocracia “a autoridade é o
princípio de seu dever e a adoração da autoridade sua intenção”, dessa forma a
burocracia apresenta-se através da “obediência passiva, da fé na autoridade e de
um mecanismo de comportamento formal fixo, de princípios, idéias e tradições fixas”
(Marx, 1978: 360).
No entanto, simultaneamente, os elementos de “mecanização” combinados
com o instrumento de “direito ao cargo”41, propiciam uma autonomia relativa da
burocracia, devido à contradição de sua função na sociedade, permitindo, assim
também, sua atuação em confronto com o senhor e com a estrutura de dominação
do Estado. Dessa forma, conforme Weber sinaliza, viabiliza-se uma aliança entre a
burocracia e a disposição democrática dos dominados, na medida em que estes
vislumbram uma relação direta entre a diminuição do poder do senhor sobre os
funcionários e a diminuição de seu (do senhor) poder em si. Nas palavras do autor:
[A burocracia] encontra apoio para isto [direito ao cargo] na
disposição ‘democrática’ dos dominados, que exige a minimização da
dominação, na crença de que toda diminuição do poder arbitrário do
senhor sobre os funcionários implique um enfraquecimento do poder
senhorial como tal (Weber, 1999b: 232).
Por isso, em nosso entendimento, Weber percebe a possibilidade da
organização burocrática ser um instrumento para diversos fins. Pois, ao apresentar-
41
Segundo Weber, “a burocracia aspira, por toda parte, ao desenvolvimento de uma espécie de ‘direito ao cargo’, mediante a
criação de um procedimento disciplinar ordenado e a eliminação do poder totalmente arbitrário do ‘superior’ sobre o
funcionário, enquanto procura assegurar a posição deste, sua ascensão regular, seu sustento na velhice.” (Weber, 1999b:232).
ciii
se de forma racional, a burocracia, como o próprio sociólogo admite, não revela a
tendência concreta de seu efeito econômico - apesar de sua existência42 - e, nesse
sentido, “consiste pelo menos num nivelamento relativo” (Weber, 1999b:224).
Para completar, poderíamos dizer que determinados aspectos da estrutura
burocrática fortalecem sua dimensão de relativa autonomia. Por exemplo: a) a
existência dos princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou
regulamentos administrativos; b) o processo da administração dos funcionários ser
realizado de acordo com regras gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos
abrangentes, que podem ser aprendidas (Weber, 1999b: 198 – 200); e c) o fato de
que, em relação ao poder de mando e obediência, tanto o senhor legal típico quanto
a burocracia estão vinculados às regras impessoais (Weber, 1999a: 142).
Também Gramsci tratou da autonomia relativa da burocracia. Para este autor,
existe uma relação entre a classe social em que o burocrata é recrutado e o seu
valor político (Gramsci, 2000: 62-63). Nesse sentido, se um determinado Estado
possui um recrutamento difuso de profissionais para a ocupação de sua estrutura
burocrática, isso pode gerar uma seleção de quadros que possuem valores políticos
diversificados. Num contexto de socialização da educação e de seleção por
concurso público, a probabilidade de constituição de quadros burocráticos de valores
distintos amplia-se consideravelmente. Pois, como ressalta o autor, “as classes
expressam os partidos, os partidos elaboram os homens de Estado e de Governo,
os dirigentes da sociedade civil e da sociedade política” (Gramsci, 2000: 201).
Essa questão torna-se mais evidente quando Gramsci esclarece que todo o
indivíduo é funcionário do Estado “na medida em que, ‘agindo espontaneamente’,
sua ação se identifica com os fins do Estado” (Gramsci, 2000: 282) e não porque é
42
Para dirimir qualquer tipo de dúvida, cabe esclarecer que Weber, apesar de relacionar o desenvolvimento da burocracia com
o capitalismo, não imputa à burocracia a finalidade de expansão capitalista. O autor considera a organização burocrática
civ
empregado do Estado e submete-se à hierarquia burocrática. Assim sendo,
podemos encontrar na burocracia indivíduos que não se comportam como
“funcionários do Estado”43.
Dessa forma, garantir a autonomia relativa da burocracia, via proteção do
quadro administrativo e seleção baseada na competência, possibilita refratar a luta
de classes no interior do Estado, pois permite a entrada de funcionários no Estado
que não estão alinhados ao projeto político de dominação existente. Nesse caso,
forças de transformação podem ser encontradas, também, no interior da burocracia.
Não estamos querendo dizer com isso que a burocracia seja uma força de
transformação. Muito pelo contrário, ela encontra-se em autonomia relativa. Então, a
existência da burocracia significa a existência de diferentes projetos políticos no
interior da administração, mesmo havendo uma tomada de poder do Estado pelos
representantes das classes trabalhadoras. Por isso, a quebra da burocracia
necessita ser realizada, simultaneamente, à destruição do Estado, embora essas
extinções não signifiquem a extinção da administração e nesse sentido de algum
nível de dominação, weberianamente falando.
A burocracia, portanto, não é uma saída administrativa definitiva do ponto de
vista dos dominados. Porém, numa perspectiva imediata, ela (burocracia), por
expressar a existência de diferentes projetos políticos no interior da administração
pública, apresenta-se como a estrutura mais propícia para viabilizar a luta política no
seio da organização estatal, além de possibilitar a existência de qualidades técnicas
e profissionais no Estado a serviço de determinadas demandas das classes
dominadas.
racional para diferentes ordens econômicas.
43
Cabe também ressaltar que Gramsci admite a possibilidade de encontrar burocracias comprometidas com interesses
elevados e não utilitários (Gramsci, 2000: 283). A partir da análise histórica concreta, consegue identificar na burocracia
posturas políticas distintas. O autor, por exemplo, registra o caráter nacional das burocracias da França e da Inglaterra em
contraponto ao caráter de casta da burocracia italiana (Gramsci, 2002: 167).
cv
Por outro lado, a construção da universalidade e a realização da liberdade, ou
seja, a racionalidade da tarefa burocrática, no sentido hegeliano, podem fortalecer
na sociedade a luta por transformações estruturais, na medida em que setores da
burocracia possuem essa
comprometidos
com
uma
concepção de sua função e procuram atuar
sociedade
que
possa
realizar
efetivamente
a
universalidade e liberdade. Nesse sentido, esses setores, aí sim, contribuiriam para
mudanças radicais do próprio Estado e de sua forma de administração.
Nesta seção, até o momento, trabalhamos com as potencialidades concretas
da burocracia para o fortalecimento de uma administração pública voltada para o
aprofundamento e ampliação de direitos. Cabe agora, explicitarmos, claramente, os
limites da organização burocrática para a estruturação de uma administração
radicalmente democrática.
O primeiro aspecto a destacar é o fato de que a burocracia, ao considerar-se,
efetivamente, “classe universal”, dificulta a articulação política com a sociedade,
favorecendo um comando autoritário, sem colaboração ou acordo prévio. Pois, ao
colocar-se como a portadora dos interesses gerais, atribui os obstáculos para
garantir a condução dos negócios públicos numa perspectiva universal à
interferência que os setores da sociedade (grupos, movimentos, instituições,
partidos) tentam fazer ou efetivamente realizam. Dessa forma, tende a isolar-se e
atuar autoritariamente frente às forças sociais concretas, ou melhor, isolam-se para
facilitar a influência de determinadas forças sociais com quem se afinam política e
ideologicamente. Esse procedimento produz o chamado “insulamento burocrático”,
que, segundo Nunes, significa:
... o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a
interferência oriunda do público ou de outras organizações
intermediárias (...). O insulamento burocrático significa a redução do
escopo da arena em que interesses e demandas populares podem
desempenhar um papel (...); ao contrário da retórica de seus
cvi
patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma
uma processo técnico e apolítico ... (Nunes, 1997: 34).
Essa questão implica a necessidade de, efetivamente, relativizar a autonomia
da burocracia, sob pena dela estruturar uma dominação autoritária, vinculada a
determinado setor social.
Em decorrência, merece atenção a possibilidade da burocracia vir a apropriarse dos meios de administração e produção e transformar-se numa classe dominante.
Essa possibilidade (mesmo que apenas teórico-abstrata) agrava a situação anterior,
na medida em que reflete a extrapolação das atividades da burocracia para a área
política e configura seu domínio integral da área econômica. Essa situação para
Weber é uma possibilidade real e por isso o autor preocupa-se em refletir, como
observamos, sobre a liberdade individual, o controle da sociedade sobre a
burocracia e a questão do “dirigente” da sociedade numa ordem dominada pelo
“funcionário”.
Em relação à questão da ordem dominada por funcionário, Weber esclarece
que este é um mau estadista, pois a base de sua intervenção é a disciplina e não a
ousadia e responsabilidade política (Weber, 1999b:539-540). Conforme ressalta
Tragtenberg, em sua análise de Weber:
Enquanto o burocrata sacrifica suas convicções pessoais à
obediência hierárquica, o líder político caracteriza-se por assumir
publicamente a responsabilidade de seus atos (Tragtenberg, 1992:
141).
No entanto, cabe ressaltar que a organização burocrática, apesar de ser um
meio de poder tecnicamente mais desenvolvido, não significa e nem implica,
diretamente, que a burocracia consegue impor suas idéias dentro do complexo
social em questão (Weber, 1999b: 224-225). Essa análise sublinha a relativa
autonomia da burocracia frente ao Estado e à sociedade e mostra que o poder da
burocracia possui limites, não é algo incontrolável, apesar de perigoso e poderoso.
cvii
Assim sendo, a dimensão de dominação presente na administração, de uma
forma geral, e na burocracia, especificamente, exige que, do ponto de vista
democrático, se organizem estratégias para conter os traços autoritários inerentes à
organização burocrática.
Portanto, a questão que se coloca, em relação à administração burocrática, é
saber como controlá-la, ou melhor, como estabelecer mecanismos de controle para
que ela não se aproprie dos meios de administração e produção da sociedade e se
estabeleça como classe dominante.
Essa preocupação já está presente em Hegel. O filósofo alemão, apesar de
conceber a burocracia como classe universal, indica a necessidade da existência de
mecanismos de controle, realizados pelo soberano, enquanto poder de Estado, e
pelas corporações, enquanto expressão das particularidades da sociedade civil, para
que a burocracia não se transforme em uma casta aristocrática. Assim, afirma o
autor:
A preservação do Estado e dos governados contra o abuso do poder
cometido pelas autoridades e pelos funcionários imediatamente
consiste, por um lado, na hierarquia e na responsabilidade e reside,
por outro, no reconhecimento das comunas e corporações impeditivo
de que o arbítrio individual se confunda com o exercício do poder
entregue aos funcionários, assim completando, vindo de baixo, a
vigilância que, vinda de cima, é insuficiente quanto aos atos
particulares de administração (Hegel, 1997: 271; §295).
Em seguida, o autor complementa:
As instituições da soberania, pelo lado superior, e os direitos das
corporações, pelo lado inferior, impedem que tal inteligência e tal
consciência [que os funcionários do Estado possuem] se coloquem na
posição isolada de uma aristocracia e que a cultura e o talento
venham a constituir-se em instrumentos de arbitrariedade (Hegel,
1997: 272; §297).
Weber também propõe mecanismos de controle para a burocracia. Para o
sociólogo alemão, a divisão de competências dos funcionários e o controle
parlamentar são fundamentais.
cviii
Em relação à divisão de competências, Weber aponta que essa estratégia
não permite a concentração de poder nas mãos de um único setor da burocracia.
Então, divide-se para garantir o controle (Weber, 1999b: 265 – 266).
A função do parlamento como instrumento de controle da burocracia é
ressaltada por Weber como forma de estabelecer um contra-poder de especialistas
para avaliar as ações desenvolvidas pela estrutura burocrática. Para isso, ressalta o
autor, são necessárias duas condições prévias: conhecimento especializado e o
“saber oficial”44, além de ser previsto o direito de argüição para que o parlamento
possa investigar, ocasionalmente, determinadas ações dos chefes administrativos e
de sua burocracia (Weber, 1999b: 564-565).
É interessante observar que, acerca dessa questão, aglutinam-se as diversas
matizes de pensamento.
Marx, por exemplo, ao refletir sobre a questão do controle da burocracia, a
partir da formulação hegeliana, aponta essa questão como uma dualidade não
resolvida. Ou seja, o controle frente à burocracia faz-se necessário, pois não se
constituem na sociedade efetivos interesses gerais. Como vimos, Marx sinaliza a
existência de diferentes interesses particulares em disputa na sociedade e mostra
que a burocracia expressa parte desses interesses. Portanto, do ponto de vista
estrutural, exige-se o controle da burocracia porque necessita-se controlar
determinados interesses contra os demais. Nesse sentido, para Marx, Hegel, ao
elaborar o controle como algo vindo da o poder soberano, de cima para baixo, e das
corporações, de baixo para cima, mantém a situação de dualidade na sociedade.
Em relação ao controle exercido pela autoridade soberana, de cima para baixo, Marx
sublinha que ela exerce os maiores abusos de poder - portanto, o controle para
44
Ver nota 34.
cix
evitar abuso de poder burocrático é realizado, por cima, pelo principal responsável
pelo abuso45. O controle vindo de baixo, exercido pelas corporações, na verdade é
“o conflito não dirimido entre a burocracia e as corporações” (Marx, 1978: 365).
No entanto se pensarmos, hipoteticamente, numa sociedade em transição,
onde o poder soberano está nas mãos de representantes das camadas, até então
dominadas (por exemplo dos trabalhadores, no caso do capitalismo), o controle da
hierarquia sobre a burocracia passa a ser necessário para garantir a estrutura de
dominação na sociedade.
Essa análise procura enfatizar que a questão relativa ao controle sobre a
burocracia é uma questão para a ordem social fundada na sociedade de classes e
não para superação desta ordem. Controlar a burocracia não é superá-la; portanto, a
questão de fundo que deve ser posta não é a do controle, mas sim a da superação.
Entretanto, o controle sobre a burocracia, numa ordem de desigualdade, é um
elemento que se coloca como necessário para ampliar os interesses das classes
dominadas. Nessa perspectiva, deve ficar explícito que uma estrutura de controle
sobre a burocracia, apesar de necessária numa sociedade de classes, não é um
elemento que promove a superação dessa ordem.
Uma das formas de superação da burocracia é a democratização efetiva da
administração. Para Marx, a Comuna de Paris foi o exemplo histórico de sua época,
na medida em que “ela arranjou para a República a base de organizações
verdadeiramente democrática” (Marx, 1984: 299).
A expressão democrática da administração da Comuna configurou-se pela
constituição de uma gestão pública exercida diretamente pelos trabalhadores eleitos
45
“Segundo o § 295 [da Filosofia do Direito], vemos que ‘a garantia do Estado e dos governos contra os abusos de poder das
autoridades e de seus funcionários’ se faz, em parte, pela ‘hierarquia’ (como se a hierarquia não constituísse o abuso principal
e os pecados pessoais dos funcionários pudessem ser comparados com seus necessários pecados hierárquicos ...)” (Marx,
1978: 365).
cx
por sufrágio universal e responsabilizáveis e substituíveis a qualquer momento, tanto
para área executiva-legislativa quanto para judiciária e demais ramos da
administração (Marx, 1984: 296-297).
Weber também apresenta como determinação central para a efetivação de
uma administração democrática o sistema de eleição, sorteio ou rodízio para
assumir as funções administrativas, direito de revogação, mandato imperativo e
dever rigoroso de prestar contas (Weber, 1999a: 191). Ou seja, a característica
essencial da administração democrática é ser exercida a partir por um quadro
administrativo eleito diretamente pela assembléia e subordinado a ela. Pois, como
ressalta o autor, a administração democrática “se baseia no pressuposto da
qualificação, em princípio, de todos para a direção dos assuntos comuns, e porque
minimiza a extensão do poder de mando” (Weber, 1999b: 193).
Essa determinação weberiana assemelha-se à de Marx. No entanto, para o
sociólogo, a administração democrática não é viável para a sociedade de massas,
pois, para a sua realização, as associações devem ser limitadas nas seguintes
dimensões:
1) localmente, 2) quanto ao número de participantes, 3) no que se
refere à situação social dos membros, e ele pressupõe 4) tarefas
relativamente simples e estáveis e 5) apesar disso, um grau não
totalmente insignificante de desenvolvimento da competência de
avaliar, objetivamente, meios e fins (Weber, 1999b: 193).
Diferentemente de Weber, para Lênin o capitalismo criou “as premissas para
que ‘todos’ possam realmente participar na administração do Estado”, através da
alfabetização geral e da educação e disciplina dos trabalhadores propiciada pelo
“grande, complexo e socializado aparelho dos correios, dos caminhos de ferro, das
grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc” (Lênin, 1980: 290).
Lembremos, no entanto, que Lênin remete à burocracia apenas à questão do
registro e controle e não descarta a necessidade de utilização do conhecimento do
cxi
especialista para tarefas a serem executadas sob o comando da classe
trabalhadora. Portanto, não há em Lênin nenhuma visão romântica de que a
sociedade socialista poderia dispensar os conhecimentos técnicos adquiridos pela
sociedade capitalista e manipulados pelos especialistas. O autor enfatiza que o
registro e o controle são os elementos principais “para o funcionamento regular da
primeira fase da sociedade comunista” (Lênin, 1980: 290). E, de acordo com sua
análise:
[O registro e o controle] foram simplificados em extremo pelo
capitalismo, até operações extraordinariamente simples de vigilância
acessíveis a qualquer pessoa alfabetizada, até o conhecimento das
quatro operações da aritmética e à entrega dos recibos
correspondentes (Lênin, 1980: 290-291).
Nesse sentido, Lênin articula o processo de democratização da administração do
Estado com a extinção da própria administração. Nas palavras do autor:
A partir do momento em que todos os membros da sociedade , ou
pelo menos a sua imensa maioria, tenham a prendido a administrar
eles próprios o Estado (...) – a partir desse momento começa a
desaparecer toda a administração em geral (Lênin, 1980: 291).
Torna-se necessário ressaltar que Lênin está tratando da administração do
Estado, da organização burocrática, da questão do controle e do registro, mostrando
que o processo de democratização suprime a necessidade de uma administração
burocrática.
Gramsci discute a questão da burocracia e sua organização, a partir do
debate sobre “centralismo burocrático” e “centralismo democrático”. Ou seja, o autor
também trata da relação burocracia-democracia.
A questão central que se coloca, para o marxista italiano, refere-se à forma
como se estabelece a relação entre organização e movimento da sociedade. O
“centralismo democrático” é o que se expressa efetivamente como orgânico, pois
constitui-se como
cxii
uma contínua adequação da organização ao movimento real, um
modo de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando pelo
alto, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo
da massa na sólida moldura do aparelho de direção, que assegura a
continuidade e a acumulação regular das experiências: ele é
‘orgânico’ porque leva em conta o movimento, que é o modo orgânico
de revelação da realidade histórica, e não se enrijece mecanicamente
na burocracia; e ao mesmo tempo, leva em conta o que é
relativamente estável e permanente ou que, pelo menos, move-se
numa direção fácil de prever, etc. (Gramsci, 2000: 91).
Gramsci trata da relação que deve ser estabelecida entre base e direção para
que a organização seja efetivamente democrática. Ou seja, a organização deve
estar aberta para incorporar os impulsos vindo de baixo no aparelho de direção,
evitando enrijecer-se enquanto burocracia. Dessa forma, o autor ressalta a
importância do controle da burocracia ser exercido a partir de baixo, para combater
seu centralismo (Gramsci, 2000: 274).
Contrariamente ao centralismo democrático, o centralismo burocrático
caracteriza-se pelo fato do grupo dirigente encontrar-se saturado, transformado em
um pequeno grupo preocupado com seus privilégios e evitando o surgimento de
forças contrastantes, mesmo que vinculadas aos interesses dominantes (Gramsci,
2000: 91).
Conforme podemos constatar, a partir das análise anteriores, o fundamental a
registrar é que as questões de controle sobre a burocracia devem ser pensadas a
partir de perspectivas democratizadoras da administração. Só assim pode-se
estruturar propostas efetivas de superação da ordem burocrática.
Sintetizando, a questão do controle, do ponto de vista dos dominados, remete
a estratégias de participação no poder, seja diretamente, como presente nas
propostas de Marx, Lênin e Gramsci, seja indiretamente, via corporações, na
perspectiva hegeliana, ou através da representação parlamentar na visão
weberiana. Por outro lado, do ponto de vista do dominante, o poder do soberano,
conforme destaca Hegel, e a divisão de tarefas da burocracia e a centralização do
cxiii
poder político, conforme apregoa Weber, são instrumentos essenciais para exercer o
controle da burocracia.
Dessa forma, podemos dizer que, de um ponto de vista radical, a democratização da
sociedade no geral e da administração em particular é a forma de superar a administração
burocrática. No entanto, num contexto de transição ou de uma situação onde o poder
político de governo esteja nas mãos de partido(s) afinado(s) com as demandas e
necessidades das classes trabalhadoras, o fundamental deve ser combinar o processo de
centralização de poder e comando da nova classe dirigente, visando direcionar as ações da
burocracia, com um processo de democratização da administração, onde a proporção dos
dois pólos articulem-se inversamente. Ou seja, conforme o avanço e consolidação da nova
sociedade ou de um projeto mais afinado com os interesses dos dominados, menos
centralização e burocratização e mais democratização.
Assim, a partir das considerações levantadas ao longo deste capítulo e
considerando o cenário de forte hegemonia liberal e conservadora, nossa tese
explicita-se no entendimento de que a estratégia central deve ser a de
fortalecer a estrutura burocrática do Estado para além dos centros
estratégicos, buscando aproveitar o “caráter racional” da burocracia, por um
lado, como forma de ampliar os espaços para propostas efetivas, eficientes e
eficazes, comprometidas com os dominados, que viabilizem melhorias
imediatas nas condições de vida da população e, por outro, como mecanismo
para contribuir com a formação de um quadro administrativo que tenha
condições de colocar-se a serviço da classe trabalhadora. Simultaneamente, é
fundamental propor o aprofundamento de mecanismos de democratização
para
combater
a
tendência
autoreferenciada
da
burocracia
e
sua
paralisia/reação a mudanças (Nogueira, 1998: 260-261), criando maior controle
social
e
controle
público
(Soares,
cxiv
2003),
como
forma
de
propiciar
transparência e fragilizar a direção hegemônica, criando, dessa forma,
condições para o fortalecimento de ações contra-hegemônicas.
Nesse sentido, entendemos que: a) o Estado deve ser forte, amplo e
intervencionista para viabilizar a construção da “universalidade”, apesar de
que ser amplo e forte não garante “universalidade”, mas é uma condição
central na sociedade capitalista que pretenda enfrentar com mais ênfase a
desigualdade sistêmica; e b) a partir de um Estado forte e amplo a ordem
administrativa deve possuir como espinha dorsal a racionalidade burocrática,
pois ela possibilita, como vimos, a construção contra-hegemônica.
No entanto, há de se frisar que Estado forte e ordem administrativa racionalburocrática não garantem a construção da universalidade, mas são condições essenciais
para tal.
Sendo assim, é possível, se estivermos atento ao limite estrutural que a
burocracia oferece para o desenvolvimento da democracia e às questões de
dominação e controle presentes em sua realização, pensarmos numa matriz de
administração pública tendo como referência elementos da organização burocrática
que potencializam a intervenção administrativa numa perspectiva pautada no
atendimento das demandas e necessidades das classes dominadas, na medida em
que a “racionalidade” burocrática permite a utilização de algumas das expressões de
sua materialidade, visando a ampliação e o aprofundamento de direitos, numa
sociedade de classes.
O desenvolvimento de tal proposição
será realizada a partir da concepção teórica
esboçada neste capítulo, mediada pela análise
crítica
do
processo
de
estruturação
e
consolidação do Estado brasileiro e de sua
cxv
organização
imperiais
administrativa
à
ditadura
de
(das
1964),
formas
para,
posteriormente, debater sobre as implicações
do capitalismo contemporâneo nesse cenário e
apresentarmos sugestões para a construção e
fortalecimento de uma administração pública
efetivamente
democrática,
gestão pública da área social.
cxvi
privilegiando
a
CAPÍTULO II – GÊNESE DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Reiteramos que a concepção que estamos desenvolvendo pressupõe a
finalidade de universalização e aprofundamento de direitos como perspectiva para a
administração pública. Repetimos, também, que para a existência dessa finalidade
necessita-se de Estado forte na área social - voltado para a “universalização” no
sentido hegeliano ou, mais precisamente, orientado para atender, de forma mais
ampla, às demandas e necessidades das classes subalternas - e uma ordem
administrativa fundada na burocracia, isto é, uma
estrutura pautada na
racionalidade instrumental, vinculada ao fim universalista de aprofundamento de
direitos.
Cabe ressaltar que, em nossa concepção, como vimos no capítulo anterior,
nem o Estado nem a burocracia são instituições que podem se realizar efetivamente
de forma universalista. No entanto, numa sociedade capitalista elas se apresentam
como as únicas instituições que podem atender aos interesses das classes
subalternas de forma mais substantiva, uma vez que, sem Estado e burocracia, a
tarefa de expansão de direitos se torna inviável.
O Estado, para se estruturar com fim voltado para a universalização de
direitos e, em conseqüência, possuir uma ordem administrativa burocrática que
efetive essa finalidade, depende da existência na sociedade de uma hegemonia com
essa direção. Em outras palavras, é necessária uma hegemonia na sociedade civil
que produza uma ação estatal orientada para a perspectiva de universalização.
Portanto, a tarefa central para construção de uma ordem administrativa
democrática e universalista é construir essa hegemonia no Brasil (um projeto de
democracia de massa ou social-democrata, ou modelo europeu, segundo reflexão
de Coutinho). Nesse sentido, o modelo de desenvolvimento econômico deve estar
cxvii
orientado nessa direção, para que as políticas sociais possam seguir esse caminho.
Ou seja, a expressão material dessa direção hegemônica presente no Estado é
visível a partir da política econômica desenvolvida e de sua relação com as políticas
sociais.
Dessa
forma,
a
estruturação
de
uma
burocracia
com
sentido
“universalista”, além de depender da existência de um Estado “universalista”,
precisa
ser
estruturada
de
forma
a
potencializar
aspectos
de
sua
racionalidade, como por exemplo: a) garantia de um certo nível de
“mecanização”; b) o “direito ao cargo”; c) existência dos princípios das
competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos; d)
realização da administração dos funcionários de acordo com regras gerais,
mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem ser aprendidas
e e) existência de regras impessoais como estrutura central do poder de
mando e obediência, que envolva tanto o senhor legal típico quanto o corpo
burocrático. Simultaneamente, é fundamental propor o aprofundamento de
mecanismos de democratização da burocracia, para viabilizar maior controle
social e público (Soares, 2003), como forma de propiciar transparência e
possibilitar maior participação das classes subalternas na definição e
acompanhamento das políticas públicas.
Sendo assim, para pensarmos em alternativas de gestão social voltadas para
a universalização e o aprofundamento de direitos, há de se ter clareza que o objetivo
central é a construção do Estado nessa perspectiva. Portanto, é fundamental a
construção de uma hegemonia na sociedade nessa mesma direção.
Dessa maneira, as tecnologias de gestão social empregadas devem favorecer
a essas construções e, para identificarmos aquelas mais próprias ao caso brasileiro,
cxviii
devemos entender a materialidade em que se desenvolvem tais políticas sociais em
termos da configuração de nosso Estado e de nossa organização administrativa,
visto que estas são as bases concretas a partir das quais devemos pensar as
alternativas democráticas de gestão social para o Brasil.
As características do Estado brasileiro, então, devem ser primeiramente
desenvolvidas, a partir da reflexão sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil
e da nossa “revolução burguesa”; em seguida/simultaneamente, devemos mostrar
as implicações da particularidade da construção do nosso Estado capitalista na
estruturação de nossa ordem administrativa estatal, principalmente de nossa área
social. Ao explicitarmos os traços predominantes do Estado e de sua ordem
administrativa, devemos apresentar pistas para uma gestão social que tenha como
perspectiva contribuir com a construção da hegemonia de aprofundamento e
universalização de direitos na atual conjuntura. A partir deste capítulo, propomo-nos
a realizar tal tarefa.
O objetivo deste item é mostrar como o patrimonialismo, como ordem
administrativa predominante no Brasil durante o período imperial e na República
Velha, vai se articulando com a estrutura burocrática nascente, conformando a base
da configuração de nossa administração pública.
A idéia básica aqui presente - e que será desenvolvida ao longo deste
capítulo e do próximo – resume-se no entendimento de que a administração pública
brasileira nasce, desenvolve-se e se consolida a partir de uma espinha dorsal que
combina patrimonialismo e burocracia, configurando uma unidade contraditória
coerente com a particularidade de nosso capitalismo periférico e de nossa
“revolução burguesa” não clássica.
cxix
O intento é chamar a atenção para o equívoco das interpretações
despolitizadas
e
dualistas
que
têm
predominado
nas
análises
sobre
o
desenvolvimento da administração pública brasileira e que, por conseguinte, têm
apontado propostas equivocadas, muitas vezes ingênuas, para a superação de
nossas “deficiências” administrativas. Outrossim, o esforço ora empreendido busca,
também e sobretudo, confrontar-se e polemizar com as análises liberal, neoliberal e
social-liberal acerca da crise e da reforma da administração pública.
O ponto de partida que iremos utilizar é a análise desenvolvida por Nogueira
(1998: 93), na qual o autor observa que a “revolução burguesa” no Brasil produziu
...um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado, cujas
diversas camadas constitutivas – superpostas por sedimentação
passiva – acabaram por alimentar a formação de uma macrocefálica
bifrontalidade: ligadas aos múltiplos interesses societais por inúmeros
e muitas vezes invisíveis fios, duas avantajadas cabeças – uma
racional-legal, outra patrimonialista – iriam se comunicar e se
interpenetrar funcionalmente em clima de recíproca competição e
hostilidade, impedindo a imposição categórica de uma sobre a outra,
retirando a coordenação do todo e fragilizando o comando sobre as
diversas partes do corpo estatal (destaque no original).
O fato de assumirmos esse ponto de partida não significa, como será visto,
que concordamos com ele. Tal ponto de partida serviu como sugestão para o início
da investigação, uma hipótese que foi testada. Por isso, ao longo deste capítulo e do
próximo, exploramos dialeticamente a bifrontalidade - relação entre a dimensão
racional-legal e patrimonialista - da administração pública brasileira, buscando
explicar sua origem e desenvolvimento históricos e procurando identificar seus
limites enquanto categoria de análise.
2.1. Patrimonialismo: da tradição ibérica à particularidade colonial brasileira
O primeiro aspecto que abordaremos refere-se ao entendimento que temos
sobre a relação que existe entre dominação e ordem administrativa, questão já
cxx
abordada no capítulo anterior - mas que consideramos fundamental retomar e
sublinhar com mais clareza.
Do ponto de vista marxista, a ordem administrativa como superestrutura da
sociedade sofre, de maneira geral, influência advinda das determinações oriundas
das relações sociais de produção. Por outro lado, a ordem administrativa como
instrumento de materialização da dominação de classe presente no Estado sofre as
interferências da formação social específica.
Conforme destacamos anteriormente em relação à burocracia, embora seja
pertinente a qualquer ordenamento administrativo numa sociedade de classes, a
determinação fundamental de um ordem administrativa deve ser encontrada na
estrutura de classes da sociedade, na medida em que são os interesses antagônicos
de classes que conformam os conflitos substantivos numa sociedade, exigindo a
intervenção do Estado, através de sua ordem administrativa.
Isso não significa dizer que a questão da ordem administrativa seja um mero
epifenômeno da estrutura de poder e do modo de produção da sociedade. Existe
uma autonomia relativa da ordem administrativa que pode vir a fortalecer sua
dimensão burocrática, mesmo antes da existência de uma estrutura de dominação
prioritariamente racional-legal. Aqui aparece o enigma do ovo e da galinha a que se
refere Florestan Fernandes (1981:21) em relação ao debate sobre o que nasceu
primeiro - o capitalismo ou o “espírito capitalista”. Ou seja, o “espírito burocrático”
pode ir se formando antes de uma estruturação racional-legal de dominação, porém,
essa estruturação implicará mudanças no “espírito burocrático” em relação à sua
organização e conteúdo. Ao longo desta tese pretendemos empreender o
desenvolvimento dessa abordagem dialética.
cxxi
Por outro viés, a abordagem weberiana também nos permite desvelar as
conexões existentes entre dominação e ordem administrativa. De acordo com o
sociólogo alemão, para cada tipo de dominação legítima se estrutura um tipo de
ordem administrativa. Portanto, a ordem administrativa está intrinsecamente
vinculada ao tipo de dominação existente na sociedade.
Sendo assim, se considerarmos corretamente a tipologia ideal de Max Weber
(1999a) e o que ela pode oferecer ao trabalho histórico empírico46, poderemos
estabelecer a conexão entre a estrutura de dominação em diferentes períodos da
história brasileira e as respectivas ordens administrativas instituídas, de forma
materialista e dialética. Em outras palavras, apropriamo-nos da perspectiva
weberiana que percebe com clareza a relação existente entre estrutura de
dominação e ordem administrativa e nos afastamos em seguida do sociólogo
alemão, na medida em que procuraremos analisar essa relação a partir do método
materialista-dialético.
É fundamental, para o estudo em tela, decodificarmos, primeiramente, a
estrutura de dominação e a respectiva ordem administrativa organizada durante o
Império.
Como primeiro movimento para realizarmos tal decodificação, devemos
entender a origem da dominação e da estrutura administrativa brasileira, que está
vinculada ao período colonial.
Segundo Faoro (2004), a revolução portuguesa do século XIV organizará uma
forte estrutura centralizada de Estado, conduzida pelo rei, para agir como agente
econômico ativo, dando maior dinamismo às atividades comerciais. Por outro lado, a
46
De acordo com Weber (1999a: 141 e 142) a tipologia ideal oferece ao trabalho empírico “...somente a vantagem – que
freqüentemente não deve ser subestimada – de poder dizer, no caso particular de uma forma de dominação o que há nele de
“carismático”, de “carisma hereditário”, de “carisma institucional”, de “patriarcal”, de “burocrático”, de “estamental” etc., ou seja,
em que ela se aproxima de um destes tipos, além da de trabalhar com conceitos razoavelmente inequívocos. Nem de longe se
cogita aqui sugerir que toda a realidade histórica pode ser “encaixada” no esquema conceitual desenvolvido no que segue”.
cxxii
nobreza não perde seu papel na estrutura de poder, mas passa a compartilhá-lo
com a burguesia comercial nascente. Nesse contexto, forja-se um “quadro
administrativo, de caráter precocemente ministerial”, para garantir uma direção
mercantilista que mantivesse o poder da nobreza e incorporasse as forças do
comércio emergente (Faoro, 2004: 33-45).
Essa situação descrita por Faoro indica claramente - apesar de o autor não
elaborar, por motivos óbvios, tal análise - que o Estado português que surge após a
crise de 1383-1385 expressa os interesses da burguesia comercial e da nobreza,
mesmo que o poder não fosse exercido diretamente por essas classes. O Estado
português, dessa forma, para exercer a dominação expressando esses diferentes
interesses, mas ao mesmo tempo não sendo conduzido diretamente pelos
representantes dessas classes, necessitará de uma centralização de poder e de
uma ordem administrativa que o possibilite implementar o projeto político de base
comercial, ainda que não destitua o papel de influência no poder que a nobreza
possuía.
Tal questão marca a diferença da história portuguesa em relação à maioria
dos países europeus que, na época, ainda se encontravam fortemente estruturados
em bases feudais - ou seja, o poder fortemente descentralizado nas mãos dos
senhores e a burguesia comercial emergente ainda sem influência política
determinante.
No contexto português, a materialização da dominação, através da ordem
administrativa, exigirá uma estrutura com um nível considerável de especialização
para poder viabilizar o projeto comercial. Por outro lado, o poder centralizado nas
mãos do rei requisitará um quadro administrativo de confiança pessoal para
cxxiii
implementar e organizar a ação estatal. Uma combinação de especialização com
ausência de impessoalidade.
Convém
destacar
também,
para
compreendermos
a
configuração
administrativa portuguesa, que a característica patrimonialista, enquanto indistinção
entre bens públicos e privados do rei, está presente desde o período das lutas
contra os sarracenos e os espanhóis, quando, sob a liderança do rei, juntava-se a
sociedade em torno de um destino. Conforme salienta Faoro (2004: 4):
A coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista,
imenso patrimônio rural, cuja propriedade se confundia com o
domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas
ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público
do bem particular, privativo do príncipe.
A revolução de 1383/1385 não colocará em xeque o patrimônio real, mas sim
a hegemonia do clero e da nobreza, marcando, dessa forma, definição e
implementação do projeto mercantilista.
De acordo com Mazzeo (1997: 43), “a revolução de 1383/1385, que põe no
trono o Mestre de Avis, liderada pela burguesia mercantil, lançará pioneiramente as
bases de um Estado mercantil, de tipo moderno, pressuposto objetivo para a
posterior expansão colonial portuguesa”.
Sendo assim, o Estado português organizará uma ordem administrativa que
precisará de especialistas para desenvolver o projeto comercial, entendido como um
empreendimento particular do rei, e que, por conseguinte, exigirá quadros de
confiança pessoal para lidar com esse patrimônio real que se confunde com o
patrimônio público.
Entre os séculos XIV e XV, o Estado português ergue um arcabouço
administrativo complexo, objetivando apoiar as atividades tanto de
governo, propriamente dito, como as econômico-comerciais da
burguesia mercantil (...). Agora a burguesia mercantil participa
ativamente das decisões governamentais, pois está incrustada no
aparelho do Estado um órgão burocrático-administrativo que expressa
a própria passagem do feudalismo para o capitalismo” (Mazzeo,
1997: 44).
cxxiv
Para Faoro (2004: 47), essa engenharia institucional configurará a “ordem
administrativa patrimonialista de estamento” de Portuga, como uma ordem
altamente centralizada, com um quadro administrativo
com um bom nível de
especialização, vinculado pessoalmente ao rei, devendo responder com lealdade ao
senhor, responsável pela implementação do projeto comercial, entendido como uma
empreendimento privado da realeza.
Esse quadro administrativo, na medida que se organiza com base na relação
de confiança que estabelece com o rei, vincula-se a uma lógica tradicional de
dominação47, fundada na lealdade que se deve ter ao poder exercido pelo senhor.
Simultaneamente, ao não se diferenciar o interesse público dos interesses privados
do rei, reforça-se o caráter patrimonial dessa ordem administrativa tradicional.
Weber define com precisão o patrimonialismo. Para o sociólogo alemão, “ao
surgir um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do senhor, toda a
dominação tradicional tende ao patrimonialismo” (Weber, !999a: 151 – grifo no
original). A dominação patrimonial, continua o autor, como ordem administrativa
tradicional, possuirá como uma tendência inerente “submeter ilimitadamente ao
poder senhorial tanto os súditos políticos extrapatrimoniais quanto os patrimoniais e
de tratar todas as relações de dominação como propriedade pessoal do senhor,
analogamente ao poder e à propriedade domésticos” (Weber 1999b: 247).
Weber explicita, ainda, as características do quadro administrativo da
dominação tradicional, mostrando que a ele faltam: competência fixa segundo regras
objetivas, hierarquia racional fixa, nomeação regulada por contrato livre, ascenso
regulado, formação profissional e salário fixo e salário pago em dinheiro (Weber,
1999a: 149). O autor também destaca a forma de recrutamento, indicando ser
47
Ver nota 35 no Capítulo 1.
cxxv
realizado a partir de pessoas tradicionalmente ligadas ao senhor (recrutamento
patrimonial) ou em virtude de: a) relações pessoais de confiança; b) pacto de
fidelidade com o senhor e c) funcionários livres que entram na relação de piedade
com o senhor (Weber, 1999a:148-149).
Como podemos verificar, a interpretação de Faoro sobre a ordem
administrativa portuguesa é extremamente vinculada ao conceito weberiano de
dominação tradicional e sua estrutura patrimonialista. Entretanto, ainda falta
considerarmos com um pouco mais de atenção o caráter estamental dessa ordem.
Para Weber, no patrimonialismo estamental não há separação total entre os
administradores e os meios e recursos para administrar. Ou seja, o quadro
administrativo se apodera, pelo menos, de parte essencial dos meios e recursos da
administração. Tal situação é identificada por Faoro na administração portuguesa.
Portanto, a estruturação de um quadro administrativo vinculado ao rei que
dirige e comanda a sociedade, através do monopólio dos meios administrativos, e
que não representa as classes sociais fundamentais (apesar de expressarem os
interesses presentes na sociedade), produz uma situação de maior autonomia e
autoritarismo do Estado frente à sociedade.
Porém, em nosso entendimento, isso não configura um estamento que paira
acima das classes. Essa ordem administrativa, apesar de possuir maior autonomia
frente às classes sociais, monopolizar os recursos da administração e interferir de
forma mais autoritária na sociedade, implementa um projeto social adequado aos
interesses das classes dominantes, seja através do desenvolvimento do comércio,
seja mantendo a influência política da nobreza, mesmo sob uma ótica de imbricação
entre o público e o privado.
cxxvi
É importante destacar que a centralização exigida pela estrutura política
portuguesa, aliada à atividade comercial, exige um mínimo de especialização e
racionalidade para a organização administrativa. Por isso, o Estado patrimonial vai
se burocratizando, na medida do desenvolvimento da centralização política e da
expansão capitalista. Conforme ressalta o sociólogo alemão, o funcionalismo
patrimonial, com a progressiva divisão das funções, apresenta aspectos que são
peculiares da ordem burocrática, como especialização e racionalidade. Entretanto,
tais elementos não estabelecem a “distinção burocrática entre a esfera privada e a
oficial” (Weber, 1999b: 253).
Ora, a estrutura administrativa de Portugal é a base da organização
administrativa brasileira que se desenvolverá ao longo do período colonial (Faoro,
2004; Schwartzman, 1988; Prado Júnior, 1981). O Brasil colônia, como
empreendimento de exploração da coroa portuguesa, será administrado a partir da
configuração do Estado português. A centralização política e administrativa é a
estrutura material fundamental para o exercício do poder.
Isso não significa dizer que a centralização conseguia fazer com que a
administração chegasse a todos os pontos do território brasileiro. Caio Prado Júnior,
ao analisar as instituições brasileiras do período colonial, que, segundo ele, na
melhor opção “não passam de plágios ou arremedos muito mal disfarçados” da
administração da metrópole, indica que o efeito mais nefasto da transposição da
lógica portuguesa para o Brasil foi o de “centralizar o poder e concentrar as
autoridades; reuni-las todas nas capitais e sedes, deixando o resto do território
praticamente desgovernado e a centenas de léguas muitas vezes da autoridade
mais próxima” (Prado Júnior, 1981: 302).
cxxvii
Muito mais importante, no entanto, do que constatar que a ordem
administrativa portuguesa foi transplantada para o Brasil, é entender o porquê e
como tal ordem conseguiu se instalar e se estruturar na colônia.
Como vimos, o Estado patrimonialista português, apesar de centralizador,
altamente autônomo, organizado sobre um quadro administrativo estruturado a partir
de sua lealdade ao rei e agindo autoritariamente na sociedade, como se estivesse
acima das classes, expressa efetivamente as aspirações da nobreza e da burguesia
comercial,
procurando
conciliar
os
interesses
contraditórios
dessas
elites
dominantes.
O Brasil colônia entra no circuito do mercantilismo mundial, alimentando o
processo de acumulação primitiva dos países centrais48 (Cardoso de Mello, 1998) as riquezas existentes no país são exploradas e encaminhadas à metrópole para
sustentar o rei e sua nobreza, garantindo também os lucros da burguesia comercial.
Portanto, do ponto de vista econômico, o Brasil irá sustentar a elite dominante
portuguesa e participar do desenvolvimento capitalista mundial.
O sistema colonial, assim visto, expressa o papel das colônias na
produção mundial, isto é, na divisão internacional do trabalho, que
efetivamente se estrutura. Dessa forma, a colonização e a produção
em grande escala de mercadorias determinarão o surgimento do
sistema colonial que, então, deve ser entendido a partir de sua
articulação estrutural com o modo de produção capitalista, que surge
concretizando-se nas formações sociais particulares americanas, as
colônias (Mazzeo, 1997: 61, itálico no original).
Nesse sentido, a ordem administrativa portuguesa se adéqua ao objetivo da
exploração de nossas riquezas. Dois traços da ordem administrativa colonial serão
marcantes no sentido de garantir a função de enriquecimento da metrópole e de
manter/aumentar o poder das elites dominantes. O primeiro deles é a ausência
48
Conforme ressalta Cardoso de Mello (1998: 39), “A economia colonial organiza-se, pois, para cumprir uma função: a de
instrumento de acumulação primitiva de capital. (...) A produção colonial deveria ser, deste modo, mercantil. Não uma produção
mercantil qualquer, porém produção mercantil que, comercializável no mercado mundial, não concorresse com a produção
metropolitana. (...) Produção colonial, em suma, quer dizer produção mercantil complementar, produção de produtos agrícolas
coloniais e de metais preciosos.”
cxxviii
quase que absoluta da especialização na estrutura administrativa. Caio Prado Júnior
(1981: 333-335) aborda essa questão com precisão, ao analisar a falta de
organização, eficiência e presteza do funcionamento administrativo da colônia, a
complexidade de órgãos, a confusão de funções e competências, ausência de
método e a excessiva centralização de poder na metrópole.
O segundo traço que merece destaque refere-se à corrupção instalada na
administração colonial: “De alto a baixo da escala administrativa, com raras
exceções,
é
a
mais
grosseira
imoralidade
e
corrupção
que
domina
desbragadamente” (Prado Júnior, 1981: 335).
A transposição da administração portuguesa para o Brasil, tendo como função
operar a exploração colonial e manter a estrutura de dominação vigente, não
requisitará uma estrutura de especialização, tal qual a existente em Portugal, que é a
responsável pela organização de empreendimentos comerciais de vulto. Por isso, a
ordem administrativa da corte exigirá uma dimensão burocrática mais presente, que
irá se expandindo, como nos mostra Faoro, por dentro do Estado Patrimonial
Português. No caso brasileiro, o objetivo centrado na exploração mercantil provocará
na ordem administrativa patrimonialista a ausência de especialização e, por
conseguinte, um espaço maior para o desenvolvimento da absorção privada das
riquezas públicas. A dimensão burocrática, como especialização e ordenamento
racional das ações, praticamente não existe na ordem administrativa colonial,
enquanto, por outro lado, a dimensão patrimonial se apresenta com todo o seu vigor.
Neste sentido, a observação de Caio Prado Júnior (1981: 337) é primorosa:
Assente numa tal base, a administração colonial não podia ser outra
coisa que foi. Negligencia-se tudo que não seja percepção de tributos;
a ganância da coroa, tão crua e cinicamente afirmada, a
mercantilização brutal dos objetivos da colonização, contaminará todo
mundo. Será o arrojo então geral para o lucro, para as migalhas que
sobravam do banquete real. O construtivo da administração é
relegado para um segundo plano obscuro em que só idealistas
deslocados debateram em vão.
cxxix
O caráter estamental do patrimonialismo português também estará presente
na administração colonial, na medida em que os administradores da colônia irão
controlar e se apropriar dos meios administrativos disponíveis, como veremos
adiante.
Outro aspecto importante a destacar do período colonial, pois irá influenciar a
estruturação política e administrativa do Brasil, diz respeito à estrutura social e
econômica que, como analisa Prado Júnior, é a base da unidade de agrupamento da
população. A propriedade rural organiza a vida social. Em torno dessa unidade
vivem os escravos, os agregados e os vadios. O proprietário rural, portanto,
expressa o poder de fato existente na sociedade colonial, a vida gira ao redor dessa
estrutura básica de raiz local, formando o “clã patriarcal”. “Quem realmente possui aí
autoridade e prestígio é o senhor rural, o grande proprietário. A administração é
obrigada a reconhecê-lo...”. Nesse contexto, ocorrerá o processo que aristocratiza o
proprietário rural, na medida em que ele deixa de expressar apenas a unidade
escravista e de exploração econômica da colônia, para estabelecer
relações mais amenas, mais humanas que envolvem toda a sorte de
sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relações
abrandam e atenuam o poder absoluto e o rigor da autoridade do
proprietário, doutro elas a reforçam, porque a tornam mais consentida
e aceita por todos (Prado Júnior, 1981: 287-289).
Essa situação levará a administração colonial a conviver com o poder local
exercido pelos proprietários rurais. Isso projeta uma organização administrativa que,
apesar de fortemente
centralizada, deverá se articular com o poder local, para
dominar as populações dispersas, evitar anarquia e garantir a disciplina. Faoro
(2004: 146-153) mostra como a estruturação do governo local será realizada como
estratégia de controle efetivada pelo governo central. O poder real centralizado
visava criar, pelo alto, a ordem política no Brasil. A repressão e a conciliação dos
cxxx
interesses em conflito serão as formas utilizadas pela coroa para lidar com o poder
local.
Mesmo no momento de maior centralização de poder, a coroa se articulará
com o governo local. Nesse contexto, os recursos da administração servirão como
mecanismos de cooptação das lideranças locais, promovendo uma profunda
articulação entre o poder central, exercido pela coroa, e o poder local, dirigido pelos
proprietários rurais.
Duas estruturas político-administrativas da colônia expressam com clareza
essa relação entre o poder central e o poder local, através da submissão do último
ao primeiro.
A primeira delas são as Câmaras: órgãos da administração local, presididas
por um juiz presidente de nomeação feita pela coroa e composta por oficiais eleitos
na localidade, tinham como objetivo funções judiciais (processar e julgar crimes de
injúrias verbais, pequenos furtos e infrações, além de resolver litígios sobre
servidões públicas) e executivas (fiscalização do comércio de gêneros e organização
da limpeza pública). As Câmaras também nomeavam os servidores para executar
suas funções. Se, por um lado, as Câmaras eram presididas por um juiz de
confiança da coroa, por outro lado, também absorviam as lideranças locais, via
eleição, dispondo de condições de integrar seu corpo funcional com outros membros
da localidade, através das nomeações (Prado Júnior, 1981: 314-317).
A segunda estrutura são os corpos de ordenanças, órgãos administrativos
que compõem, junto com as tropas de linha e as milícias, o setor militar da colônia.
As ordenanças como forças locais eram responsáveis para atender a serviços locais:
comoção interna e defesa. Elas, nesse sentido, serão fundamentais para manter a
ordem legal e administrativa do Brasil. Todavia, para a coroa viabilizar tal intento, o
cxxxi
comando das ordenanças ficará nas mãos dos proprietários rurais que, como vimos,
formam a unidade econômica e social da colônia, na medida em que expressam um
poder tradicional (patriarcal) frente ao grupamento humano que vive gravitando em
torno de sua propriedade, riqueza e autoridade. Portanto, nada mais imediato do que
transformar o poder real em poder legal.
Revestidos de patentes e de uma parcela de autoridade pública, eles
[proprietários rurais] não só ganharam em prestígio e força, mas se
tornaram em guardas da ordem e da lei que lhes vinham ao encontro;
e a administração, amputando-se talvez com essa delegação mais ou
menos forçada de poderes, ganhava no entanto uma arma de grande
alcance: punha a seu serviço uma força que não podia
contrabalançar, e que de outra forma teria sido incontrolável. E com
ela penetraria a fundo na massa da população, e teria efetivamente a
direção da colonia. (Prado Júnior, 1981: 327).
Em nosso entendimento, é esse elan forjado no período colonial que
produzirá, simultaneamente, o início do fortalecimento do poder e da dominação dos
proprietários rurais e a incorporação da lógica patrimonialista de administração
pública na estrutura do poder local. De acordo com a análise de Carvalho (2001:21),
Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem
dúvida, livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram
os “homens bons” do período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o
próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante
a lei. Eram simples potentados que absorviam parte das funções do
Estado, sobretudo as funções judiciárias. Em suas mãos, a justiça (...)
tornava-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do
governo terminava na porteira das grandes fazendas.
Por outro lado, convém também destacar, ocorrerá a incorporação dos
interesses agrários pelo poder central.
Sendo assim, a dimensão patrimonialista da administração pública brasileira
será constituída a partir de dois vetores: o da própria estrutura de dominação da
coroa, que se expressa através da organização centralizada do poder central,
efetivada pela transmutação da ordem administrativa portuguesa para o Brasil, e
aquele que será forjado pelo próprio desenvolvimento da estrutura econômica, social
cxxxii
e política da ordem colonial brasileira, na qual o poder dos proprietários rurais será
fundamental para a garantia da ordem legal e administrativa ditada pela coroa.
Portanto, desenvolve-se no Brasil uma estrutura patrimonialista que parte do
poder central e se irradia como referência administrativa adequada para a
formalização do exercício do poder patriarcal dos proprietários rurais. O
patrimonialismo nas terras brasileiras, dessa forma, deitará raízes na estrutura
do poder central e também na organização do poder local.
Esse
amálgama
administrativo
sela
a
dominação
exercida
pelos
representantes da burguesia comercial - que se alojam nos centros urbanos, são
principalmente portugueses e, invariavelmente,
são
atendidos pela ordem
administrativa central - e pelos proprietários rurais que, além de produzir as
mercadorias destinadas à comercialização, são os responsáveis pela garantia da
ordem legal ditada pela coroa. Dessa forma, podemos perceber como a ordem
administrativa construída no Brasil está coerente com a estrutura de dominação,
exercida pela burguesia comercial e os proprietários rurais, conduzida pelo Estado
Patrimonialista português, que ganhará forma particular ao se organizar no Brasil.
Conforme ressalta Faoro (2004: 176),
A burguesia, nesse sistema, não subjuga e aniquila a nobreza, senão
que a esta se incorpora, aderindo à sua consciência social. A íntima
tensão, tecida de zombarias e desdéns, se afrouxa com o curso das
gerações, no afidalgamento postiço da ascensão social. A via que
atrai todas as classes e as mergulha no estamento é o cargo público,
instrumento de amálgama e controle das conquistas por parte do
soberano.
Nesse sentido, a organização político-administrativa da colônia combinará a
dimensão tradicional patrimonialista advinda do Estado português com a que brota
da articulação entre o poder central e o poder local patriarcal exercido pelos
proprietários rurais.
cxxxiii
Embora Faoro tenha o mérito de apresentar como o patrimonialismo se
estrutura no Brasil a partir da centralização do poder para operacionalizar o projeto
mercantilista, em nosso entendimento, não destaca, com a ênfase necessária, o
papel da força econômica e política dos proprietários rurais na constituição da
dominação no Brasil, bem como o seu desdobramento em relação à estruturação da
ordem administrativa patrimonialista. Nem tampouco, obviamente, ressalta a
expressão de classe que o Estado colonial representa; muito pelo contrário, acentua
a autonomia do Estado frente às classes sociais, como se o caráter patrimonial do
poder transformasse a ordem administrativa e a autoridade do rei em estruturas
acima das classes.
O autor, ao analisar a situação brasileira, afirma:
As classes, nas suas conexões com o domínio, o comando e a
política, ganham ascendência com a sociedade burguesa, com a
revolução industrial. Num período pré-capitalista (...), elas se
acomodam e subordinam ao quadro diretor, de caráter estamental
(...). As formas sociais e jurídicas assumem caráter constitutivo na
estrutura global, estabilizando as manifestações econômicas, freando
o domínio das classes. Essa posição subalterna das classes
caracteriza o período colonial, com o prolongamento até os dias
recentes, sem que o industrialismo atual rompesse o quadro (...).
Numa sociedade desta sorte pré-capitalisticamente sobrevivente,
apesar de suas contínuas modernizações, a emancipação de classe
nunca ocorreu. Ao contrário, a ascensão social se desvia, no topo da
pirâmide, num processo desorientador, com o ingresso no estamento.
A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário não será
possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada
do estado-maior de domínio político (Faoro, 2004: 203).
Diferentemente de Faoro, em nossa perspectiva a emancipação da classe
burguesa
nos
países
periféricos
será
feita
de
forma
articulada
à
oligarquia/aristocracia existente, tendo o Estado como elemento garantidor desse
pacto de dominação e a estrutura administrativa como forma de materializar e
objetivar tal dominação. O fato de o processo ser diferente dos casos clássicos de
estruturação do capitalismo não significa dizer que não há ascensão social da
burguesia, nem que o Estado paire acima das classes sociais.
cxxxiv
Nesses casos não clássicos, a ascensão burguesa ocorre não eliminando a
classe pré-capitalista, mas se articulando a ela, e utilizando o Estado e sua ordem
administrativa como forma de garantir o novo pacto de dominação, evitando a
participação dos setores populares e democráticos. Dessa forma, a burguesia
ascendente opta por um processo de transição fundado na aliança com as elites précapitalistas. Assim, incorpora a cultura tradicional do antigo regime, e o Estado e seu
corpo administrativo vão se autonomizando mais fortemente, na medida em que são,
por um lado, a expressão desse pacto e, por outro lado, o sujeito político
responsável para manter o pacto de dominação construído na sociedade. Configurase, dessa forma, uma transição fundada na modernização conservadora (Barrington
Moore Jr.), ou, nas palavras de Gramsci, uma “revolução passiva”49, embora, em
nenhum momento, isso projete um Estado acima das classes sociais.
Por isso, consideramos fundamental sublinhar que a manutenção do
patrimonialismo no Brasil não decorre apenas, nem sobretudo, da estrutura
estamental do Estado centralizador, pois este tem de ir se burocratizando para
atender às demandas da expansão capitalista e da construção da unidade nacional.
Nem, tampouco, o patrimonialismo é produto do atraso de parte de nossa elite
econômica. Na verdade, o patrimonialismo brasileiro se mantém vivo devido,
principalmente, à articulação que se efetiva, no início, sob a batuta do Estado
Patrimonial colonial, entre a burguesia comercial e os proprietários rurais, selando
uma conciliação entre os interesses divergentes, visando realizar a dominação
49
Gramsci (2001:393), ao tratar do historicismo crociano, explicita de forma precisa a concepção de “revolução passiva” ou
“revolução-restauração”; de acordo com o autor, essas categorias “exprimem, talvez, o fato histórico da ausência de uma
iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como
reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de
‘restaurações’ que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de ‘restaurações
progressistas’ ou ‘revoluções-restaurações’, ou, ainda, ‘revoluções passivas’. Seria possível dizer que se tratou sempre de
revoluções (...) nas quais os dirigentes salvaram sempre o seu ‘particular’”.
cxxxv
política no País. Em relação a essa conciliação, Mazzeo (1997: 91) afirma de forma
conclusiva:
Historicamente débil e, em última instância, subsumida aos desígnios
do monopólio metropolitano, a burguesia brasileira [proprietários
rurais] esteve direcionada às composições e acordos com os
burgueses reinóis, colocando assim, as fronteiras da convivência
pacífica nos limites da garantia da produção escravistas do tráfico de
negros – o suprimento fundamental de mão-de-obra para as lavouras
monocultoras.
Assim, forja-se a gênese da influência da estrutura “patriarcal” presente na
área rural brasileira, a qual, do ponto de vista da dominação, exercerá seu poder
durante toda nossa história imperial e republicana, visto que as mudanças que
ocorrerão no país serão efetivadas, sempre, com a participação dessa elite
tradicional, a partir do entrelaçamento dos seus interesses com os da burguesia
nacional e estrangeira. Mas isso veremos, com mais detalhe, no item seguinte.
Entretanto, antes de passarmos para a próxima seção, cabe, ainda, ressaltar
três aspectos importantes do período em questão.
O primeiro deles diz respeito ao fato, como vimos anteriormente, de a
administração colonial prescindir de uma estrutura formal-racional de corte
burocrático, devido ao significado da colonização destinar-se basicamente à
exploração das riquezas naturais em benefício do comércio europeu (Faoro, 2004:
115), contribuindo, assim, com o processo de acumulação primitiva capitalista.
Essa situação se altera com a chegada da corte e de seu aparato burocrático
no Brasil, no início do século XIX. Ou seja, a chamada “inversão brasileira”, por
ocasião da substituição da capital do Império Português de Lisboa para o Rio de
Janeiro, fortalece o caráter patrimonial do poder central nas terras brasileiras.
Entretanto, tal “inversão” também traz para cá o que será o embrião da estrutura
burocrática brasileira, na medida em que as decisões que requeriam especialização
e racionalidade, principalmente relacionadas às questões de comércio internacional
cxxxvi
e relações exteriores, passaram a ser tomadas no Brasil a partir do aparelho de
Estado Português que migrou com a coroa. Em outras palavras, a dimensão
burocrática da administração patrimonial portuguesa, que não se encontrava
presente na administração colonial, passa a existir no Brasil a partir de 1808. Com a
a chegada da corte ao Rio de Janeiro, conforme salienta Faoro (2004: 249), “a
nobreza burocrática defronta-se aos proprietários territoriais, até então confinados às
câmaras, em busca estes de títulos e das graças aristocráticas. A corte está diante
de sua maior tarefa (...): criar um Estado e suscitar as bases econômicas da nação.”
O segundo aspecto a sublinhar refere-se ao papel dos proprietários rurais na
ordem administrativa colonial. Apesar de tal tema já ter sido objeto de reflexão,
consideramos necessário afirmar, para evitar qualquer tipo de dúvida sobre nossa
análise que, ao apontarmos a função dos proprietários rurais na organização
econômica, social, política e administrativa, não estamos supondo que o centro do
poder colonial se encontre nas mãos desse segmento. Certamente, conforme
afirmam Prado Júnior e Faoro, a exploração colonial enquanto empreendimento da
burguesia comercial portuguesa, conduzida pelo Estado Patrimonial, ao alicerçar,
através da ordem administrativa, os interesses da nobreza e da burguesia, não
possibilita qualquer margem de dúvida sobre quem detém o poder. No entanto, para
esse poder expressar-se em terras brasileiras, evitando a dispersão, fragmentação e
anarquia político-administrativa, os proprietários rurais cumprirão um papel
fundamental em defesa do poder central, como salienta Mazzeo. Essa situação
marcará o início do processo de fortalecimento político desse segmento. Por outro
lado, não podemos esquecer que as riquezas exploradas e enviadas a Portugal são
extraídas e/ou produzidas sob comando desses proprietários. Sendo assim, apesar
de o centro de poder não estar não mãos desses senhores, não significa dizer que
cxxxvii
eles não cumprem um papel fundamental na estrutura político-administrativa da
colônia. Inclusive, consideramos que aí se define geneticamente o poder dos
proprietários de terras no Brasil e sua influência na ordem administrativa brasileira,
que se expressará, de forma contundente, na República Velha, depois de passar por
um processo de amadurecimento no Império.
O último aspecto a sinalizar refere-se ao processo de exclusão das massas
populares que o pacto de dominação vigente no período colonial desencadeará. De
acordo com Mazzeo (1997:88):
É nesse contexto histórico-social que se desenvolve a “ideologia da
conciliação” brasileira, expressão de uma burguesia débil
economicamente [proprietários rurais] – anômala – que, para se
manter no poder, concilia sempre com os interesses externos e,
internamente, pauta-se pela violenta repressão das massas populares
que, em um nível externo, a escravidão encarna e expressa.
Para completar a análise de Mazzeo, na perspectiva do que irá ocorrer no
período imperial e no da República Velha, diríamos que a nascente burguesia
comercial brasileira, além de, também, conciliar com os interesses externos da
burguesia estrangeira, conciliará internamente com os interesses das elites
tradicionais (proprietários rurais), visando à exclusão das massas da participação
política e à possibilidade de usufruir da estrutura do Estado brasileiro de forma
compartilhada com os segmentos de origem latifundiária e escravista. Mas este
assunto detalharemos a seguir.
2.2. Consolidação do patrimonialismo e a origem burocrática da ordem
administrativa brasileira: o período imperial e a primeira república
O período imperial possui como uma de suas características o fato de os
proprietários rurais saírem do isolamento colonial e conseguirem se constituir como
cxxxviii
a base do poder político. Tal fato configura-se como central para entendermos o
desenvolvimento da ordem administrativa brasileira.
Esse processo é produto das contradições que vão se acirrando ao longo do
desenvolvimento do “sistema colonial”. Prado Júnior indica três contradições
centrais. A primeira é a contradição entre os interesses da burguesia comercial,
credora da grande lavoura, e os dos proprietários de terra (a “nobreza” da terra),
latifundiários, senhores de engenho, que são os devedores dessa burguesia. A
segunda é a contradição étnica baseada na estrutura escravista colonial, que
produziu o preconceito racial em relação ao negro e em relação ao índio. A última
contradição assinalada pelo autor, apesar de ser utilizada muito mais como
justificativa das ações extremadas da época e não pela centralidade de sua
importância, vincula-se aos abusos realizados pela ordem administrativa em relação
à cobrança de impostos, ao recrutamento militar etc. Segundo o autor, mesmo antes
da chegada da corte portuguesa ao Brasil, essas contradições “já estão latentes, e
começam a se manifestar em sintomas alarmantes que põem em xeque toda a
estrutura colonial” (Prado Júnior, 1981: 70).
A contradição, apresentada por Prado Júnior, entre a burguesia comercial e
os grandes proprietários de terras configura-se como o centro das questões que
influenciarão a modelagem da ordem administrativa do Brasil, enquanto país
independente, constituída a partir do Estado Patrimonialista português, mas que
ganha traços particulares oriundos do sistema colonial brasileiro.
Com a abertura dos portos, após a chegada da família real ao Brasil, cresce a
presença dos comerciantes ingleses em terras brasileiras. Segundo Faoro (2004:
248-258), essa situação gera o retraimento da classe mercantil nativa e portuguesa
e provoca a ascensão dos proprietários rurais. O comércio vinculado ao aparelho
cxxxix
governamental perde hegemonia frente às fazendas, na medida da expansão da
presença dos ingleses no comércio com o Brasil. Esse quadro se complexifica mais
se levantarmos a tensão existente entre a ordem administrativa colonial, com sua
vinculação com a estrutura de poder dos proprietários rurais, e a emigrada
administração da corte, com sua organização burocrático-patrimonial articulada aos
interesses da burguesia comercial.
Em outras palavras, tal panorama reflete o início da aproximação dos
proprietários rurais da corte, saindo, assim, de seu isolamento, e a perda de força da
burguesia comercial portuguesa e de sua contraparte, a ordem administrativa
central. Além disso, esse cenário reforça os sentimentos de identidade brasileira.
A revolução portuguesa de 1820 precipita as tensões políticas, provocando o
retorno de D. João VI a Portugal, em 1821, e gerando no Brasil um receio de
regresso ao estatuto colonial de subordinação a Lisboa, a partir da possibilidade do
retorno, também, do príncipe regente. Para a burguesia comercial, isso significaria a
perda de autonomia para comercializar com diferentes países e, para os
fazendeiros, a preocupação se referia às possibilidades de instabilidade e tumulto
político (Monteiro, 1996).
Nessa conjuntura, segundo Coutinho (1993: 78), efetiva-se a independência
brasileira como um “rearranjo do grupo dominante”:
... o fato de o primeiro imperador brasileiro ter sido filho do rei de
Portugal; ele foi Pedro I no Brasil e Pedro IV, algum tempo depois, em
Portugal. Isso revela quanto foi débil aquela ruptura, a ruptura que
nos trouxe de uma situação colonial para a condição de país
independente. Além disso, junto com este imperador, herdamos
também a burocracia portuguesa, que aqui estava e que foi reforçada
com a vinda de D. João VI, em 1806. Portanto, se observarmos bem,
o processo de independência não representou absolutamente uma
revolução no sentido forte da palavra, isto é, uma ruptura com a
ordem estatal e sócio-econômica anterior, mas de certo modo não foi
mais do que um rearranjo no grupo dominante.
cxl
Do ponto de vista econômico, “a queda do ‘exclusivismo metropolitano’ e a
subseqüente formação do Estado Nacional marcam, indiscutivelmente, o início da
crise da economia colonial no Brasil” e a gênese e desenvolvimento da economia
mercantil escravista cafeeira, que teve como origem para seu desenvolvimento o
aporte do capital mercantil nacional, expandido a partir da vinda da família real para
o Brasil (Cardoso de Mello, 1998: 53-54).
Portanto, ao longo do século XIX, no quadro do desenvolvimento do
capitalismo industrial dos países centrais, ocorrerá a crise da economia colonial, na
medida em que não são mais necessários produtos agrícolas coloniais e metais
preciosos, mas sim alimentos e matérias-primas produzidas em massa. Nesse
contexto, exige-se da periferia a continuidade de uma produção mercantil
complementar, não mais no sentido de participar da acumulação primitiva, mas
antes para rebaixar os custos de reprodução da força de trabalho e dos elementos
componentes do capital constante, a partir do fornecimento, a baixo custo, de
produtos alimentares e matérias-primas (Cardoso de Mello, 1998: 44-45). A
economia mercantil-escravista nacional cafeeira terá essa função durante o Império.
Em 1830, o Brasil se torna o primeiro produtor mundial de café e este o
primeiro produto de exportação do Brasil e da América do Sul. “Neste mesmo
momento, a economia mercantil-escravista cafeeira assumirá seus traços definitivos:
grande empresa produzindo em larga escala, apoiada no trabalho escravo,
articulada
a
um
sistema
comercial-financeiro,
controlados,
uma
e
outro,
nacionalmente” (Cardoso de Mello, 1998: 57-58).
Politicamente, a primeira grande tarefa da independência será a constituição
do Estado nacional. Isso exigirá a centralização do poder e uma organização
cxli
administrativa com certo nível de racionalidade e especialização para produzir leis e
regulamentos que conformassem a unidade nacional brasileira.
No entanto, a base de sustentação do Império se constituiu, fortemente, a
partir dos recursos advindos da rápida expansão da economia cafeeira (Monteiro,
1996:131); portanto, os grandes fazendeiros não poderiam ser esquecidos na
formação da estrutura de dominação brasileira. Essa situação leva à ampliação da
aristocratização dos proprietários rurais. Segundo Faoro (2004: 287), nesse
momento é criada a “aristocracia nacional” que, em termos quantitativos, com
apenas 8 anos conseguiu suplantar a portuguesa de 736 anos de existência50.
A centralização do governo será realizada buscando apoio no poder dos
proprietários rurais e, por outro lado, esses proprietários, buscarão continuar se
beneficiando das estruturas de poder do Estado patrimonial.
Sendo assim, se havia, por um lado, a necessidade de expandir a dimensão
racional-legal da ordem administrativa, por outro lado era necessário reforçar os
alicerces patrimoniais que ligavam o poder central à ordem senhorial tradicional. A
ordem administrativa do Brasil independente será montada sobre a estrutura
patrimonialista da corte portuguesa que se manteve no País, porém ampliando sua
dimensão racional
e
de especialização
e
aprofundando
as
relações
de
patrimonialismo que a ligavam com o poder dos proprietários rurais.
Portanto, a estrutura do Estado patrimonial-burocrático português e sua
centralização serão funcionais para a tarefa de construção da unidade nacional
desenvolvida no período imperial, necessária para conter os movimentos radicais
que poderiam colocar em perigo a ordem e os poderes dominantes. Por outro lado,
essa centralização reduz o poder dos proprietários rurais, que desejam a unidade
50
“...a monarquia portuguesa, depois de 736 anos de existência, possuía 16 marqueses, 26 condes, 8 viscondes e 4 barões,
enquanto a brasileira, nos primeiros oito anos de vida, não se contentava com menos de 28 marqueses, 8 condes, 16
cxlii
nacional e o controle dos movimentos radicais, mas desejam, também, maior
participação na condução do processo político. Nesse movimento, encontramos a
determinação
central
das
tensões
relativas
ao
processo
de
centralização/descentralização presente durante o Império.
Era fundamental conter o “jacobinismo” republicano, existente entre
os setores que constituíam as camadas médias urbanas, objetivando
criar as condições para a unificação da condução do processo
político. Essa unidade foi, então, personificada na pessoa do príncipe
Regente, o que implicou a continuidade da estrutura burocrático
político-administrativa trazida de Portugal (Mazzeo, 1997: 129).
Tal processo é muito bem registrado por Faoro, ao analisar a arquitetura
político-administrativa
baseada
no
Poder
Moderador
–
“poder
minoritário
concentrado na aristocracia em construção e na alta burocracia” (Faoro, 2004: 290)
– que conviveu com períodos de maior autonomia do Poder Local, através das
medidas oriundas da criação da Guarda Nacional (1831), do Código de Processo
Criminal (1832) e do Ato Adicional (1834), e maior centralização do poder, efetivada
pela Lei Interpretativa do Ato Adicional (1840), pelo restabelecimento do Conselho
de Estado (1841), pela reforma do Código de Processo Criminal (1841) e pela
subordinação da Guarda Nacional ao Ministro da Justiça (1850).
Esse processo - que envolve, primeiramente, a descentralização do poder e,
em seguida, a centralização - estrutura e fortalece, em diferentes níveis, as diversas
forças dominantes, representadas pela burguesia comercial, a nascente burguesia
agrária (restrita, basicamente, a setores paulistas produtores de café) e os
proprietários rurais tradicionais.
A criação da Guarda Nacional será uma estratégia para garantir a ordem
legal, após a abdicação de 7 de abril, procurando afastar o exército de qualquer
possibilidade de monopolização e tutela da condução política. Para isso, de certa
viscondes e 21 barões” (Faoro, 2004: 287),
cxliii
forma, será resgatada a experiência colonial das ordenanças. Ou seja, será criado
um aparato auxiliar ao exército, que terá como função, de acordo com seu primeiro
artigo, “defender a Constituição, a Liberdade, a Independência, e a integridade do
Império: para manter a obediência às leis, conservar ou restabelecer a ordem e a
tranqüilidade pública...” (Faoro, 2004: 302). Esse aparato ficará sob controle do
poder civil, que nomeará chefes políticos locais para exercerem o comando local das
guardas, cujo posto de maior graduação será o de coronel. Portanto, essa instituição
viabilizará o compromisso entre o poder central monárquico e o poder político local
dos proprietários de terra, como forma de garantir o processo de construção da
unidade nacional, evitando e controlando os movimentos de radicalização presentes
no período. Conforme sublinha Carvalho (2001: 37), a “Guarda Nacional (...) era
sobretudo um mecanismo de cooptar os proprietários rurais, mas servia também
para transmitir aos guardas algum sentido de disciplina e de exercício de autoridade
legal”.
O Código de Processo Criminal, ao instituir o juiz de paz como autoridade
eletiva, pré judicial, com o objetivo de conciliar litígios e evitar conflitos, reforçará o
poder local dos proprietários rurais, na medida em que será um cargo eleitoral
municipal. Nas palavras de Faoro:
O estatuto processual, conjugado com a guarda nacional,
municipalista e localmente eletiva no seu primeiro lance, garante a
autônoma autoridade dos chefes locais, senhores da justiça e do
policiamento. (...) Não era, em conseqüência, o municipalismo o fruto
das reformas, senão o poder privado, fora dos quadros legais, que se
eleva sobre as câmaras, reconhecido judiciariamente. (Faoro, 2004:
307).
O Ato Adicional estabelecerá uma ordem política que procurará evitar,
simultaneamente, o centralismo monárquico e a fragmentação local, através da
constituição do poder das Assembléias Legislativas Provinciais, dirigidas por um
presidente nomeado pelo Imperador, que tinha como objetivo, a partir da legislação
cxliv
estabelecida pelas Assembléias, executar e fazer cumprir as leis, prover os
empregos, dar posse e suspender funcionários provinciais e municipais (Avellar,
1976: 213-214). Essa engenharia buscava garantir o controle das localidades pelo
poder central, através de uma estrutura regional (a presidência da província).
Conforme analisa Abrúcio (2002: 33), “face à fraqueza do Estado nacional em
controlar todo o território brasileiro, a engenharia institucional do Império fez do
presidente de província o elo entre o governo central e as bases políticas locais”.
No entanto, o governo central, muitas das vezes, ficava com as mãos atadas
frente aos poderes locais, na medida em que estes controlavam todo o aparato
político, judicial e administrativo montado. O Presidente da Província, a partir da
base de apoio local e do controle dos recursos administrativos que possuía51,
poderia expressar uma força que se contrapunha ao poder central, ainda que
estivesse vinculado a ele pelo processo de nomeação.
Um determinado grupo político, ao assumir a Assembléia Provincial,
pressionava a nomeação de um determinado presidente e organizava a criação e
distribuição de empregos públicos para seus correligionários, fortalecendo as
lideranças municipais de seu partido, que assumiam as funções de juiz de paz,
eleitoralmente conseguidas. Essa teia de articulação forçará a nomeação, para a
Guarda Nacional, dos proprietários de terra com prestígio municipal e provincial,
portanto do mesmo grupo de poder dos vencedores das eleições. Dessa forma,
constitui-se “o fechamento do círculo da quase autarquia das fazendas projetada no
mundo político” (Faoro, 2004: 307-309).
51
Conforme sinaliza Abrúcio (2002: 34), “o presidente da província tinha vários instrumentos para cooptar a classe política
local: primeiro, designava as autoridades municipais, sendo os policiais (...) os mais importantes; segundo, tinha um enorme
poder de nomeação para empregos públicos; terceiro, indicava os nomes para o Poder Central de quem poderia ocupar cargos
na Guarda Nacional e obter os títulos nobiliárquicos, tão cobiçados pelos grandes fazendeiros".
cxlv
Entretanto, é forçoso lembrar que, contraditoriamente, o Presidente da
província não disporá de total liberdade política, na medida em que será nomeado
pelo Imperador e não eleito pelo voto local. Esse fato garante ao governo central um
certo poder para influenciar as questões locais e subordinar o Presidente a seus
interesses, criando um sistema de tensão entre o poder central e o poder local,
tendo como estrutura de equilíbrio a presidência da província.
Nesse contexto, as eleições no Brasil se configuravam como processos de
disputa entre facções locais, a partir da interferência do governo central, via
Presidente da Província, para conquistar os recursos de poder disponíveis nas
localidade. Nas palavras de Carvalho (2001: 33):
O que estava em jogo não era o exercício de um direito de cidadão,
mas o domínio político local. O chefe político local não podia perder
as eleições. A derrota significava desprestígio e perda de controle dos
cargos públicos , como os de delegados de polícia, de juiz municipal,
de coletor de rendas, de postos na Guarda nacional. Tratava, então,
de mobilizar o maior número possível de dependentes para vencer as
eleições.
Nesse quadro, continua o autor, o voto não significava a ação política
consciente, em torno de propostas e projetos políticos, como forma de participar do
processo político da nação, mas, sim, estava vinculado estreitamente às disputas
locais. O votante, dessa forma, agia como dependente de um chefe local. No
entanto, quanto mais independente se tornava ou era o votante e na medida em que
percebia a importância do voto para o chefe político, mais ele barganhava e utilizava
o voto como mercadoria a ser negociada (Carvalho, 2001:35-36).
Para a tese, em relação a essa engenharia de descentralização montada
sobre o tripé da Guarda Nacional, do Código Criminal e do Ato Adicional, apesar de
ter funcionado integralmente apenas durante 7 anos, duas questões merecem
destaque.
cxlvi
A primeira refere-se ao fortalecimento da estrutura patrimonialista que vai se
consolidando como lógica da ordem administrativa, nos domínios territoriais mais
longínquos das terras brasileiras, pois a administração pública vai se constituindo
como extensão da propriedade dos “senhores rurais”, coronéis da Guarda Nacional,
que controlam o poder policial, a partir de sua riqueza e prestígio político, e, por isso
influenciam as demais estruturas de poder local e são reverenciados pelo poder
central, via Presidente da Província. Dessa forma, conforme assinala Faoro (2004:
310), “a moldura legal tem diante de si forças atomizadas, isoladas e não solidárias,
perdidas nas fazendas, para as quais o aparelhamento administrativo serviria
apenas para consolidar o estatuto de domínio da unidade fechada do latifúndio,
dirigido por um senhor”.
A outra questão está relacionada ao processo de fortalecimento da
dominação dos proprietários rurais, baseada na lógica patrimonialista, que criará as
condições subjetivas, sobretudo políticas, sobre as quais se erguerão as fundações
do edifício “coronelista” e da “política dos governadores” desenvolvidas durante a
República Velha, o que detalharemos adiante.
As medidas adotadas a partir de 1841 terão como objetivo a retomada da
centralização do poder, devido ao quadro de dispersão e autonomismo e dos focos
de pressão oriundos das influências territoriais dos fazendeiros e da ação dos
“exaltados” da cidades e das capitais das províncias (Faoro, 2004: 317).
Por outro lado, a situação econômica do período reforça o entrelaçamento
entre o comissário e o fazendeiro. O crescimento da exportação de café conduz ao
fortalecimento econômico da burguesia mercantil e, em conseqüência, estabelece a
reaproximação do comerciante à estrutura estatal.
Nesse quadro de mudanças econômicas, sociais e políticas, o Estado
cxlvii
brasileiro irá sofrer a pressão do setor urbano comercial exportador que se
constituirá como o polo de concentração de capital. As ações do Estado
beneficiando o setor comercial e financeiro, que continua a dominar a economia,
muito bem apontadas por Faoro, não significarão, de fato, o abandono do
proprietário rural pelo Estado, visto que, como demonstra Cardoso de Mello, se por
um lado o produtor rural cafeeiro depende do capital comercial, devido aos elevados
custos de produção, o comerciante e o financista dependem do produtor cafeeiro, já
que se trata do único investimento existente rentável (Cardoso de Mello, 1998: 6769).
Como a dispersão e a fragmentação do poder não interessam às elites
dominantes, o movimento de centralização é marcado para garantir a unidade
nacional e, simultaneamente, favorece a burguesia comercial e os grandes
proprietários, em detrimento da participação no poder dos demais proprietários
rurais.
A primeira medida de impacto da centralização é a Lei Interpretativa do Ato
Adicional. Essa lei buscou reduzir o caráter descentralizador do Ato Adicional,
retirando das assembléias provinciais a autoridade sobre os funcionários gerais com
exercício nas províncias. Dessa feita, os empregos e a polícia voltam a ser
comandados centralizadamente (Avellar, 1976 e Faoro, 2004).
A outra medida de destaque é o restabelecimento do Conselho de Estado. Tal
medida recoloca uma estrutura vitalícia, composta pela oligarquia, como garantia do
exercício do poder político-administrativo sob autoridade do monarca (Faoro, 2004:
332-333).
A reforma do Código Criminal e a subordinação da Guarda Nacional ao
Ministro da Justiça completam o quadro da reação centralizadora. Através da
cxlviii
reforma do Código, institui-se o chefe de polícia em cada província, nomeado pela
Corte, entre juízes de direito e desembargadores, assessorados por delegados e
subdelegados, também escolhidos pelo poder central, que terão competências e
atribuições similares aos dos juízes de paz. Dessa forma, esvazia-se o poder dos
juízes de paz e, em conseqüência, a dos chefes locais. Por fim, a subordinação da
Guarda Nacional ao Ministro da Justiça conclui o processo de esvaziamento da
influência do poder local na estrutura político-administrativa do Império.
O retorno à centralização produz um processo de burocratização da
administração pública, principalmente a partir da reformulação do Código de
Processo Criminal, na medida em que aumenta o grau de especialização na
condução das questões judiciais, pois os chefes de polícia seriam indicados dentre
os quadros de juízes de direito (juízes escolhidos dentre os bacharéis em direito) e
desembargadores. Porém, a impessoalidade não é a tônica do processo de escolha,
mantendo-se, assim, a característica patrimonial de recrutamento de quadros
administrativos, a partir de relações pessoais de lealdade estabelecidas entre o
príncipe e o funcionário.
Com essa organização elimina-se o equilíbrio de forças entre o poder central
e o poder local existente sob a vigência das medidas descentralizadoras. Estruturase a engenharia político-administrativa de cima para baixo. Assumir o poder na alta
hierarquia do Império significa ampliar a influência para o conjunto do território
nacional. O movimento de baixo para cima se esvaziou. Conforme analisa Faoro
(2004: 334), a luta política, portanto, desloca-se da localidade para o centro do
poder.
Com o esvaziamento do poder local a oligarquia formada pelos grandes
fazendeiros e comerciantes concentra o poder em suas mãos, vinculando-se ao
cxlix
Imperador. Dessa forma, reproduzem-se as relações políticas presentes antes da
independência. Faoro decifra o processo interpretando um alijamento do proprietário
rural da estrutura de poder. Vejamos a análise do autor que, apesar de extensa, vale
ser registrada:
A velha armadura política se amolda, sem absorvê-la, à sociedade,
que se inquieta, se agita, inconformada, ao braço sufocante e
civilizador da monarquia tradicional. Sobre a sociedade dominada,
uma realidade colonizadora, minoritária conduz o fazendeiro e lhe
impede o orgulho caudilhista, domina o político, domesticando-o à
ordem oligárquica (...). A estrutura colonial, filha da tradição, converte,
cunha e disciplina os sertões e o campo, burocratizando o agricultor e
o senhor de engenho com o uniforme da guarda nacional, sucessor
das ordenanças e milícias, a comenda e o título de barão. Réplica
política da dependência do homem da terra ao mercador de escravos,
ao fornecedor urbano, ao dispensador do crédito e comprador das
safras (...).
Ocupado o campo de domínio burocrático, a influência política, depois
do breve período da Independência e da indefinição regencial, será
cada vez mais irradiada do centro para a periferia, numa obra de
compressão centralizadora a que não estará alheio o interesse da
classe comercial, dona do crédito, do financiamento, do tráfico de
escravos e do dinheiro. (...) Tudo indica que a nova categoria política,
encharcada de burocratas, se apropriará dos meios e instrumentos
eleitorais, domesticando o territorialismo expansivo, afogando a
competição num arranjo de controle social e governamental. A
fazenda, que emerge poderosa nas lutas da Independência, cede
lugar aos legistas, sobretudo aos juízes. Com a prosperidade da
agricultura, dado o vínculo escravista, não se tornam mais poderosos
os agricultores, mas os donos do crédito e das exportações,
propugnadores da ordem centralizadora, que na política, será propícia
aos letrados (Faoro, 2004: 335 e 366).
Na visão de Faoro há uma estreita relação entre a burguesia comercial e o
Estado, alijando os proprietários rurais da estrutura de dominação. Já mencionamos
anteriormente, ao tratar do período colonial, como o autor não destaca, com a
ênfase necessária, o papel da força econômica e política dos proprietários rurais na
constituição da dominação no Brasil bem como o seu desdobramento em relação à
estruturação da ordem administrativa patrimonialista. Na questão relativa ao Império,
Faoro reproduz, de certa forma, a mesma análise do Brasil colônia, destacando, de
forma correta, o papel da burguesia mercantil, pois, como muito bem interpreta
Cardoso de Mello, o setor urbano comercial exportador é o polo de concentração de
cl
capital. No entanto, diferentemente do autor d’O Capitalismo Tardio, Faoro não
analisa a mútua dependência entre o capital mercantil e financeiro e a produção
cafeeira, fato que o leva a subestimar, mais uma vez, o papel dos proprietários rurais
na estrutura de dominação brasileira.
Em decorrência dessa forma de analisar a situação, o autor de Os Donos do
Poder não consegue perceber que, ao esvaziar o poder local e reorientar a
organização política “de cima para baixo”, as medidas centralizadoras do Império, ao
invés de alijarem os proprietários rurais do poder, estabelecem um mecanismo de
controle das disputas locais, a partir do governo central e da oligarquia composta
pelos grandes comerciantes e fazendeiros. Fragoso e Teixeira da Silva (1996: 200)
são precisos na análise da Lei de 1841, para mostrar o funcionamento do
mecanismo de controle criado:
Apesar de seus traços básicos, a lei de 1841 não pode ser encarada
simplesmente como um esgotamento do poder local, ou seja, dos
proprietários de terra. Na verdade, o que de certa forma se verifica é
o estabelecimento do governo como administrador do conflito local e
das disputas entre grupos dominantes, pois a nomeação por ele dos
delegados e subdelegados não viola a hierarquia local de poder.
Assim, faz-se necessário sublinhar que os elementos não integrantes
dos grupos dirigentes locais eram excluídos das funções de mando
públicas com as medidas de 1841, e o governo, ao reforçar o poder
do Estado, o fazia de forma a trazer para a esfera pública a
administração do conflito privado, isso sem ferir o conteúdo privado
do poder local.
A partir dessa perspectiva, concordamos com Mazzeo (1997) sobre o
processo de conciliação que se dá no Brasil nesse período. Para o autor, ocorre uma
conciliação qualificada por ele como de “bonapartismo colonial”52, principalmente em
relação ao segundo reinado.
Bonapartismo, pois, visto que se organiza um governo que busca conter as
52
Segundo Mazzeo, o “bonapartismos colonial” estrutura a gênese da autocracia burguesa no Brasil. Nas palavras do autor: “O
bonapartismo colonial aparece, desse modo, como o elemento de consolidação políticade uma sociedade extremamente
autocrática, comandada por uma burguesia débil e subordinada aos pólos centrais do capitalismo, para o qual a sociedade civil
se restringe aos que detêm o poder econômico, e as massas trabalhadoras constituem a ameaça constante aos seus
interesses de classe. O bonapartismo colonial será o articulador de uma política de Estado manipuladora e alijadora das
massas populares; será enfim, a encarnação e a gênese da autocracia burguesa no Brasil” (Mazzeo, 1997: 133).
cli
lutas “desencadeadas com o processo de emancipação: a eclosão da luta intestina
entre as frações da burguesia agrária, os movimentos populares e rurais e, ainda, os
embates com os setores radicalizados da pequena burguesia urbana” (idem: 132).
Embora o governo se apresente como “imparcial”, acima das contradições de
classes, buscando mostrar-se com bastante independência frente à sociedade,
efetivamente, encontra-se vinculado aos interesses das camadas hegemônicas e
dominantes.
O bonapartismo é qualificado de colonial, pois, diferentemente dos casos
clássicos que visava à expansão das relações capitalistas, o caso brasileiro se
mostra como responsável pela manutenção da ordem tradicional. Conforme análise
de Mazzeo (1997: 133):
...no Brasil, o bonapartismo mantém a estrutura escravista de
produção, continuidade da economia colonial, caracterizando a não
ruptura com o atraso econômico e social, assim como a debilidade de
sua burguesia. A conciliação, dessa forma, direciona-se à subsunção.
Concilia-se com o arcaísmo (...) e concilia-se com a Inglaterra, a nova
“metrópole”.
Por outro lado, conforme sintetiza Florestan Fernandes (1981: 27), o processo
de desenvolvimento da economia cafeeira “abrange duas fases: 1º) a ruptura da
homogeneidade da ‘aristocracia agrária’; 2º) o aparecimento de novos tipos de
agentes econômicos, sob a pressão da divisão do trabalho em escala local, regional
ou nacional.”
Para o sociólogo paulista, a expansão da grande lavoura, no contexto de
constituição do Estado nacional, intensifica a saída do isolamento de parcela dos
“senhores rurais”. Essa parcela de proprietários rurais vai se urbanizando e
secularizando suas idéias e perspectivas sociais e políticas, ou seja, vai se
“aburguesando”. Simultaneamente, ocorre, também, devido à expansão da
clii
urbanização e dos serviços, o surgimento de tipos humanos53 que não estavam
diretamente vinculados e subordinados - de forma a impedir manifestações de
opiniões autônomas - aos códigos senhoriais da área rural, apesar de
estabelecerem com a “aristocracia agrária” uma relação de lealdade pessoal
baseada em valores tradicionais. Segundo Fernandes, serão esses novos tipos
humanos que constituirão “os representantes mais característicos e modernos do
‘espírito burguês’” (Fernandes, 1981: 27-28).
Nesse processo, conforme assinala o mesmo sociólogo (Fernandes 1981:
103-125), ocorre a intensificação do aburguesamento, principalmente no setor
cafeeiro, do proprietário rural e sua transformação em “fazendeiro homem de
negócio”, ao mesmo tempo em que ocorre no setor comercial uma busca de status
aristocrático, próprio dos proprietários rurais.
Nessa perspectiva, embora, ao se transformar em homem de negócio, o
fazendeiro perca sua configuração e prestígio aristocrático, ele procura manter seu
poder no âmbito da fazenda, da família e da comunidade local. É a dimensão
“coronel” (Fernandes, 1981) que o fazendeiro vem desenvolvendo desde a criação
da Guarda Nacional.
Nesse contexto, rompe-se com uma certa homogeneidade, até então
existente, na “aristocracia agrária”. O “fazendeiro homem de negócio” se distinguirá,
enquanto proprietário rural, substantivamente do padrão senhorial existente desde a
época colonial. Seja devido à sua identificação com a ordem burguesa e à
consciência que adquire em desenvolver sua empresa em termos nitidamente
racionais e capitalista, não dependendo de medidas irracionais conduzidas pela
53
De acordo com Fernandes (1981: 28), esses novos tipos humanos são: “os negociantes a varejo e por atacado, os
funcionários públicos e os profissionais ‘de fraque e de cartola’, os banqueiros, os vacilantes e oscilantes empresários das
indústrias nascentes de bens de consumo, os artesãos que trabalhavam por conta própria e toda uma massa amorfa de
pessoas em busca de ocupações assalariadas ou de alguma oportunidade ‘para enriquecer’.”
cliii
estrutura patrimonial de poder, seja porque passa a não possuir mais status
senhorial e, deixando, por isso, de ter acesso amplo às benesses do Estado.
O quadro econômico nessas circunstâncias vai se desenvolvendo até um
ponto em que a lógica escravista e a pouca disponibilidade de terra vão se
apresentando como obstáculos para a acumulação tipicamente capitalista.
O Estado nesse quadro irá cada vez mais sofrer as pressões dos novos
atores (fazendeiros de café e burguesia comercial e financeira). Sua estrutura
patrimonial de base aristocrática e rural, apesar de cada vez mais burocrática devido às necessidades postas para a criação do Estado nacional e de organização
da economia mercantil escravista, não mais colonial -, não corresponde mais às
demandas de desenvolvimento e à nova correlação de forças presentes na
sociedade. Por outro lado, no próprio interior do Estado, conforme sinaliza
Fernandes (1981: 50 e 159), setores intermediários e superiores da burocracia
tendiam a defender “‘soluções políticas’ que mantinham ou ampliavam a
modernização do Estado e sua intervenção construtiva na criação do substrato
econômico, social e cultural requerido por uma nação integrada e independente”, na
medida em que “se identificavam com a expansão interna do capitalismo”, apesar de
serem, na origem do recrutamento, vinculados aos interesses e valores tradicionais,
marcando, o caráter conservador da origem de nossa burocracia54.
Assim, as demandas políticas liberais e republicanas se articulam com as
demandas de descentralização e de maior participação no poder operadas pelos
fazendeiros, ou melhor, pelo capital cafeeiro, núcleo do poder econômico de então.
54
De acordo com Fernandes (1981: 157), a base de recrutamento do quadro administrativo está localizada no que ele chama
de estamentos intermediários, “membro de ‘famílias tradicionais’ ou de ‘grandes famílias’, que pertencia à sociedade civil, mas
não possuía condição senhorial propriamente dita. Graças às suas ocupações, alianças e nível social, esse elemento se incluía
e era incluído, pela tradição e por motivos especificamente ‘modernos”, nos estamentos dominantes; chegava mesmo, por
causa de dotes pessoais ou de necessidades criadas pela fusão do patrimonialismo com a burocracia, a fazer parte das elites
(...). Fossem o que fossem (...), na vida prática deviam lealdade a tais interesses e valores e ao ‘código de honra’
tradicionalista”.
cliv
Dessa forma, a república se apresenta como saída política possível para uma
nova correlação de forças econômicas e sociais.
Dois processos merecem ser objeto de destaque nesse contexto. O primeiro
refere-se à articulação existente entre o proprietário rural tradicional e o surgimento
do comerciante que procura possuir o status aristocrático, buscando, dessa forma,
aproximar-se do Estado para adquirir as benesses patrimoniais. O segundo diz
respeito ao surgimento do fazendeiro homem de negócio que, por um lado, procura
manter seu poder de mando - mesmo não tendo as prerrogativas aristocráticas -,
através do exercício de seu poder junto à família, fazenda e comunidade, e, por
outro lado, busca no Estado a garantia de seu empreendimento.
Tais processos expressam as teias que se entrelaçam entre as frações das
classes dominantes no Brasil, as quais articulam referências tradicionais e racionais,
no sentido weberiano, para objetivar a dominação no país. A burguesia comercial, a
despeito de exigir, para seu empreendimento, mecanismos racionais, aproxima-se e
busca usufruir dos traços tradicionais do poder, aliando-se à elite agrária senhorial.
O fazendeiro, principalmente o produtor de café, apesar de se aburguesar, procura
manter seu domínio tradicional na localidade onde atua.
Nesse sentido, referências patrimonialistas e burocráticas passam a
conformar a ordem administrativa brasileira, devido a essa situação subjetiva
presente nas classes dominantes, que possui como condição objetiva para o seu
desenvolvimento, a estrutura “patriarcal”, base da economia colonial, que se
combina com o desenvolvimento da economia mercantil escravista cafeeira nacional
no quadro de constituição do Estado nacional.
Se articularmos essas observações com a análise de Cardoso de Mello,
podemos chegar à seguinte conclusão: o Estado nacional brasileiro será forjado a
clv
partir da hegemonia dos proprietários rurais em articulação com setores nativos da
burguesia comercial que expressam a composição da classe dominante da
economia mercantil escravista nacional, que será estruturada a partir da crise da
economia colonial (produto da queda do “exclusivo metropolitano” e da formação do
Estado nacional) (Cardoso de Mello, 1998: 53).
Portanto, o Estado nacional se estruturará a partir de uma dominação
tradicional implicando uma ordem administrativa patrimonialista. Conforme sublinha
Fernandes (1981: 152), “como a ordem estabelecida não se alterou em seus
fundamentos propriamente societários, as convenções, o código de honra tradicional
e os mecanismos de dominação patrimonialista continuaram a diluir e a neutralizar
os elementos competitivos”.
Simultaneamente, a construção do Estado para consolidar a economia
mercantil escravista em nível nacional requer instrumentos administrativos de cunho
racional. Nesse sentido, é necessário que a dominação se expresse nacionalmente.
O recurso para isso é a utilização da lógica racional que planeja e implementa a
integração e unidade da nação como mecanismo de modernização da sociedade
brasileira.
Nesses termos, a estrutura administrativa brasileira, para objetivar a
dominação no nível local e privado, que tinha como elemento cultural os elos
tradicionais, organiza-se de forma patrimonialista. Entretanto, para essa dominação
realizar-se no âmbito nacional e implantar uma economia nacional, era essencial
uma ordem formal-legal, portanto burocrática.
Sendo assim, a gênese da ordem administrativa brasileira se funda no
patrimonialismo e na burocracia, não porque se forja uma dicotomia entre o
“velho” e o “novo” entre o “atraso” e o “moderno”, mas sim devido à
clvi
necessidade de objetivar a dominação das classes dominantes (proprietários
rurais e burguesia comercial) em nível local e nacional simultaneamente, a
partir do momento em que ocorre a passagem da sociedade colonial para uma
sociedade nacional, que implicou a existência de um sistema tradicional
escravista e um sistema capitalista emergente articulados intensivamente55.
Em suma, o caráter nacional do Estado, por um lado, e a emergência das
relações capitalistas, por outro, exigiram que as elites estruturassem sua dominação
através, também, de mecanismos racionais burocráticos e não mais apenas através
dos mecanismos patrimonialistas. A dominação, nesse sentido, objetiva-se através
de uma ordem administrativa patrimonialista e burocrática.
É importante perceber que, na medida do desenvolvimento dessas estruturas
administrativas com lógicas distintas e da ampliação dos setores da sociedade
desprendidos das relações tradicionais de dominação, crescem os conflitos intraorganizacionais e começam a ocorrer conflitos no campo dominante, produto do
esgotamento da economia mercantil escravista e da necessidade de se organizar
uma economia exportadora capitalista (Cardoso de Mello, 1998: 88), ou nos termos
de Fernandes, um sistema competitivo que indicasse a expansão capitalista no
Brasil. Sendo assim, como muito bem percebido por Weber, se o objetivo passa a
ser a expansão capitalista, a estrutura de dominação deve ampliar as condições
políticas, jurídicas e institucionais, através do ordenamento racional-legal, para que o
objetivo seja alcançado, tanto economicamente (expansão do capitalismo) como
socialmente (integração e unidade nacional). Ou seja, para tal objetivo o Estado
deve possuir uma dimensão burocrática capaz de garantir o desenvolvimento do
55
Nesse sentido, Fernandes (1981: 157 e 159) falará da “fusão do patrimonialismo com a burocracia” e da “combinação da
dominação patrimonialista com a dominação burocrática”
clvii
capitalismo (em termos de uma economia exportadora) e a construção nacional,
necessidade inerente ao desenvolvimento capitalista.
É mister frisar que esse objetivo, ao ser conduzido pelos proprietários rurais,
no sentido de manter sua dominação e preservar seus privilégios, exigirá também
uma estrutura vinculada à tradição (patrimonialismo) para conter ímpetos radicais de
racionalidade que venham a democratizar o poder e ampliar o leque de cidadãos,
restringindo a capacidade de dominação existente.
Contraditoriamente aos interesses dos proprietários rurais, a expansão do
capitalismo e a estruturação de um Estado Nacional levam à ampliação de setores
da sociedade que não estão vinculados aos circuitos da tradição e que começam a
se identificar com os objetivos capitalistas e nacionais, assim como parte da própria
elite rural também passa a incorporar o projeto capitalista e de integração nacional.
Como conseqüência, instaura-se maior pressão para que ocorra a ampliação das
estruturas racionais e legais de objetivação da dominação, gerando o fortalecimento
da dimensão burocrática do Estado.
No entanto, cabe frisar que a dimensão burocrática desenvolvida possui como
origem um quadro administrativo vinculado à tradição e à ordem senhorial, não se
estruturando como um vetor modernizante central, determinando, dessa forma, o
caráter conservador da gênese da burocracia brasileira. Em outras palavras, isso
significa dizer que a burocracia brasileira nasce devido à necessidade de
especialização apresentada pelo projeto de integração nacional e de expansão da
economia mercantil, porém se afasta da dimensão de impessoalidade requerida por
uma estrutura efetivamente burocrática.
Nesse quadro, o emprego público será também um instrumento para a
expansão do poder da aristocracia e um espaço para adquirir status político e social.
clviii
Na avaliação arguta de Faoro (2004: 390), “a primeira conseqüência, a mais visível,
da ordem burocrática, aristocratizada no ápice, será a inquieta, ardente, apaixonada
caça ao emprego público. Só ele nobilita, só ele oferece o poder e a glória, só ele
eleva, branqueia e decora o nome.”
Resumindo, a construção do império independente ocorre mantendo a
estrutura de poder colonial e incorporando de forma intensiva os senhores rurais
como esteio da nova ordem, através da utilização do Estado para garantia de seus
interesses econômicos e conquista de status, caracterizando a lógica tradicional
patrimonialista. Por outro lado, a construção de Estado nacional exige ações
racionais que pressupõem o fortalecimento do corpo burocrático do Estado. Nesse
contexto, a crise da economia colonial está posta e o advento da economia
exportadora capitalista está à vista, reforçando, com tal processo, a necessidade de
burocratização do Estado. Dessa forma, elementos patrimonialistas e burocráticos
se entrelaçam e conformam a ordem administrativa nacional. Isso não significa dizer
que será uma relação sem tensão, porém uma tensão sempre delimitada pela
conciliação estabelecida entre a ordem colonial e a nova ordem nacional.
O final da década de 1860 marca o início da crise da economia mercantil
escravista, a partir, como vimos anteriormente na análise de Cardoso de Mello, do
momento em que a lógica escravista e a pouca disponibilidade de terra passam a
ser obstáculos para a acumulação tipicamente capitalista.
Apesar do início da crise, a economia mercantil escravista ainda terá uma
sobrevida, na medida em que o desenvolvimento da indústria de beneficiamento de
café e da ferrovia acabam poupando trabalho escravo nessas atividades, além de
reduzir os preços dos transportes e melhorar a qualidade do produto, possibilitando
melhores preços internacionais (Cardoso de Mello, 1998: 81).
clix
Entretanto, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da estrada de ferro e a
indústria de beneficiamento se opõem à economia mercantil escravista, criando
condições para o surgimento do trabalho assalariado. Por outro lado, a escassez da
força de trabalho começa a ser sentida na medida em que a acumulação “repõe, a
cada instante, o ‘problema da falta de braços’, que assume, a cada momento, maior
gravidade” (Cardoso de Mello, 1998: 83). Sendo assim, do ponto de vista
econômico, a República Velha é produto do esgotamento da economia mercantil
escravista nacional e do surgimento da economia exportadora capitalista (Cardoso
de Mello, 1998).
Do ponto de vista global, o desenvolvimento do capitalismo mundial, em sua
fase imperialista, apresenta a exigência de uma nova relação com a periferia
(abandono da função da acumulação primitiva para redução dos custos da força de
trabalho e dos componentes do capital constante). Nesse contexto, processou-se a
transição da economia colonial para a economia exportadora capitalista, em que a
intermediação comercial e financeira se expressa como o elo entre a economia
brasileira e o imperialismo Inglês.
A oligarquia agrária paulista cafeeira, que emerge durante o Império, projetase no cenário político nacional, a partir de sua liderança econômica, na passagem
da economia escravista nacional para uma produção capitalista voltada para a
exportação.
Esse é o cenário onde, segundo Florestan Fernandes, atuará um dos
principais autores e fautores de nossa revolução burguesa: o fazendeiro homem de
negócios, base da burguesia agrária brasileira.
O fundamental para o estudo em questão é destacar o significado político do
fazendeiro homem de negócio (principalmente na área do café), como constituinte
clx
da classe econômica dominante, a partir da década de 60 do século XIX, que
assumirá a hegemonia política durante o primeiro período republicano, explicitando
sua relação com a ordem administrativa desenvolvida, principalmente no que se
refere à manutenção e ao fortalecimento do patrimonialismo no Brasil.
Como vimos anteriormente, no quadro de desenvolvimento da economia
mercantil escravista nacional cafeeira, processa-se a transformação de setores do
senhorio rural em fazendeiros homens de negócio.
Os fazendeiros homens de negócio constituirão a oligarquia agrária que
dominará política e economicamente a República Velha. Tais fazendeiros
dissociaram a fazenda e a riqueza produzida por ela do status senhorial. Essa
transição de senhores para fazendeiros se realiza ao longo do século XIX e se
explicita, por um lado, o processo de aburguesamento do proprietário rural, por outro
lado, determina o vínculo desse setor com a estrutura tradicional de poder. Esse
vínculo torna-se mais evidente na dimensão “coronel” que esses atores
desenvolverão a partir do final do século XIX, da qual trataremos adiante.
Neste momento, cabe compreender o processo econômico que fundamenta a
transformação desses “fazendeiros homens de negócio”, protótipo de uma burguesia
agrária nascente, numa oligarquia antiburguesa.
Como muito bem analisado por Oliveira (1978: 407), esses fazendeiros se
constituirão como burguesia agrária, no Império e no início da República, e se
metamorfosearão em oligarquia antiburguesa, até o final da República Velha.
A
constituição
como
oligarquia
antiburguesa
é
determinada
fundamentalmente pela dimensão econômica dos interesses desse grupo.
Sinteticamente, conforme analisa Oliveira (idem: 408-410), a especialização na
produção de mercadoria de realização externa, desenvolvida pela economia
clxi
brasileira, acarretou que o financiamento para tal fosse também externo. Essa
situação produziu um “círculo vicioso” entre a produção agro-exportadora e a
intermediação comercial e financeira externa, em que o valor gerado pela economia
agro-exportadora era absorvido substancialmente nos custos da intermediação
comercial e financeira, criando, assim, a necessidade de retornar à intermediação
para repor a produção. Nesse quadro, produz-se um estrangulamento na
capacidade de o país ampliar a divisão social do trabalho no rumo do capitalismo
industrial, na medida em que os recursos eram consumidos pela intermediação
externa que nada tinha a ver com a realização interna da produção não exportadora.
Nas palavras do autor, “o financiamento da acumulação de capital nos setores não
exportadores não passava pela intermediação comercial e financeira externa típica
da economia agro-exportadora, que consumia a maior parte do excedente social
produzido não apenas pelas atividades de exportação, mas pela totalidade do
sistema econômico” (Oliveira, 1978: 410).
A defesa dessa lógica econômica pelos setores agro-exportadores,
principalmente o cafeeiro, ao mesmo tempo em que negava sua sustentação,
negava o desenvolvimento de outros setores da economia. Nesse ponto, “a
burguesia agrária termina por transformar-se numa oligarquia antiburguesa, e
regionalmente cada fração da classe burguesa terminou por configurar-se nas
famosas oligarquias regionais” (Oliveira, 1978: 412).
Complementando a análise de Oliveira, a observação de Fernandes
(1981:171) sobre a forma como a organização capitalista fora absorvida pela ordem
senhorial, na passagem do Império para a República, mostra que
...a insensibilidade e relutância não eram ditadas apenas por motivos
‘tradicionais’ (como querem alguns) ou ‘nacionalistas’ (como
pretendem outros). Elas se vinculavam a uma defesa sistemática,
larga e profundamente consciente, de estruturas econômicas e de
poder, que as camadas senhoriais e suas elites consideravam sob
clxii
sérios riscos – não pelo mercado mundial, em si mesmo, mas por
causa do aparecimento de um mercado interno complexamente
entrosado ao mercado mundial e amplamente determinado por forças
que, com o tempo, não seriam mais controláveis pelas irradiações
econômicas do poder da ‘aristocracia agrária’.
Sendo assim, a forma de assimilação da ordem capitalista pela ordem
senhorial se apresenta, também, como mais uma determinação que contribuirá para o
fortalecimento e continuidade das estruturas patrimonialistas, a partir da república, na
medida em que estão bloqueadas as possibilidades de avanço da divisão social do
trabalho no rumo do capitalismo industrial, seja pelos componentes de ordem
econômica, seja pelas opções de cunho político tomadas pelas classes dominantes.
Segundo Fernandes (1981: 167):
O horizonte cultural orienta o comportamento econômico
capitalista mais para a realização do privilégio (ao velho estilo),
que para a conquista de um poder econômico, social e político
autônomo, o que explica a identificação com o capitalismo
dependente e a persistência de complexos econômicos
semicoloniais (na verdade, ou pré-capitalistas ou
subcapitalistas).
Nesses termos, ainda de acordo com Fernandes (1981: 176), a fase aguda da
crise do trabalho servil levou consigo a ordem senhorial e escravocrata, “mas não o
seu substrato social e político: a base oligárquica do poder autocrático dos ‘ricos’ e
‘privilegiados’”. Sendo assim, a República é realizada com o substrato da ordem
senhorial, ou seja, com poder oligárquico e autocrático dos ricos e privilegiados.
Portanto, o capitalismo, enquanto ordem social, estrutura-se no País a partir do
substrato social e político da ordem senhorial, o que viabiliza a manutenção e o
fortalecimento da estrutura de dominação tradicional.
Nesse sentido, a descentralização do poder é um elemento chave para conduzir
a expansão capitalista da economia sob orientação do setor agrário. O advento da
República implica, assim, a extinção dos mecanismos de centralização do poder,
presentes no segundo reinado (Poder Moderador, Senado Vitalício, Conselho de
Estado e Guarda Nacional), e a introdução do federalismo no país (Teixeira da Silva e
Fragoso, 1996).
clxiii
A estrutura coronelista constitui, pois, a base da engenharia política que
consolidará o poder do setor agrário sob hegemonia dos produtores de café, na
medida em que viabilizará a participação política daqueles proprietários de terra que
estavam alijados do poder e organizará a descentralização política cunhada pelo
federalismo. Na formulação clássica de Victor Nunes Leal (1986), o coronelismo seria
um arranjo político de articulação, adequação, acomodação entre o regime político de
base representativa e o poder local privado decadente.
Como vimos anteriormente, após a abolição e o advento da república, apesar
da perda de prestígio aristocrático e do declínio econômico de alguns proprietários
rurais, o poder político local se mantém sustentado com base na tradição do
mandonismo, presente tanto na estrutura patriarcal colonial quanto na hierarquia
militar da Guarda Nacional do Império. No entanto, como reforça Queiroz (1978:
159-160), o coronelismo é uma expressão do mandonismo local que se distingue
das tradições da colônia e do império, pois se configura como uma estrutura de
poder local tipicamente republicana, a despeito de seus vínculos com a lógica
tradicional.
Conforme aponta Carvalho (2001: 41), o “coronel era o posto mais alto na
hierarquia da Guarda Nacional. O coronel da Guarda era sempre a pessoa mais
poderosa do município. Já no Império ele exercia grande influência política. Quando
a Guarda perdeu sua natureza militar, restou-lhe o poder político de seus chefes”.
Queiroz (1978: 156) ratifica essa análise ao afirmar que, depois da extinção
da Guarda Nacional, pouco depois da proclamação da República, “persistiu no
entanto a denominação de ‘coronel’, outorgada espontaneamente pela população
àqueles que pareciam deter em suas mãos grandes parcelas do poder econômico e
político”.
A expressão do poder dos chefes locais se realizava principalmente através
clxiv
da proteção que ele oferecia à população, sobretudo junto à população eleitora.
Quanto mais condições de distribuir favores, maior a influência do coronel na esfera
estadual e nacional, na medida em que possuía maior capacidade de mobilização
eleitoral para os candidatos apontados pelas oligarquias.
Nessa perspectiva, o coronel, como chefe político local cumprirá, a função de
mediação entre a população local e o poder estadual cujo fortalecimento dependia
das relações que o chefe do poder local estabelecia com a população.
Por outro lado, conforme esclarece Abrúcio (2002: 38), o chefe local era
controlado pelo governador do estado, devido a três razões: em primeiro lugar,
porque o poder federal era frágil e não competia com os estados; em segundo,
devido à pouca autonomia política e financeira dos municípios, que acabavam
dependendo do apoio do governo do estado; e, em último, derivado da dependência
assinalada, já que o chefe local precisava do governo do estado para acessar
recursos estatais não só em seu benefício, mas de sua clientela e para garantir
segurança para seus aliados nas lutas entre facções rivais. Faoro (2004: 626)
mostra que a subordinação do município ao estado, sob alegação de evitar o
anarquismo e proteger a integração nacional, instaura-se respaldada pelo art. 68 da
Constituição de 1891, na medida em que o poder estadual passa a ser o
responsável pela nomeação dos prefeitos e a possuir os recursos disponíveis para
utilização local.
Essa relação de mútua dependência estabeleceu o que se convencionou
chamar de “compromisso coronelista”. A oligarquia estadual, que controlava o
governo do estado, precisava dos votos mobilizados pelos chefes locais e estes,
principalmente os que se encontravam em decadência econômica, necessitavam
dos recursos do estado para si e para sua clientela. Por isso a formulação clássica
clxv
de Nunes Leal sobre esse sistema, apresentada anteriormente, é precisa. Como
recorda Abrúcio, o autor de Coronelismo, enxada e voto ainda expressa este sistema
como sendo de reciprocidade no qual “de um lado, os chefes municipais e ‘coronéis’,
que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado,
a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos
favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder das
desgraças” (Leal, 1986: 43).
Nesse contexto, o emprego público, disponibilizado pelo governo estadual
para conseguir votos, firmava uma relação de lealdade entre o funcionário e o
governante, eliminando qualquer possibilidade de impessoalidade no trato da
administração pública, reduzindo a autonomia do servidor, na medida em que seu
recrutamento se estrutura em bases tipicamente patrimonialistas. Sendo assim,
“formava-se uma rede de lealdade sustentada pela intermediação estatal” (Abrúcio,
2002: 39).
Faoro (2004: 622) ratifica essa análise, ao entender que, antes de ser líder
político, o coronel é líder econômico, mas será coronel por receber delegação do
poder estadual para o exercício do poder político. Nesse sentido, o poder político do
coronel não é mero reflexo de seu poder econômico, materializado em seu
patrimônio pessoal. O vínculo que lhe outorga poderes públicos virá do aliciamento
político.
Para nossa discussão é importante perceber que essa forma peculiar de
delegar poder público para o campo privado, expresso pelo compromisso
coronelista, fortalece a dimensão patrimonialista da administração pública em sua
vertente local.
Nessa ótica, a dimensão pré-burocrática da administração pública se
clxvi
consolida na estrutura local de dominação, que se inicia com a dimensão patriarcal
do senhor colonial, desenvolve-se, através da experiência descentralizadora do
império, principalmente através da organização da Guarda Nacional, e chega ao seu
ponto de maturação na República Velha, através do sistema coronelista.
O patrimonalismo, nesse quadro, é inconteste. Como afirma Faoro (2004:
631), “obviamente, a linha entre o interesse particular e o público, como outrora,
seria fluida, não raro indistinta, freqüentemente utilizado o poder estatal para o
cumprimento de fins privados.” Em outra passagem o autor ressalta: “o coronel
utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura não raro, a organização
estatal e seu erário com os bens próprios” (idem: 637).
A dimensão patrimonialista da ordem administrativa desenvolvida localmente,
através do sistema coronelista, não deixará impune a estrutura estadual e federal. A
dominação tradicional presente na República Velha se manifesta na relação entre
oligarquia estadual e coronel e entre oligarquias estaduais e o Presidente da
República. Conforme ressalta Faoro (2004:562), “o velho estamento imperial se
dissolve, desta sorte, num elitismo de cúpula, regredindo a estrutura patrimonialista
para o âmbito local, local no sentido do entrelaçamento de interesses estaduais e
municipais.”
A “política dos governadores”, operacionalizada por Campos Sales, amarra as
pontas do patrimonialismo, na medida em que estabelece para o âmbito nacional
relações de compromisso semelhantes à organizada no sistema coronelista. De
forma mais precisa, o sistema coronelista é a base de sustentação da política de
governadores, na medida em que viabiliza a “maximização do poder das oligarquias
estaduais” (Mendonça, 1996: 252).
Assim, através da “política dos governadores” se consolida o poder
clxvii
oligárquico estadual sob hegemonia dos estados economicamente mais fortes,
institucionalizando-se, dessa forma, um pacto entre as oligarquias estaduais e entre
estas e o governo federal, sob liderança de São Paulo e Minas Gerais.
Dentre os principais aspectos da “política dos governadores”, sintetizados por
Abrúcio (2002: 35-37), destacam-se: a centralidade dos governadores de estado no
sistema político, seja no âmbito estadual, seja no federal; o processo de definição da
presidência da república passar por um acordo entre os governadores de São Paulo
e Minas, representantes das elites econômicas desses estados; a fragilidade da
presidência da república para dirimir conflitos entre os estados hegemônicos; a
inexistência de partidos nacionais, que fortalecia, ainda mais, o poder dos
governadores de estado e o fato de esse pacto de governadores ter possibilitado a
perpetuação no poder de todas as oligarquias que estavam presentes no Governo
Campos Sales, gerando um “congelamento na competição nos estados”.
Esse sistema se retroalimenta e enfatiza a “troca de favores” como
mecanismo principal de fazer política, na medida em que a ausência de disputa
entre projetos políticos distintos leva a ação política a se centrar na “pequena
política”, gramscianamente falando, abrindo espaço para a utilização da “troca de
favores” e da “corrupção” como mecanismos de “cooptação”. Na ausência de
projetos políticos distintos, pouco importa o grupo que estará no poder, o que vale é
o poder pelo poder e a possibilidade de ter acesso às suas benesses, portanto, os
instrumentos para fazer política se distanciam daqueles necessários para fazer o
convencimento em torno de idéias e propostas alternativas para a sociedade. Faoro
(2004: 588) sublinha enfaticamente tal questão:
O problema do político era o poder, só o poder, para os chefes e para
os Estados, sem programas para atrapalhar ou ideologias
desorientadas. O agente ideal para esta ação será o realista frio,
astuto mais que culto, ondulante nos termos, sagaz na apreciação
dos homens, aliciador de lealdades e pontual na entrega de favores.
clxviii
Nesses termos, a fragilidade do poder federal - embora num período em que
se fez necessário agir nacionalmente com certa racionalidade e especialização para
comandar a política econômica voltada para a sustentabilidade da economia
exportadora capitalista – advinda da “política dos governadores” e do sistema
coronelista, enfraquece a já inexpressiva dimensão burocrática da ordem
administrativa brasileira. Em outras palavras, o patrimonialismo burocrático
centralizado do período imperial não mais condiz com a nova correlação de forças
centrada na hegemonia política e econômica da oligarquia cafeeira. Da burocracia
centralizada necessita-se apenas da condução da política econômica, com certo
cariz de racionalidade, que venha a favorecer a dinâmica da produçãointermediação-exportação do café. A dominação política se irradia nacionalmente
através do sistema patrimonialista local, fundado na combinação da “política dos
governadores” com o sistema coronelista.
O sistema político assim montado esvazia as possibilidade substantivas de
expressão política da cidadania, por outro lado, a estrutura social basicamente
agrária, a história colonial, a escravidão e a, ainda emergente e incipiente, classe
trabalhadora urbana-industrial reforçam o quadro de fragilidade do exercício da
participação política na sociedade republicana.
Carvalho (2002: 56-57) ressalta a situação fundada no coronelismo da
seguinte forma:
O coronelismo não era apenas um obstáculo ao livre exercício dos
direitos políticos. Ou melhor, ele impedia a participação política
porque antes negava os direitos civis. Nas fazendas, imperava a lei
do coronel, criada por ele, executada por ele. Seus trabalhadores e
dependentes não eram cidadãos do Estado brasileiro, eram súditos
dele.
(...) Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente público, não
havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não poderia haver
cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não
teriam as condições necessárias para o exercício independente do
direito político.
clxix
A fragilidade da classe operária nascente - seja devido a seu peso
quantitativo e qualitativo na estrutura social e econômica do país, seja por conta da
orientação anarco-sindicalista voltada para as demandas diretamente econômicas,
não se organizando partidariamente, não definindo estratégias de aliança para
operacionalizar a luta política – corrobora com o cenário de ausência de cidadania
política (Antunes, 1982: 63-66).
Do ponto de vista das oligarquias dominantes, a estrutura política montada
satisfazia a seus interesses e evitava qualquer possibilidade de inclusão de outros
setores sociais no processo político.
Nesse sentido, o Estado buscava uma relação mais amistosa com os
trabalhadores vinculados aos setores necessários à exportação (ferroviários e
marítimos) e tratava os trabalhadores fabris através da forma clássica liberal:
repressão (Antunes, 1982: 65).
Frente ao exposto, a “questão social” tratada como caso de polícia, dispensa
uma estrutura estatal ampliada, o que reduz, também, as possibilidades de
fortalecimento da dimensão burocrática da ordem administrativa.
Esse contexto, que começa no segundo reinado e se consolida na República
Velha, leva Wanderley Guilherme dos Santos a caracterizá-lo como falso laissezfaire, pois restrita a área urbana - na medida em que a penetração dos mecanismos
liberais de regulação da força de trabalho foram muito lentamente incorporados na
área rural - e no que concerne à economia, devido à aprovação da Lei Eloy Chaves,
em 1923, que de certa forma vulnerabiliza a defesa de não intervenção do Estado na
área social.
É consenso entre analistas de diferentes correntes que o liberalismo no Brasil
clxx
foi incorporado de forma peculiar. Uma verdadeira “idéia fora do lugar”, conforme
observa Schwarz (1977), uma vez que se irradia no Brasil, durante o Império, em
plena vigência da escravidão, e se consolida durante a República Velha, em que o
sistema de favores, e não a universalidade de direitos e procedimentos, forma a
base das relações políticas e da dinâmica do Estado. Nas palavras do autor, “o
escravismo desmente as idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão
incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um
padrão particular” (Schwarz, 1977: 16).
Apesar desse caráter de estar “fora do lugar”, o liberalismo no Brasil, para
Fernandes (1981: 38), foi fundamental como impulso para a revolução nacional.
Portanto, sem perder de vista as limitações e deformações que sofreu
numa sociedade e numa cultura tão avessa às suas implicações
sócio-econômicas, políticas, intelectuais e humanitárias, a aceitandose que, ainda assim, ele só se constituiu em realidade histórica para
as minorias atuantes dos estamentos senhoriais, o liberalismo foi a
força cultural viva da revolução nacional brasileira.
Portanto, o liberalismo, a despeito de ter se constituído como essa força viva
para a construção da sociedade nacional brasileira, não implicou mudanças na
ordem social, econômica e política, entrelaçando-se com os mecanismos
patrimonialistas existentes.
Mazzeo elabora uma observação extremamente pertinente a respeito da
característica do liberalismo no Brasil. Segundo o autor, não se pode debitar à
manipulação das elites o caráter do liberalismo brasileiro, esse seria apenas um dos
aspectos do fenômeno. A centralidade da compreensão deve se pautar na forma de
“absorção colonial” do liberalismo, na medida em que ela é “concretamente,
engendrada pela organização produtiva agroexportadora e escravista” (Mazzeo,
1997: 94 – grifo do autor).
Por outro lado, o desenvolvimento da economia mercantil escravista nacional,
clxxi
realizada durante o Império, submetida aos interesses ingleses e tardia em relação
ao capitalismo europeu, marcará objetivamente as possibilidades de nosso
liberalismo.
Nesse quadro, o liberalismo incorporado estará voltado basicamente para
viabilizar os interesses econômicos da nascente burguesia agrária. Portanto, a
superestrutura jurídica e política refletirá essa opção teleológica direcionada para a
acumulação da elite dominante e não para a incorporação dos diferentes setores
sociais no processo de desenvolvimento. A opção pela exclusão das classes
subalternas e da burguesia industrial emergente nessa lógica é nítida.
Por isso, durante a República Velha, de acordo com Antunes,
A garantia do pacto de dominação por parte do estado oligárquico
deu-se através de um liberalismo excludente que aglutinava os
setores burgueses exportadores – que detinham a hegemonia dentro
deste pacto – e as oligarquias não exportadoras e excluía, além dos
setores subalternos, os interesses ligados à burguesia industrial
emergente.
Nesse sentido, conforme destaca Mazzeo (1997: 124), “...vemos que a
absorção do liberalismo [no Brasil] será restrita em seu aspecto econômico, mesmo
assim, mantido em parte, apenas no direito de livre comerciar e produzir (produção
esta limitada à agricultura).”
Sendo assim, nesse cenário da primeira república, que se complementa com
a particularidade da incorporação do liberalismo no Brasil, reforça-se
o
patrimonialismo existente na administração pública brasileira e a burocracia não se
expande, continuando restrita e a serviço da oligarquia.
Dessa
feita,
na
República
Velha,
o
Estado, enquanto estrutura de dominação, será
capturado para atender às reivindicações dos
comerciantes
e
dos
fazendeiros
de
café,
predominantemente, ou seja, do capital cafeeiro.
clxxii
Nesse sentido, a lógica racional-burocrática,
necessária
ao
desenvolvimento
capitalista,
deverá ser mantida, porém de forma articulada à
lógica patrimonialista, necessária à manutenção
do poder e das aspirações tradicionais de
status, mando e utilização privada do bem
público,
presentes
proprietários
comerciantes.
clxxiii
de
tanto
terra
na
cultura
quanto
na
dos
dos
CAPÍTULO III - A DIALÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
BRASILEIRA SOB HEGEMONIA BURGUESA: Burocracia e Patrimonialismo da
Era Vargas à Ditadura Militar
3.1. A inflexão de 1930: burocracia e patrimonialismo imbricados como elementos
estruturais da ordem administrativa brasileira
A Revolução de 30 é um ponto de inflexão na trajetória do Brasil e da
administração pública brasileira, na medida em que representa o início de um novo
projeto político para a sociedade: industrialização e urbanização, sob comando da
intervenção estatal.
Do ponto de vista da economia política, esse projeto, como muito bem
demonstrado por Cardoso de Mello (1998) e Oliveira (2003), apesar das diferenças de
análise existente entre os autores (Antunes, 1982), é conduzido a partir da articulação
entre a economia agrária e a indústria emergente, constituindo um entrelaçamento
entre características pré-capitalistas e capitalistas de produção, seja através da
relação entre o capital cafeeiro e o capital industrial nascente, como aponta Cardoso
de Mello; seja através da relação entre a produção agrícola baseada numa intensiva
exploração de trabalho e a recente produção industrial que se beneficia daquela
exploração, como afirma Oliveira. Ou seja, o importante é assinalar que, de um ponto
de vista ou de outro, a industrialização no Brasil surge e se desenvolve de forma
integrada aos interesses agrários. Essa é a contribuição fundamental desses autores
ao fazerem a crítica à concepção cepalina para interpretar o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil e pensar a relação entre os interesses tipicamente capitalistas e
aqueles vinculados à tradição agrária.
De acordo com Cardoso de Mello, o crescimento industrial no período da
República Velha se baseia no crescimento da rentabilidade do capital cafeeiro (18901894), quando a opção em investir na indústria requeria apenas que ela gerasse uma
clxxiv
taxa de rentabilidade positiva, pois “a taxa de acumulação financeira sobrepassou,
em muito, a taxa de acumulação produtiva” (Cardoso de Mello, 1998: 100).
Nesse quadro, como assinala Cardoso de Mello (1998: 100), o capital industrial
nasceu como desdobramento do capital cafeeiro empregado tanto no núcleo
produtivo do complexo exportador (produção e beneficiamento do café) quanto em
seu segmento urbano (atividades comerciais, serviços financeiros, transporte...). Tal
fato mostra como o início do crescimento industrial no Brasil vai possuir como matriz
o capital agrário-tradicional.
Segundo a análise de Oliveira, “longe de ter havido transferência de recursos
ou de renda do setor exportador para os demais setores, houve o contrário” (Oliveira,
1978: 410). Portanto, para o autor, a relação entre o setor agrário e o setor industrial
não se estabelece a partir da inversão do capital cafeeiro no setor industrial.
Sinteticamente, segundo Oliveira (2003: 45-47), a relação dialética entre a agricultura e
o setor industrial emergente se expressa na funcionalidade da agricultura para o
crescimento industrial, via fornecimento da força de trabalho e de alimentos, através
da manutenção do padrão “primitivo” de acumulação na agricultura, “baseado numa
alta taxa de exploração da força de trabalho”. De acordo com o autor:
...a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo
relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no
novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a
introdução das relações nova no arcaico libera força de trabalho
que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a
reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de
acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão
do próprio novo (Oliveira, 2003: 60 – itálicos no original).
A análise dos críticos da concepção cepalina, apesar de divergentes, apresenta
uma concepção dialética seja da relação entre o capital industrial e o capital cafeeiro,
conforme sinaliza Cardoso de Mello, seja da articulação entre a agricultura e
crescimento industrial, de acordo com Oliveira. As análises identificam contradições
nas relações apontadas, ainda que tal contradição se constitua como uma unidade.
Para Cardoso de Mello (1998: 103-104), a contradição é sempre delimitada pela
relação de dependência existente entre capital cafeeiro e capital industrial. Oliveira
clxxv
(2003: 65) destaca que “esse ‘pacto estrutural’ preservará modos de acumulação
distintos entre os setores da economia, mas de nenhum modo antagônicos, como
pensa o modelo cepalino”.
Nessa perspectiva, essa relação intrínseca entre o capital cafeeiro e o capital
industrial (Cardoso de Mello) ou entre a agricultura e o setor industrial (Oliveira)
determinará uma dominação de classe composta pela burguesia industrial e a
oligarquia tradicional agrária, dominação esta que necessitará de elementos
burocráticos e patrimonialistas para a sua materialização/realização. Como a elite
rural e oligárquica é a gênese do capital industrial ou elemento fundamental para o
processo de crescimento urbano-industrial, a expansão das relações capitalistas no
Brasil não pode ser realizada rompendo com a oligarquia tradicional, já que, apesar de
a burguesia industrial ir se autonomizando da oligarquia agrária, os laços genéticos e
estruturais e os privilégios dessa relação (capitalismo sem risco, concentração de
riqueza, utilização privada dos recursos públicos) determinarão as estruturas de
dominação do país.
Na concepção de Faoro (2004: 685 e 686) o que ocorre nesse período é uma
“transformação dentro da ordem”. A estratégia, como lembra o autor, traçada por
Antônio Carlos, governador de Minas Gerais, e aceita por Getúlio Vargas, consistia em
“revolta sim, reformas sim, mas longe do ‘grave risco do perder o domínio sobre as
massas’, suscetíveis de se seduzirem ‘por amantes inesperados e impetuosos’. Nada
de tocar nos alicerces sobre que repousa a estrutura social”.
Oliveira (2003: 63) assinala de forma precisa que “a mudança das classes
proprietárias rurais pelas novas classes burguesas empresário-industriais não
exigirá, no Brasil, uma ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas
por razões estruturais”.
Florestan Fernandes (1981: 241) completa a análise mostrando que o
desenvolvimento capitalista no Brasil se processa a partir de uma dupla articulação:
“1.°) internamente, através da articulação do setor arcaico ao setor moderno (...); 2.°)
clxxvi
externamente, através do complexo econômico agro-exportador às economias
capitalistas centrais.”
Segundo Fernandes, não surgiu no setor empresarial nenhum grupo que
combatesse essa dupla articulação. A opção da burguesia industrial foi se aliar à
oligarquia rural e se subordinar ao capital internacional. Nas palavras do autor:
A dupla articulação impõe a conciliação e a harmonização de
interesses díspares (tanto em termos de acomodação de setores
econômicos internos quanto em termos de acomodação da
economia capitalista dependente às economias centrais); e, pior
que isso, acarreta um estado de conciliação permanente de tais
interesses entre si. Forma-se, assim, um bloqueio que não pode
ser superado e que, do ponto de vista da transformação
capitalista, torna o agente econômico da economia dependente
demasiado impotente para enfrentar as exigências da situação
de dependência. Ele pode, sem dúvida, realizar as revoluções
econômicas que são intrínsecas às várias transformações
capitalistas. O que ele não pode é levar qualquer revolução
econômica ao ponto de ruptura com o próprio padrão de
desenvolvimento capitalista dependente (Fernandes, 1981: 250).
Esse tipo de transição da economia capitalista brasileira produziu uma aliança
entre a burguesia industrial emergente e setores da oligarquia agrária para processar
o projeto de industrialização e urbanização de forma dependente ao capital
internacional.
Nesse quadro, o que está em processo no Brasil é a expansão e
desenvolvimento do capitalismo industrial, a partir de seu nascimento e consolidação
efetivados no período compreendido entre 1888 e 1933 (Cardoso de Mello, 1998: 109).
Do ponto de vista interno, o desenvolvimento do capital cafeeiro produziu as
condições para o surgimento do capital industrial, ao mesmo tempo em que
inviabilizava sua consolidação, devido ao “círculo vicioso” apontado por Oliveira.
Esse bloqueio da industrialização se realizará até a “Crise de 29”, quando se inaugura
uma resposta industrializante e urbana para o enfrentamento do contexto econômico
e político da época. Nas palavras de Cardoso de Mello (1998: 109), “o intenso
desenvolvimento do capital cafeeiro gestou as condições de sua negação, ao
engendrar os pré-requisitos fundamentais para que a economia brasileira pudesse
responder criativamente à ‘Crise de 29’”.
clxxvii
Do ponto de vista político, a tentativa de Washington Luís manter a oligarquia
cafeeira paulista no poder, não cedendo o mandato presidencial para Minas Gerais,
conforme rezava a “política do café-com-leite”, precipitou as articulações entre as
oligarquias agrárias não alinhadas com São Paulo, setores das classes médias,
militares críticos ao poder oligárquico tradicional e a burguesia industrial emergente.
Nesse sentido, a crise interna das oligarquias agrárias propiciou, do ponto de
vista político, uma saída econômica para a Crise de 29 que passava pela
implementação de um projeto de industrialização e urbanização do País, via
protagonismo estatal. Nas palavras de Fiori (1995:127),
É somente a partir de 1930, quando se combinam os efeitos da
crise econômica internacional com uma revolução política
interna que encerra a República Velha (1889-1930) e se abrem as
portas ao regime ditatorial do Estado Novo (vigente entre 1937 e
1945), que o Estado passou a assumir ativamente o papel de
regulador da economia.
O bloco dominante que vai implementar esse projeto tem como base uma
articulação entre setores das oligarquias agrárias, a burguesia industrial emergente,
setores das classes médias e setores militares. No primeiro período da
industrialização (até os anos 1950), a oligarquia agrária será, nessa composição, a
classe hegemônica; num segundo momento (dos anos 1950 até os anos 1980), ela
perderá hegemonia para a burguesia industrial, apesar de continuar compondo a elite
dominante. A incorporação da classe operária será realizada através de uma
“hegemonia seletiva” (Coutinho, 1993) efetivada a partir da “regulação da cidadania”
(Santos, 1987), conforme detalharemos adiante.
Torna-se importante, no momento, destacar que a classe operária, como
sinaliza Oliveira (2003), será usada pela burguesia industrial para a conquista da
hegemonia no interior do pacto de dominação, no entanto, será preservada a
participação das classes proprietárias rurais no poder e nos ganhos da expansão do
sistema. Em outras palavras, as mudanças que se processam a partir de 1930 no País
evidenciam o fortalecimento da burguesia industrial na estrutura de poder (período de
clxxviii
1930 até 1950) e a conquista de sua hegemonia frente aos proprietários rurais
(período de 1950 até 1980). Entretanto, devemos enfatizar que tais mudanças não
excluem a participação das oligarquias agrárias no poder, apenas deslocam o seu
posicionamento na dominação, deixando de ser a classe hegemônica, a partir da
década de 1950. A classe operária, nesse contexto, não participa da estrutura de
poder, sendo incorporada parcial e seletivamente, para garantir a exploração
intensiva da força de trabalho na perspectiva de viabilizar a “acumulação primitiva”56
da economia.
Nas palavras de Oliveira (2003: 65), a industrialização no Brasil ocorre numa
conjuntura adversa, “portanto, um de seus requisitos estruturais é o de manter as
condições de reprodução das atividades agrícolas, não excluindo, portanto,
totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura do poder nem dos ganhos
de expansão do sistema”. Em seguida, o autor conclui que, como contrapartida, “a
legislação trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um
modo de ‘acumulação primitiva’ extremamente adequado para a expansão global”.
Nesse quadro, durante o primeiro período Vargas, a intervenção estatal
caracterizou-se pelo início da estruturação do chamado Estado desenvolvimentista.
Ou seja, diferentemente do que ocorreu nos casos clássicos de transição capitalista,
nos quais a industrialização, e, portanto, a ampliação das relações capitalistas,
precedeu a construção do Estado interventor, no Brasil foi o Estado que, a partir de
1930, impulsionou e estimulou o processo de desenvolvimento urbano-industrial e,
em conseqüência, a ampliação das relações capitalistas, através do processo de
industrialização restringida57.
56
Oliveira (2003: 43) faz duas considerações para tratar da “acumulação primitiva” no caso de economias periféricas, a partir
do conceito marxiano. Em primeiro lugar o autor afirma que, no caso das economias periféricas, o essencial não é a
expropriação da propriedade, mas sim a expropriação do excedente “que se forma pela posse transitória da terra”. Em segundo
lugar, o autor sublinha que a acumulação primitiva nas economias periféricas não ocorre apenas na origem da acumulação,
mas ela se apresenta como mecanismo estrutural dessas economias.
57
Conforme indica Cardoso de Mello o período compreendido entre 1933 e 1955 refere-se a um processo de “industrialização
restringida. “Há industrialização porque a dinâmica da acumulação passa a se assentar na expansão industrial, ou melhor,
porque existe um movimento endógeno de acumulação, em que se reproduzem, conjuntamente, a força de trabalho e parte
clxxix
No contexto da industrialização restringida, conforme salienta Cardoso de
Mello (1998: 114), ao Estado cabe: proteger a economia contra as importações
concorrentes, evitar o fortalecimento da classe trabalhadora e de seu poder de
barganha e realizar investimentos em infra-estrutura. “Quer dizer, um tipo de ação
político-econômica inteiramente solidário a um esquema privado de acumulação que
repousava em bases técnicas ainda estreitas.”
Sendo assim, do ponto de vista da ordem administrativa do Estado brasileiro,
essa alteração de projeto político, que tem como base de sustentação a aliança entre
a oligarquia agrária e a burguesia industrial, não provocará ruptura com a
“bifrontalidade” da administração pública no Brasil. O que ocorrerá será uma
ampliação, desenvolvimento e fortalecimento da estrutura burocrática do Estado,
necessários para promover a implantação (1930-1950) e a aceleração (1950-1980) da
acumulação e da expansão das relações capitalistas no Brasil. Tal fato se dá, porém,
com a manutenção do elemento patrimonialista como componente fundamental para
operar a dominação de classe existente, na medida em que se necessita do apoio das
oligarquias agrárias para impulsionar uma industrialização e urbanização excludente,
evitando o risco de rupturas e de ampliação radical de direitos da classe trabalhadora
e, portanto, da redução de privilégios das classes dominantes. Para garantir essa
industrialização excludente (incorporação seletiva e regulada de setores da classe
trabalhadora), além do apoio das oligarquias, o Estado estruturará uma burocracia
fortemente autoritária, mesmo porque desenvolvida em períodos ditatoriais (19301945 e 1964-1984).
Em outras palavras, nesse quadro, o Estado se fortalece para ser o
protagonista central da expansão capitalista de base industrial, numa perspectiva de
incorporação seletiva e regulada da classe operária, através de uma coalizão da
crescente do capital constante industriais; mas a industrialização se encontra restringida porque as bases técnicas e
financeiras da acumulação são insuficientes para que se implante, num golpe, o núcleo fundamental da indústria de bens de
produção, que permitiria à capacidade produtiva crescer adiante da demanda, autodeterminando o processo de
desenvolvimento industrial” (Cardoso de Mello, 1998: 110).
clxxx
oligarquia agrária com a burguesia industrial. Tal coalizão necessitará, para objetivar
sua dominação, de uma ordem administrativa que mantenha a estrutura genética da
administração pública brasileira (bifrontalidade), variando apenas em tonalidades: a
burocracia passa a se sobrepor, paulatinamente, à dimensão patrimonialista e possuirá
como característica central a negação da política e o autoritarismo (na medida em que
identifica política com clientelismo - vê-se como estrutura racional e superior em
termos administrativos em relação aos elementos patrimonialistas - e se desenvolve a
partir de regimes ditatoriais). Esse traço da burocracia propiciará a criação de
estruturas insuladas (Diniz, 1997 e Nunes, 1997), as quais viabilizarão a formação dos
chamados “anéis burocráticos” (Cardoso, 1975).
Antes, porém, de detalharmos o processo de desenvolvimento da
administração pública nesse período, convém tratarmos de uma questão teórica que
entendemos ser de fundamental importância para o estudo em tela. Trata-se do
aprofundamento da questão da “bifrontalidade” da administração pública elaborada
por Marco Aurélio Nogueira, que tem sido utilizada como ponto de partida para
interpretarmos a ordem administrativa brasileira.
Dessa forma, o primeira questão a apontar, mesmo que sumariamente, referese à necessidade de explicitar que esse caminho a ser trilhado, aberto por Marco
Aurélio Nogueira, afasta-se da formulação de Faoro a respeito da construção estatal e
da ordem administrativa brasileira pós-193058. A concepção marxista de Nogueira não
deixa dúvidas quanto à relação que deve ser buscada entre as classes sociais e a
constituição do Estado, mesmo concebendo a autonomia do político em relação à
economia.
Faoro, a partir da perspectiva weberiana, autonomizará o político e sua
estrutura para materializar a dominação (a ordem administrativa), para além das
possibilidades efetivas de tal processo ocorrer. Nesse sentido, apesar de uma precisa
58
Nas seções anteriores deste trabalho, em diversas passagens, já havíamos apontado as diferenças entre a concepção
presente nesta tese e aquela desenvolvida por Faoro.
clxxxi
análise sobre o comportamento do Estado varguista frente à sociedade (ou melhor,
frente às camadas médias e populares), o autor conclui apresentando o Estado como
um ente acima das classes sociais. Vejamos a análise:
Liberal, sim, mas de teor tutelador, de caráter positivista e não
rousseauniano, com a soberania popular como pressão a ser
atendida pelo governo, guardando este a liberdade de selecionar
as reivindicações. Os problemas sociais deveriam ser
incorporados ao mecanismo estatal, para pacificá-los, domandoos entre extremismos, com a reforma do aparelhamento, não só
constitucional, mas político-social. Mudança para realizar o
progresso nacional, sem a efetiva transferência do poder às
camadas médias e populares, que se deveriam fazer representar
sem os riscos de sua índole vulcânica. Estas correntes ocupam
o cenário, na verdade, antes que assumam consciência de seus
interesses, antecedendo às transformações econômicas que
justifiquem seu poder. Daí, na perspectiva do poder, a necessidade
de um Estado orientador, alheado das competições, paternalista na
essência, controlado por um líder e sedimentado numa burocracia
superior, estamental e sem obediência a imposições de classe
(Faoro, 2004: 693 – negritos nosso).
Essa forma de ver as coisas leva o autor, a despeito de considerar o
entrelaçamento entre a expansão capitalista industrial e estrutura tradicional da
agricultura (Faoro, 2004: 711-717), a interpretar o processo político como conduzido
por poder estatal constituído de uma estrutura burocrática-estamental que arbitra as
tensões entre as classes e não como um poder e estruturas constituídos a partir das
lutas empreendidas entre as classes e frações de classes. Nas palavras do autor:
Trilhando a estrada real, que seus tutelados e adversários deixam
aberta, o ditador segue, aparentemente solitário, ao encontro da
nação. Um sistema estamental, com a reorganização da estrutura
patrimonialista, ocupa o espaço vazio, rapidamente, diante dos olhos
atônitos de camaradas e inimigos. Um poder se alevanta, sobre as
classes, sobre os partidos e facções, sobre o Exército e o povo, com
um líder que poucos vêem (Faoro, 2004: 697).
O poder estatal já se sentia em condições de comandar a economia –
num regresso patrimonialista, insista-se – com a formação de uma
comunidade burocrática, agora mais marcadamente burocrática que
aristocrática, mas de caráter estamental, superior e árbitro das
classes (Faoro, 2004: 717 e 718).
Assim, mais uma vez, Faoro, ao supervalorizar a estrutura central do poder do
Estado, não destaca o enraizamento local da estrutura de poder, identificando essa
centralização
e
burocratização
como
clxxxii
um
mecanismo
de
retomada
do
patrimonialismo e não como uma exigência do novo projeto político (industrialização
e urbanização) conduzido por uma coalizão conservadora das classes dominantes.
Daí decorrem dois problemas. O primeiro refere-se ao fato de o autor não entender a
burocratização processada como um componente de modernização da estrutura
administrativa no sentido de viabilizar a criação das condições para a ampliação das
relações capitalistas no país, mas sim como um momento reacionário de
organização administrativa (“reorganização da estrutura patrimonialista”, “regresso
patrimonialista”). Nesse sentido, a estrutura administrativa não ganha densidade
burocrática, weberianamente falando, para implementar o projeto de ampliação das
relações capitalistas, via industrialização e urbanização.
O segundo problema aparece na análise realizada pelo autor que não
percebe a continuidade da influência e, portanto, da participação no poder das elites
agrárias tradicionais. Segundo Faoro (2004: 706), “entre o povo e o ditador só a
burocracia, sem coronelismo, sem oligarquias, mas num vínculo ardente com as
massas, gerando o populismo autocrático, esteio hábil para evitar o predomínio de
outros grupos”.
Em nosso entendimento, como detalharemos adiante, a ditadura Vargas não
esvazia as oligarquias e o coronelismo. Via burocracia, ela reforça o poder central,
para controlar os poderes oligárquicos e coronelistas, no sentido de enquadrá-los
para o novo projeto político e econômico em desenvolvimento. Dessa forma,
organiza-se uma outra estrutura para viabilizar a participação das oligarquias
tradicionais no poder. Essa nova estrutura, obviamente, não será formal, mas se
expressará na direção que será dada à condução da industrialização: não alteração
da estrutura de poder oligárquica e coronelista.
Por outro lado, a expansão da burocracia se coloca como exigência objetiva
clxxxiii
para operacionalizar o projeto de industrialização. Especialização e estruturação de
regras e normas estáveis são fundamentais para o desenvolvimento capitalista.
Assim, em nosso ponto de vista, não ocorre um regresso ao patrimonialismo,
mas, como sugere Nogueira, uma compatibilização, ou “bifrontalidade” entre o
patrimonialismo e a burocracia.
Explicitadas as diferenças entre a concepção de Faoro e aquela que marca o
caminho
sugerido
por
Nogueira,
para
melhor
compreendermos
a
ordem
administrativa brasileira, mesmo que resumidamente, cabe agora problematizarmos
alguns aspectos referentes à abordagem desenvolvida pelo autor marxista.
Nogueira indica que várias vozes diagnosticaram a precariedade da
administração pública brasileira, seu “caráter patrimonialista e resistência à
introdução de técnicas, procedimentos e estruturas organizacionais de tipo racionallegal, bem como, por extensão, sua ineficácia e sua ineficiência” (Nogueira, 1998:
89)
Em nosso entendimento, a questão central da administração pública no Brasil
não está relacionada à ineficácia e ineficiência e nem à resistência à introdução de
técnicas e procedimentos de tipo racional-legal. É mais adequado falar que a
administração pública brasileira correspondeu ao tipo de dominação e projetos
políticos a que ela era submetida. Da integração nacional do Império, passando pelo
projeto de economia exportadora capitalista, sob hegemonia da oligarquia agrária
cafeeira, e chegando ao projeto de industrialização sob direção de oligarquias, numa
combinação com a burguesia industrial emergente, todos esses processos foram
conduzidos pela administração pública, garantindo a manutenção do pacto de
dominação estabelecido em cada momento. Ou seja, a administração pública
sempre cumpriu suas funções de operacionalizar os projetos de dominação
clxxxiv
presentes em cada período histórico, propiciando a realização do projeto e dos
interesses dominantes em pauta. O que ocorreu foi sempre a exclusão de setores
subalternos
na
participação
das
decisões
sobre
as
propostas
a
serem
implementadas e sobre a distribuição das riquezas produzidas. Porém, como a
incorporação dos setores subalternos não constava dos projetos em tela, a
administração pública não pode ser considerada ineficaz tendo como parâmetro a
participação desses setores na definição e distribuição das riquezas produzidas. Por
outro lado, se a ineficiência aludida significa indicar que os projetos são
desenvolvidos através de um grande custo, visto que a administração é permeada
de corrupção e apropriação privada de recursos, o equívoco se encontra ao não se
perceber que esses instrumentos patrimonialistas (que não distinguem o público do
privado) são fundamentais para garantir o tipo de pacto de dominação estruturado,
que incorpora setores tradicionais da sociedade. Ou seja, os projetos definidos para
a industrialização brasileira nunca abriram mão da participação dos setores
tradicionais, por conseguinte, os custos para sua incorporação não podem ser vistos
como problema de eficiência administrativa. Em suma, ineficiência e ineficácia não
podem ser tratadas abstratamente, como se estivessem relacionadas a um projeto
industrializante clássico de tipo europeu e americano e fundado numa racionalidade
típica instrumental capitalista, ou voltada para a “universalidade de procedimentos”
numa nítida orientação democrática.
Em seguida, Nogueira (1998: 89) afirma que há um descompasso entre
governar e a ação administrativa e que a história da República Federativa é a de
atenuar tais descompassos e atualizar o aparato estatal. Em minha opinião, o que
ocorre ao longo da história da república é a adequação do aparelho administrativo
às configurações das diferentes fases do projeto de expansão capitalista, a partir
clxxxv
sempre de um pacto de dominação que combina a burguesia industrial e a oligarquia
agrária e a exclusão (incorporação seletiva e parcial) das classes subalternas.
Ato contínuo, o autor faz uma ressalva à questão da adequação da ordem
administrativa, ao longo da República, afirmando que simultaneamente ocorre a
reiteração das bases que levaram à precarização da máquina pública, mesmo nos
momentos de tentativa de atualização do aparato administrativo. Da forma tratada, a
reiteração é apresentada quase como se fosse uma questão técnico-administrativa e
não como uma dimensão cuja raiz é a estrutura de dominação que dirige a ordem
administrativa, como nos ensina Weber.
Nogueira (1998: 90), então, corretamente, afirma que esse estado de coisas
se explica, por um lado, pela raiz da formação do Estado nacional brasileiro, que tem
origem na passagem da Colônia para o Império e, posteriormente, para a República,
fortalecendo a lógica do mandonismo local e não os procedimentos racionais. No
entanto, nesse trecho, o autor parece conceber que a perpetuação do mandonismo
é um desvio de nosso desenvolvimento capitalista e não uma particularidade dele,
como afirma no capítulo que trata de nossa revolução burguesa. Nesse sentido, a
incorporação do debate sobre a revolução passiva/modernização conservadora na
transição brasileira para o capitalismo é feita parcialmente, ao não ser articulada
explicitamente com a dimensão administrativa da dominação. Por isso, em nosso
entendimento, a análise operada por Nogueira apresenta uma autonomização
excessiva da estrutura administrativa. Ou seja, diferentemente de Faoro, a
análise de Nogueira, que acaba sugerindo a autonomização excessiva da estrutura
administrativa, não se refere à concepção de Estado acima das classes, está
relacionada ao fato de o autor não articular explicitamente a revolução passiva com
clxxxvi
a ordem administrativa brasileira, a qual está subordinada a uma estrutura de
dominação que combina setores “atrasados” e “modernos” da sociedade.
Por outro lado, Nogueira analisa que a reiteração das bases que levaram à
precarização da máquina administrativa pública e seus descompassos e desajustes,
decorreram do inchaço da estrutura burocrática, na medida em que a administração
pública “esteve sempre marcada pelo desempenho de funções vicárias e
compensatórias, empenhando-se em atender à necessidade de absorver o
excedente de mão-de-obra que brotava do incipiente sistema produtivo do País”
(Nogueira, 1998: 91). Adiante, Nogueira afirma que esse processo de deformação e
agigantamento artificial vinculou o sistema organizacional aos mecanismos de troca
política. Aqui o autor parece ter invertido o sinal, pois, na verdade, a estrutura
tradicional baseada na troca política é que infla artificialmente a máquina pública e
não o contrário.
Para concluir, o autor de As Possibilidades da Política (1998:91) sentencia:
Desde cedo, portanto, o setor público esteve instrumentalizado pelas
oligarquias locais/regionais e pelos grupos econômicos dominantes.
Acabou, então, por ser fortemente condicionado por interesses,
hábitos e estilos do mundo privado, que buscou formatar o espaço
público como uma fonte de privilégios pessoais ou grupais e de
distribuição de cargos, benesses e prebendas.
Nesse trecho, Nogueira, mais uma vez, apresenta uma concepção que
remete à excessiva autonomização da administração, na medida em que analisa a
instrumentalização do poder público pelas oligarquias como uma distorção e não
como essência da expressão da dominação. A administração, para o autor, foi
condicionada por estilos do mundo privado e não constituída por um padrão de
dominação tradicional. Em nosso entendimento, não há uma invasão no espaço
público de padrões privados do mandonismo local, mas sim uma estruturação da
administração que comporta o padrão de dominação tradicional que se reflete nas
clxxxvii
dimensões patrimonialistas existentes.
Sendo assim, o que “dificultou a convivência da burocracia estatal com
padrões superiores de racionalidade, eficiência e organicidade” não foi a “intimidade
entre o mundo público e mundo privado” (Nogueira, 1998:91), mas o fato de a ordem
administrativa brasileira ter se constituído a partir de padrões tradicionais e racionais
de dominação, em decorrência do pacto de dominação formado a partir da
peculiaridade de nossa revolução burguesa.
A concepção não radicalmente dialética de Nogueira aparece também quando
o autor afirma, baseando-se em Mário Wagner Vieira da Cunha, que a burocracia
brasileira, apesar de estimulada pela Revolução de 30, foi vencida na sua disciplina
pela pressão direta dos interesses econômicos dominantes (Nogueira, 1998: 92). A
pressão direta dos interesses dominantes está presente em qualquer ordem
administrativa, o que particulariza o caso brasileiro é o fato de nossa ordem
administrativa incorporar estruturalmente uma dimensão patrimonialista que abre
espaços diretos para utilização privada de bens públicos. O modelo administrativo
cunhado pela revolução de 30 não se constitui como um modelo de tipo racionallegal que encontra obstáculos para se implementar. O modelo proposto é de
manutenção da imbricação do patrimonialismo com burocracia a fim de manter o
pacto de dominação entre os interesses oligárquicos e os da burguesia industrial
emergente, porém sob a ampliação dos mecanismos de tipo racional-legal, por conta
da necessidade de implementação do projeto de industrialização e urbanização. Em
outras palavras, a Revolução de 30 não apresenta uma proposta de suprimir os
traços tradicionais da administração pública para constituir um modelo puro
burocrático weberiano que é impedido de se realizar devido à história patrimonialista
de nossa administração. Esse parece ser o equívoco de interpretação de muitos
clxxxviii
autores e, dentre eles, o de Marco Aurélio Nogueira.
O autor em análise parece indicar que os “surtos reformadores” da
administração pública tinham o objetivo de implementar uma burocracia racionallegal e não adequar a administração a uma determinada fase da expansão
capitalista brasileira, sob um pacto de dominação que articulava tradição e
racionalismo como componentes das elites econômicas - cuja tradição está mais
presente em setores da oligarquia agrária. Apesar do processo de aburguesamento
ter ocorrido, o racionalismo intrumental capitalista se expressa, predominantemente,
na burguesia industrial que, no entanto, incorpora comportamento tradicional
(Fernandes, 1981).
A despeito de, acertadamente, Nogueira afirmar que esses diagnósticos têm
como referência a forma adquirida pela revolução capitalista no Brasil, o autor não
articula dialeticamente essa situação com o desenvolvimento da administração
pública. Ou melhor, não incorpora, de forma radical, para a administração pública a
concepção de modernização conservadora, entendendo as relações entre
patrimonialismo e burocracia no sentido que os críticos da razão dualista fizeram
para analisar a imbricação entre o “atraso” e o “moderno” no desenvolvimento
capitalista brasileiro. Ou seja, entender que a industrialização burguesa forma uma
unidade contraditória com setores agrários e urbanos não capitalistas e que,
portanto, esse traço não se constitui como óbice ao desenvolvimento de nosso
capitalismo, mas sim estrutura nosso particular desenvolvimento urbano-industrial.
Conforme analisa Oliveira (2003: 32), a dualidade enfocada entre o “setor atrasado”
e o “setor moderno” não passa de uma oposição formal, uma vez que “de fato, o
processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários,
clxxxix
em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’, se se
quer manter a terminologia”.
A idéia de “bifrontalidade” expressa a não radicalidade do pensamento de
Nogueira, visto que, se, por um lado, apresenta a interpenetração funcional e a
contradição entre os termos patrimonialismo e burocracia, por outro lado, parece
indicar uma dualidade presente na administração pública. Nas palavras do autor:
Cristalizada e reproduzida ao longo do tempo, tal bifrontalidade
expressou-se na situação desigual e desequilibrada da máquina
administrativa, na sua permeabilidade ao clientelismo, na sua
congênita resistência à mudança, na sua incapacidade de
implementar de modo conclusivo os projetos reformadores que
desenhava para si própria (negrito nosso).
A questão, nos termos de Nogueira, parece se configurar da seguinte forma: a
revolução burguesa brasileira que se processa por meio de uma modernização
conservadora, de uma revolução passiva, ao incorporar as classes não capitalistas
no processo de industrialização e não possuir uma burguesia industrial forte,
depende do Estado para operar a transição. Assim sendo, a ordem administrativa
burocrática construída para implementar a expansão capitalista em sua dimensão
industrial esbarra com a estrutura patrimonialista histórica e sofre com as
interferências políticas da incorporação das classes tradicionais, promovendo a
bifrontalidade da administração pública.
Essa forma de ver as coisas expressa um certo dualismo entre a dimensão
burocrática e a patrimonialista da estrutura administrativa brasileira. A coalizão de
classes que processa a transição capitalista interfere na ordem administrativa, que
precisa ser burocrática, devido ao projeto industrializante em marcha, e obstaculiza o
desenvolvimento da burocracia, sobretudo ao se levar em consideração o passado
patrimonialista da administração pública brasileira. Ou seja, o patrimonialismo é uma
dimensão que permanece presente na administração pública devido ao passado e à
cxc
interferência de fora para dentro realizada pelas elites dominantes tradicionais, na
medida em que nossa modernização possui o caráter conservador.
Dessa maneira, a combinação patrimonialismo e burocracia não se apresenta
como um imbricação estrutural para realizar a dominação estabelecida por um pacto
entre setores tradicionais (com pinceladas modernas) e modernos (com pinceladas
tradicionais) que conduzirão o projeto de expansão capitalista de 1930 até a ditadura
militar. Por isso, o autor se refere a obstáculos que nossa revolução burguesa
apresenta para o desenvolvimento racional-legal da administração pública.
Entretanto, nossa revolução burguesa não apresenta obstáculos para o
desenvolvimento racional-legal da administração pública. Antes, nossa revolução
burguesa determina o imbricação estrutural entre burocracia e patrimonialismo na
configuração da administração pública. Nesse sentido, parafraseando Oliveira (2003:
31), poderíamos dizer que a lógica dualista de Nogueira procura articular rigor
científico da análise com consciência moral, visando apresentar proposições
reformistas para a questão da administração pública.
Essa forma de precisar a questão não se trata apenas de um preciosismo
semântico ou acadêmico, ela possui conseqüências prático-políticas fundamentais
para o aprimoramento da administração pública no sentido do aprofundamento de
sua racionalidade e legalidade. Se a análise sobre a bifrontalidade da ordem
administrativa brasileira está baseada na existência, por um lado, de um passado de
estrutura patrimonialista e, por outro lado, da interferência “de fora para dentro” na
administração, devido à pressão política das elites dominantes tradicionais, a lógica
indica que a superação da situação passa pela mudança da cultura patrimonialista
herdada de nossa história administrativa e por evitar a interferência das elites
tradicionais na condução da administração pública.
cxci
No entanto, como consideramos que ocorre uma imbricação dialética entre
patrimonialismo e burocracia, derivada de nossa revolução burguesa passiva e
negociada, não existe apenas uma cultura patrimonialista incrustrada na
administração, o que ocorre de fato é um pacto de dominação que requer a
manutenção dos elementos tradicionais da administração. Portanto, não existe
apenas um padrão cultural patrimonialista, existe uma estrutura de dominação que
exige a manutenção desse padrão como lógica administrativa. Conseqüentemente,
a questão central não está na pressão de fora para dentro na administração, mas
sim na organização de uma administração que incorpora elementos tipicamente
tradicionais para realizar a dominação.
Sendo assim, em termos ideais, a consolidação de uma administração
racional-legal no Brasil implica, por um lado, a ruptura do pacto de dominação
que combina setores tradicionais com a burguesia industrial e, por outro lado,
a incorporação da classe trabalhadora. Isso não significa dizer que medidas
técnicas e racionais não possam e devam ser implementadas na administração
pública, mas sim que existe um limite estrutural para a efetivação de uma
administração racional-legal sob a égide de um pacto de dominação que
combina tradição e racionalismo capitalista.
As seguintes passagens ratificam minha análise sobre o texto de Nogueira:
Naqueles anos [referência aos anos 1930], começou a ser visualizado
o desafio de criar uma administração pública moderna, burocrática,
sintonizada com os novos tempos que se previa para o País (1998:
94).
O impulso reformador do Dasp, porém, não chegou a se completar:
dele não nasceu a administração pública moderna, ágil, eficiente e
eficaz (...) (1998: 95).
... o reformismo daspiano não sanou as contradições básicas da vida
administrativa estatal, nem chegou a inverter as tendências que
modelavam o amadurecimento da administração pública (1998: 9596).
cxcii
Em nosso entendimento, a interpretação de que nesse período está presente
um projeto de modernização burocrática da administração não passa da aparência
do processo, pois a essência é o desenvolvimento de uma ordem administrativa
baseada no imbricação do patrimonialismo com a burocracia.
Continuando com a apresentação das análises de Nogueira, temos:
...o esforço da administração para consolidar os inúmeros códigos
legais que disciplinassem a atividade educacional, agrícola, sanitária,
e ganhar maior racionalidade e maior agilidade (...) tendeu a se fazer
à margem da administração formal, substituída por órgão da
denominada administração indireta ou autárquica, criados (...) para
facilitar a utilização política do aparato administrativo (...).
... a experiência reformadora ativada noas anos 30 não pode
preservar-se das injunções de natureza política e cultural que
acompanharam a explicitação daquela etapa do desenvolvimento
capitalista brasileiro. Impregnou-se das tendências e características
do ambiente em que havia nascido, sendo paulatinamente devorada
pelo autoritarismo, pelos mecanismos de controle e regulação da
cidadania, pelo clientelismo e pela incorporação, às estruturas
estatais (...), dos interesses sociais que se desejava constituir
como base privilegiada de apoio político ao novo regime. O Dasp
perdeu, por exemplo, a batalha pela introdução e universalização
do sistema do mérito no serviço público, atropelado pelas
nomeações de funcionários, "extranumerários", pelas indicações
políticas, pelos concursos manipulados (Nogueira, 1998: 96-97 –
negrito nosso).
Essa última citação expressa bem a concepção de que o processo de
modernização da ordem administrativa sofreu "injunções de natureza política e
cultural" e, por isso, não se efetivou. Ora, a ordem administrativa é produto da
estrutura de dominação, portanto derivada das relações políticas. Nesse sentido, o
autor, ao relacionar a não modernização administrativa às questões de injunções
políticas, não percebe que a ordem administrativa estruturada a partir de 1930 não
poderia possuir caráter racional burocrático típico e que os elementos clientelistas e
de incorporação de determinados interesses sociais, necessariamente, deveriam fazer
parte da organização administrativa brasileira. Dessa forma, não foi uma injunção "de
fora para dentro" na administração pública que preservou sua natureza
patrimonialista. A dimensão patrimonialista se faz necessária devido ao pacto de
dominação existente, portanto, ela é intrínseca à ordem administrativa, tanto quanto a
dimensão burocrática, que está se fortalecendo devido ao projeto de industrialização
cxciii
que precisa ser implementado. Sendo assim, a lógica racional-legal não foi
"devorada" pelo traços tradicionais da administração, não houve "batalha" perdida,
mas sim a estruturação de uma ordem administrativa que combina burocracia e
patrimonialismo, pois está relacionada a um pacto de dominação que articula
interesses das oligarquias agrárias com interesses da burguesia industrial emergente.
Apesar do ponto de partida do autor, para analisar o desenvolvimento da
ordem administrativa brasileira, ser original, já que se vincula à tradição marxista e
articula o desenvolvimento da administração pública à revolução passiva, o
desdobramento de sua análise absorve concepções “culturalistas” e/ou
desvinculadas do processo de nossa revolução burguesa. Esse desvio da análise de
Nogueira está presente na forma corrente como o tema vem sendo tratado por
diferentes intérpretes do desenvolvimento da administração pública. Vejamos,
sumariamente, alguns exemplos.
Bresser Pereira (1996: 271-272) parte da concepção de que a “administração
pública burocrática foi adotada para substituir a administração patrimonialista”,
embora o patrimonialismo mantivesse sua força no quadro político brasileiro. Para o
autor, o cenário atual de avanço democrático apresenta um quadro cultural e político
que condena tanto o patrimonialismo quanto o burocratismo, abrindo possibilidades
para um novo modelo de gestão: a administração pública gerencial. Dessa maneira, o
desenvolvimento da administração pública é analisado de forma evolucionista, pois o
processo de implantação da ordem burocrática é visto como aprimoramento e
superação da ordem patrimonialista, assim como o gerencialismo se coloca num
patamar acima do modelo burocrático, partindo de um diagnóstico, “no mínimo
discutível por não corresponder à realidade brasileira” - conforme ressalta Lima
Júnior (1998: 18) - de que o quadro atual condena o patrimonialismo e a burocracia.
Luciano Martins (1997) relaciona, explicitamente, a cultura política brasileira
(patrimonialismo, clientelismo, etc) aos processos que obstacularizaram a eficiência e
eficácia da administração pública. Segundo o autor, “a tentativa feita na década de
cxciv
1930 e nos meados da década de 1940 para modernizar a administração e formar em
todos os níveis do aparelho do estatal algo parecido com uma burocracia weberiana
foi parcialmente distorcida e, mais tarde, abandonada pela cultura política clientelista
profundamente enraizada” (Martins, 1997: 19). Portanto, na visão do autor, a partir de
1930 se implantou um projeto de organização burocrática weberiana que não se
efetivou devido à cultura patrimonialista existente no País.
A análise de Pinho (1998), bastante inspirada em Martins (1997) e Nogueira
(1998), apesar de apresentar pistas corretas ao relacionar ordem econômica, ordem
política e ordem administrativa59, mantém um viés culturalista, ao afirmar que, a partir
do Dasp, “as mesmas mãos que queriam ser weberianas não conseguiam, ou não
podiam resistir ao poder histórico do patrimonialismo” (Pinho, 1998: 3). Em outra
passagem o autor conclui que na atual conjuntura é possível a administração pública
brasileira incorporar uma dimensão gerencialista, porém adverte que “os riscos são
dessa nova camada também se contaminar pelo vírus patrimonialista” (Pinho,1998: 9).
Na concepção do autor o patrimonialismo é entendido como um óbice, presente na
cultura política brasileira, ao desenvolvimento de modelos de gestão mais racionais,
eficientes e eficazes. Assim sendo, o patrimonialismo se expressa como um traço
cultural que se mantém no País interferindo de forma negativa no desenvolvimento da
administração pública.
Ribeiro (2002) caminha na linha interpretativa de que após a revolução de 30 o
projeto de administração pública que se propõe é um projeto voltado para viabilizar a
industrialização, através da instauração de uma ordem burocrática, “superando-se a
forma patrimonialista de administrar a coisa pública” (Ribeiro, 202: 2). Como se pode
observar, a análise desenvolvida pela autora segue a perspectiva de que, a apartir de
1930, o objetivo da estruturação da ordem administrativa é implantar a lógica racionallegal, eliminando os traços patrimonialistas.
59
Conforme destaca o autor, ao tratar da persistência do padrão patrimonialista na administração pública, “Quem gere a ordem
econômica é fundamentalmente a mesma ordem política. Assim, a burocracia pode ser weberianizada até um ponto que não
atrapalhe os intereses patrimonialistas fortemente enraizados e instalados, assim também o capitalismo no Brasil não poderia
cxcv
Lima Júnior (1998), apesar de concluir que poucas foram as tentativas reais de
organizar uma ordem efetivamente burocrática no País e que o patrimonialismo e o
clientelismo “têm sido os traços estruturais de nossa administração pública” (Lima
Júnior, 1998: 18), não explica o porquê desses traços estruturais, dando margem a
interpretações de cunho exógeno. Ou seja, as influências políticas tradicionais
inviabilizam o desenvolvimento da racionalidade burocrática da administração pública
brasileira. Segundo o autor, no período de 1930-1945 “não foram bem-sucedidas as
tentativas de se profissionalizar o servidor público e torná-lo imune às relações
espúrias com os políticos” (1998: 9), adiante, continua o analista, “a burocracia
sempre foi permeável ao processo político como um todo, ao clientelismo,
desempenhando funções muito específicas, porém quase nunca em nome do
interesse público” (1998: 11).
Torres (2004) analisa com precisão a necessidade de uma ordem administrativa
racional-legal para o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, o autor, ao vincular
essa necessidade à questão meramente técnica, entende que a superação ou a
relativização da ordem administrativa patrimonialista se dará pela adequação das
demandas tecnológicas a uma oferta de administração burocrática60. Nesses termos,
o autor não percebe a particularidade do capitalismo brasileiro, que se desenvolve a
partir de condições pré-capitalistas, não estabelecendo a conexão entre a questão da
dominação e a ordem administrativa, o que determina a exigência da manutenção de
padrões tradicionais de administração (patrimonialismo). Além disso, o autor incorre
no equívoco de atribuir a injunções políticas os problemas de implantação do modelo
burocrático no Brasil. Nas palavras de Torres (2004: 150), “o processo de implantação
de um modelo weberiano no Brasil é marcado por características e injunções políticas
ainda permeadas por um viés patrimonialista muito intenso”.
ser também suficientemente ‘weberianizado’” (Pinho, 1998: 8)
60
”Um processo histórico de expansão quantitativa e qualitativa da administração pública e privada, exigida pelo
desenvolvimento do capitalismo, irá relativizar a total supremacia da administração patrimonial no Brasil , que se mostra em
descompasso com os novos avanços tecnológicos e institucionais que o capitalismo promove e potencializa” (Torres, 2004:
146).
cxcvi
Edson Nunes (1997), de forma precisa, aborda a questão a partir dos seguintes
aspectos: a) critica a visão dualista sobre o Brasil; b) parte de uma perspectiva que
combina “preocupação com a economia e um foco sólido na interação entre várias
dimensões institucionais, dentro da esfera política de um caso nacional” (1997: 16); c)
tem como objetivo “demonstrar como emergiram novos tipos de organizações
políticas e sociais, como se tornaram institucionalizadas e que impacto causaram em
grupos, resolução de conflitos, padrões de intermediação de interesses e
governabilidade” (1997: 17); d) evita o dualismo, ao trabalhar com o que ele denomina
de quatro “gramáticas” que estruturam a relação entre Estado e sociedade no Brasil
(clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de
procedimentos); e) conclui que não houve uma “canibalização da ordem tradicional”,
mas sim uma combinação sincrética da “gramáticas” na institucionalização das
relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade.
No entanto, apesar dessa abordagem – que entendemos ser correta -,
interpreta esse processo como sendo conseqüência da operacionalização de
reformadores de mentalidade dualista, visando fugir dos obstáculos tradicionais. Ou
seja, segundo o autor, o sincretismo das “gramáticas” se institucionalizou devido a
uma condução dualista das reformas necessárias para modernizar o país. Em outras
palavras, para impedir que o atraso interferisse na modernização, foram criadas
estruturas de relação entre Estado e sociedade para proteger as ações modernizantes
daquelas vinculadas à ordem tradicional, gerando, assim, o sincretismo, uma vez que
as estruturas arcaicas se mantiveram e se combinaram com aquelas que foram
criadas para viabilizar uma orientação modernizante. Dessa forma, a interpretação do
autor não articula o desenvolvimento do capitalismo brasileiro a um pacto de
dominação que combina “atraso” e “moderno” e que, portanto, implica uma ordem
administrativa “sincrética” entre elementos patrimonialistas e burocráticos.
Diversas passagens do livro de Numes (1997) ratificam a interpretação
desenvolvida. Vejamos:
cxcvii
O uso extensivo de agências estatais insuladas foi uma resposta
ao dilema criado pelo imperativo da liderança estatal no
desenvolvimento econômico, associado à incapacidade de
reformar o aparelho de Estado tradicional, para que ele pudesse
desempenhar a função desenvolvimentista. Dadas as
circunstâncias concretas do período pós-45, o clientelismo
gerou um espaço para o insulamento burocrático, solução que as
modernas forças capitalistas encontraram para fugir à dominação
política do clientelismo (1997: 98 – negritos nosso).
O movimento em prol da modernização do país ganhou um
grande alento a partir da Revolução de 30. A despeito das
freqüentes dúvidas sobre o processo (...) e sobre os agentes da
modernização; há um razoável consenso de que a oligarquia rural e
a ordem particularista por ela mantida impediam a modernização
(1997: 103– negritos nosso)
Os criadores das burocracias insuladas, igualmente
escravizados pela percepção da dualidade, trabalharam para criar
no Brasil uma sociedade moderna que pudesse fugir precisamente
dos constrangimentos criados pela ordem tradicional (1997: 120–
negritos nosso)
As elites modernizantes freqüentemente encaravam o
Congresso, os políticos e os partidos como obstáculos ao
progresso. (...) O objetivo de superar a fragmentação da política
tradicional justificou a criação de instituições corporativas nos
anos 30. As tentativas de escapar à natureza clientelista do
Congresso e dos partidos políticos levou à institucionalização das
burocracias insuladas na década de 50. O objetivo de escapar à
natureza esquerdista, populista, clientelista e corrupta dos partidos
políticos conduziu ao aprofundamento do insulamento
burocrático e ao banimento e à cassação de direitos civis dos
políticos profissionais depois de 1964 (1997: 120– negritos
nosso).
É mister frisar que, longe de se estar criticando as produções apresentadas em
seu conjunto – ao longo desta tese, vários aspectos das análises dos autores em
pauta são incorporadas para compreender o desenvolvimento e as determinações da
administração pública brasileira -, o objetivo aqui é apenas ressaltar a diferença de
nossa concepção, em relação ao processo de desenvolvimento da burocracia no
Brasil, da maioria das interpretações vigentes que tendem a analisar a implantação da
ordem racional-legal no Brasil, a partir de 1930, como uma forma de superar os traços
patrimonialistas da administração, identificando o fracasso como sendo produto das
interferências políticas e da cultura tradicional remanescente no país. Entretanto,
nossa análise aponta para a perspectiva de que a partir de 1930 ocorre o
desenvolvimento e o fortalecimento da dimensão burocrática da ordem administrativa
cxcviii
brasileira, não porque se pretende superar o patrimonialismo, mas porque são
necessários padrões racionais para viabilizar a expansão capitalista no Brasil, via
projeto de industrialização e urbanização. Assim, não se implementa um projeto de
superação da ordem patrimonialista, já que a particularidade periférica do capitalismo
brasileiro se estrutura a partir do entrelaçamento de interesses agrários tradicionais e
pré-capitalistas com interesses da burguesia industrial emergente, exigindo-se,
portanto, a manutenção da ordem administrativa tradicional, de cariz patrimonialista.
Nessa perspectiva, a observação de Fernandes (1981: 262) é primorosa para
compreendermos a relação estabelecida no Brasil entre a “oligarquia agrária
tradicional” e a “burguesia moderna”:
...o estilo de dominação da burguesia reflete muito mais a
situação comum das classes possuidoras e privilegiadas, que a
presumível ânsia de democratização, de modernização ou de
nacionalismo econômico de algum setor burguês mais
avançado. Por isso, ele antes reproduz o ‘espírito mandonista
oligárquico’ que outras dimensões potenciais da mentalidade
burguesa. As coisas tornariam outro rumo se, de fato, aqui e
alhures os setores urbano-comerciais e urbano-industriais
fossem levados a tomar uma posição antioligárquica irredutível,
o que exigiria que a dupla articulação se diluísse
automaticamente através do próprio desenvolvimento
capitalista.”
Essa forma de compreender a relação entre a “oligarquia agrária tradicional” e
a “burguesia moderna” e sua implicação na estruturação da ordem administrativa
brasileira parece ser o divisor de águas entre as interpretações correntes do
desenvolvimento da administração pública brasileira e aquela que estou propondo
nesta tese.
Assim sendo, tendo como referência o entendimento de que ocorre no Brasil
uma imbricação da dimensão burocrática com a dimensão patrimonialista na
estruturação da administração pública, veremos, a partir deste momento, os
elementos que constituíram historicamente tal estruturação, ao longo do período
compreendido entre os anos 30 e o início dos anos 80 do século passado.
O primeiro aspecto a desatacar refere-se ao entendimento que no período de
1930 até o final da ditadura militar, o que ocorre no Brasil, em termos de desenvolvimento
cxcix
da ordem administrativa, é a sua organização para operacionalizar a expansão de nosso
capitalismo periférico, dependente e associado, do início da industrialização até a fase de
consolidação monopólica, conduzido, desde sua origem, pelo pacto de dominação
estruturado pela articulação entre interesses agrários tradicionais e a burguesia industrial,
incorporando os setores populares de forma “seletiva” e “regulada”.
Portanto, a linha de análise proposta entende que as mudanças processadas na
administração pública respondem ao movimento global do capitalismo brasileiro, devendo
ser entendidas sob esse prisma e não como um processo de racionalização da
administração. Assim sendo, procuramos fugir das leituras endógenas e evolucionistas da
administração pública - que interpretam a história da ordem administrativa brasileira como
se fosse a história das ações voltadas para a sua racionalização e/ou o processo que
articula patrimonialismo, burocracia e gerencialismo, enquanto diferentes modelos de gestão
– daquelas que interpretam a administração pública brasileira como uma estrutura que não
se alterou substantivamente ao longo do desenvolvimento da sociedade brasileira,
mantendo-se permanente ou predominantemente patrimonialista, independentemente das
mudanças operadas na hegemonia do pacto de dominação e de sua ordem administrativa
necessárias para impulsionar a expansão capitalista.
Do ponto de vista da ordem administrativa, a criação do Departamento
Administrativo do Serviço Público (Dasp), em 1938, como órgão responsável para
organizar e desenvolver a administração numa perspectiva racional-legal, apresentase como marco fundamental do fortalecimento da estrutura burocrática brasileira,
com contorno nitidamente weberiano. Além disso, como lembra Torres (2004: 147), “é
iniciado um amplo processo de criação de estatutos e normas para as áreas mais
fundamentais da administração pública, especialmente quanto à gestão de pessoas
(1936), compras governamentais (1931) e execução financeira (legislação de 1940)”.
Nunes qualifica essa dimensão da intervenção do Dasp como a tentativa de
institucionalizar o “universalismo de procedimentos” na administração pública
brasileira. Edson Nunes (1997) utiliza o conceito de “universalismo de
cc
procedimentos” para definir o processo de regulação do espaço público onde as
normas formalmente elaboradas são utilizadas por todos os membros da comunidade
política, ou aplicadas a eles, de forma impessoal, para viabilizar a representação
política, a proteção contra os abusos de poder do Estado, a organização das
demandas sociais, dentre outras ações. O universalismo de procedimentos constituise como um dos componentes essenciais da democracia. Nas palavras do autor, “em
geral o universalismo de procedimentos é associado à noção de cidadania plena e
igualdade perante a lei, exemplificada pelos países de avançada economia de
mercado, regidos por um governo representativo” (Nunes, 1997: 35). Dessa forma e de
acordo com o ponto de vista teórico desenvolvido neste trabalho, podemos entender
o “universalismo de procedimentos” como um produto da dimensão racional da
burocracia que pode ser utilizada para fins de aprofundamento e universalização de
direitos. Portanto, o “universalismo de procedimentos” não se estrutura como um
mecanismo distinto da burocracia, ele se manifesta a partir da existência de determinados
aspectos presentes na expressão material da racionalidade burocrática que pode ser
potencializada para uma administração pública democrática61.
Como visto anteriormente, a ampliação da dimensão burocrática da ordem
administrativa brasileira está diretamente relacionada à necessidade de
operacionalizar o projeto de industrialização e urbanização, que implica a ampliação
do aparelho de Estado62, na medida em que este se configura como protagonista
central do processo em voga. Nas palavras de Oliveira (2003: 42), “o crescimento das
funções do Estado implica necessariamente o crescimento da máquina estatal,
portanto da burocracia e da tecnocracia”.
61
Ver no Capítulo 1, as seções sobre Expressão material da racionalidade burocrática e Burocracia e administração
pública democrática.
62
A título de exemplo podemos verificar a ampliação dos órgãos públicos no período. Em 1861, o País contava com sete
ministérios (Império, Negócios Estrangeiros, Justiça, Fazenda, Guerra, Marinha e Agricultura, Comércio e Obras Públicas).
Durante a República Velha, a situação não se alterou, em 1906, tínhamos, também, sete ministérios (Fazenda, Justiça e
Negócios Interiores, Viação e Obras Públicas, Relações Exteriores, Guerra, Marinha e Agricultura, Comércio e Indústria). A
partir de 1930, além da criação de três ministérios (Aeronáutica, Educação e Saúde e Trabalho, Indústria e Comércio),
cresceram consideravelmente o número de agências estatais (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de
econoia mista) (Ramos, 1983: 344-345). De acordo com Lima Júnior (1998: 8), “até 1939, haviam sido criadas 35 agências
estatais; entre 1940 e 1945 surgiram 21 agências”.
cci
Fiori (1995: 128) ressalta que a reforma institucional implementada “a partir da
Revolução de 30 e, sobretudo, a partir do Estado Novo, em 1937, permitiu a
constituição de uma burocracia especializada e meritocrática, a qual capacitou o
Estado a controlar e administrar funções macroeconômicas e centralizar e normatizar
as principais áreas da atividade produtiva nacional”. No entanto, como se refere a um
projeto conduzido por um pacto de dominação que incorpora a elite tradicional
agrária e exclui setores significativos das classes subalternas, a ampliação da
dimensão burocrática não significará a eliminação de estruturas vinculadas à ordem
tradicional patrimonialista. Conforme sinaliza o próprio autor (1995: 109),
...trata-se de um pacto conservador no qual o seu braço forte, o
capital agrário-mercantil e bancário, nunca viu no Estado o
condotieri de um projeto de afirmação nacional, econômica ou
militar. Sempre optou pela associação subordinada com o capital
internacional, produtivo ou financeiro, como única forma
possível de financiar uma industrialização tardia e periférica que
jamais tornou-se um projeto verdadeiramente nacional, ao estilo
prussiano ou japonês.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento da administração pública, a partir de
1930, não se configurará como um processo de racionalização ampla da ordem
administrativa, para implementar o projeto de industrialização e urbanização, mas sim
num processo que, ao ampliar a dimensão burocrática, combinará a lógica racionallegal com os traços patrimonialistas da lógica tradicional. Assim, a autonomia da
burocracia pública será limitada “pelo diâmetro desse compromisso conservador
entre as várias facções de nossa burguesia, flexível à sua ampliação e absolutamente
intolerante às arbitragens penalizadoras” (Fiori, 1995: 110), e, nós
complementaríamos, pela sua expansão de forma imbricada com os elementos
patrimonialistas.
Simultaneamente, considerando que a partir de 1937 se instaura a ditadura
varguista, a expansão burocrática será realizada sob um quadro de ausência
democrática, produzindo um efeito de distanciamento da burocracia da esfera política,
reforçando, dessa feita, sua dimensão autocrática. Por outro lado, o governo Vargas
utilizará a expansão da burocracia, via Dasp, como um dos elementos para viabilizar
ccii
sua sustentação política, pois garantirá o controle da administração pública em suas
mãos (Abrúcio, 2002; Torres, 2004 e Lima Júnior, 1998). Ou seja, a expansão da
burocracia pública, via Dasp e seus braços nos estados (os chamados Daspinhos),
combinada com a nomeação dos interventores dos estados, contribuiu para o
fortalecimento do poder central contra os poderes locais, numa perspectiva,
nitidamente centralista. As interventorias serão, do ponto de vista político,
“verdadeiras correias de transmissão do Governo federal para os estados (...)
[formando] um sistema e não peças isoladas entre si” (Abrúcio, 2002: 45). Os
“Daspinhos”, por outro lado, “faziam o papel de extensão administrativa do Poder
Central, pois eram subordinados ao Dasp e ao Ministério da Justiça” (Abrúcio, 2002:
46)63.
Conforme observa Nunes (1997: 53-54), essa utilização do Dasp para efeito da
operacionalização da ditadura Vargas implementou o “insulamento burocrático”64 na
administração pública brasileira.
A implementação do “insulamento burocrático” efetivou uma ação paradoxal
com o “universalismo de procedimentos” também operado pelo órgão. Ou seja, a
estrutura burocrática organizada a partir de 1930 será constituída por uma dimensão
“insulada” e outra “democrática”, sob predomínio da primeira. Além disso, ressalta
Nunes (1997: 53), a Lei dos Estados e Municípios (1939) pôs fim à autonomia local, na
medida em que “a arrecadação (...) foi praticamente toda transferida para o governo
federal (...) [reduzindo] drasticamente os recursos para o clientelismo, antes à
disposição das elites regionais”.
Portanto, o desenvolvimento da dimensão burocrática da ordem administrativa
brasileira, além de funcional para a tarefa de expansão capitalista, será utilizado,
63
Faoro (2004: 686-687) também destacará a importância da ampliação burocrática e o estabelecimento das interventorias
para o fortalecimento do poder central.
64
Conforme vimos no capítulo anterior, “...o insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado
contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. (...) O insulamento burocrático significa a
redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel (...) ao contrário da
retórica de seus patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma uma processo técnico e apolítico...”
(Nunes, 1997: 34).
cciii
também, para o processo de centralização do poder, num movimento de ruptura com
o excesso de descentralização presente na República Velha, combinando
“universalismo de procedimentos” com “insulamento burocrático”.
Nesses termos, a burocracia se expande no Brasil a partir de três determinações
fundamentais: a) criar condições institucionais para implementar o projeto de expansão
capitalista, estruturando “universalismo de procedimentos”; b) manter relações com o
esquema de privilégios patrimonialistas já existente e que será ampliado e centralizado; c)
viabilizar a sustentação do regime ditatorial, via fortalecimento do poder central, através de
estratégias de “insulamento burocrático”. Esse processo constitui a modernização
conservadora na administração pública. Dessa forma, a administração pública
brasileira terá um caráter racional-legal e de especialização nas questões relativas à
industrialização e centralização do poder; buscará formas de articular a dimensão
burocrática com a patrimonialista tradicional que permanecerá em certas áreas da
gestão pública e, transversalmente, incorporará uma cultura autoritária e insulada,
devido a sua utilização pelo regime ditatorial como instrumento de sustentação
política.
Assim se estabelecem dimensões diversas na estruturação do quadro
administrativo brasileiro. Por um lado, estrutura-se a distinção entre “áreas nobres”
(Fazenda, Forças Armadas, Itamaraty e Banco do Brasil, Banco Central...) e “áreas
subalternas” (principalmente as vinculadas à área social), onde as condições de
trabalho, a estrutura burocrática profissional e os salários se distinguem de acordo
com o status da área. Por outro lado, estabelece-se uma distinção entre “altos
escalões da burocracia”, organizados com base no mérito, especialização e
impessoalidade e os “escalões inferiores”, organizados por uma frágil burocratização
combinada com a lógica tradicional-patrimonialista efetivada através do clientelismo
(Martins, 1997).
É por isso que serviços diplomáticos estrangeiros e instituições
internacionais, que somente lidam com esses altos escalões,
percebem a burocracia brasileira como competente e eficiente; a
cciv
população, que precisa tratar no dia-a-dia como outro lado da
moeda, tem uma percepção completamente diferente (Martins,
1997: 18)
O Estado interventor varguista, com o firme propósito de consolidar a ordem
capitalista no Brasil, também se preocupará com a questão social. Dessa forma,
"progressivamente, o Estado brasileiro passa a reconhecer a questão social como
uma questão política a ser resolvida sob sua direção" (Sposati et alli, 1998). Mesmo
porque, a intervenção do Estado na área social era essencial para regular as relações
entre capital e trabalho, criando, assim, as bases para o desenvolvimento industrial.
Em 1933, são criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que
constituem a base do sistema nacional de previdência gerido pelo Estado brasileiro.
Os IAPs eram entidades autárquicas, organizadas por categoria profissional,
vinculadas ao Estado, através do Ministério do Trabalho, e filiavam compulsoriamente
todos os componentes sindicalizados da categoria profissional que abrangia.
Em outras palavras, para possuir um IAP, uma categoria profissional precisava,
primeiramente, ser reconhecida legalmente como profissão pelo Ministério do
Trabalho e possuir sindicato regulamentado. Ou seja, o Estado regulava o acesso dos
trabalhadores aos direitos sociais.
Essa engenharia político-institucional caracteriza uma concepção de
“cidadania regulada”, já que as políticas sociais e, portanto, os direitos sociais são
estabelecidos não com base em valores políticos, mas na regulação ocupacional dos
trabalhadores.
A partir de então, a intervenção social passa a se constituir como um
instrumento privilegiado do Estado para prover serviços, visando à ampliação
“regulada” da cidadania e à construção de uma “hegemonia seletiva” para garantir a
implementação do projeto de “modernização conservadora”, no marco da ordem
capitalista.
Os conceitos de “cidadania regulada” e “hegemonia seletiva” possuem uma interessante correlação. O primeiro conceito,
como visto, mostra a forma pela qual, durante o período varguista e populista, os governos no Brasil viabilizavam direitos
ccv
sociais.
Assim, apenas as categorias profissionais urbanas reconhecidas legalmente pelo Estado é que possuíam acesso a
determinados direitos sociais (Santos, 1987). O segundo conceito, desenvolvido por Carlos Nelson Coutinho, mostra que
, no
período em tela, utilizou-se, para governar, uma estratégia que não estabelecia uma hegemonia ampla na sociedade,
mas sim promovia alianças com alguns setores das classes subalternas, conquistando, dessa forma, uma hegemonia limitada,
baseada na seletividade dos segmentos sociais com os quais definia se aliar. O instrumento utilizado pelos governos para conquistar
essa “hegemonia seletiva” era, justamente, a concessão de determinados direitos sociais. Em outras palavras, a “cidadania regulada”
foi a forma utilizada para se estabelecer a “hegemonia seletiva”, que caracterizou a forma da relação
do Estado com as
classes trabalhadoras durante o período compreendido entre 1930 e 1964 (Coutinho, 1993).
A organização institucional para materializar os serviços previdenciários e a
assistência médica, via IAP’s, apresenta-se como uma estrutura exemplar que articula
organicamente as dimensões burocráticas e patrimonialistas da ordem administrativa
brasileira, além de formatar a estrutura pela qual se fará a incorporação seletiva da
classe trabalhadora no processo de industrialização e urbanização do país.
Cada IAP, destinado à determinada categoria profissional, possuía um
conselho administrativo com participação paritária de empregadores e empregados,
sendo a escolha da presidência reservada ao poder público, via Ministério do
Trabalho. Ao presidente do IAP cabia designar um funcionário do instituto para
secretariar o conselho administrativo. Dentre as atribuições do conselho
administrativo dos IAP’s encontrava-se a tarefa de admitir o pessoal para trabalhar no
instituto. Tal engenharia produziu diversas conseqüências.
Em primeiro lugar, a organização por categoria profissional dos IAP’s, regulada
pela ação do Estado, promoverá a incorporação seletiva da classe trabalhadora
através do recurso do corporativismo65 estatal. Grosso modo, o corporativismo
estatal possui como característica principal a identificação entre Estado e sociedade.
No caso do corporativismo estatal vinculado às classes subalternas, as
65
Para Philippe Schmitter “o corporativismo pode ser definido como um sistema de representação de interesses no qual as
unidades constitutivas são organizadas em um pequeno número de categorias únicas e obrigatórias, não competitivas,
organizadas hierarquicamente e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas pelo Estado que concede deliberadamente o
monopólio da representação no interior das respectivas categorias” (Schmitter, 1981: 52-53, in Araújo e Tapia, 1991). O autor
ainda distingue dois tipos de corporativismo: o “estatal” e o “societal” (ou neocorporativismo). Para um maior detalhamento da
temática sobre corporativismo e neocorporativismo ver: Araújo e Tapia, 1991; Diniz e Boschi, 1991.
ccvi
representações e representantes dos interesses sociais se encontram subordinados à
autoridade estatal, quando não são criados por ela. Ou seja, não há autonomia da
sociedade civil frente ao Estado, o que propicia o estabelecimento de uma relação de
controle partindo do Estado para a sociedade66.
Em segundo lugar, a atribuição de admissão de pessoal para trabalhar nos
institutos constituía um recurso de poder fundamental para a elite sindical, o que
gerava a “submissão política dessa liderança à orientação de quem controlasse o
Ministério do Trabalho”, produzindo, assim, o “que se convencionou denominar, na
literatura, de peleguismo” (Santos, 1987: 71). Além disso, essa forma de admissão de
pessoal se caracteriza por estabelecer uma relação de lealdade entre o dirigente e o
funcionário, configurando-se como um elemento típico da administração
patrimonialista.
Por fim, cabe registrar que a escolha de um técnico, servidor do instituto, para
secretariar o conselho administrativo, expressa “uma das remotas raízes do poder da
burocracia estatal em administração de instituições públicas” (Santos, 1987: 29).
Outrossim, como ressalta Malloy (1976: 104), desenvolve-se, a partir desse momento,
um grupo de especialistas em questões previdenciárias no interior da máquina
pública, que “viriam desempenhar papéis proeminentes (...) como analistas, como
administradores e como ativistas de previdência social”.
Assim sendo, a estrutura previdenciária consolida uma organização pública que
combina especialização burocrática com lealdade patrimonialista, para promover a
incorporação seletiva da classe trabalhadora no projeto industrializante em
desenvolvimento.
Entretanto, a legislação previdenciária implementada no período não abrangia
os trabalhadores rurais (diga-se de passagem, a maioria da população) e nem todas
as profissões urbanas foram regulamentadas simultaneamente ou em um curto
66
Adiante veremos a forma que se processa o corporativismo estatal brasileiro vinculado às classes dominantes.
ccvii
espaço de tempo. Assim, havia necessidade de atender às demandas sociais dos
excluídos do sistema previdenciário.
Essa população excluída da política social organizada pelo Estado através dos
IAPs buscará suas necessidades de proteção social no campo da assistência social,
desenvolvida por instituições filantrópicas, vinculadas, principalmente, a entidades
religiosas ou a ações de políticos. Sônia Fleury (1991) interpreta essa situação como
de uma “cidadania invertida”, na qual determinados segmentos da sociedade (aqueles
que não possuem profissão regulamentada pelo Estado) têm acesso à assistência
social, uma vez que não são reconhecidos como cidadãos. A condição de nãocidadania é o que possibilita o acesso a benefícios sociais, daí a inversão da
cidadania sinalizada pela a autora.
Para constituir o Estado Nacional e fortalecer o poder central para implementar
o projeto urbano-industrial capitalista, era necessário organizar as ações destinadas à
população excluída da proteção pública e, também, buscar o apoio do poder local.
Visando ao atendimento dessas necessidades, uma das estratégias utilizadas foi a
centralização dos recursos da assistência social no âmbito de instituições federais
(Conselho Nacional de Serviço Social/CNSS, Legião Brasileira de Assistência/LBA e
Serviço de Assistência ao Menor/SAM)67, para propiciar, simultaneamente, a
organização das ações assistenciais e a adesão dos políticos locais ao projeto em
implantação, através da manutenção de relações clientelistas.
A assistência social se desenvolverá, então, tendo como elementos
predominantes as práticas caritativas e assistencialistas desenvolvidas pela igreja e o
clientelismo típico, oriundo da República Velha, que encontrará na centralização do
poder uma nova forma de processá-lo. Nesse contexto, as instituições da sociedade
civil que atuam na área da assistência social, para obterem recursos junto aos órgãos
públicos, via de regra, terão que solicitar o apoio dos políticos locais que
67
Conforme destacam Iamamoto e Carvalho (1982), essas instituições estatais ampliaram significativamente o mercado de
trabalho para os assistentes sociais, categoria profissional estruturada a partir da segunda metade dos anos 1930.
ccviii
intermediarão a relação entre os dois pólos (instituições da sociedade civil –
organizações públicas federais). Dessa forma, cria-se uma cadeia de troca de favores
entre o poder central e o poder local - o primeiro necessitando do apoio político do
segundo e este necessitando de recursos para manter seu controle junto à população,
na medida em que, a partir da Lei de 1939, como vimos, a arrecadação foi transferida
para o governo central - e entre o poder local e as instituições assistenciais – o líder
local reivindicando apoio político da população e as instituições necessitando de
recursos para manter suas ações.
Simultaneamente, para operar a distribuição de recursos, organizar as
informações sobre as instituições e desenvolver intervenções de apoio técnico ou
atendimento direto, era necessário organizar uma estrutura burocrática com um corpo
de especialistas.
Portanto, no campo assistencial também será forjada uma estrutura imbricada
de elementos burocráticos e patrimonialistas.
Sendo assim, a população destituída de cidadania terá que recorrer a
instituições privadas (seculares ou vinculadas às igrejas) para prover algumas de
suas necessidades sociais e o Estado promoverá, através de suas instituições e/ou
de sua omissão, a proliferação de organizações da sociedade civil destinadas ao
atendimento assistencial a diferentes segmentos sociais.
De forma geral, podemos dizer que a política social no Brasil será constituída
tendo como base as concepções de “cidadania regulada”, na perspectiva da política
previdenciária - destinada aos trabalhadores urbanos que possuíssem sua profissão
reconhecida legalmente -, a qual será implementada com base na lógica corporativoestatal, e a “cidadania invertida” como expressão da ação assistencial - destinadas
aos demais segmentos da população -, configurando-se como recurso de clientelismo
do poder central.
Criou-se, então, no País um sistema diferenciado de intervenção na área social.
Para os trabalhadores urbanos regulamentados estruturou-se um sistema público de
ccix
proteção social, baseado na previdência social e assistência médica, desenvolvido
pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões; para os demais trabalhadores e o
restante da população, ou seja, aos excluídos do sistema público, destinou-se o
aparato assistencial existente, apoiando sua expansão, através de subvenções
públicas (Mestriner, 2001).
É importante destacar que esse formato de desenvolvimento de políticas
sociais no Brasil se adéqua ao processo de incorporação seletiva e limitada das
classes subalternas às riquezas produzidas nacionalmente pelo advento da ordem
industrial. Ou seja, não existe um projeto de universalização e aprofundamento de direitos
sociais e, portanto, a estrutura burocrática organizada para operar as políticas sociais se
efetiva, também, de forma seletiva e limitada. Em linhas gerais, esse padrão de operar as
políticas sociais não sofrerá alteração até o advento do golpe de 1964.
3.2. A expansão da burocracia no contexto da irrupção do capitalismo monopolista
A partir da década de 1950, conduzir a economia brasileira para um novo
patamar de desenvolvimento capitalista passa a ser o objetivo central da coalizão
dominante.
Segundo Cardoso de Mello (1998: 117), a partir da década de 1950, mais
precisamente entre 1956 e 1961, estrutura-se no país um novo padrão de acumulação
caracterizado por um processo de industrialização pesada que “implicou um
crescimento acelerado da capacidade produtiva do setor de bens de produção e do
setor de bens duráveis de consumo antes de qualquer expansão previsível de seus
mercados”.
Fernandes (1981: 251- 288) identifica esse período como sendo o de início da
irrupção do capitalismo monopolista no Brasil e mostra, com precisão, como esse
processo se desenvolve no país mantendo a “dupla articulação”. Ou seja, para
impulsionar o salto industrializante a opção da burguesia industrial foi subordinar-se
ao capital estrangeiro e articular-se aos setores tradicionais. Portanto, “o novo padrão
ccx
de desenvolvimento capitalista terá de gerar, em termos estruturais, funcionais e
históricos, novas modalidades de dependência em relação as economias centrais e
novas formas relativas de subdesenvolvimento” (Fernandes, 1981: 259).
Do ponto de vista da economia nacional, conforme salienta Fernandes (1981:
269),
...o capitalismo monopolista terá de adaptar-se para coexistir
com uma variedade de formas econômicas persistentes,
algumas capitalistas, outras extracapitalistas. Não poderá
eliminá-las por completo, pela simples razão de que elas são
funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de
desenvolvimento econômico na periferia. Em outras palavras,
para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas,
esse padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar
formas econômicas variavelmente “modernas”, “antigas” e
“arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da
economia competitiva, do mercado capitalista da fase
neocolonial e da economia colonial. Tais formas econômicas
operam, em relação ao desenvolvimento capitalista monopolista,
como fontes de acumulação originária de capital.
Além da já citada análise desenvolvida por Oliveira (2003) sobre articulação
entre o setor agrícola tradicional e o setor industrial, o autor, para complementar o
quadro de articulação entre padrões pré-capitalistas e capitalistas para o
desenvolvimento urbano-industrial brasileiro, mostra a funcionalidade da expansão
extracapitalista do setor terciário nesse empreendimento, fazendo a crítica às
interpretações acerca da “inchação” do setor. Segundo Oliveira, não existe
“inchação” do setor terciário, na medida em que sua ampliação está relacionada à
acumulação urbano-industrial, a qual exige das cidades um conjunto de serviços para
operacionalizar o crescimento que se encontra em processo. No entanto, o
crescimento industrial intensivo operado no período, “em 30 anos passa de 19% para
30% de participação no produto bruto, não permitirá uma intensa e simultânea
capitalização nos serviços, sob pena de esses concorrerem com a indústria
propriamente dita pelos escassos fundos disponíveis para a acumulação
capitalística”. Essa contradição, como ressalta o autor, será resolvida pelo
“crescimento não capitalístico do setor Terciário” (Oliveira, 2003: 56-57). Portanto,
não existe “inchação” no setor terciário. Oliveira, dessa forma, decodifica a
ccxi
funcionalidade do crescimento não-capitalístico do setor Terciário para acumulação
nesse período e, por conseqüência, como ele engendra a forma arcaica no espaço
urbano.
Esse quadro traçado por Oliveira ressalta as articulações entre os setores
capitalistas e pré-capitalistas ou extracapitalistas para operar a industrialização
brasileira, sobre a qual o capital monopolista deverá interagir, conforme destacado
por Fernandes.
A expansão monopolista verificada no período se apóia, por um lado, no capital
internacional68, que se transfere para o Brasil na forma de capital produtivo, e, por
outro lado, na ação desempenhada pelo Estado que, segundo Cardoso de Mello (1998:
118),
foi decisiva, em primeiro lugar, porque se mostrou capaz de
investir maciçamente em infra-estrutura e nas indústrias de base
sob sua responsabilidade (...). Coube-lhe, ademais, uma tarefa
essencial: estabelecer as bases da associação com a grande
empresa oligopólica estrangeira, definindo claramente, um
esquema de acumulação e lhe concedendo generosos favores.
Nesses termos, o projeto desenvolvimentista se consolida no País.
Politicamente, o desenvolvimentismo se apresenta, conforme analisa Ianni (1989: 98),
como ideologia da conversão do capital agrícola, comercial e bancário em capital
industrial, a conversão do poder econômico da burguesia em poder político e, por fim,
a conversão do Estado patrimonial em Estado burguês. A partir da década de 1950
será consolidado o Estado desenvolvimentista brasileiro, cujo início se encontra na
inflexão econômica, política e social ocorrida no País a partir da revolução de 30.
Segundo Fiori (1995: 123), o consenso em torno do projeto de criar uma economia
nacional industrializada liderada pela intervenção planejada do Estado, consolidou-se
a partir dos anos 1950 na América Latina. De acordo com o autor, “pode-se dizer que
68
“Naturalmente, a presença da grande empresa estrangeira não se explica apenas pela existência de excelentes
oportunidades de inversão a serem colhidas, mas, também, em última instância, pela própria dinâmica de competição
oligopólica nos países centrais, cujo ponto de chegada consistiu, como se sabe, na conglomeração financeira e na expansão
oligopólica a escala mundial” (Cardoso de Mello, 1998: 119).
ccxii
a supremacia Estado desenvolvimentista na América Latina foi a contraface da
hegemonia Keynesiana na Europa”.
Apesar de certas diferenças entre as concepções sobre o que significa esse
período do ponto de vista do desenvolvimento da economia capitalista brasileira,
cabe destacar que o pacto que conduzirá esse processo para todos os intérpretes
citados será o mesmo que conduziu a Revolução de 30, porém a partir deste
momento, a hegemonia estará sob a condução da burguesia industrial.
A ordem administrativa brasileira deverá se adequar a esse contexto de
aceleração do desenvolvimento industrial e de início da “irrupção do capitalismo
monopolista”, para poder operar o projeto em tela, no marco da manutenção da
“dupla articulação”.
A estratégia operada, do ponto de vista administrativo, será marcada pela
reprodução das características centrais da administração pública que se estrutura a
partir de 1930. Entretanto, essa estratégia expandirá, significativamente, a dimensão
“insulada” da ordem burocrática - dimensão utilizada para viabilizar a ação racional
destinada à organização institucional, legal e econômica necessária para a fase da
industrialização em pauta, combinada com a exclusão dos setores populares –,
fortalecerá a dimensão patrimonialista através, principalmente, da manutenção do
poder dos governadores de estado e da implementação das políticas sociais
(prioritariamente as de assistência social) e, por fim, estagnará as iniciativas pautadas
para a ampliação da dimensão do “universalismo de procedimentos” presente na
ordem burocrática.
O processo de expansão do “insulamento burocrático” é realizado a partir da
Assessoria Econômica instituída no segundo governo Vargas e, principalmente,
através dos Grupos Executivos formados por JK (Nunes, 1997: 101 e 110). Ou seja, a
ordem burocrática brasileira vai se fortalecendo a partir da dimensão que reduz o
“escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um
ccxiii
papel” (Nunes, 1997: 34). Portanto, as potencialidades democráticas da ordem
burocrática não serão desenvolvidas e exploradas.
O pacto de dominação e o projeto industrializante a ser implementado vai
sendo definido ao longo do processo de nossa revolução burguesa, a partir da
articulação política entre os setores dominantes que estão vinculados à ordem
tradicional e à burguesia industrial, sob as condições de um capitalismo periférico,
em que, como já foi visto, capital agrícola e industrial interagem dialeticamente, numa
mútua dependência (Oliveira, 2003 e Cardoso de Mello, 1998). A divisão de trabalho
entre os setores da economia para promover a acumulação estava definida e os
espaços do Estado para operar o projeto de industrialização com participação dos
setores agrários foram se constituindo a partir da montagem da ordem administrativa
que expressava o pacto de dominação estabelecido. Nesse sentido, conforme sinaliza
Fiori (1995: 135-136), a ação do Estado para articular o financiamento da
industrialização estava condicionada ao veto político e ideológico do suporte
conservador que compunha o pacto de dominação estabelecido69.
Nesse quadro, os limites gerais, do ponto de vista econômico e político, que
demarcavam a implementação da industrialização foram determinados70. Cabia à
fração dirigente das classes dominantes operacionalizar as ações necessárias para
efetivar a industrialização nos contornos delimitados. A ordem administrativa
brasileira deverá ser adequada a esse processo de expansão capitalista que mantém
a “dupla articulação” e exclui as camadas populares.
No contexto do pacto de dominação conservador, a constituição de uma
burocracia insulada foi a estratégia administrativa adotada para responder à
aceleração da industrialização, em termos políticos e técnicos. Nesse sentido,
podemos dizer que o insulamento operado, muito mais que evitar a interferência
69
Abrúcio cita um estudo no qual indica “que de 1946 até 1962 mais de duzentos projetos de reforma agrária foram bloqueadas
pelas elites políticas das regiôes menos desenvolvidas”. Corroborando com a análise de Fiori, segundo o autor, “os grupos do
norte e Nordeste permaneceram com o poder de veto no Congresso em questões que alterassem o status quo das oligarquias
dessas regiões” (Abrúcio, 2002: 52).
70
Vale ressaltar, mais uma vez, que esses limites não são estáticos e nem isentos de contradições. Dependem sempre da
ccxiv
clientelista e populista no planejamento do processo de industrialização e
urbanização do país, conforme sinalizam Nunes (1997)71 e Fiori (1995)72, visava excluir
a classe trabalhadora da participação das definições sobre os rumos da expansão
capitalista, na medida em que os grandes contornos do projeto desenvolvimentista
eram determinados pelo veto político e ideológico do pacto conservador e a ocupação
do Estado, em seu conjunto, deveria corresponder à dominação existente. Portanto,
as determinações centrais da expansão do “insulamento burocrático” no Brasil se referem à
necessidade técnica e política de processar a “irrupção do capitalismo monopolista”,
mantendo a “dupla articulação”, e de controlar as classes trabalhadoras em relação à sua
participação política e seu acesso às riquezas produzidas. Assim, a tarefa principal do
insulamento burocrático no Brasil não se destina a evitar o patrimonialismo presente
na cultura político-administrativa, apesar de contribuir, também, para obliterar as
interferências indesejadas de frações das classes dominantes, fossem elas
vinculadas a setores urbanos ou rurais. Portanto, concordamos inteiramente com
Nunes (1997: 34) quando afirma que “o insulamento burocrático não é de forma
nenhuma um processo técnico e apolítico”.
Nesse contexto, o que se efetiva, do ponto de vista político, a partir da
expansão da burocracia insulada é a privatização do Estado pelas frações dirigentes
das classes dominantes. De acordo com Fiori (1995: 137):
O poder de veto dos vários blocos de interesse regional ou
setorial, reconhecidos pelo pacto original e reafirmados graças à
sua contribuição financeira ou eleitoral para a reprodução
política da ordem dominante, acabaram sedimentando grupos
que se apropriaram, literalmente, dos centros de decisão estatal
responsáveis pelo proteção de seus mercados cativos.
A expansão do “insulamento burocrático”, a partir da década de 1950,
propiciará a estruturação de uma nova forma de apropriação do público pelo privado,
correlação de forças que se expressa na sociedade, a partir das lutas de classes efetivadas concretamente.
71
Ver citações acima.
72
De acordo com o autor, no plano da gestão “o Estado formou os grupos executivos (...) para desenhar e acompanhar a
implementação das várias metas setoriais do Plano de metas, gerando uma espécie de burocracia paralela, mas enxuta e
impermeável às pressões da política populista e clientelista que caracterizavam, naquele momento, os traços fundamentais de
funcionamento do sistema político democrático brasileiro” (Fiori, 1995: 129).
ccxv
que não se confundirá com a ordem patrimonialista em relação a não distinção entre o
interesse público e o privado fundada na tradição. Ou seja, existem diferenças entre
gestão patrimonialista e gestão racional capitalista, apesar de ambas propiciarem a
acumulação privada.
A gestão patrimonialista confunde bem público com o bem privado, na medida
em que todos os bens pertencem ao senhor cuja dominação é de caráter tradicional.
A gestão racional capitalista, obviamente, privilegiará uma determinada classe
social ou frações dessa classe a partir da utilização de recursos públicos para
promover a acumulação. Porém, essa ação não é desenvolvida a partir de atributos
tradicionais e da falta de limites entre a esfera privada e a pública, mas sim dentro de
um racionalidade instrumental voltada para o desenvolvimento capitalista. Por isso,
discordamos das interpretações que colocam tudo sob o manto do patrimonialismo
ou identificam a privatização do Estado unicamente como vinculada à estrutura
patrimonial. As ações legais desenvolvidas pelo Estado são racionais e não
patrimonialistas, ainda que beneficiem privadamente setores, grupos ou pessoas. O
Estado não foi criado para garantir universalidade e interesses gerais, ele existe para
garantir a ordem capitalista e, portanto, a apropriação privada das riquezas
produzidas na sociedade. Tal fato não pode ser confundido com patrimonialismo.
Conforme destacam Diniz e Boschi (1991: 17), pelo viés do corporativismo, o modelo
político implantado no País para impulsionar a industrialização “forneceu as bases
institucionais para um novo padrão de regulação público/privado, que diferiu
fundamentalmente das relações prévias fundadas na visão do público como mera
extensão do poder privado.”
O caso do “insulamento burocrático” é exatamente este. Não podemos
confundi-lo com patrimonialismo, mas identificar, na sua configuração, os traços que
não correspondem à dimensão impessoal e formal de uma ordem burocrática típica
ideal.
ccxvi
Nesse sentido, concordamos com Schwartzman (1988: 7) que os canais
informais criados pelo Estado para se relacionar com a sociedade – mais
precisamente com os setores das classes dominantes - referem-se à lógica
patrimonial, na medida em que não estabelecem impessoalidade e regras formais
para definir a configuração da relação a ser estabelecida. Além disso, a forma de
recrutamento do quadro administrativo que constituirá as agências responsáveis
pelo planejamento e acompanhamento do processo de industrialização será feito a
partir de uma escolha discricionária da Presidência da República e não a partir de
uma seleção pública por mérito, precarizando a lógica burocrática devido à ausência
de impessoalidade. Porém, a existência desses traços tradicionais na estrutura da
administração paralela não configura tal estrutura como fundada na ordem
patrimonialista.
Conforme anota Nunes (1997: 110),
As agências encarregadas do desenvolvimento econômico
precisavam de dois recursos para levar seus planos efetivamente
adiante: pessoal competente e capital suficiente. JK imaginou
maneiras de providenciar ambos e utilizou o privilégio do Executivo
para preencher os cargos na burocracia insulada sem adotar qualquer
procedimento formal. Os Grupos Executivos foram compostos com
pessoal requisitado à SUMOC, à CACEX, ao BNDE, ao DASP, aos
ministérios, etc. (...) Em parte, ao requisitar os funcionários mais
competentes dos vários órgãos, Juscelino contornou não só a
burocracia tradicional, mas também qualquer tipo de universalismo de
procedimentos porventura existente.
Dessa forma, a dimensão racional da burocracia será desenvolvida
parcialmente. Como essa dimensão estará combinada a mecanismos de
recrutamento que não privilegiam a impessoalidade - apesar de garantir
competência técnica para o projeto em tela –, impedir-se-á a possibilidade de existir
um quadro administrativo comprometido, direta ou indiretamente, com interesses das
classes trabalhadoras. Por outro lado, a existência de canais informais de articulação
entre o Estado e a sociedade promoverá a privatização do público pelos setores que
ccxvii
terão acesso a tais canais. Assim, a potencialidade da dimensão burocrática para
operar ações que atendam a interesses das camadas não dominantes, e, portanto,
ampliar o “universalismo de procedimentos”, será extremamente restrita. Por outro
lado, ao se instituirem espaços burocráticos insulados para operar o projeto
industrializante, será retirado do congresso o papel de negociador político entre as
diferentes forças sociais. Esse fato enfraquecerá, ainda mais, a dimensão
democrática da luta política e sua relação com o aparelho administrativo do Estado,
criando uma arena decisória na burocracia federal afastada da democracia.
Assim, cabe ressaltar que ocorrerá uma mudança na função que a
dimensão insulada da burocracia exercia. No período compreendido entre 1937
e
1945
o
“insulamento
burocrático”
serviu,
prioritariamente,
para
a
sustentação da ditadura Vargas A partir da década de 1950 ele servirá,
prioritariamente, para viabilizar o projeto de expansão capitalista brasileiro.
Porém, o cariz antidemocrático de então permanecerá, na medida em que,
através
do
insulamento,
será
impedida
a
participação
das
classes
trabalhadoras no desenho do desenvolvimento capitalista a ser expandido no
país. Assim sendo, o desenvolvimento da burocracia insulada contribuirá para
a manutenção da estrutura de concentração de renda, riqueza e poder,
distanciando a ordem administrativa brasileira de uma perspectiva de
aprofundamento e universalização de direitos.
O arranjo político institucional baseado no “insulamento burocrático”
complementará, no entendimento de O´Donnell (1976) e Diniz e Boschi (1991), o
corporativismo estatal brasileiro que se caracterizará por ter dois componentes. O
primeiro deles é o “estatizante”, que se expressa através da relação que o Estado
estabelece com as organizações da sociedade que representam interesses do
ccxviii
trabalho, visando subordiná-las às suas orientações, ou seja, uma ação de controle
das classes populares. O outro componente é o “privatista”, que corresponde ao
processo de avanço de setores da sociedade civil, vinculados às classes e setores
dominantes, em direção ao Estado, criando áreas institucionais de influência desses
setores nas decisões políticas. Portanto, existe um caráter segmentar do
corporativismo estatal brasileiro na medida em que há distinção da forma com que o
Estado se relaciona com os setores populares em relação àquela com que ele se
relaciona com os setores dominantes73. Dessa forma, estará criada a possibilidade
política de conduzir a expansão capitalista, excluindo as classes populares e
garantindo às frações dirigentes das classes dominantes processar a privatização do
Estado. Nunes (1997: 113) sintetiza esse movimento de forma precisa:
O insulamento burocrático forneceu ao país uma administração
econômica racional, gerida por elites profissionais modernizantes
associadas a grupos empresariais internacionalizados. Embora essas
elites se percebessem como portadoras legítimas de valores
modernos e universalistas, o resultado de sua ação não foi
absolutamente a criação de um “domínio público”. Suas atividades
não tinham por objetivo a expansão das bases para uma cidadania
universalista no país; ao invés disso contribuíram para manter
inalteradas as bases da “cidadania regulada”...
Diferentemente do que pode ser sugerido por esse arranjo da ordem
administrativa brasileira, a burocracia insulada não expressa autonomia nem
neutralidade técnica do corpo administrativo que a compõe.
A falta de autonomia se manifesta por um lado, como vimos anteriormente, a
partir dos contornos definidos da expansão capitalista ditados pelo pacto de
dominação conservador e, por outro lado, pela participação direta de setores
empresarias no planejamento das ações destinadas à industrialização.
A inexistência de neutralidade técnica em qualquer campo é fato amplamente
debatido nas ciências sociais (Meszáros, 1996; Lowy, 1985 e 1989). No caso em
73
De acordo com O’Donnell (1976), este arranjo caracteriza um “corporativismo bifronte”.
ccxix
questão, tal fato fica demarcado, na medida em que a forma de recrutamento
operada para compor as agências insuladas estava definida politicamente. “As
novas
agências,
embora
tecnicamente
competentes,
eram
profundamente
politizadas e pautaram suas atividades por opções políticas claras, atitude que
também influenciou o recrutamento de seu pessoal” (Nunes, 1997: 19).
Nesse contexto, abre-se o caminho para a privatização do Estado por parte
das elites dominantes que, como lembra Fiori (1995: 110 e 154), “se o empresariado
sempre resistiu ideologicamente ao intervencionismo estatal, acabou cedendo
sempre, em troca da proteção indiscriminada que produziu, do ponto de vista
institucional, o que alguns chamaram de cartorialização e outros de privatização do
Estado”.
Nesse sentido, encontramos uma relação direta entre a dimensão insulada da
burocracia, produzida pela ausência de impessoalidade no recrutamento e no
estabelecimento de canais de interlocução com os diferentes setores da sociedade,
apesar da existência da especialização e competência técnica do corpo burocrático,
e o processo de privatização do Estado que esvazia a dimensão pública republicana
da estrutura político-institucional brasileira.
Dessa maneira, cabe registrar que se a expansão da burocracia não for
realizada preservando a dimensão impessoal e “universalista de procedimentos” de
sua racionalidade, não contribuirá para um projeto que se pretenda voltado para o
projeto destinado à universalidade e ao aprofundamento de direitos. Portanto, isso
não significa dizer que a burocracia seja incompatível com um projeto de
democratização no quadro do capitalismo, muito pelo contrário.
No contexto da consolidação do Estado desenvolvimentista, combinando com
a expansão insulada da burocracia (eliminação dos aspectos formais e impessoais
ccxx
de sua racionalidade), que tinha como objetivo central planejar e executar o projeto
de expansão capitalista no marco da “irrupção do capitalismo monopolista” sob a
égide da “dupla articulação”, será efetivada a ampliação dos mecanismos
clientelistas, vinculados à lógica patrimonialista coerente com a manutenção da
dominação tradicional, ainda em vigor.
Os espaços institucionais prioritários para efetivar a ampliação dos
mecanismos clientelistas serão, por um lado, o campo das políticas sociais e, por
outro, a forma de organizar o poder regional no quadro democrático.
No campo das políticas sociais, será mantido o padrão criado na década de
1930, seja na previdência e assistência médica, seja na assistência social. Portanto,
não haverá alteração nas lógicas de funcionamento das instituições, tampouco da
estrutura administrativa criada para operá-las. Ocorrerá apenas a expansão do
modelo forjado na década de 193074, no qual as classes trabalhadoras continuarão
sendo incorporadas seletivamente e de forma parcial.
Sendo assim, as características da administração pública na área das
políticas sociais serão mantidas. Por um lado, a expansão quantitativa das
instituições da área previdenciária promoverá a intensificação da combinação de
especialização burocrática com lealdade patrimonialista, conquistada através da
manutenção da política tradicional de empreguismo em troca de apoio político,
visando à incorporação seletiva e parcial da classe trabalhadora, via institutos de
previdência. Conforme analisa Nunes (1997:112):
Juscelino impediu que o DASP realizasse concursos para o serviço
público, com a justificativa de que era um processo muito caro, mas
ele próprio é acusado de ter feito perto de sete mil nomeações
políticas, apenas no primeiro ano de governo. Entretanto, a maior
parte delas foi feita por João Goulart nos ministérios do Trabalho e da
74
Há um consenso na bibliografia que trata o tema que no período compreendido entre 1945 e 1966 não ocorre mudanças na
estrutura de organização das políticas sociais brasileiras. Neste período há uma expansão das instituições e da lógica de
funcionamento das políticas sociais criadas na década de 30. Para maior aprofundamento ver Santos (1987), Vianna (1998),
Draibe (1989), entre outros.
ccxxi
agricultura e em suas autarquias, principalmente os institutos de
previdência...
Por outro lado, a ampliação da estrutura clientelista da assistência social,
apontada anteriormente, articular-se-á com a necessidade de ampliação de
especialistas que possibilitem a organização das ações de distribuição de recursos
públicos e apoio técnico para as instituições filantrópicas existentes, agora em maior
volume.
A manutenção do poder regional - mais especificamente, a forma principal
como as elites oligárquicas tradicionais continuarão exercendo a dominação política
de caráter tradicional em nível nacional -, será realizado a partir da não alteração
das relações de propriedade da terra. Apesar de extensa, cabe citar a análise de
Fiori (1995) sobre a questão, pois, além de precisa, é central para entendermos,
adiante, o poder que os governadores possuirão neste período:
Como, entretanto, jamais tivesse tido poder, condições ou mesmo
disposição de alterar as relações de propriedade da terra, a proposta
centralizante do Estado desenvolvimentista acabou sendo atenuada,
corroída ou mesmo pervertida por uma relação de permanente tensão
– e cooptação – entre a vontade central e o poder político dos
inúmeros e heterogêneos interesses regionais (Fiori, 1995: 142).
Em seguida, destaca o autor:
Não há dúvida de que, com a industrialização, as relações entre
atraso e modernidade se complexificaram, afastando-se de um
simples modelo dualista. A idéia de heterogeneidade estrutural
aponta exatamente para essa nova configuração, onde bolsões de
atraso político e econômico distribuem-se através de todas as regiões
e setores de atividades. Mas não há dúvida, entretanto, de que do
ponto de vista estritamente político-eleitoral, mantém-se uma certa
superposição capaz de permitir a existência, até hoje, de regiões do
País onde predominam as velhas oligarquias apoiadas em relações
políticas de tipo pessoal, assentadas no favor ou na dependência
econômica. Graças a isso, durante todo o ciclo desenvolvimentista,
essas oligarquias que controlaram a economia e o poder político,
nessas regiões mais atrasadas, obtiveram posições e favores junto ao
Estado central graças, exatamente, a esse seu grande poder de
mobilização eleitoral, indispensável à reprodução política da ordem
conservadora (Fiori, 1995: 143).
Dessa forma, a oligarquia agrária tradicional participará efetivamente da
estrutura de dominação no País, via seu poder local de mobilização político-eleitoral.
ccxxii
Abrúcio (2002) nos esclarece como esse processo se realiza concretamente.
Segundo o autor, após a abertura política processada depois da queda de Vargas, o
poder dos estados é recuperado, porém não nos mesmos termos da primeira
república, visto que o poder central, então, já se encontrava mais forte no país,
tornando as relações federativas mais equilibradas, seja entre União e estados, seja
entre os próprios estados. Nesse quadro, afirma o autor, “uma nova política dos
governadores surgiu e as bancadas estaduais na Câmara Federal possuíam poder
suficiente para barganhar por mais recursos do tesouro nacional para suas
clientelas” (Abrúcio, 2002: 50).
Nessa recomposição política, os estados do sudeste, principalmente São
Paulo e Minas Gerais, passam a ser sub-representados na Câmara Federal. No
entanto, como ressalta lucidamente o analista, a subrepresentação não fora de todo
ruim, pois, além dos interesses dos estados mais industrializados serem melhor
articulados via agências burocráticas insuladas, a subrepresentação “evitaria o
fortalecimento
dos
setores
emergentes
dos
grandes
centros
urbanos
e
industrializados” Abrúcio (2002: 51).
Um aspecto fundamental nesse quadro, como ressalta Abrúcio, diz respeito
ao papel dos governadores. Como as eleições presidenciais não ocorriam no mesmo
período que as proporcionais e que as destinadas aos governos dos estados, os
candidatos a deputado preferiam estar vinculados aos candidatos mais fortes ao
executivo estadual. Assim, criava-se uma dependência do deputado ao governador
eleito que o apoiara. Além disso, como destaca o autor, os governadores
controlavam os chefes políticos locais, através da distribuição de cargos públicos.
Dessa forma, analisa Abrúcio (2002: 54):
A realidade “coronelística”, fortalecedora do Executivo estadual frente
aos chefes locais, permaneceu em boa parte do país na Segunda
República, dada a continuidade da estrutura agrária arcaica em
ccxxiii
diversas regiões. Os vetos aos projetos de reforma agrária no
Congresso tinham uma intrínseca ligação com o pacto entre
Executivos estaduais e chefes locais, pois grande parcela dos
deputados federais precisava desse pacto para conquistar a reeleição
ou otimizar sua carreira para cargos majoritários. Por detrás dos vetos
dos deputados, estava o veto do sistema político estadual, cujo maior
beneficiário era o governador.
Então, a ordem administrativa no contexto de consolidação do Estado
desenvolvimentista se desenvolverá a partir da expansão da dimensão da
racionalidade capitalista e da especialização técnica da burocracia, num
quadro de insulamento de uma estrutura paralela de gestão, evitando a
utilização dos mecanismos de mérito e impessoais na composição de seus
quadros. Essa expansão será articulada à manutenção dos espaços
patrimoniais e clientelistas no campo das políticas sociais - visando à
incorporação seletiva e parcial das classes trabalhadoras - e na forma de
participação das camadas dominantes tradicionais na estrutura de poder.
Dessa forma, a dimensão de racionalidade da burocracia em seu sentido de
estruturação
formal
e
impessoal
de
procedimentos
será
bloqueada,
inviabilizando a construção de uma ordem administrativa que pudesse
contribuir substantivamente com o fortalecimento de ações voltadas aos
interesses das classes populares.
As agências estatais, principalmente aquelas não insuladas e não identificadas
como agências clássicas do Estado (relações exteriores, forças armadas e
arrecadação fiscal), serão formadas por um segmento de especialistas, recrutados ou
não por mérito, combinado com um quadro não especializado, formado através de
contratações de caráter nitidamente patrimonialista75. Esse tipo de composição do
quadro administrativo prejudica profundamente o desenvolvimento da racionalidade
burocrática, no sentido de seu aproveitamento para a estruturação de uma
75
“A despeito das tentativas, durante anos, de reforma do serviço público e da retórica moralizadora de muitos governantes,
somente 12% dos empregados de todo o serviço público tinham sido admitidos sob as bases do mérito no final da década de
1950. Segundo o Censo dos Servidores Públicos de 1966, somente 12,93% dos servidores tinham sido admitidos, até 1966,
ccxxiv
perspectiva de universalização e aprofundamento de direitos. Por outro lado, a
estrutura burocrática formada por funcionários recrutados por mérito, via concurso
público, e outros através de mecanismos extrapatrimoniais de lealdade introduz nas
agências a forma clientelista de operar (ausência de sentido público), o que acaba
fazendo com que esse comportamento seja também incorporado pelos segmentos
burocráticos tradicionais. Nunes (1997: 33) analisa essa situação da seguinte forma:
As instituições formais do Estado ficaram altamente
impregnadas por este processo de troca de favores, a tal ponto
que poucos procedimentos burocráticos acontecem sem uma
“mãozinha”. Portanto, a burocracia apóia a operação do
clientelismo e suplementa o sistema partidário. Este sistema de
troca não apenas caracteriza uma forma de controle de fluxo de
recursos materiais na sociedade, mas também garante a
sobrevivência política do “corretor” local. Todo o conjunto de
relações característico de uma rede está baseado em contato
pessoal e amizade leal.
Dessa feita, conforme resume Nogueira (1998), o insulamento burocrático
simbolizou a tendência de relegar a administração direta a um plano secundário.
Esse cenário da administração pública dos anos 50 do século passado será
radicalizado, a partir da ditadura militar, através da sua institucionalização, operada
via Decreto-lei n.º 200/67.
3.3. Intensificação do insulamento burocrático como estratégia da consolidação da
fase monopólica do capitalismo brasileiro
O Decreto-lei n.º 200/67 expressa o coroamento legal e institucional da
estrutura administrativa desenvolvida na década de 1950 para operar a “irrupção do
capitalismo monopolista”. Ou seja, o Decreto-lei n.º 200 não apresenta inovação
substantiva em relação à estrutura da ordem administrativa que já vinha sendo
adotada desde a década de 1940 e que foi intensificada na década de 1950, ele apenas
aprofunda e institucionaliza a tendência esboçada naquele período. Obviamente, ao
aprofundar e institucionalizar os traços presentes na expansão da administração
sob as bases do mérito” (Nunes, 1997: 118).
ccxxv
pública ocorrida na década de 1950, a expressão fenomênica dos processos sociais,
econômicos, políticos e culturais em curso serão evidenciados.
Nesse sentido, em sua aparência, a reforma administrativa de 1967, se
expressará como um novo modelo de gestão a ser desenvolvido no Brasil (Bresser
Pereira, 1996 e Torres, 2004). No entanto, em sua essência, ela apenas potencializará
os elementos advindos da década de 1950, através da normatização e
institucionalização de seus mecanismos, para consolidar o processo de
monopolização capitalista no quadro da estratégia desenvolvimentista.
A reforma administrativa de 1967, no contexto da ditadura militar, é, portanto,
um imperativo necessário para lançar definitivamente o capitalismo brasileiro à fase
monopólica de seu desenvolvimento, após sua passagem pela industrialização
restringida (1933-1955) e industrialização pesada (1956-1967). Assim, essa reforma se
apresenta como continuidade e ruptura da realizada na década de 1930. Continuidade,
pois se encontra vinculada ao projeto de industrialização iniciado com a revolução de
30, no marco do desenvolvimentismo, e ruptura, posto que, no quadro de
esgotamento da estratégia utilizada para a construção dos alicerces para o
desenvolvimento industrial capitalista, manifestado na depressão de 1962-1967, eram
necessárias mudanças para retomar a expansão ocorrida entre 1956-196176, visando à
consolidação monopólica do projeto de capitalismo periférico, associado e
dependente.
Na análise de Fiori (1995), esse processo se caracteriza, uma vez mais como
uma “fuga para frente”. Para fugir dos conflitos e contradições do projeto de
economia dependente e associada, o Estado desenvolvimentista projetava-se para
frente, buscando ampliar as condições de acumulação, através de sua maior
intervenção na economia.
76
Conforme assinala Oliveira (2003: 101), a aceleração econômica do período introduz uma mudança qualitativamnete
significativa: “a implantação, nos ramos ‘dinâmicos’, das empresas que requerem uma homogeneidade monopolística da
economia como condição sine qua non de sua expansão”
ccxxvi
Dessa forma, entendemos que a reforma de 1967 é a expressão mediata do
projeto econômico de monopolização do capitalismo, no contexto de uma opção
política das classes dominantes orientada, por um lado, para manter a “dupla
articulação” e, por outro lado, para excluir as classes trabalhadoras do processo de
participação política das decisões sobre o desenvolvimento e da ampliação do acesso
às riquezas produzidas, mantendo assim, como destaca Oliveira (2003), o caráter
concentrador de poder, renda e propriedade. De forma clara, o sociólogo afirma que a
diferença fundamental do sistema pós-64 do de etapas anteriores talvez se expresse
“na combinação de um maior tamanho com a persistência dos antigos problemas.
Sob esse aspecto, o pós-64 dificilmente se compatibiliza com a imagem de uma
revolução econômica burguesa, é mais semelhante com o seu oposto, o de uma
contra-revolução” (Oliveira, 2003: 106 – itálicos no original).
Netto (1991: 27) sintetiza de forma precisa esse contexto:
a articulação político-social que fundava o Estado brasileiro às
vésperas de 1964 problematizava a continuidade do padrão
desenvolvimento dependente e associado que se engendrara em
meados da década de cinqüenta. O Estado que se estrutura
depois do golpe de abril expressa o rearranjo político das forças
socioeconômicas a que interessam a manutenção e a
continuidade daquele padrão, aprofundadas a heteronomia e a
exclusão. Tal Estado concretiza o pacto contra-revolucionário
(...), readequando-o às novas condições internas e externas que
emolduravam, de uma parte, o próprio patamar a que ele chegara
e, de outra, o contexto internacional do sistema capitalista (...).
Readequado, aquele esquema é definido em proveito do grande
capital, fundamentalmente dos monopólios imperialistas.
Para complementar e aprofundar a análise sobre o significado do golpe militar
de 1964, considero fundamental destacar duas observações de Fernandes (1981). A
primeira delas está diretamente relacionada ao conceito de “autocracia burguesa”. O
autor sublinha a necessidade de um elevado grau de estabilidade política para
viabilizar o desenvolvimento capitalista em sua fase monopólica. Ou seja, para
garantir o processo de monopolização no capitalismo dependente é necessária “uma
extrema concentração de poder político estatal” (Fernandes, 1981: 269). Por outro
ccxxvii
lado, como sinaliza o sociólogo, nos momentos críticos operou-se uma dissociação
entre o desenvolvimento político e o econômico. Nas palavras do autor:
Isso fez com que a restauração da dominação burguesa levasse
de um lado, a um padrão capitalista altamente racional e
modernizador de desenvolvimento econômico; e,
concomitantemente, servisse de pião a medidas, políticas,
militares e policiais, cotra-revolucionárias, que atrelaram o
Estado nacional não à clássica democracia burguesa mas a uma
versão tecnocrática da democracia restrita, a qual se poderia
qualificar , com precisão terminológica, como uma autocracia
burguesa (Fernandes, 1981: 267-268).
O segundo aspecto refere-se à manutenção da articulação entre setores précapitalistas e capitalistas para viabilizar a consolidação monopólica, o que implica a
manutenção da participação da elite tradicional, principalmente agrária, na estrutura
de dominação do estado nacional. Consideramos oportuno, reproduzir a análise do
autor que, apesar de extensa, mostra-se essencial para fundamentar a perspectiva de
ordem administrativa que tem sido desenvolvida nesta tese:
...o capitalismo monopolista terá de adaptar-se para coexistir
com uma variedade de formas econômicas persistentes,
algumas capitalistas, outras extracapitalistas. Não poderá
eliminá-las por completo, pela simples razão de que elas são
funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de
desenvolvimento econômico na periferia. Em outras palavras,
para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas,
esse padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar
formas econômicas variavelmente “modernas”, “antigas” e
“arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da
economia competitiva, do mercado capitalista da fase
neocolonial e da economia colonial. Tais formas econômicas
operam, em relação ao desenvolvimento capitalista-monopolista,
como fontes originárias de capital (Fernandes, 1981: 269).
Diferentemente, portanto, das interpretações (Bresser Pereira, 1996 e 1998b e
Grau, 1998) que identificam a reforma administrativa de 1967 como um marco no
processo de aprimoramento do desenvolvimento da ordem administrativa brasileira no caminho da incorporação de mecanismos gerencias voltados para maior eficiência
na condução administrativa, distinguindo a reforma de 1967 da de 1936 e do
desenvolvimento da administração paralela na década de 1950 -, consideramos que,
efetivamente, o que ocorre no Brasil, do ponto de vista administrativo, a partir do golpe de
ccxxviii
1964, é a institucionalização e expansão da estrutura anterior, porém sob a égide da
consolidação monopólica do capitalismo brasileiro.
A expansão da estrutura administrativa se processa através da
descentralização77, operada, principalmente, pela ampliação da administração
indireta. Os diferentes dados a respeito dessa ampliação são contundentes (Martins,
1997; Lima Júnior, 1998; Pinho, 1998; Rezende, 2004)78.
Portanto, a experiência da burocracia insulada dos anos 1950 se expande
nesse período, a partir de uma orientação formal-legal expressa no Decreto-lei n º.
200/67.
Se, como vimos anteriormente, o insulamento dos anos 1950 se configura
como uma estratégia para processar o projeto de “irrupção do capitalismo
monopolista”, sob a perspectiva da “dupla articulação” e da exclusão das classes
trabalhadoras - obliterando, também, diga-se de passagem, as interferências
indesejadas de frações das classes dominantes -, a partir da ditadura, a situação se
agrava de forma exponencial, mudando qualitativamente o formato de articulação
entre o setor privado e o setor estatal para operar, agora, a consolidação de tal
estratégia.
Do ponto de vista administrativo, a mudança qualitativa se expressará através
da ampliação quantitativa da administração indireta e da substituição das assessorias
e grupos executivos de planejamento por uma estrutura fundada nas empresas
estatais, autarquias, fundações e sociedades de economia mista79 e no poder
executivo federal, via Ministério do Planejamento (Fiori, 1995; 24).
77
Conforme indica Torres (2004: 153 e 154), a descentralização proposta em 1967 se refere a três planos: na própria
administração direta, através da distinção entre direção e execução; na relação estabelecida entre administração federal e
unidades da federação e, por fim, na transferência para a administração indireta e iniciativa privada de determinadas ações.
78
Martins (1997: 22) informa que, na metade dos anos 1970, em relação a empresas públicas e controladas pelo Estado havia,
no Brasil, 571 delas, nos três níveis administrativos, sendo que 60% haviam sido criadas entre 1966 e 1976; Lima Júnior (1998:
14) aponta que de 440 empresas públicas, abrangendo o período entre 1939 e 1983, foram criadas 267 no período 1964-1983;
Pinho (1998: 4 e 5) apresenta o levantamento realizado por Braz Araújo, o qual indica que de 173 informações conseguidas
sobre as empresas estatais federais existentes em 1975 (total de empresas estatais existentes em 1975 era de 217), 130 foram
criadas entre 1965 e 1975; para finalizar, Rezende (2004: 61), a partir de vários volumes do “Orçamentos da União”, elabora
um quadro sobre as organizações públicas criadas pelo governo federal (1908-1984), o qual informa que do total de 384
organizações criadas ao longo do período, 274 foram instituídas entre 1964 e 1984, sendo que 216, a partir de 1967.
79
Para um sumário das distinções entre esses tipos de instituições que compõem a administração indireta, ver Torres (2004:
155).
ccxxix
Como sugere Nunes (1997: 42), o insulamento burocrático, processado na
década de 1950, permitiu o surgimento daquilo que Fernando Henrique chamou de
“anéis burocráticos” (Cardoso, 1975). Os “anéis burocráticos”, de acordo com o
sociólogo e ex-presidente, traduzem-se nos mecanismos políticos criados para
incorporar as forças econômicas privadas beneficiárias do sistema80 nos processos
de decisão necessários para a implementação do projeto em tela. Dessa forma, os
“anéis” se diferenciam dos lobbies, na medida em que se estruturam em círculos de
poder (informação e pressão) constituídos para viabilizar a articulação entre setores
do Estado e setores das classes sociais. Portanto, de acordo com Cardoso (1975:
208),
O que os distingue de um lobby é que são mais abrangentes (ou
seja, não se resumem ao interesse econômico) e mais
heterogêneos em sua composição (incluem funcionários,
empresários, militares etc.) e, especialmente, que para ter
vigência no contexto político-institucional brasileiro, necessitam
estar centralizados ao redor do detentor de algum cargo. Ou
seja, repetindo, não se trata de um instrumento de pressão da
sociedade sobre o Estado, mas da forma de articulação que sob
a égide da “sociedade política”, assegura ao mesmo tempo um
mecanismo de cooptação para integrar nas cúpulas decisórias
membros das classes acima referidas que se tornam
participantes da arena política, mas a ela se integram quae
personae e não como “representantes” de suas corporações de
classe.
Dessa feita, os “anéis burocráticos” formados a partir da expansão da
administração indireta, principalmente, através de sua intervenção na economia,
institucionalizam um processo de participação política de setores das classes
dominantes independentemente da existência de mecanismos de democracia,
eliminando, portanto, os espaços políticos possíveis de participação das camadas
populares e dos setores democráticos da sociedade.
Assim, a privatização do Estado operada nos moldes da década de 1950
expande, intensifica e se institucionaliza (a despeito da inexistência de uma relação
orgânica entre a burguesia nacional e o Estado); a burocracia se concentra na sua
80
Cardoso (1975: 206) aponta como beneficiários do regime “os setores industrial exportadores, os setores contratistas de
obras, os setores extrativo-exportadores, o grande capital multinacional – ligado às atividades anteriores ou à industria de
transformação – e o capital financeiro mobilizado para sustentar a nova etapa de acumulação e do crescimento econômico”.
ccxxx
dimensão de especialização e de expansão da racionalidade capitalista; e, por fim,
fragiliza-se, ainda mais, o desenvolvimento das potencialidades democráticas da
ordem burocrática.
Dentro desse panorama, consideramos a idéia dos “anéis burocráticos” como
fecunda para compreendermos a relação de continuidade e ruptura existente entre as
estratégias da década de 1950 e aquelas operadas a partir do golpe de 64.
No entanto, é fundamental explicitar que o desdobramento operado por
Cardoso, a partir dessa reflexão, não é incorporado nesta tese. Estamos nos referindo
à polêmica e equivocada análise sobre a constituição de uma “burguesia de Estado”.
Para o autor, nesse processo de expansão das empresas estatais, a elite burocrática
se configurará como agente econômico estatal capitalista com interesses próprios
competindo com os agentes privados e buscando hegemonia.
Como esclarece Coutinho (1980: 104), em seu ensaio crítico sobre a tese da
burguesia de Estado, o equívoco de Cardoso se encontra no fato de que ele “não vê a
dinâmica básica do CME [Capitalismo Monopolista de Estado], que se funda na
articulação orgânica entre Estado e monopólio numa totalidade concreta. Para ele, ao
contrário, nosso atual sistema econômico é um ‘sistema híbrido’”.
Continuando a análise, o autor verifica que, nos termos indicado por Cardoso,
nosso capitalismo apresenta uma contradição interna que se expressa na luta entre
as variantes “Capitalismo de Estado” ou “Capitalismo de Empresa”.
Em seguida, Coutinho mostra que Cardoso utiliza também a categoria
“burguesia de Estado” para compreender a raiz de nosso autoritarismo. Para
Cardoso, a razão de ser dos regimes autoritários das sociedades dependentes se
encontra nos “interesses sociais e políticos dos estamentos burocráticos que
controlam o Estado e que se organizam cada vez mais no sentido de controlar o setor
estatal do aparelho produtivo” (Cardoso, 1975: 40).
Nesse sentido, o analista aponta que, implicitamente, a concepção do
sociólogo é de fundo liberal, “segundo a qual a intervenção estatal é em si autoritária,
ccxxxi
oposta ao liberalismo (econômico e político) que seria próprio do setor privado”
(Coutinho, 1980: 110). Em conseqüência, conforme questiona Coutinho - diga-se de
passagem de forma brilhante e com 15 anos de antecipação -, tal concepção, ao
estabelecer uma relação orgânica entre expansão estatal e autoritarismo, “não
poderia levar água ao moinho dos antiestatistas, dos que defendem (dentro da ‘lógica’
do CME) a devolução à iniciativa privada de todos os setores estatais que cessada a
fase de maturação dos investimentos, possam agora gerar diretamente lucros para o
setor privado?” Nessa esteira de raciocínio, o crítico observa que a discussão sobre a
empresa pública “sem colocar o problema de quem controla o aparelho executivo do
Estado (ou seja, sem colocar a questão do CME) significa, em última instância,
consciente ou inconscientemente, adotar o ponto de vista do liberalismo ou
neoliberalismo econômico”. De forma generosa, o analista finaliza: “Estou certo de
que Cardoso recuaria de conclusões desse tipo. Mas sua tese de ‘burguesia de
Estado’ – da ligação orgânica entre estatismo e autoritarismo – não conteria as
premissas que preparam essas conclusões?” (Coutinho, 1980: 111).
Sendo assim, a noção dos “anéis burocráticos” é aqui incorporada como sendo um
mecanismo político criado para que o Estado pudesse viabilizar o desenvolvimento do
capitalismo monopolista no Brasil, articulando e integrando os diversos capitais. Ou seja, a
forma particular encontrada pelo Estado brasileiro para defender os “interesses
globais da reprodução capitalista, o que, em nosso tempo, significa objetivamente a
reprodução do capital como capital monopolista; e [que] para isso, tem de criar um
corpo executivo numeroso e relativamente autônomo, que se legitima em nome da
‘racionalidade técnica’ (...) e se situa acima das ‘paixões’ imediatas dos capitalistas
singulares” (Coutinho, 1980: 99).
A ampliação da administração indireta, que possibilitou o surgimento dos
“anéis burocráticos”, provocará, também, duas outras consequências para a
administração pública.
ccxxxii
A primeira delas refere-se à incorporação de critérios empresariais na
administração pública, gerando um processo de competição intra-burocrático, em
que a cooperação e a solidariedade entre agências é substituída pelo ethos da
concorrência. Por isso, mais uma vez, expressa-se a aparência de um novo modelo de
gestão sendo introduzido na administração pública.
A segunda conseqüência diz respeito ao tratamento diferenciado que se
estabeleceu entre a administração indireta, priorizada para receber investimentos em
termos de infra-estrutura, qualificação profissional e remuneração dos servidores e a
administração direta, “responsável pelas poíticas públicas mais fundamentais na área
social, era sucateada, desmotivada, mal remunerada e desaparelhada, deixando boa
parte da população brasileira sem uma ação estatal minimamente razoável” (Torres,
2004: 156 e 157).
Essas duas conseqüências serão nefastas para o desenvolvimento e
fortalecimento do universalismo de procedimentos e expansão de direitos no interior
da ordem burocrática da administração pública. Em primeiro lugar, o espírito de
competição e concorrência entre as agências da administração indireta se expandirá
para o conjunto da administração pública, prejudicando fortemente a integração e
articulação dos diferentes organismos da administração direta que são fundamentais
para o desenvolvimento das políticas sociais. Em segundo lugar, o sucateamento da
administração direta afetará de forma substantiva as estruturas destinadas à
implementação de políticas sociais, preservando as áreas vinculadas à fazenda,
relações exteriores e forças armadas.
Vejamos as mudanças operadas no campo social, durante o período em
questão, buscando compreender a lógica que produziu o sucateamento da área.
Em relação à intervenção do Estado na previdência social, foram excluídos
das decisões os representantes dos trabalhadores, embora o regime tenha
imprimido velocidade à expansão da cobertura previdenciária legal à população. Em
ccxxxiii
novembro de 1966, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),
unificando todos os institutos existentes até então (com exceção do IPASE) e
uniformizando os benefícios81. A partir desse momento, a lógica da “cidadania
regulada” passa a ser desmontada pela nova estrutura da política social brasileira.
Ainda no que diz respeito à previdência social, em 1971 foi criado um
programa para atender ao setor rural. Em 1972 instituiu-se a inclusão obrigatória dos
empregados domésticos no sistema do INPS.
Em 1974, foram também criadas unidades permanentes de planejamento nos
ministérios e a carreira de técnico em planejamento. O Ministério do Trabalho e
Previdência Social foi desmembrado, dando origem ao Ministério do Trabalho e ao
Ministério da Previdência e Assistência Social, ampliando-se, assim, a atuação dos
serviços sociais.
O Ministério da Previdência e Assistência Social passa a ser a instituição
dirigente do sistema de previdência social, com a função de supervisionar e
coordenar programas específicos, como o do INPS, bem como de desenvolver
programas de previdência e assistência social no âmbito dos planos globais sociais
e econômicos.
Em 1977, cria-se o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social
(SINPAS) com o objetivo de reorganizar e racionalizar a previdência social, que se
encontrava em situação crítica em face do extraordinário crescimento dos gastos de
atendimento médico do INPS.
Com a restrição dos direitos civis e políticos, os direitos sociais
implementados pela ditadura militar, por meio de suas políticas sociais, marcaram o
início do desmonte do aparato de regulação da cidadania, unificando, uniformizando
81
Cabe registrar que a uniformização dos benefícios ocorreu em 1960 após aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social.
ccxxxiv
e ampliando os serviços sociais, com certa tendência universalizante. Como não se
procedeu a uma alteração substancial das bases de financiamento das políticas
sociais, ampliaram-se os serviços de baixa qualidade. Na palavras de Werneck
Vianna:
...a ditadura recente disseminou direitos sociais entre os antes
excluídos, mas nivelou esta cidadania social em patamares tão
baixos que a estigmatizou, afastando do sistema público os
trabalhadores formais e a imensa gama de novos segmentos
médios assalariados – também criaturas do projeto
modernizante” (Werneck Vianna, 1998: 143).
Nesses termos, conforme sinaliza a autora, institui-se uma “americanização
perversa” na seguridade social brasileira. A universalização das políticas sociais se
processa de maneira combinada à mercantilização de serviços. Dessa forma, forjase um sistema público de baixa qualidade para a massa da população brasileira,
devido a não priorização de investimentos na estrutura da administração direta
ressaltada acima. Por outro lado, cria-se um sistema privado (principalmente nas
áreas de saúde e educação) para as camadas média e alta da sociedade. Portanto,
desenvolvem-se políticas sociais de tendência universalizante, conduzidas pelo
Estado, porém constituídas sobre uma estrutura institucional residual e precária para
desenvolver tal tarefa. Nesse sentido, como ressalta Fiori (1995: 131), criam-se as
condições para a manutenção da “submissão de certas políticas estatais (sobretudo
as sociais) aos interesses de uma ação parlamentar restrita ao varejo da troca de
voto pelos serviços e favores públicos...”.
Outras características das políticas sociais do período são a fragmentação, a
centralização e a burocratização das instituições responsáveis por sua
implementação. Destaque-se ainda que, sob a orientação da doutrina de segurança
nacional, as políticas sociais e, principalmente, as ações assistenciais servem,
sobretudo, para desenvolver a “política do controle” da sociedade (Vieira, 1995),
ccxxxv
articulando assistência e repressão82, ou como assinala Fiori (1995: 46), “em vez do
Estado de bem-estar social, o que temos é uma combinação de paternalismo e
repressão”.
A não efetivação da universalização dos serviços possibilitou que se
mantivesse, dessa forma, a situação de “cidadania invertida” para a grande maioria
da população brasileira em combinação com a expansão de serviços sociais públicos
de baixa qualidade.
Mestriner (2001) destaca, no caso da assistência social, o crescimento da
estrutura e racionalidade da área, apontando para uma burocratização contínua do
setor, através de instituições organizadas nacionalmente, como a LBA e a então
criada Fundação Nacional para o Bem-estar do Menor (FUNABEM).
As políticas sociais de baixa qualidade foram organizadas através de uma
estrutura administrativa também de baixa qualidade, a expansão de serviços não foi
acompanhada por um incremento proporcional nos investimentos para sua
implementação, devido à priorização destinada a outras áreas da administração direta
(relações exteriores, forças armadas e fazenda), mas principalmente pelo
investimento nas organizações da administração indireta responsáveis pela
intervenção econômica do Estado. Apesar disso, houve no período uma expansão da
estrutura administrativo-burocrática do setor social.
Cabe ainda ressaltar que o campo das políticas sociais e, principalmente, na
área da assistência social, a articulação com padrão tradicional patrimonialista
continuou vigendo como forma de processar a ordem administrativa da área,
principalmente através do Conselho Nacional de Serviço Social e de suas relações
com o Congresso Nacional e com determinadas entidades filantrópicas (Mestriner,
2001: 176-179).
82
De acordo com Sposati et ali (1998), o processo de negação de assistência, por parte dos profissionais do serviço social, é
reforçado nesse período devido aos elementos autoritários e tecnocráticos que são incorporados às ações assistenciais.
ccxxxvi
Outra dimensão importante para destacar a continuidade da estrutura
patrimonialista e clientelista no Brasil refere-se à utilização da patronagem no âmbito
da administração direta nos estados.
Conforme analisa Abrúcio (2002), os governos militares, apesar de restringirem
o poder das esferas estaduais, através da mudança na sistemática orçamentária, que
reduzia a interferência do Congresso, e da alteração do quadro tributário, que
centralizava os recursos na união, penalizando os entes estaduais, mantiveram a
estrutura administrativa estadual como recurso para o clientelismo.
Nesse sentido, os governos militares tiveram que controlar os governos
estaduais, visto que estes ainda possuíam recursos para influenciar a base local.
Assim, conforme destaca Abrúcio (2202: 82):
O importante é sublinhar que as Administrações Diretas
estaduais continuaram sendo o principal locus de patronagem
da esfera subnacional. Por isso, enquanto o Governo Federal
tivesse o controle das governadorias o poder de patronagem das
Administrações Diretas estaduais seriam usadas a favor do
regime; no momento em que o regime perdesse o controle das
governadorias, as máquinas estaduais tornariam mais difícil a
manutenção do esquema de patronagem baseado na relação
União/municípios.
Tal situação explicita que, além da forma de recrutamento da administração
indireta não exigir seleção por mérito, pelo lado da administração direta, a reforma de
1967 também “não conseguiu introduzir e consolidar o mérito como princípio
organizador da nova burocracia” (Rezende, 2004: 58).
Nesse quadro, cabe frisar que o processo de privatização do Estado brasileiro
ocorre em duas diferentes frentes.
A primeira delas refere-se à privatização do Estado operada pelas elites
dominantes, principalmente, aquelas vinculadas à burguesia industrial. Nesse caso,
as análises de Fiori (1995) e Oliveira (2003) são precisas em relação à articulação
estabelecida entre o empresariado industrial nacional, o Estado e o capital
estrangeiro.
ccxxxvii
Conforme a análise dos autores, o empresariado nacional optou por uma
relação de subordinação ao capital estrangeiro em detrimento de uma relação
orgânica nacionalista e estatizante com o Estado Nacional.
...o Estado atuou deliberadamente no sentido de privilegiar o
capital, poderia ter atuado transferindo tecnologia para as
empresas de capital nacional. Tal não ocorreu (...). É preciso
pensar que a figura do Estado onipresente nunca foi pensada,
nem era da perspectiva ideológica do empresariado industrial
nacional (Oliveira, 2003: 77).
... um Estado que nunca conseguiu ir além dos limites que lhe
foram impostos por um empresariado que, contraditoriamente,
conseguiu ser profundamente antiestatal, não obstante sua
longa história de anemia schumpeteriana e dependência do
próprio Estado (Fiori, 1995: 58).
Essas análises deixam explícito que a burguesia brasileira não quis se aliar ao
Estado para promover o desenvolvimento com bases nacionais. Um dos motivos,
certamente, refere-se ao fato de que se aliar ao Estado aumentaria a possibilidade de
uma incorporação mais intensa da classe trabalhadora que, na segunda metade dos
anos de 1950 e na década de 1960 já se manifestava de forma mais crítica e combativa
em relação à estrutura de super-exploração da força de trabalho e ao formato de
incorporação regulada e seletiva, via relação estabelecida com o Estado, que
demarcavam as possibilidades restritas de acesso às riquezas produzidas. Assim,
como destaca Fernandes (1981: 346):
As classes e estratos de classe burgueses patrocinaram (...),
portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado,
em última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um
pólo, na direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em
outro, na direção de um Estado autoritário. Ambas as noções
são ambíguas. Contudo, elas traduzem uma realidade concreta.
O Estado adquire estruturas e funções capitalistas, avançando,
através delas, pelo terreno do despotismo político, não para
servir aos interesses “gerais” ou “reais” da Nação, decorrentes
da intensificação da revolução nacional. Porém, para satisfazer o
consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar
viabilidade histórica ao desenvolvimento extremista, a
verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista da
periferia.
Como vimos, o processo de privatização do Estado pelas elites empresarias se
processou, primordialmente, através dos chamados “anéis burocráticos”, cujos
“canais informais”, criados para efetivar a influência do empresariado nas definições
ccxxxviii
sobre as orientações do projeto industrializante, possuíam um forte caráter tradicional
e patrimonialista, apesar de a estrutura administrativa global não poder ser
confundida com uma ordem patrimonialista, na medida em que esses canais
viabilizavam, em última instância, uma racionalidade para o desenvolvimento da fase
monopólica do capitalismo. Ou seja, esses mecanismos propiciaram o
desenvolvimento do capital em seu conjunto, através da ação de uma burocracia
competente, racional e especializada para implementar os objetivos em tela. Portanto,
esses mecanismos, embora se utilizem de elementos da ordem tradicional, não se
configuram, em seu conjunto, como uma administração patrimonialista.
Nesse contexto, de acordo com Fiori (1995: 78-82), processa-se a “rejeição de
uma via prussiana clássica”, pois marcada por ambigüidades: antiestatismo e
desenvolvimentismo; desorganização da via desenvolvimentista, através da
substituição do setor financeiro privado pelo financiamento estatal, que levou ao
endividamento e à especulação improdutiva; o fio da navalha de uma aliança
conservadora e de uma estratégia econômica liberal-desenvolvimentista, que
possibilitou, por um lado, que a ação estatal garantisse a ordem, os subsídios, os
insumos e a infra-estrutura, mas que, por outro lado, impediu a intervenção do Estado
para realizar a monopolização e centralização financeira necessárias para a expansão
capitalista; inexistência de solidariedade efetiva entre o empresariado e o Estado e a
postura predominantemente predatória do primeiro em relação ao segundo83.
O outro processo de privatização do Estado ocorre através da manutenção da
lógica tipicamente patrimonialista, senão como lógica hegemônica, pelo menos como
uma dimensão fortemente estruturada, principalmente nos setores da administração
pública responsáveis pela implementação de políticas sociais e nas administrações
diretas estaduais. No sentido inverso da privatização operada via agências vinculadas
às questões relacionadas à política econômica, essa estrutura, que preserva o
83
Behring (2003: 102), baseada em Florestan Fernandes, resume a situação da seguinte forma: “Com a opacidade do regime
militar, abriam-se novas condições para as elites associarem-se mais intimamente com o capital financeiro, reprimirem a
subversão da ordem e se literalmente do Estado, num contexto de crescimento acelerado e sob controle”.
ccxxxix
patrimonialismo na esfera das políticas sociais e na administração direta subnacional,
será desenvolvida incorporando, também, traços racionais e de especialização,
devido ao crescimento da máquina pública e à necessidade de organizar
determinadas ações que efetivamente produzam impacto social junto à população.
Portanto, mesmo nessa área onde o patrimonialismo continua fortemente presente,
isso não acontece isoladamente, muito pelo contrário, a dimensão burocrática da
administração pública se expande consideravelmente, apesar de, nesse quadro,
imiscuir-se com o clientelismo ou se afastar da política, evocando ser a portadora da
universalidade ou da neutralidade técnica.
Nesse cenário, dois aspectos podem explicar a distância da burocracia da
política/democracia: a) o fato de seu desenvolvimento no Brasil estar relacionado às
ditaduras Vargas e dos militares (Torres, 2004: 152 e Nogueira, 1998: 92) e b) a
estratégia que a burocracia utilizou para se distinguir da estrutura
patrimonialista/clientelista: o afastamento da política entendida (de certa forma com
razão, apesar de uma concepção equivocada) como o espaço do fisiologismo.
Nogueira (1998; 98), em sua análise sobre a questão, mostra que a dimensão
racional-legal burocrática da ordem administrativa brasileira acabou reforçando o
papel do Estado como interventor na sociedade, porém sem estabelecer uma canal
transparente e universalista com a sociedade, constituindo uma via não democrática
de intervenção. Nesse sentido, a democracia se transformou em retórica liberalpatrimonialista, pois pregava a não intervenção do Estado (maior liberdade do
indivíduo) e/ou o estabelecimento de uma relação mais próxima do Estado com a
política, porém com o intuito de privatizá-lo no sentido tradicional.
Assim posto, o resgate da análise de Fernandes (1981), realizada por Behring
(2003: 101), mostra-se extremamente pertinente. A autora relembra que, para o
sociólogo, assim como para Caio Prado, “o horizonte histórico da burguesia brasileira
dificilmente seria/será suficientemente amplo, no sentido da realização de uma
revolução nacional democrática”.
ccxl
Historicamente, isso se comprovou na construção do Estado brasileiro. A
burguesia sempre utilizou o Estado nos momentos em que ele poderia garantir seus
privilégios. Reforçou a estruturação do Estado para atender a seus interesses
particularistas com pouca atenção à incorporação das massas. Os impulsos
democratizadores sempre foram combatidos e, a cada momento de acirramento do
combate, as estratégias escolhidas pelas classes dominantes para o enfrentamento
da situação eram as manobras autoritárias e ditatoriais. A conseqüência dessas
estratégias era o reforço do Estado para controlar as pressões democratizadoras num
quadro de “hegemonia burguesa crítica” (Vasconcelos, 1989). Portanto, o Estado
sempre foi utilizado pelas classes dominantes como um instrumento de garantia de
seus privilégios e, nesse sentido, era defendido.
Em termos gerais, poderíamos sintetizar o período militar como sendo o
momento em que fica explicitado que a estrutura do Estado e da administração
pública, no quadro da expansão capitalista brasileira, organiza-se de forma que os
interesses da classe trabalhadora ficassem subalternizados. O significado da ditadura
militar e seu processo de modernização conservadora implicou uma liberalização da
administração pública (Decreto-lei n.º 200), um enrijecimento burocrático e
fortalecimento do Estado para o capital e uma expansão de baixa qualidade com
burocracia precária para a área social.
Resumidamente, no contexto do desenvolvimento e consolidação da fase
monopólica do capitalismo brasileiro (1950-1979), a materialidade da configuração da
administração pública brasileira pode ser vista da seguinte forma: a) para as questões de
segurança, relações internacionais e questões fiscais – BUROCRACIA valorizada e
reconhecida; b) para a questão social – Mix de BUROCRACIA centralizadora, autoritária e
sucateada, fundada no corporativismo estatal (Estado controlando as instituições da
sociedade civil, principalmente as vinculadas ao trabalho, para viabilizar a incorporação
seletiva e regulada) e PATRIMONIALISMO, fundado na estrutura clientelista (para garantir a
lealdade política de setores tradicionais, através da relação entre Poder central-Poder local
ccxli
e Poder local-população - clientela); c) para a intervenção nas questões diretamente
econômicas (política mometária, fiscal, industrial) - BUROCRACIA INSULADA, baseada no
corporativismo estatal (Estado privatizado por interesses do capital – a expressão material
dessa estrutura burocrática são as administrações indiretas criadas no regime militar e,
conseqüentemente, a formação dos “anéis burocráticos”).
O Estado brasileiro, no contexto do processo de industrialização e urbanização
(pós-1930), estrutura-se como o protagonista central desse processo de forma
autoritária (era Vargas e ditadura militar). Nesse sentido, hipertrofia-se e beneficia as
elites (velhas-oligárquicas e novas-burguesas) no desenvolvimento desse projeto. Por
outro lado, a racionalidade burocrática nunca fora fortemente estruturada no País,
convivera com patrimonialismo e evitara a “política”, apesar de ter criado
mecanismos para sofrer influência das elites econômicas.
Como foi possível constatar, o processo de desenvolvimento da administração
pública, apresentado e analisado nesta seção, longe de se configurar como uma
continuidade estática dos traços presentes desde a época colonial até a finalização da
República Velha, manifesta-se num movimento de continuidade e ruptura, em que o
novo se apresenta, principalmente, nas seguintes dimensões: a) na conquista da
hegemonia, no seio da classe dominante, de um projeto tipicamente burguês de
industrialização e urbanização do país; b) na incorporação da classe trabalhadora,
mesmo que seletiva e parcial, até os anos 1960, e universal, com baixa qualidade e
repressiva, pós-1964 e c) na ampliação da esfera burocrática da administração pública
- fosse para a implementação e desenvolvimento da estrutura econômica capitalista,
fosse para a organização e expansão das políticas sociais -, a qual se tornou
predominante, a partir da década de 1960 .
Nesse contexto, no Brasil, não houve o problema de se ter Estado frágil, mas
sim forte para a oligarquia e, posteriormente, para a burguesia, e nunca para a classe
trabalhadora, ou, pelo menos, que procurasse atender, de forma mais substantiva ou
conseqüente, aos interesses dessa classe. Assim, nosso problema se expressou na
ccxlii
ausência de um Estado que assumisse um papel mais forte de mediador dos
interesses da classe trabalhadora e não apenas de agente que reforça a ação voltada
para subjugar as camadas subalternas, além de ter desenvolvido uma burocracia forte
para as finalidades econômicas capitalísticas e frágil para implementar políticas
sociais (Nogueira, 1998: 12-14).
Esse tipo de configuração estatal brasileira levou Simom Schwartzman (1982) a
classificar a dominação em nosso país como “neopatrimonial”. Trata-se de um tipo de
dominação moderna, exercida pela burocracia e a chamada classe política, que se
distingue, por um lado, da dominação racional-legal, devido à estruturação de um
papel mínimo ou inexistente do contrato social e da legalidade jurídica, típicos da
dominação tradicional, e, por outro lado, distingue-se do patrimonialismo, na medida
em que possui racionalidade técnica.
A ênfase dada por Schwartzman, em relação à concepção neopatrimonial se
configurar como um sistema moderno de dominação, recai sobre a dimensão
contratual da dominação e não na racionalidade técnica do sistema. Portanto, a
denominação neopatrimonial apresenta a dimensão contratual/legal como
determinação central do sistema moderno e não a da racionalidade técnica (a
especialização). A questão problemática, nos termos colocados pelo autor, refere-se,
como bem sinaliza Cohn (1982), à utilização da noção de “moderno” no mesmo nível
analítico de “tradicional”, quando Weber trabalha com “tradicional” e “racional-legal”
como níveis analíticos típico-ideais e “moderno” numa perspectiva empírica (Estado
moderno). Essas inversões de níveis distintos de categorias de análise, conforme
aponta Cohn (1982), deveriam passar por um processo de “argumentação muito mais
cuidadosa do que a adotada para acomodar o esquema construído por Schwartzman
no quadro teórico weberiano. Trata-se de tarefa intricada que ele nem chega a
contemplar”.
Outro aspecto a destacar diz respeito ao fato de Weber trabalhar a dominação
tradicional como fundada nas relações de lealdade pessoal baseadas na tradição, que
ccxliii
podem ser operadas num sistema com nível maior (feudalismo) ou menor
(patrimonialismo) de contratualidade. Assim, parece-nos equivocado o tratamento
dado à dimensão tradicional da dominação no caso brasileiro, na medida em que a
inexistência ou existência ínfima do contrato significa a manutenção da
discricionaridade pessoal baseada nos laços de lealdades advindos dos mecanismos
tradicionais da ação social, os quais tornam a dominação legítima, posto que, do
contrário, teríamos uma dominação ilegítima (sem relação formal/contratual e sem
relação de vínculos pessoais de lealdade), saindo completamente da matriz
weberiana. Contraditoriamente a essa observação, o termo “neopatrimonialismo”
acaba induzindo uma análise que relativiza o papel e a função que a burocracia
desempenhou no Brasil em relação à expansão do capitalismo brasileiro desde sua
fase de industrialização restringida até a consolidação monopólica. Por sua vez,
weberianamente falando, o sistema de racionalidade típica do Estado moderno está
diretamente vinculado à criação das condições para o desenvolvimento capitalista,
através de uma ordem administrativa burocrática. Dessa maneira, parece correto
afirmar que a determinação central da dominação, no contexto da modernidade, é a
racionalidade que possibilita a implementação e desenvolvimento do capitalismo,
como mais ou menos presença de elementos que constituem sua formação típicoideal. Nesse sentido, a identificação de traços da dominação tradicionalpatrimonialista presente numa ordem administrativa vinculada ao processo de
desenvolvimento capitalista já se encontra incorporada na proposição weberiana se
entendermos a utilização dos tipos ideais84.
Sendo assim, concordando com Gabriel Cohn (1982), consideramos muito mais
pertinente, do ponto de vista metodológico, trabalharmos os tipos-ideais de
dominação desenvolvidos por Weber como instrumento para explorar a análise de
uma dada realidade que para caracterizar um dado sistema político. Nesse sentido, o
conceito de “neopatrimonialismo”, criado por Schwartzman, tende a reduzir as
84
Ver nota 46.
ccxliv
possibilidades analíticas que a utilização dos tipos ideais weberianos permite efetivar.
Em outras palavras, o conceito de “neopatrimonialismo” é mais pobre, do ponto de
vista de sua capacidade heurística, do que os conceitos de Weber, na medida em que
o novo conceito sintetiza diferentes aspectos de tipos ideais distintos elaborados pelo
sociólogo alemão, colocando-os sobre um mesmo rótulo. Esse procedimento, por um
lado, produz uma criação, no mínimo, polêmica, a qual mereceria um maior cuidado
conceitual, como observa Cohn (1982). Por outro lado, ao sintetizar num conceito
diferentes traços típico-ideais, Schwartzman inviabiliza a exploração da riqueza dos
tipos ideais como mecanismos de interpretação da realidade, “dada pelo
estabelecimento de relações significativas entre tipos” (Cohn, 1982).
Portanto, para evidenciar os diferentes traços da administração pública
brasileira, parece muito mais fecundo, em vez de criar novas nomenclaturas, que mais
obscurecem que esclarecem a realidade social, trilhar pelo caminho proposto de
interlocução com diferentes analistas, visando à apreensão das determinações
constitutivas da essência de nossa ordem administrativa, ou seja, seu movimento
interno, suas conexões, estruturas e contradições, para que seja possível captar os
elementos constituintes desse fenômeno, a fim de apreender o objeto em sua
totalidade.
Por fim, para concluir nossa crítica ao “neopatrimonialismo”, cabe registrar
que o ponto de partida do conceito desenvolvido por Scwartzman vai de encontro à
perspectiva adotada neste trabalho, na medida em que relaciona o exercício da
dominação a uma “classe política” e à “burocracia”, não estabelecendo articulações
claras entre essa elite dominante e os interesses de classes, autonomizando
radicalmente a política, de tal forma que parece considerar que a “classe política” e a
“burocracia” se encontram acima da sociedade.
Assim, para finalizar o presente capítulo, cabe sintetizarmos as reflexões
desenvolvidas até aqui. Nesse sentido, é fundamental, primeiramente, retomarmos a
análise sobre a formação do Estado brasileiro e a estruturação de sua ordem
ccxlv
administrativa, lembrando que a orientação da industrialização, desde a fase inicial
até a consolidação monopólica, pautou-se na perspectiva da “dupla articulação” e da
exclusão das camadas populares.
Tal situação implicou, na dimensão política, a formação de um pacto
conservador de dominação, a partir do comportamento presente na esfera econômica.
Dessa forma, a relação arcaico-moderno aparece também na configuração do
Estado brasileiro e na constituição da ordem administrativa. Portanto, a ordem
política se entrelaça dialeticamente com os rumos do desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, influenciando as decisões econômicas, visando à garantia da manutenção
do poder dos setores agrários tradicionais combinado com o da emergente burguesia.
O Estado e a administração pública, então, vão expressar essa hegemonia.
A coalizão das classes dominantes, composta pelos setores agrário e
industrial, através da estrutura de dominação, agirá para reproduzir a ordem
estabelecida, incorporando, parcialmente, os setores populares, de acordo com a
pressão existente e importância para a acumulação.
Do ponto de vista da ordem administrativa, articulam-se elementos “novos”
(burocráticos) e “arcaicos” (patrimonialistas) como forma de garantir o pacto de
dominação conservador existente, via implementação das ações do Estado. Logo, a
ordem administrativa é composta de um imbricação entre a dimensão
patrimonialista e a burocrática que, dialeticamente, são funcionais, do ponto
de vista estrutural, para a operação de dominação presente.
Por um lado, é necessário formular e implementar o projeto de expansão
capitalista. Necessita-se, então, de um quadro administrativo especializado e
profissional, assim como certas regras e normas bem definidas, ou seja, necessitase de burocracia.
ccxlvi
Entretanto, esse planejamento deve garantir a manutenção e a reprodução
dos interesses das classes dominantes. Nesse sentido, criam-se canais informais de
comunicação entre elites empresariais e a burocracia.
Como o projeto é de industrialização, faz-se necessário atender a
determinados interesses das classes trabalhadoras. Assim, a administração pública
deve possuir mecanismos burocráticos para viabilizar o atendimento de tais
interesses, desde que não estejam estratégica e diretamente ligados aos centros de
decisão dos projetos de expansão capitalista, nem que possam interferir
significativamente em sua condução.
Simultaneamente, os setores tradicionais, como participantes do pacto de
dominação, apresentam-se como fiadores do projeto de expansão capitalista, apesar de não
serem mais a fração dominante. Sendo assim, a ordem administrativa do Estado deverá
organizar um espaço para a continuidade da influência dos setores tradicionais na condução
política do projeto de industrialização. Dessa forma, a dimensão patrimonialista se apresenta
como necessária – embora deixe de ser hegemônica - para a manutenção da estrutura de
dominação da sociedade brasileira.
Nesse sentido, o patrimonialismo se configura como uma determinação
central do nosso modelo de desenvolvimento capitalista, não se constituindo
como um obstáculo para tal. Portanto, não se apresenta como um elemento de
atraso que deve ser superado.
Dessa maneira, a ordem administrativa brasileira vai ser uma imbricação
de patrimonialismo e burocracia não por uma dualidade entre o “arcaico” e o
“novo”, mas sim pela necessidade de ter uma ordem administrativa adequada
à lógica de dominação e à estrutura de poder forjada por nossa “revolução
burguesa”.
Nessa perspectiva, o patrimonialismo na ordem administrativa brasileira não
ccxlvii
se configura como uma dimensão cultural que precisa ser modernizada para a
superação do “velho” (tradicional). Ele se configura como elemento constituinte da
particularidade de nossa administração pública, advinda da particularidade do nosso
pacto de dominação conservador, responsável pelo projeto de implantação,
desenvolvimento e consolidação das relações capitalistas no Brasil.
Essa argumentação ainda pode ser reforçada, do ponto de vista teórico, a
partir de Weber. Segundo o autor, como já ressaltado anteriormente, os tipos de
administração estão vinculados a determinadas estruturas de dominação e, do ponto
de vista metodológico, os tipos puros não existem, são apenas recursos para
interpretar a sociedade. Portanto, se temos no Brasil uma estrutura de dominação
que articula o tradicional com o racional, a ordem administrativa expressará tal
articulação.
Assim sendo, o desenvolvimento do Estado moderno no Brasil e a ordem administrativa
burocrática não foram fortes na perspectiva da universalização de direitos, devido à
coalizão conservadora das classes que conduziu o projeto de expansão das relações
capitalistas e à parcialidade da racionalidade burocrática desenvolvida.
A estruturação e o desenvolvimento da administração pública brasileira para implementar
o projeto de industrialização não efetivou plenamente uma estruturação burocrática. Por
um lado, a ordem administrativa contemplou a articulação com o
patrimonialismo/clientelismo, visando garantir a manutenção dos interesses dos setores
tradicionais e propiciando sua participação na estrutura de dominação. Por outro lado,
para atender aos interesses imediatos da burguesia industrial nascente, organizou e
expandiu o “insulamento” e os “anéis” burocráticos. Por essas razões, o Estado e a
burocracia no Brasil não produziram ampliação significativa de direitos.
ccxlviii
No entanto, o Estado e a burocracia, no período em análise, mesmo nas condições
brasileiras de reduzida permeabilidade para as classes trabalhadoras e produto de uma
coalizão conservadora de classes, atenderam a determinados interesses das classes
trabalhadoras.
Sendo
assim,
sob
o
processo
de
desenvolvimento e consolidação do projeto de
expansão das relações capitalistas no Brasil,
conduzido
por
um
pacto
de
dominação
conservador, que produziu uma determinada
particularidade de Estado e de administração
pública, será formulado e implementado no País
o projeto neoliberal de reforma do Estado e de
reforma administrativa, os quais analisaremos
no capítulo seguinte.
ccxlix
CAPÍTULO IV - NEOLIBERALISMO E CONTRA-REFORMA ADMINISTRATIVA:
BUROCRACIA MONOCRÁTICA E PATRIMONIALISMO EM TRANSFORMISMO
4.1. Antecedentes: anos 1980, início dos 1990 e a resistência ao modelo neoliberal
A crise mundial que eclodiu no início dos anos 1970 já se manifestava no final dos anos 1960,
a partir da desaceleração do crescimento econômico (crise de superprodução), do déficit
comercial americano e da intensificação, no mercado financeiro, das apostas contra o dólar,
devido à impossibilidade de o governo americano sustentar simultaneamente o valor da
moeda e a competitividade das exportações norte-americanas. No entanto, a crise só se
expressa claramente quando da ocorrência de dois fatos: o fim da conversibilidade do dólar,
efetivada pelos Estados Unidos para recompor sua balança comercial, e o primeiro choque do
petróleo. Assim, se projeta o fim da paridade fixa entre o dólar e o ouro (ruptura do acordo de
Bretton Woods), gerando uma crise monetária internacional e, devido ao choque do petróleo,
gera-se uma crise energética. Nesse cenário, Japão e Alemanha, como importadores de
petróleo e exportadores de bens de capital, fazem a reestruturação produtiva e elevam os
preços dos bens de capital para fazer frente ao contexto de desvalorização do dólar e aumento
do preço do petróleo (Tavares e Fiori, 1993 e Teixeira, 2000).
Os EUA importam petróleo e exportam bens de capital. Não fazem
reestruturação, atuam na desvalorização da moeda para controlar o balanço de
pagamentos, através da melhora das exportações. Entretanto, esse controle é frágil,
pois, ao desvalorizar o dólar para viabilizar preços competitivos, provocam,
simultaneamente, a fuga de capital, prejudicando as contas de capitais.
Nesse quadro, o Brasil, apesar de exportar produtos agrícolas e manufaturas,
sofre duplamente: importa petróleo e importa bens de capital.
Simultaneamente, o superávit obtido pela OPEP, devido ao aumento do preço
do petróleo, amplia o investimento no mercado financeiro europeu. O euromercado,
ccl
que já vinha crescendo devido ao crescimento econômico produzido a partir dos
anos 1950, se ampliou com a entrada dos dólares da OPEP.
Dentro desse panorama, devido ao excesso de liquidez, o mercado financeiro
europeu (euromercado) promoveu empréstimos a juros baixos, baseados em taxas
flutuantes.
No Brasil, com a "crise do milagre", esboçada a partir de 1973, vindo no contexto da crise
mundial do capitalismo, o controle social imposto pelo regime militar começa a entrar em
declínio.
No entanto, no início da década de 1970, o Brasil conseguira passar pela crise econômica,
através do processo de endividamento externo. O endividamento serviu para enfrentar a
elevação dos preços do petróleo e dos bens de capital e continuar estimulando e apoiando o
crescimento econômico pautado no processo de industrialização85. “Com os empréstimos os
países pobres e em desenvolvimento compravam produtos das economias desenvolvidas,
azeitando economias que estavam em recessão e contribuindo para que elas suportassem
melhor a crise” (Gonçalves e Pomar, 2000: 12).
Nesse contexto, o processo de "modernização conservadora", implementado pela ditadura
militar, tanto no período conhecido como "milagre econômico" quanto ao longo do governo
Geisel, produziu a aceleração do processo de industrialização e urbanização da sociedade
brasileira. Com isso, trouxe à tona um novo quadro de relações sociais e de organização
sociopolítica. O novo operariado, o trabalhador rural sindicalizado, a nova classe média e os
moradores dos bairros populares, entre outros, complexificaram o tecido social do Brasil pós1970.
85
De acordo com Gonçalves e Pomar (2000: 11), “a dívida passou de US$ 13,8 bilhões de dólares (fins de 1973) para US$
52,8 bilhões de dólares (em 1978)”.
ccli
A estruturação do mercado de trabalho, realizada a partir de 1930 até 1980, efetivou-se
através da ampliação dos empregos assalariados, sobretudo dos registrados e da redução de
ocupações por conta própria, sem remuneração e do desemprego. Segundo Pochmann (2002:
68):
Para uma taxa média anual de expansão da População Economicamente Ativa
de 2,6% entre 1940 e 1980, o emprego assalariado com registro aumentou
6,2%. No mesmo período, o emprego assalariado total cresceu a uma taxa
média anual de 3,6% e o emprego sem registro a uma taxa de 0,6%, enquanto
o desemprego variou 0,5%, por conta própria 1,8% e o sem remuneração
0,6%.
Essa expansão “ocorreu, em grande medida, por força da implementação e consolidação do
projeto de industrialização nacional, bem como devido à institucionalização das relações de
trabalho, compartilhada pelo conjunto de normas legais difundidas a partir de um código de
trabalho no país (CLT)” (Pochmann, 2002: 70). Em outras palavras, conforme assinala o
autor, as políticas macroeconômicas voltadas para a expansão produtiva e exportação
viabilizaram, de forma permanente, o crescimento do número de ocupações. Fiori (1993: 141)
corrobora com essa análise:
... como resposta ou ‘ajuste’ diante do primeiro choque energético, o governo
Geisel (1974-1978), através de seu II Plano Nacional de Desenvolvimento,
desencadeia um ambicioso programa destinado a completar a industrialização
pesada e redirecionar a economia brasileira para as exportações.
Entretanto, apesar da intensa estruturação do mercado de trabalho no período 1940/1980,
nossas taxas sempre foram abaixo das taxas dos países desenvolvidos. Nestes, a taxa de
assalariamento urbana passava de 80% em 1980. No caso brasileiro, a taxa passou de 42%
(1940) para 62,8% (1980) (Pochmann, 2002: 70). Outro aspecto que marca a estruturação do
mercado de trabalho brasileiro, como destacado anteriormente, é o fato de ter sido realizada
cclii
sob um processo de grande concentração de renda e riqueza86. Ou seja, a situação de
desigualdade social existente no país se manteve mesmo no período de estruturação do
mercado de trabalho.
Oliveira (2003: 100-105) demonstra que a situação de manutenção da desigualdade social
durante a expansão capitalista no período pós-1964, mais precisamente a partir de 1967,
explica-se pela necessidade de se realizar um processo de acumulação compatível com a
estratégia de monopolização e aceleração da industrialização do período, através do
aprofundamento da exploração do trabalho como mecanismo central para resolver as
contradições entre relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas, na medida
em que é “necessário aumentar a taxa de lucros, para ativar a economia, para promover a
expansão” (idem: 100). Nesse sentido, afirma o autor, o aprofundamento da taxa de
exploração do trabalho se apresenta como requisito estrutural da expansão monopólica:
Levado inicialmente pelas exigências da aceleração dos anos 1957/1962 a
aumentar a taxa de exploração do trabalho, a fim de financiar internamente a
inversão, o sistema caminhou para um conflito entre as relações de produção
e forças produtivas, cujo desenlace foi aprofundar, como condição política de
sua sobrevivência (...). No entanto, isso seria apenas uma “morbidez” do
sistema, se não fosse um requisito estrutural.
Contudo, essa necessidade estrutural do desenvolvimento do capitalismo
brasileiro só pôde se efetivar pelo fato de não existir escassez de trabalho e nem
organização autônoma e forte o suficiente dos trabalhadores. Dessa feita, são
criadas, também, do ponto de vista do trabalho, as condições para aprofundar a
exploração87.
86
Oliveira (2003: 97), baseado em trabalho de João Carlos Duarte, mostra o aumento de concentração de renda no Brasil:
“enquanto o 1% superior em 1960 se apropriava de 11,72 da renda total, em 1970 essa porcetagem aumenta para 17,7%; os
5% superiores em 1960 detinham 27,35%, enquanto em 1970 passam a reter 36,26%. Em contrapartida, et pour cause, os
40% inferiores da população participavam em 11,20% da renda total, enquanto em 1970 sua participação decai para 9,05%.”
87
Segundo Oliveira (2003: 111-113), apenas dois fatores podem se opor ao movimento de concentração de renda e riqueza: a
escassez de trabalho e a organização da classe trabalhadora. Conforme analisa o autor , no período em questão, nenhum dos
dois fatores estão presentes no Brasil.
ccliii
Nesse contexto, é reafirmada a opção da burguesia brasileira de se aliar ao capital
internacional, mantendo, mesmo que de forma subordinada, as oligarquias agrárias no poder,
em detrimento de uma aliança progressista com a classe trabalhadora voltada para um projeto
nacional-democrático. Portanto, a emergência desse novo quadro sociopolítico não eliminou a
existência da tradição arcaica e partrimonialista das instituições, da cultura política e dos
procedimentos que sempre inviabilizaram a possibilidade de a sociedade brasileira romper e
superar o seu passado escravagista e oligárquico.
Entretanto, esse cenário desenhado após os anos de 1970 abre um campo de potencialidades
significativas para a redefinição da correlação de forças no Brasil. Somou-se à insatisfação
econômica a indignação política com o sistema ditatorial instaurado no País. Começavam a
aumentar as pressões da sociedade sobre o governo militar.
Esse contexto social de insatisfação e indignação crescente e a ascensão de um militar
contrário aos adeptos da “linha dura” possibilitou o estabelecimento, pelo governo, de um
Projeto de Abertura. No entanto, longe de se pretender o fim da ditadura militar num curto
espaço de tempo, esse projeto pretendia uma abertura "lenta, gradual e segura". Ou seja, uma
forma de tentar garantir o controle social, durante o processo de abertura, para manter o status
quo dominante voltado para a consolidação da fase monopólica do capitalismo brasileiro.
Para expressar o quadro de insatisfação da sociedade, as eleições parlamentares de novembro
de 1974 vão se configurar como uma manifestação plebiscitária contra o regime.
Grande parte do eleitorado brasileiro, restrito ao bipartidarismo, transformou
estas eleições num plebiscito contra o governo, num enorme protesto social,
votando maciçamente no MDB. Este ganhou em 16 estados, principalmente
nos das regiões sul e sudeste e na maioria dos grandes centros urbanos. sua
representação no congresso subiu de 94 para 185 cadeiras - mais de um terço
do total -enquanto a da Arena caiu de 282 para 245 cadeiras (Habert, 1992:
47).
ccliv
Além desse momento, as eleições de 1978 também se transformaram numa grande
manifestação de apoio ao MDB e rejeição ao regime militar.
Inserido nesse panorama social, político e econômico, vamos encontrar o ressurgimento dos
movimentos sociais no Brasil. Esses atores entram em cena na luta pela redemocratização do
País, nas suas mais diversas dimensões (econômica, social, política, cultural...), a partir da
metade da década de 1970. Como sintetiza Habert:
"Para a classe trabalhadora, a crise significou o aprofundamento do arrocho
salarial, do desemprego, da miséria; enfim o agravamento das suas condições
de vida e de trabalho. Esta situação, combinada às mudanças da conjuntura
política de abertura da segunda metade da década e das importantes
transformações ocorridas na classe trabalhadora pós-64, foi o ponto de
partida para o ressurgimento dos movimentos populares (a partir de 1975) e
do movimento operário ( a partir de 1977)" (Habert, 1992: 46).
O final da década de 1970 e os anos 1980 formam o palco do desenvolvimento desses
“novos” movimentos no Brasil. Grupos organizados reivindicando melhores condições de
educação, saúde, moradia, urbanização - além de buscarem fortalecer suas próprias
identidades (mulher, índio, negro...) e lutarem a favor dos direitos humanos e de preservação
do meio ambiente -, combinados com o surgimento de um movimento sindical autônomo e
combativo e de partidos políticos com base social, expressam, sem dúvida alguma, o
fortalecimento da sociedade civil brasileira.
O final dos anos 1970 (1978 e 1979) é marcado pelas greves do ABC, mobilizadas por
lideranças autônomas, vinculadas à construção do novo sindicalismo.
Em 1979, Geisel faz seu sucessor. O General João Batista de Figueiredo assume a Presidência
da República, com o compromisso de levar adiante o projeto de abertura política.
Numa tentativa de dividir a esquerda para garantir o controle do processo de transição, o
governo militar enviou ao Congresso, em 1979, o projeto de lei que reformulava o sistema
cclv
partidário, terminando com o bipartidarismo. No entanto, apesar do sistema pluripartidário, a
oposição, mais uma vez, saiu vitoriosa das urnas em 1982.
Ainda em 1979, o Governo enviou ao Congresso o projeto de lei referente à anistia, que foi
aprovado, possibilitando a volta ao Brasil de diversas lideranças políticas.
Desse modo, o projeto de abertura do governo, iniciado em 1974, transformou-se, como
bem destacou Coutinho, num processo de abertura, com ampla mobilização social, no qual
as eleições se constituíram como momentos de pressão para acelerar a transição democrática e
todo o processo de luta acabou se configurando como uma forma de provocar a ampliação da
abertura proposta pelos militares (Coutinho, 1993).
Entretanto, esse período (pós-1974 até início dos anos 1980) não foi somente de vitórias das
forças democráticas; muito pelo contrário, ele foi entrecortado por diversos momentos de
retrocesso. O “Pacote de Abril”, o assassinato de Herzog e Fiel Filho, as bombas nas sedes da
OAB e ABI, o caso do Riocentro são alguns exemplos que mostram que o processo de
democratização não foi linear.
No final dos anos 1970, a crise internacional que se esboçara em 1973 aflora abruptamente. A
política de desvalorização do dólar não garantiu o equilíbrio da economia dos EUA, na
medida em que a indústria americana continuou perdendo competitividade em relação ao
Japão e à Alemanha, devido à reestruturação produtiva operada por esses países. Por outro
lado, a desvalorização estava levando a um enfraquecimento da moeda americana, fazendo
com que ela fosse perdendo sua função de reserva de valor. Nesse contexto, houve nova
elevação dos preços do petróleo e uma elevação das taxas de juros americanas, visando atrair
o fluxo de recursos para os EUA. Simultaneamente, os EUA promoveram uma valorização do
dólar na ordem de 50%, baseada na sua política de juros altos e controle dos agregados
cclvi
monetários (aumento das reservas compulsórias exigidas dos bancos; imposição de reservas
sobre a captação de empréstimos em eurodólar por parte dos bancos; bloqueio dos ativos
iranianos, devido à invasão da embaixada americana no Irã e controle creditícios). Esse
processo de retomada do controle monetário pelos EUA durou quatro meses em que o FED e
as grandes corporações efetivaram uma verdadeira queda-de-braço (Teixeira, 2000: 7-8).
Tais medidas tiveram algumas conseqüências, quais sejam: a revalorização
do dólar; a implosão do Euromercado - juros altos americanos provocam fuga de
recursos da Europa para os EUA -; a perda da “aura de inatingibilidade” do
euromercado em relação às crises políticas, devido ao bloqueio dos ativos iranianos;
a reconcentração da riqueza nos EUA; a crise da dívida externa na periferia - com a
fuga dos recursos para os EUA, ocorre uma crise bancária na Europa, forçando a
cobrança dos devedores e a elevação das taxas de juros (que eram flutuantes),
produzindo, dessa forma, a crise da dívida.
Nesse quadro a economia americana e mundial entram em recessão controle de créditos, flutuação cambial e juros altos (a Europa tem que elevar seus
juros para atrair competitivamente o capital). Nesse sentido, conforme sinaliza
Tavares (1993a: 22-23):
... o desajuste global do balanço de pagamentos dos EUA foi
acompanhado de um desenvolvimento descontrolado do sistema
financeiro privado internacional, que agravou a instabilidade do
sistema global, tornou independente as políticas macroeconômicas de
ajuste, e teve impactos geradores de crises financeiras em vários
Estados Nacionais, tanto no centro como na periferia.
A crise da dívida externa será a expressão da crise mundial nos países periféricos. O padrão
de renegociação se altera radicalmente em relação a 1930, com prejuízo para os países
devedores88.
88
Em 1930 o problema da crise da dívida também já havia ocorrido, porém foi “resolvido pela interrupção do pagamento da
dívida, negociações de governo a governo, e posterior desvalorização ou liquidação dos títulos dos países devedores. Desta
vez, ao contrário, produziu-se uma revalorização do estoque total da dívida (...) Cabe notar ainda que, desta vez, a
cclvii
Os anos de 1980, no plano internacional, configuraram-se como o período de “retomada da
hegemonia norte-americana” (Tavares, 1998) realizada através da diplomacia do dólar forte e
da “adoção de programas armamentistas de alto conteúdo tecnológico, visando dobrar a União
Soviética e exaurir sua capacidade financeira” (Teixeira, 2000: 3).
Nesse cenário se processa o que se convencionou chamar de “globalização” que, do ponto de
vista econômico, deve ser tratada em três dimensões: financeira, produtiva e comercial
(Gonçalves, 2003).
A financeirização da economia mundial
se intensificou a partir da implementação da
“política de juros altos e flutuações cambiais
patrocinadas pelos EUA na década de 80”,
levando “à progressiva internacionalização dos
bancos privados dos demais países da OCDE”
(Tavares, 1993a: 56). Por outro lado, a “política
de ajuste de balanço de pagamento dos EUA,
bem
como
suas
tentativas
de
manter
a
hegemonia do dólar, levaram os demais países
da OCDE, em particular o Japão e a Alemanha, a
formular
respostas
reestruturação
bem
sucedidas
industrial,
de
provocando
acentuadas mudanças na divisão internacional
do trabalho” (Tavares, 1993a: 21-22). Outra
estratégia
desenvolvida
para
enfrentar
a
situação de crise e propiciar uma nova inserção
internacional foi a “diversificação e expansão
renegociação da dívida se dá mediante relações de governo periféricos com o cartel dos bancos privados e com organismos
multilaterais, e não de governo a governo, o que enfraquece a posição dos países devedores” (Tavares, 1993a: 61).
cclviii
do comércio exterior” (Tavares, 1993a: 56).
Dessa feita, o processo de mundialização da
economia se efetiva a partir da intensificação da
internacionalização
financeira,
comercial
e
produtiva.
Nesse contexto, instala-se uma crise financeira mundial (aumento das
despesas com serviços da dívida) que, aliada à recessão econômica, à crise da
previdência social (ligada à estrutura demográfica e de emprego e à base tributária
dos contribuintes centrada sobre a massa de salários) e às mudanças na
organização industrial (concentração de capital e descentralização da produção
promovendo a perda da base tributária, transferências patrimoniais e crescimento da
economia informal), provoca uma crise fiscal do Estado (os gastos públicos
aumentam em maior volume que a receita) (Tavares, 1993a: 64-66).
Sendo assim, o comportamento do gasto público entre 1980 e 1993 nos
países da OCDE mostra que houve uma diminuição de recursos para despesas
sociais e aumento no pagamento de juros, num quadro de ampliação do gasto
público total. Conforme destaca Fiori (1998: 167), “apesar de toda a retórica, neste
mesmo período cresceu em todo o ‘mundo desenvolvido’ o gasto público em relação
ao PIB. E o que ocorreu de fato foi uma queda dos gastos sociais compensada pelo
aumento exponencial dos gastos financeiros”.
Do ponto de vista político, para viabilizar a continuidade da acumulação via
intensificação da internacionalização financeira, produtiva e comercial era necessária
uma direção que valorizasse o mercado como elemento central da regulação da
sociedade, reestruturando o Estado para conduzir o processo nesses moldes. Para
os países periféricos, principalmente para a América Latina, o enfrentamento da
crise deveria passar por programas que possibilitassem a inserção internacional
cclix
(diga-se de passagem, subordinada) desses países, a partir da garantia do
pagamento de seus compromissos internacionais. Dessa forma, a hegemonia do
pensamento político e econômico pregava a diminuição dos gastos sociais,
privatização das empresas públicas, garantia de liberdade de comércio e de capitais
como o cerne das recomendações de ajustes, configurando a chamada orientação
neoliberal.
Nesse contexto de mundialização, processou-se uma violenta crítica ao
padrão sistêmico de integração social que conduziu o capitalismo à sua época de
ouro: crescimento ecnômico, pleno emprego e proteção social sob coordenação do
Estado.
Como ressalta Pochmann (2002: 15),
As medidas econômicas implementadas [à luz do ideário neoliberal]
buscaram contrair a emissão monetária, elevar os juros, diminuir os
impostos sob as rendas mais altas, desregulamentar o mercado de
trabalho, o comércio externo e mercado financeiro, alterar o papel do
Estado, privatizar o setor público, focalizar o gasto social, reduzir a
ação sindical, entre outras.
Essas medidas, cujo objetivo era a retomada do crescimento, a partir da
liberação dos lucros das empresas (redução dos gastos sociais, redução dos
impostos, desregulação do trabalho), não geraram novo ciclo de investimentos em
produção. A internacionalização financeira, as políticas de juros altos e de
valorização cambial empurraram os lucros para o sistema financeiro, onde a
rentabilidade passou a ser maior que a da produção. Por outro lado, a
reestruturação produtiva baseada nas inovações tecnológicas poupadoras de mãode-obra e na reorganização do processo de produção (substituição do “padrão
fordista” pelo “padrão flexível”), articulada ao processo de globalização produtiva,
produz um sistema de produção baseado numa pequena matriz na qual circulam
diversas pequenas empresas que são acionadas na medida em que se faz
cclx
necessário desenvolver a produção. Terceirização, trabalho temporário, subemprego
e desemprego estrutural conformam a situação da classe trabalhadora no período
(Antunes, 1995).
Para finalizar o quadro adverso, no intuito de arcar com as políticas de juros
altos (aumento dos gastos com serviços da dívida) e, simultaneamente, reduzir
impostos e apoiar o capital para sua reestruturação, o Estado passa a restringir os
gastos sociais89.
Sendo assim, a reestruturação que ocorre nas políticas sociais são
determinadas pelas exigências da nova ordem do capital. Portanto, a determinação
central da chamada crise das políticas sociais está situada na relação que se
estabelece entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo, sua orientação
macroscópia de fortalecimento do mercado e hegemonia financeira, e a restrição
(subjetiva e objetiva) para a expansão de direitos sociais.
O projeto neoliberal, visando à redução (não eliminação) da intervenção do
Estado na área social - a partir da concepção global de que o bem-estar social
pertence à dimensão privada (família, comunidade e mercado) e que ao Estado
cabe apenas o atendimento residual para os indivíduos que não conseguem ter suas
necessidades atendidas no campo privado -, propõe estratégias para o
desenvolvimento de políticas sociais baseadas, principalmente, na privatização,
focalização e descentralização (Laurell, 1995; Soares, 2000; Draibe, 1990). Ou seja,
ações destinadas à redução do custo da intervenção do estado na área social,
através da organização de serviços sociais oferecidos pelo mercado (diretamente ou
indiretamente); redução do contingente a ser atendido pelas políticas sociais,
89
“Entre 1980 e 1993, enquanto o gasto público medido como percentual do PIB registrou crescimento entre 2 e 5 pontos nos
EEUU (+2,1%), Fança (+6,2%) e Inglaterra (+5,2%), a participação das despesas sociais no gasto público sofreu queda quase
simétrica (EEUU, - 6,1%; Almenha -4,3%; França, -5,1%) ao mesmo tempo em que creseu mais que propocionalmnte a
participação das despesas com juros no gasto público total (EEUU, +5,5%; França, +5,1%; Inglaterra, +0,8%; Alemanha,
+7,8%)” BIRD, 1995 in: Schwartz, G. - Como reformar o Estado não é consenso, Folha de São Paulo, 10/12/1995).
cclxi
concentrando as ações sociais na população em situação de pobreza absoluta90 e
desresponsabilização do governo central dos custos para manutenção de serviços
sociais. Nesse quadro o apelo à solidariedade da sociedade, via voluntariado e
parcerias com a sociedade civil, e programas de renda mínima se apresentam como
instrumentos adequados para a operacionalização das estratégias de intervenção
social91.
Desse modo, do ponto de vista político e ideológico, a matriz neoliberal se
contrapõe à perspectiva dos direitos sociais e do Estado de Bem-estar como
provedor desses direitos. “Rechaça-se o conceito dos direitos sociais e a obrigação
da sociedade de garanti-los através da ação estatal. Portanto, o neoliberalismo
opõe-se radicalmente à universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais”
(Laurell, 1995).
O Estado, portanto, ao restringir os gastos sociais, vulnerabiliza a proteção
social, num quadro de desemprego e subemprego. O produto social desse processo
constitui o acirramento da “questão social”92.
Em síntese: esse processo de ênfase nas políticas econômicas ortodoxas voltadas para o controle da inflação, via ajustes do balanço de pagamentos -,
através de controle cambial e políticas de juros (financeirização da economia);
articulado a uma reestruturação produtiva não destinada à expansão do consumo de
massa (ou seja, sem preocupação com o “pleno emprego”) e baseado numa
estrutura do Estado reduzida em termos de desenvolvimento de políticas de
90
A pobreza absoluta está relacionada à carência das necessidades biológicas exigidas para um indivíduo sobreviver.
“Pobreza absoluta constitui, portanto, uma categoria restrita, consagrada pela ideologia liberal ou neoliberal, a qual justifica e
prioriza ações focalizadas e emergenciais, que suprem paleativamente (quando suprem) sintomas de carências profundas”
(Pereira, 1996: 25).
91
É importante sinalizar, conforme ressalta Draibe (1990), que as estratégias de seletividade, descentralização e parcerias não
são exclusivas de propostas neoliberais. A exclusividade neoliberal se encontra no sentido dado às estratégias que, como
procuramos mostrar, está voltado para a redução da intervenção do Estado na área social, a partir do entendimento de que os
indivíduos devem buscar suas necessidades na esfera privada.
92
“O desemprego na Europa Ocidental subiu de uma média de 1,5% na década de 1960 para 4,2% na de 1970 (Vander Wee,
1987, p.77). No auge do boom, em fins da década de 1980, estava numa média de 9,2% na Comunidade Européia, em 1993,
cclxii
proteção social, produziu a expansão da chamada “exclusão social” com destaque
para o desemprego. Essa condução política foi possível devido à guinada à direita
dos governos da Inglaterra (1979), Estados Unidos (1980) e Alemanha (1982).
Nesse sentido, podemos afirmar com Netto (1995:81) que a “ofensiva neoliberal”
organiza um “Estado mínimo”, voltado para a erradicação de qualquer mecanismo
regulador democrático do movimento do capital, para “viabilizar o que foi bloqueado
pelo desenvolvimento da democracia política [e social] – o Estado máximo para o
capital”. Corroborando essa análise, Toledo (1995: 84) afirma:
O neoliberalismo realmente existente não é senão o Estado do
grande capital que, por meio da derrota da classe operária, impôs
rupturas ou limitações aos pactos corporativos do pós-guerra;
implantou uma nova disciplina fabril e uma austeridade salarial,
também nos gastos sociais; e descontou sobre os trabalhadores os
custos da crise. A derrota proletária foi econômica e política, mas
também ideológica, onde o keynesianismo e marxismo estão
desprestigiados, e a intervenção estatal virou sinônimo de
ineficiência, inflação e privilégios.
No Brasil, a crise da dívida nos anos de 1980 apenas explicita o problema de
maior envergadura da economia brasileira, qual seja: a fragilidade do padrão de
financiamento. Assim, conforme observa Fiori (1993), a convergência da crise
mundial com a crise do padrão de desenvolvimento brasileiro determina a crise
vivida nos anos da década de 1980. Segundo o autor:
Na prática, e cronologicamente, a soma do segundo choque dos
preços do petróleo e do aumento das taxas de juros internacionais
(ambas ocorridas ainda nos anos 70) com a desaceleração do
comércio internacional e a permanência dos preços das commodities
durante toda a primeira metade dos anos 80, passando pela
moratória mexicana de 1982, acabou explicitando e expondo as
fragilidades
endógenas
das
economias
latino-americanas.
Fragilidades concentradas, no caso brasileiro, no padrão de
financiamento de sua industrialização, articulado por um Estado
gigantesco, mas cronicamente debilitado do ponto de vista fiscal
(Fiori, 1993: 130).
Ainda de acordo com o autor (idem: 149), o período final da ditadura militar
(1982-1985) concentrou “a crise do autoritarismo, a desmontagem do ‘tripé’ [Estado,
11% “ (Hobsbawm, 1995: 396).
cclxiii
capital nacional e capital internacional] em que se sustentara a industrialização
desde os anos 50 e o esgotamento do modelo de desenvolvimento seguido pelo
país desde os anos 30.”
No entanto, diferentemente do que ocorria nos países centrais, no Brasil, os
anos da década de 1980 são de revigoramento das forças democráticas da
sociedade civil e da ampliação das lutas sociais. Do ponto de vista democrático, o
clímax ocorreu com o desenvolvimento do movimento pelas eleições diretas
(Movimento Diretas-Já). Considerado como uma das maiores mobilizações da
história do País, o movimento, coordenado suprapartidariamente, não logrou êxito e,
mais uma vez, o acordo entre as elites dirigentes - para evitar o aprofundamento da
participação popular, como forma de enfrentar as questões sociais e econômicas - e
o relativo refluxo da mobilização social, viabilizaram a repetição de uma “revolução
pelo alto”93 no País, mantendo, dessa forma, o pacto de dominação conservador.
Sendo assim, em 1985, o mineiro Tancredo Neves foi eleito, indiretamente, Presidente do
Brasil, através de uma aliança entre os setores burgueses da oposição e os setores dissidentes
do partido que apoiava o regime militar - Aliança Democrática, realizada pelo PMDB e pela
Frente Liberal.
A primeira fase da transição democrática brasileira foi extremamente longa
(1974-1985) e, apesar de ter sofrido influência das organizações da sociedade civil de
base popular, isso não foi suficiente para impedir que o processo de transição se
desse pela institucionalidade vigente e, portanto, não permitiu que ocorresse uma
ruptura significativa com as formas arcaicas e autoritárias que caracterizam, no
Brasil, a tradição política de exercício da autoridade e da relação do Estado com a
sociedade. No essencial, a estrutura de dominação do país se manteve.
93 Coutinho
(1993), em seu artigo “Crise e Redefinição do Estado Brasileiro”, percorre a história brasileira analisando, de forma contundente, que as transformações políticas no Brasil sempre
o alto.
foram realizadas pel
cclxiv
Pouco antes da posse, o candidato eleito à Presidência da República, Tancredo Neves, foi
hospitalizado, assumindo em seu lugar o Vice- Presidente José Sarney, recém filiado ao
PMDB (para viabilizar sua candidatura à vice-presidência), que até pouco tempo era o
presidente do partido que dava sustentação ao regime militar - PDS. Tancredo Neves morre
em 21/04/85 e José Sarney assume, definitivamente, a Presidência da República.
José Sarney, Presidente da República, primeiro governante civil desde o golpe de 64, que até
há pouco era o presidente do PDS, representa, claramente, os fortes elementos de
continuidade do antigo regime, que a transição democrática brasileira preservara.
O cientista político Guilhermo O’Donnell destaca o peso e a presença institucional das Forças
Armadas, a presença marcante no governo de políticos que sustentaram o regime autoritário e
o estilo de se fazer política e governar baseado em “conchavos”, clientelismo, troca de
favores, regionalismo (tradição política existente antes mesmo do regime militar) como
elementos que marcam o alto grau de continuidade do regime autoritário, após o final da
primeira fase da transição brasileira (O’Donnell, 1988).
Por outro lado, podemos destacar que não só de continuidade se deu a transição brasileira. O
indubitável fortalecimento das organizações autônomas da sociedade civil, o surgimento do
sindicalismo combativo desatrelado do Estado, a criação de um partido orgânico de base
popular, apesar de não terem sido suficientes para provocar uma ruptura no sistema político,
formaram um conjunto de elementos de contraponto não só ao regime autoritário, como
também à prática política tradicional brasileira fundada em fortes traços patrimonialistas.
Assim, o início da “Nova República” se dá num contexto de instabilidade e crise
econômicas advindas do esgotamento do próprio modelo de desenvolvimento brasileiro,
cclxv
aliado às sucessivas crises pela qual passava o sistema mundial capitalista, num contexto
de fortalecimento das forças democráticas.
Essa conjuntura propicia uma situação de resistência ao modelo neoliberal, tanto pelo lado
das forças democráticas quanto pelo lado das classes dominantes.
Pelo lado das forças democráticas a resistência se apresenta em defesa de um modelo de
desenvolvimento pautado na incorporação efetiva da classe trabalhadora no sistema social,
político e econômico, via distribuição de renda e riqueza, participação política das classes
subalternas no poder e pela expansão de direitos, principalmente sociais, através da
organização de uma estrutura estatal institucional-redistributivista implementadora de
políticas sociais universalistas.
Do ponto de vista das classes dominantes, a resistência à mudança está relacionada ao sucesso
do modelo desenvolvimentista, na medida em que ele possibilitou a articulação de um
conjunto heterogêneo de grupos econômicos e, sem submetê-los à coordenação estratégica de
longo prazo, propiciava o acesso privilegiado ao Estado para esses grupos garantirem seus
interesses particulares (Tavares, 1993b: 108).
Nesse contexto, em linhas gerais, a política macroeconômica brasileira na
década de 1980, para enfrentar a crise, foi baseada na geração elevada de
superávites comerciais para honrar os compromissos da dívida, tanto durante o
último governo militar quanto durante a “Nova República”.
A política econômica, apesar de conseguir manter uma taxa de crescimento
do PIB positiva e superávites comerciais, não obteve sucesso em relação à
estabilização monetária (Fiori, 1993: 152). Contudo, a implementação de uma
política de estímulo à exportação e de substituição de importações impediu a queda
acentuada na geração de postos de trabalho.
cclxvi
Não houve expansão do assalariamento, mas também não houve redução.
Os empregos assalariados cresceram na mesma proporção da PEA (2,8%).
Entretanto, a quantidade de empregos assalariados com registro caiu fortemente: de
cada cem empregos assalariados criados entre 1980 e 1991, cerca de 99 foram sem
registro (Pochmann, 2002: 72). Todavia, é importante destacar que a política
econômica em voga na década de 1980 não viabilizou a saída da crise:
Durante os anos 80, o Brasil conseguiu um superávit de 99,5 bilhões
de dólares na sua balança comercial. Mas acumulou um déficit de
US$ 141,9 bilhões na balança de serviços. Desse déficit, 97,3 bilhões
de dólares eram referentes a juros e 9,1 bilhões de dólares a remessa
de lucros e dividendos. Noutras palavras, o Brasil enviou para o
exterior, durante a década de 80 a quantia líquida de 42, 3 bilhões de
dólares. Tornara-se um “exportador” de capitais (Gonçalves e Pomar,
2000: 13).
Em relação à política social, a Nova República foi extremamente contraditória.
Embora tenha adotado uma retórica progressista, manteve a prática tradicional na
área social. Os discursos e documentos da Nova República destacavam a
necessidade de enfrentamento da imensa “dívida social” e de resgate da cidadania.
Os Programas de Prioridades de 1985 e 1986, o I Plano Nacional de
Desenvolvimento da Nova República, de 1985, e o I Plano de Metas, de 1986,
expressam a orientação de que para reverter o quadro social seria necessário adotar
uma política econômica que possibilitasse a expansão da política social.
Para Draibe (1989), as produções da Nova República apresentavam
diagnósticos precisos e críticos sobre a situação da política social no Brasil, fazendo
referência ao grau de pobreza de nossa sociedade, ao modelo organizacional
instituído para operacionalizar a política social (centralização, fragmentação,
superposição institucional, burocratização etc.) e a seu padrão de financiamento
(caráter regressivo, recursos baseados em fundos sociais etc.). Como estratégias de
enfrentamento do padrão diagnosticado foram criados e implementados dois
Programas de Prioridades que, embora modestos (recursos previstos da ordem de
cclxvii
1,6% do PIB), tinham como perspectiva o combate à miséria. Visando ao
reordenamento institucional, foram criadas comissões setoriais responsáveis pela
proposição de reformulações gerais na área social. No entanto, a prática política da
Nova República, devido à manutenção do pacto de dominação conservador,
reforçou o padrão assistencialista e clientelista das políticas sociais brasileiras e não
produziu as mudanças esboçadas nos documentos e defendidas em discursos.
A despeito de não se ter avançado no campo econômico e de as mudanças
pretendidas na área social terem ficado restritas à retórica, houve durante a Nova
República uma ampla demonstração de que se estava consolidando uma sociedade
civil organizada e forte, de que se estava firmando uma sociedade do tipo
“ocidental”94 no Brasil.
Dessa forma, o País não superou sua crise econômica e não avançou,
substantivamente, na ampliação das políticas sociais, chegando ao final do governo
da “Nova República” com um déficit social ainda maior que do início do governo.
Entretanto, do ponto de vista político, tivemos uma ampla demonstração de que
estava se consolidando no país uma sociedade civil organizada e com expressões
democráticas mais significativas, que apontava para a consolidação de uma
sociedade de tipo “ocidental” no Brasil. Essa demonstração se deu em decorrência
do processo constituinte.
Os movimentos sociais organizados foram protagonistas de uma ampla
mobilização popular, visando à participação no processo de elaboração da nova
Constituição Federal, através da emendas populares.
A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos
sociais95, apontando, claramente, para a construção de um Estado de Bem-Estar
94
95
Expressão utilizada no sentido gramsciano (equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil).
A CF-88 define a Seguridade Social como direito social, sob competência do Estado, constituído pela previdência
cclxviii
social provedor da universalização dos direitos sociais96. Conforme observa Netto
(1999: 77):
... o essencial da Constituição de 1988 apontava para a construção –
pela primeira vez assim posta na história brasileira – de uma espécie
de Estado de bem-estar social: não é por acaso que, no texto
constitucional, de forma inédita em nossa lei máxima, consagram-se
explicitamente, como tais e para além de direitos civis e políticos, os
direitos sociais (coroamento, como se sabe da cidadania moderna).
Com isto, colocava-se o arcabouço jurídico-político para implantar; na
sociedade brasileira uma política social compatível com as exigências
de justiça social, eqüidade e universalidade.
Além disso, a Constituição introduziu “mecanismos institucionais de
participação
popular
na atividade
legislativa
e
na
definição
de
políticas
governamentais” (plebiscito, referendo e iniciativa popular) (Benevides, 1991: 17) e
abriu possibilidade, através dos incisos VII do art. 194 e II do art. 204, de se criarem
mecanismos de democracia participativa. Entretanto, no que se refere à ordem
econômica e a alguns aspectos significativos da ordem política (como, por exemplo,
o maior peso dos votos do Norte e Nordeste, áreas de maior possibilidade de
manipulação dos eleitores, em relação ao do Sul e Sudeste), dimensões
fundamentais para viabilizar a efetivação de um Estado de Bem-Estar no Brasil, a
CF-88 foi extremamente conservadora.
Essa contradição da Constituição expressa a falta de hegemonia presente na
sociedade naquele momento. Como bem sinaliza Coutinho, existia no Brasil, grosso
modo, a disputa entre dois projetos de sociedade, aplicáveis e existentes nas
sociedades contemporâneas de tipo “ocidental”: o de “democracia de massa” ou
(contributiva), saúde (não contributiva) e assistência social (não contributiva), possuindo como objetivo: a universalidade do
atendimento e da cobertura; uniformidade dos benefícios; participação da comunidade na gestão; diversidade de
financiamento; e irredutibilidade dos valores dos benefícios. Dessa forma a seguridade social brasileira se aproxima a uma
perspectiva de Estado de Bem-Estar Social. No caso da assistência social, pela primeira vez, ela é enquadrada como política
pública, dever do Estado e direito de cidadania, compondo a seguridade social.
96
Utilizando a tipologia organizada por Fleury (1994: 110), a Constituição de 1988 expressa a tendência de se construir no país
um modelo de proteção social fundado na concepção de seguridade social e cidadania universal, apesar da existência de
contradições em sua formulação. Ou seja, um modelo baseado num “conjunto de políticas públicas que, através de uma ação
governamental, centralizada e unificada, procura garantir à totalidade dos cidadãos um mínimo vital em termos de renda, bens
e serviços, voltada para um ideal de justiça social. Correspondentemente, o Estrado é o responsável principal tanto pela
administração quanto pelo financiamento do sistema. Os benefícios são concedidos (...) como direitos. Reconhece-se (...) o
predomínio da relação de Cidadania Universal...”
cclxix
“modelo europeu” e o do “liberal-corporativismo” ou de “modelo americano”. O
projeto baseado no “liberal-corporativismo” ou “modelo americano” se caracterizaria
por possuir partidos frouxos, representantes de múltiplos interesses e sem
organicidade, aliado a uma forma de representação de interesses extremamente
pulverizada, atuando através de “lobbies” específicos. O projeto baseado na
“democracia de massa” ou “modelo europeu”, ao contrário, seria caracterizado por
possuir partidos orgânicos e programáticos de base homogênea, sindicalismo
classista, que busca representar a classe trabalhadora e não apenas a corporação,
em que a representação de interesses possui canais articulatórios para a formação
de unidade na pluralidade (Coutinho,1993 e 1992). Podemos dizer que Tavares
(1993b: 114-116), do ponto de vista do projeto de desenvolvimento, analisa essas
duas alternativas como propostas de substituição do “tripé” desenvolvimentista
(Estado, capital nacional e capital internacional): uma baseada na redução para
“dois pés” (desmontagem do Estado para reforçar o pé do capital nacional - modelo
americano de Coutinho) e outra fundada na “articulação a quatro pés” (inclusão do
trabalho – modelo social-democrata).
Certamente, os setores que possibilitaram os avanços na Constituição
possuíam, como norte, o projeto societal de “modelo europeu”, base da construção
do Estado de Bem-Estar social-democrata. Por outro lado, os setores que
mantiveram
os
aspectos
conservadores
da
Constituição
baseavam-se
na
perspectiva do “modelo americano”, mesmo porque, como ressalta Coutinho:
“... o ‘modelo americano’ (...) é, sem dúvida, o mais adequado à
conservação do capitalismo, por causa das quase insuperáveis
dificuldades que apresenta para a constituição de uma proposta
hegemônica alternativa à dominante” (Coutinho, 1993: 91).
As lutas na área social, por diversas razões, foram aquelas em que os grupos
democráticos mais obtiveram vitórias (capítulo da seguridade, criança, educação
cclxx
etc.). Esses movimentos lutavam tanto pela democracia social quanto pela
ampliação da democracia política. Procuravam garantir, por um lado, as bases de
um sistema social institucional-universalista e, por outro, a criação de mecanismos
de participação, complementares à tradicional base representativa parlamentar, com
o objetivo de garantir institucionalmente a influência e o controle público das políticas
sociais.
Torna-se
mister
lembrar,
como
já
sinalizamos, que nos anos 980 as práticas e a
organização
sociopolítica
clientelismo,
patrimonialismo,
(autoritarismo,
insulamento
burocrático, corporativismo estatal bifronte)
brasileiras são criticadas e combatidas pelos
movimentos democrático-progressistas.
Nesse sentido, a Nova República, assim
como ocorrera na área das políticas sociais,
produziu um excelente diagnóstico, do ponto de
vista de uma perspectiva democrática, sobre as
principais questões da administração pública97,
apesar de suas ações nessa área terem sido
restritas98, ou como analisam Nogueira (1998;
108) e Martins (1997: 30), respectivamente: “as
generosas
intenções
reformadoras
dos
primeiros anos do Governo Tancredo/Sarney
não saíram do papel” e “[o governo Sarney]
parecia ter marcado um tento ao designar uma
97
Para o detalhamento deste diagnóstico ver Nogueira (1998: 106-108).
98
Torres (2004) e Lima Júnior (1998) apontam como os principais aspectos implementado pela Nova República, em relação à
administração pública, a criação do Cadastro Nacional do Pessoal Civil e a extinção de 45 órgãos e comissões especiais que
cclxxi
comissão
de
alto
nível
para
a
reforma
administrativa – um esforço, entretanto, que
nunca produziu resultados”. Na prática, traços
patrimonialistas,
vinculados
à
dimensão
tradicional da estrutura de dominação vigente à
época, ainda permaneceram fortes na estrutura
da administração pública.
No entanto, conforme ocorrera, também,
com as políticas sociais, são inseridas, na carta
constitucional, propostas democráticas para a
administração
pública
voltadas
para
o
fortalecimento de sua dimensão burocrática:
reforço dos procedimentos para garantir a
impessoalidade e o mérito na estruturação do
quadro de pessoal (contratação através de
concurso público), organização de princípios
para a estruturação de plano de carreiras e
salários,
definição
de
ordenamento
para
contratar obras, serviço e compras, garantia de
direitos
trabalhistas,
mecanismo
de
estabelecimento
proteção
ao
cargo.
de
Dessa
maneira, prioriza-se a administração direta e se
expandem essas regras para a administração
indireta. Por outro lado, como vimos, são
também criados mecanismos democratizadores
e de controle social e público para acompanhar
a formulação e a implementação de políticas:
não possuíam mais função e continuavam existindo.
cclxxii
participação da população e o fortalecimento do
ministério público.
Dessa forma, os preceitos aprovados na
Carta de 1988, em relação à administração
pública, buscavam garantir uma espinha dorsal
burocrática para o Estado brasileiro fundada na
impessoalidade, no mérito e na proteção ao
cargo, expandindo instrumentos de controle
democrático
para
administrativa
estruturar
permeável
à
uma
ordem
sociedade
em
relação à participação da definição de suas
intenções e ações. Mesmo considerando a
existência
de
certos
privilégios
para
o
funcionalismo público e, talvez, um excesso de
rigidez, a lógica proposta possuía uma direção
referenciada na necessidade de estruturar no
Brasil uma ordem administrativa fundada na
impessoalidade, mérito e normas a serem
seguidas, porém com mecanismos de controle
democrático para evitar a “burocratização”
(excesso
de
normas,
regras
e
rigidez
administrativa), a ação auto-referenciada da
burocracia e seu “insulamento”.
Sendo assim, diferentemente do que preconiza Bresser Pereira (1996 e
1998), a Constituição Federal de 1988 não foi um retrocesso aos anos 1930, em
relação à estruturação da administração pública, tampouco um retrocesso aos anos
1950, no que se refere ao plano político.
cclxxiii
Em relação aos anos 1930, a Constituição busca completar, como o próprio
autor reconhece99, a estruturação burocrática da administração pública, o que, para
o caso brasileiro, como foi exaustivamente demonstrado, colocava-se como um
requisito fundamental para o fortalecimento democrático, mesmo porque, os
preceitos constitucionais estavam orientados para robustecer a dimensão impessoal,
meritocrática e formal-legal da burocracia. Portanto, em que pesem certos exageros
e privilégios corporativos (que poderiam e deveriam ser ajustados), a concepção
presente no texto constitucional, ao invés de ser retrógrada, estava, na verdade,
apontando para a construção de uma espinha dorsal burocrática em sua totalidade
(envolvendo as dimensões de especialização, formalismo e impessoalidade),
combinada com mecanismos de controle, imprescindível para o avanço democrático.
Torres (2004: 164-166) apresenta uma análise detalhada dos preceitos
constitucionais e mostra como a avaliação do ex-ministro é equivocada. De acordo
com a análise do autor, as regras estabelecidas para serem cumpridas, também,
pela administração indireta, não prejudicaram a eficiência dessas agências. Em
relação à adoção de concurso público como ingresso do servidor, o autor afirma que
foi “propiciado a profissionalização e a moralização do setor estatal, atacando de
maneira contundente o clientelismo e o empreguismo que imperavam na
administração pública”. Dessa forma, conclui o analista: “os ganhos propiciados pela
obrigatoriedade do concurso público para o ingresso na administração indireta em
muito ultrapassam os custos e as limitações burocráticas impostas por este critério
de seleção e contratação”.
No que se refere às regras relativas às compras e contrato, o autor destaca
três aspectos que demostram que não houve comprometimento da agilidade e
99
O autor reconhece esse movimento, porém, analisando-o de forma negativa, pois segundo Bresser Pereira (1996: 274), dar
ênfase à estruturação burocrática significava ignorar “as novas orientações da administração pública”, revelando “uma incrível
cclxxiv
eficiência na administração indireta. O primeiro aspecto está relacionado ao fato de
que a constituição permite que essas agências possuam processo próprio de
licitação, adequando o perfil da agência aos preceitos constitucionais. O segundo
parte do pressuposto de que, explicitada na EC nº 19 de 4 de junho de 1998, a
possibilidade de leis específicas para as agências da administração indireta
regularem o processo licitatório e a, conseqüente, não regulamentação de tal
preceito sugere “que a administração indireta está prescindindo dessa lei para
funcionar a contento”. Por fim, Torres (2004: 165) mostra, a partir de dados do
Banco do Brasil e da Petrobras, que “o desempenho das empresas públicas e
sociedades de economia não tem sido comprometido pelos rigores do processo de
compras públicas”.
Em nosso entendimento, a questão efetivamente controversa, em relação aos
dispositivos constitucionais destinados à ordenação da administração pública, está
ligada aos direitos conquistados pelos servidores públicos: regime jurídico único,
estabilidade no emprego e, no âmbito da aposentadoria, tempo de serviço e
remuneração integral, num quadro de incorporação de aproximadamente 400 mil
servidores celetistas da administração indireta que possuíam mais de cinco anos de
serviço.
A despeito da discutibilidade de alguns desses direitos, que podem até ser
considerados como privilégios100, em relação ao cerne da questão tratada neste
trabalho (organização de uma espinha dorsal burocrática), os desvios que possam
ter ocorrido não comprometeram a lógica para a efetivação da construção de uma
estrutura burocrática em sua totalidade e, mais que isso, os preceitos constitucionais
falta de capacidade [dos constituintes e da sociedade] de ver o novo”.
100
Para a crítica a esses aspectos ver Martins (1997).
cclxxv
mostravam-se coerentes com uma perspectiva de aprofundamento e universalização
de direitos que setores da sociedade clamavam à época.
Portanto, longe de uma “visão equivocada por parte das forças democráticas”,
conforme considera Bresser Pereira (1996: 275), as forças democráticas,
conscientemente ou não, propuseram, coerentemente com a finalidade de
universalização e aprofundamento de direitos numa sociedade de classes, a
estruturação de uma ordem administrativa burocrática, a partir de suas
determinações de impessoalidade, mérito e estrutura formal-legal101.
Assim, não houve equívoco das forças democráticas. O que deve ficar
explicitado é que a concepção de ordem administrativa de Bresser Pereira é
contrária à expansão da racionalidade burocrática, pois o autor não vislumbra
o aprofundamento e a universalização de direitos como finalidade social a ser
alcançada. Isso já pode ser observado na medida em que o ex-ministro critica o
plano político da Constituição Federal de 1988, analisando-o como retrocesso aos
anos 1950.
Em outras palavras, o autor, apesar de não ser explícito, identifica a expansão
de direitos, presente na Carta Constitucional, com a “euforia democrático-populista”
como se fosse possível “voltar aos anos dourados da democracia e do
desenvolvimento brasileiro, que foram os anos 50” (Bresser Pereira, 1996: 274). Ou
seja, o ex-ministro, numa nítida manobra neoliberal, transmuta a idéia de direitos
(principalmente os direitos sociais) para as de paternalismo e populismo. Conforme
analisa Nogueira (2004: 66):
101
Tudo indica que a defesa de uma ordem burocrática pelas forças democráticas estava mais relacionada a uma estratégia
voltada para romper com os traços tradicionais da administração pública brasileira, portanto, uma perspectiva centrada numa
dimensão instrumental e endógena da burocracia. Ou seja, parece que não havia clareza entre as forças democráticas da
possibilidade da existência de uma relação finalística entre a ordem administrativa burocrática e a universalização e
aprofundamento de direitos. Em outras palavras, a burocracia foi interpretada como remédio contra a doença patrimonialista,
que se expressava no clientelismo e na corrupção.
cclxxvi
O próprio capitalismo, ao se reproduzir, força uma conversão das
políticas sociais em operações tópicas destinadas a aliviar os que são
por ele penalizados. Reduz direitos em favor de equilíbrios fiscais.
Reformula e dá novos significados à própria idéia de direitos: por um
lado, faz com que sejam associados a privilégios que oneram a
comunidade; por outro, transforma-os em benefícios merecidos por
aqueles que exibem melhor desempenho, têm maior poder de compra
ou mais “sorte”.
Dessa maneira, Bresser Pereira não reconhece que, para o aprofundamento
democrático, a formalização de direitos configura-se como o pilar fundamental para a
conquista de um outro patamar de sociabilidade.
Sendo assim, no final da década de 1980 estrutura-se no país um
paradigma legal-institucional, via Constituição Federal, que delineia os
fundamentos para a construção de um Estado de Bem-estar de cunho
universalista
e
institucional,
com
fortes
elementos
democratizadores,
viabilizador de direitos e estruturado a partir de uma ordem administrativa
burocrática, fundada na impessoalidade e no mérito.
O período da “Nova República” se configurou como o período da
(re)institucionalização democrática e da consolidação de uma sociedade de tipo
“ocidental” no País. O fortalecimento das forças democráticas, que vinham se articulando
desde o final dos anos 1970 - que possibilitou, do ponto de vista da classe trabalhadora, o
surgimento do “novo sindicalismo” e de um partido com base na classe trabalhadora, e que
viabilizou, também, a criação de movimentos sociais reivindicativos - propiciou, pela primeira
vez no Brasil, uma interferência mais substantiva das camadas populares na estrutura de
dominação do país, apesar de não ter tido influência para fragilizar a coalizão das classes
dominantes, de forma a reordenar o projeto de sociedade numa direção mais clara para a
universalização e o aprofundamento de direitos, “social-democrata” ou para um projeto de
desenvolvimento fundado em “quatro pés”. Assim, a coalizão de classes na estrutura de
dominação do país ainda preservava a aliança fundamental entre a burguesia nacional
associada e dependente e os velhos setores tradicionais, preservando, dessa forma, os
traços conservador, patrimonialista e autoritário de nossa história. Porém, essa coalizão
cclxxvii
dominante não pôde, nesse período, agir desconsiderando as demandas e as forças
democráticas da sociedade. As ambigüidades da “Nova República”, manifestadas no texto
constitucional, entre uma ordem econômica conservadora e uma ordem social e
administrativa democrática, nos diagnósticos precisos, do ponto de vista democrático, sobre
a estrutura das políticas sociais e da administração pública, e as ações pífias ou mesmo
conservadoras nessas áreas e a resistência à implementação do modelo neoliberal,
demonstram a crise de hegemonia existente no período e a influência que os setores
democrático-populares tiveram sobre a definição das diretrizes do novo projeto nacional que
se encontrava em construção.
Como vimos, a década de 1980 nos mostrou, então, a consolidação de um
outro tipo de articulação social no Brasil, à qual Gramsci, certamente, chamaria de
"Ocidental", pois dotada de uma sociedade civil organizada, atuante e autônoma em
relação ao Estado, mantendo equilíbrio, portanti, com a "sociedade política".
O jogo político tornou-se mais complexo, o espaço para exercer a dominação
baseada na coerção restringiu-se, a busca do consenso passou a ser uma
necessidade mais presente. Os atores políticos em cena são múltiplos (partidos,
sindicatos, governos, ONG's, movimentos populares, entre outros) e os interesses
diversos.
No entanto, é fundamental reafirmar que, no período da Nova República, a
situação da classe trabalhadora era extremamente adversa, uma vez que não se
conseguia diminuir o desemprego, os empregos criados eram sem registro, a inflação
corroía os salários (no final de 1989, a inflação chegou ao patamar de 80% ao mês), a
concentração de renda e riqueza permanecia e as políticas sociais não passavam de
projetos. Por outro lado, do ponto de vista das classes dominantes, a situação não
permitia a continuidade do processo de acumulação para enfrentar as mudanças
advindas da Terceira Revolução Industrial e da conjuntura econômica internacional.
Nesse quadro foi se forjando o consenso de que a crise não era conjuntural,
mas sim estrutural, estando relacionada, por um lado, às mudanças operadas na
cclxxviii
dinâmica do capitalismo, a partir de sua lógica mundializada financeiramente,
produtiva e comercialmente e, por outro, ao esgotamento do modelo de
desenvolvimento implementado no País responsável pela industrialização nas bases
da Segunda Revolução Industrial. Nesse sentido, havia uma convergência de todas
as forças sociais sobre a necessidade de processar mudanças na condução da
política econômica, na estrutura produtiva do país e, como elemento central,
implementar uma profunda reforma do Estado (Fiori, 1993: 152-153).
Entretanto, se havia consenso em relação à agenda das questões, não havia
em relação à direção que as propostas deveriam assumir. O País se encontrava
dividido entre uma direção “social-democrata” e outra “liberal-corporativa” (Coutinho,
1992 e 1993), ou, conforme analisa Tavares (1993b), entre um projeto baseado na
“articulação a quatro pés” e outro fundado na redução para “dois pés”.
No entanto, o contexto global do final dos anos 1980 e, principalmente dos
anos 1990, marcam a consolidação de mudanças significativas na sociedade
capitalista. O desenvolvimento tecnológico — robótica, microeletrônica, informática,
novos mecanismos de comunicação on line —, assim como as mudanças na
organização do processo produtivo, que passa de uma orientação fordista para uma
orientação flexível102, provocam transformações radicais no mundo do trabalho.
Simultaneamente, as crises econômicas que se manifestavam desde os anos
1970, a redução da taxa de crescimento mundial e o aumento da expectativa de vida
nos países desenvolvidos põem em xeque o padrão de regulação da sociedade
baseado no welfare state. A esses fatos aliam-se o desmoronamento das
experiências de socialismo de Estado e a ofensiva liberal-conservadora que,
102
De acordo com Antunes (1995), a produção fordista está baseada em grandes linhas de montagem, amplo corpo de
empregados, salários pactuados e sindicatos fortes. A produção de orientação flexível baseia-se em pequenos núcleos
estratégicos vinculados à empresa, no emprego da informática e da robótica em substituição ao “trabalho vivo”, na utilização de
novas tecnologias gerenciais e na fragmentação da classe trabalhadora.
cclxxix
representada pelos governos Thatcher, Reagan e Kohl, impõe ao mundo uma
hegemonia ideológica e de experiências concretas norteadas pela liberalização do
mercado. Portanto, o esvaziamento do Estado e de seu papel regulador da
sociedade entram na pauta de uma nova reestruturação estatal.
Todas essas mudanças ocorrem num mundo altamente interconectado, tanto
no aspecto econômico quanto nas esferas social, política e cultural. Parte mínima da
população do Terceiro Mundo apresenta padrões de consumo do Primeiro Mundo e
em uma parcela já significativa do Primeiro Mundo verificam-se padrões de miséria
do Terceiro Mundo. Nesse contexto, há, por um lado, uma certa uniformização de
valores; por outro lado, adeptos do fundamentalismo e do racismo (por exemplo) que
procuram resguardar, de forma autoritária e violenta, sua identidade. No aspecto
político há uma pressão dos organismos internacionais e dos países hegemônicos
para a adesão dos países em desenvolvimento ao chamado “Consenso de
Washington”103 o que constitui outro elemento a tornar mais complexo o contexto do
início da década de 1990.
Em 1989, durante a primeira eleição presidencial direta após decorridos 29
anos, ficou nítida a polarização entre os dois projetos de sociedade. Lula, candidato
do Partido dos Trabalhadores (PT), que representava o que Coutinho chamou de
“democracia de massa”, obteve 37,86% dos votos no segundo turno das eleições e
Fernando Collor de Mello, candidato do Partido da Renovação Nacional (PRN), que
representava o chamado “liberal-corporativismo”, obteve 42,75% dos votos. Tal
vitória não se caracterizou como hegemônica, apesar do clima ideológico e
103
Fiori (1997: 12) sintetiza o “Consenso de Washington”, como um “plano único de ajustamento das economias periféricas”,
sistematizado por John Williamson, organizado como um programa de “três fases: a primeira consagrada à estabilização
macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário, envolvendo invariavelmente a revisão das
relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, (...) dedicada [às]
‘reformas estruturais’; liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e
a terceira etapa, definida como de retomada dos investimentos e do crescimento econômico”.
cclxxx
programático em defesa das teses neoliberais104, como analisa Fiori (1993: 153), já
se encontrar formado, a partir de um amplo consenso liberal presente em diferentes
setores sociais: político, intelectual, quase totalidade dos meios de comunicação e
dos chamados formadores de opinião.
O candidato vencedor, que construíra sua carreira política durante os anos da
ditadura, inclusive ocupando cargos por indicação indireta, realizou sua campanha
através da combinação dos mais modernos recursos de propaganda e marketing
com o estilo populista de comunicação direta com a povo, além de aplicar táticas de
agressão pessoal a seu adversário. Em linhas gerais, defendia as teses neoliberais
de privatização das estatais, diminuição do Estado, integração do país no mercado
internacional, entre outras.
A campanha refletiu o que seria o governo. Ou seja, um governo que seguia a
matriz neoliberal, impregnado da tradição política patrimonialista, que buscava o
apoio da população pobre, desorganizada e despolitizada. Conforme analisa
Teixeira da Silva (1996: 352), “Collor surgia, assim, em uma terrível convergência de
interesses ilusórios, dos segmentos mais pobres e mal informados da população,
com os interesses concretos, da elite nacional, em desmontar os mecanismos
distributivistas do Estado”.
Por outro lado, o Presidente Collor imprime como forma de governar um perfil
“delegativo”105, haja vista as 20 medidas provisórias assinadas - ato permitido pela
104
“...reforma administrativa, patrimonial e fiscal do Estado; renegociação da dívida externa; abertura comercial; liberação dos
preços; desregulamentação salarial; e, sobretudo, prioridade absoluta para o mercado como orientação e caminho para a nova
integração econômica internacional e modernidade institucional” (Fiori, 1993: 153).
105
De acordo com O’Donnell (1991) A “democracia delegativa” seria um tipo específico de democracia surgida durante as
décadas de 1970 e 1980, em contextos nacionais imersos numa profunda crise econômica e social, com uma tradição histórica
de grande atomização da sociedade e do Estado e de cultura patrimonialista como forma predominante de fazer política e
governar. Esse conjunto de fatores, aliado a um processo de transição democrática que não efetiva rupturas definitivas com o
regime autoritário precedente (como foi o caso do Brasil), potencializa, sobremaneira, a estruturação de uma democracia na
qual o governante se considera o principal fiador dos interesses nacionais, acha que pode governar de acordo com suas
conveniências, coloca-se acima de todos os partidos políticos e interesses organizados e considera a ação de prestar contas
às instituições e organizações da sociedade como sendo um impedimento ao exercício de sua plena autoridade conquistada
nas urnas. A despeito da polêmica sobre se a “democracia delegativa” é um tipo específico de democracia ou se é uma fase do
processo de democratização, consideramos que a caracterização da “democracia delegativa” descrita por O’Donnell é
extremamente pertinente para compreendermos e analisarmos o processo de transição democrática do Brasil.
cclxxxi
Constituição somente para ocasiões excepcionais - no dia de sua posse e de seu
vice (Itamar Franco), objetivando reordenar a economia e extinguir órgãos públicos
ligados à cultura e à educação.
O governo Collor, do ponto de vista econômico, tanto no primeiro momento,
com a equipe comandada pela ministra Zélia C. de Mello, quanto no segundo, com o
ministro Marcílio Marques, implementou medidas de liberalização comercial e
financeira e de redução da máquina pública, tal qual recomendação liberal.
Entretanto, em relação ao combate inflacionário, as ações não surtiram efeito
substantivo. No período compreendido entre 1990-1992, apesar da situação fiscal e
comercial superavitárias e o retorno de capitais, “o país enfrentou sua recessão
econômica mais séria desde os anos 30”, num quadro de manutenção da
concentração de renda, aumento de desemprego e “deterioração das condições de
infra-estrutura e dos serviços públicos, em geral, e sociais, em particular” (Fiori,
1993: 155-157).
Simultaneamente às ações de governo e à participação política referente a temas gerais
(eleição presidencial), os movimentos sociais organizados, que participaram ativamente do
processo constituinte, continuaram, após a aprovação da Constituição de 1988, a atuar
politicamente em questões específicas, visando interferir na elaboração das leis
complementares que viessem a consolidar, institucionalmente, os avanços conquistados em
suas áreas. Essa atuação representava, em termos mais amplos, uma ação política contrária à
dominante, voltada para a criação e o fortalecimento de estruturas propiciadoras de uma
construção institucional que viabilizasse os direitos sociais e estimulasse a participação
popular, com base no “modelo europeu” de Estado de Bem-estar.
cclxxxii
Essa ação ocorreu de forma emblemática nas áreas da saúde (elaboração e aprovação da Lei
Orgânica da Saúde — LOS), assistência social (elaboração e aprovação da Lei Orgânica da
Assistência Social — LOAS) e infância e adolescência (elaboração e aprovação do Estatuto
da Criança e do Adolescente — ECA), e tinha por finalidade consolidar os dispositivos
constitucionais referentes às respectivas áreas de atuação.
Todavia, esse momento não se passou sem conflitos. Se, por um lado, havia
apoio de determinados setores da sociedade para a consolidação dos dispositivos
constitucionais, por outro, havia grande resistência, principalmente por parte de
setores afinados com o ideário neoliberal que, naquele momento (1990),
aprofundava-se no país.
Paralelamente ao foco central da luta de elaboração/aprovação de leis
complementares (LOS, LOAS e ECA), ocorria o processo constituinte nos estados e
municípios. Isso sinalizou os limites/fragilidades e a falta de condições das
organizações da sociedade civil, de corte democrático, para uma ação de
intervenção no Legislativo que cobrisse a dimensão do país.
Em que pesem todas as dificuldades, a Lei Orgânica da Saúde, o Estatuto da
Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica da Assistência Social foram aprovados
pelo Congresso e sancionados pelos presidentes da República que governaram
entre 1990 e 1993.
Dessa forma, temos leis extremamente avançadas num Estado, como vimos,
de forte perfil autoritário e patrimonialista, que incluíra parcialmente e seletivamente
a classe trabalhadora e, quando iniciou o processo de universalização dos serviços
sociais, fê-lo de forma excludente, de baixa qualidade, estruturando o que Maria
Lúcia Werneck Vianna chamou de “americanização perversa” da seguridade social.
cclxxxiii
No entanto, o realismo não impede de vislumbrar o significado políticoinstitucional dessas leis. Como afirmado anteriormente, as leis complementares,
enquanto orientação política e institucional, enquadram-se no paradigma de
construção de um Estado de Bem-estar provedor de direitos sociais. Nesse sentido,
elas se expressam como um verdadeiro instrumento político-cultural e institucional
de contribuição para transformar a configuração predominante do Estado brasileiro,
no que se refere às políticas sociais.
No aspecto conceitual, essas leis complementares representam um grande
avanço para a continuidade da luta pela construção de um Estado provedor da
universalização dos direitos sociais. Além disso, a existência dos conselhos
deliberativos propicia um processo de redefinição da relação entre o Estado e a
sociedade civil na dinâmica de gestão da sociedade.
O reflexo desse processo na assistência social é inequívoco. A Lei Orgânica
da Assistência Social apresenta a assistência social como política pública, direito de
cidadania e dever do Estado numa perspectiva de universalização dos direitos
sociais. Além dessa concepção, a legislação propõe a descentralização e a
participação como elementos democratizadores para a implementação dos serviços
sociais, projetando uma organicidade da política, através da articulação Estado –
sociedade civil, União-estado-município e entre os diferentes setores que compõem
a política pública.
Nesse quadro, conforme destaca Pereira (1996), a política de assistência
social se caracteriza por ser: a) genérica na atenção e específica em relação aos
destinatários - diferentemente das políticas setoriais; b) particularista - pois destinada
exclusivamente aos segmentos pior situados na escala de distribuição de riqueza; c)
desmercadorizável - pois não se vincula à lógica do mercado e d) universalizante -
cclxxxiv
pois, apesar de não ser universal, atua reforçando a universalização dos direitos
sociais (Pereira, 1996: 29, 53 e 54).
Nos primeiros momentos do Governo Collor, a oposição parecia perplexa (talvez não tenha
absorvido a quase vitória eleitoral) e pouca mobilização social de expressão pública ocorreu.
Entretanto, ao vir à tona o esquema de corrupção montado no aparelho do
Estado, que envolvia o Presidente e seus principais colaboradores, diversas
organizações da sociedade civil mostraram-se, mais uma vez, atentas às questões
políticas e se manifestaram a favor do "impeachment" do Presidente da República,
inclusive, setores vinculados aos grupos dominantes. Essa situação, mostra,
também, a falta de organicidade existente entre o presidente e os setores que o
apoiavam.
O processo de “impeachment”, assim como o trabalho da Comissão
Parlamentar de Inquérito, instaurada para apurar as denúncias de corrupção
existente na Comissão de Orçamento da Câmara, transcorreram sem afetar a
estabilidade institucional da recente democracia brasileira.
O Presidente Collor foi “impedido” de continuar o seu mandato e, em 1993,
assumiu a Presidência da República o Vice-Presidente Itamar Franco.
Essa conjuntura viabilizou o surgimento
do Movimento pela Ética na Política, que se
organizou por ocasião do "impeachment" e que
mostrou o crescimento, na sociedade, do
repúdio
às
práticas
patrimonialistas
historicamente presentes no Estado brasileiro.
Esse movimento, posteriormente, contribuiu
com a constituição do Movimento da Ação da
Cidadania Contra a Fome e Pela Vida, o qual
cclxxxv
impulsionou setores da sociedade civil a se
organizarem em comitês de combate à fome,
colocando na agenda nacional o tema da fome.
No plano institucional ocorre uma tentativa de articulação de centro-esquerda para dar
sustentação política ao Presidente Itamar Franco.
Temos, nesse sentido, uma conjuntura política que, apesar de inserida num contexto marcado
por forte ideologia e propostas neoliberais, ainda possibilita a disputa dos dois projetos de
sociedades. Coutinho (1992: 62), analisando a conjuntura da época, a partir da reflexão sobre
os dois projetos de sociedade, sublinha: “penso que a luta entre esses dois projetos
alternativos ainda não está decidida no Brasil” (itálico no original).
No entanto, para enfrentar a crise econômica (principalmente a alta taxa
inflacionária) e superar uma questão de política interna, o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), então
Ministro das Relações Exteriores, assume o Ministério da Fazenda. Neste momento,
rearticulam-se as forças de centro-direita no sentido de conduzir e consolidar o
projeto fundado na hegemonia neoliberal.
4.2. Consolidação do neoliberalismo no Brasil e a reforma administrativa
A reedição do pacto conservador de dominação e o projeto de
transnacionalização
Fernando Henrique e sua equipe formulam e implementam um plano de
estabilização econômica, fundado nos preceitos neoliberais.
cclxxxvi
A inflação é derrubada, Fernando Henrique se projeta a nível nacional, o
PSDB faz aliança com o PFL - partido, como vimos, que congrega políticos de perfil
tradicional, oligárquico e clientelista que apoiaram o regime militar - e lança
Fernando Henrique para Presidente. Ou seja, uma rearticulação orgânica entre
setores da burguesia industrial, principalmente paulista, e intelectuais com
passagem pela esquerda, mas que se encontravam afinados com as teses liberais,
aglutinados em torno do PSDB, e as forças oligárquicas e tradicionais,
principalmente do nordeste, vinculados ao PFL. Conforme análise de Fiori (2001b:
285): “uma aliança bem-sucedida entre o que se poderia chamar de ‘cosmopolitismo
de cócoras’ de uma parte da intelectualidade paulista e carioca atrelada às altas
finanças internacionais, e o localismo dos donos do sertão e da malandragem
urbana brasileira.”
Dessa forma, é reeditado, de forma orgânica, o pacto de dominação
conservadora que implementou o projeto desenvolvimentista, mas que, na
conjuntura da crise daquele modelo, organiza-se para orientar uma intervenção
social pautada nas teses neoliberais. Isso posto, observa Fiori (1998: 17):
...diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia
revolucionar o sistema político e social brasileiro, (...) FHC preferiu
(...) e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL (...).
Uma aliança que obviamente não se explica por razões puramente
eleitorais (...). O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é
algo mais sério e definitivo: remontar à tradicional coalizão em que se
sustentou o poder conservador no Brasil. Este é o verdadeiro
significado direitista de sua decisão...
A campanha do PSDB/PFL é baseada no “sucesso” do plano real e no
convencimento do eleitorado de que a estabilidade econômica, para perdurar,
necessitava da continuidade do trabalho.
Para surpresa de muitos, que há três meses das eleições consideravam certa
a vitória do candidato da esquerda, Fernando Henrique se elege no primeiro turno
das eleições.
cclxxxvii
A política implementada pelo Governo Fernando Henrique para viabilizar o
desenvolvimento do país é marcada por forte orientação neoliberal: privatizações
indiscriminadas e com possibilidade de utilização de “moeda podre” para compra das
estatais; reforma da previdência baseada em ônus para os trabalhadores; diminuição
da máquina administrativa e enfraquecimento da intervenção social do Estado;
inserção subordinada do país no mercado internacional, entre outras. Assim,
reafirma-se um projeto de internacionalização subordinada ao capital internacional,
agora hegemonizado pela sua fração financeira, através de um processo facilitado
de transferência patrimonial do Estado para as empresas privadas e de redução da
intervenção distribitivista do Estado na sociedade.
Nesse sentido, delineava-se no país a vitória hegemônica do projeto de
sociedade “liberal-corporativista”, com forte presença do componente patrimonialista
como prática de fazer política e governar, aliado ao fortalecimento do perfil
“delegativo” de nossa democracia. Do ponto de vista econômico, efetivou-se a
implementação de um modelo de desenvolvimento que buscava desmontar o “pé”
estatal para reforçar a estrutura privada, nacional e internacional, colocando o
mercado no centro das estratégias econômicas e alijando a incorporação da classe
trabalhadora
do
processo
de
decisão
e
da
participação
dos
frutos
do
desenvolvimento. “FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de
Washington valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o
Estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária” (Fiori,
1998: 18).
A economia do plano real, implementada no governo Itamar Franco e
prosseguida ao longo do governo FHC, baseou-se na estratégia ditada pelo sistema
financeiro internacional nos anos de 1990: renegociação das “dívidas velhas”, para
cclxxxviii
possibilitar empréstimos novos (Plano Brady); desregulamentação dos mercados
locais (eliminação de barreiras para entrada e saída dos investidores); intermediação
para o deslocamento de capital de curto prazo para os países, independente da
capacidade de absorção dos recursos pela base produtiva local.
Nesse quadro, a sobrevalorização do câmbio e abertura comercial
conformaram uma combinação explosiva: com a sobrevalorização cambial o país
fica com maior capacidade de importar; a abertura comercial facilita a importação,
pois restringe as barreiras; a entrada de produtos internacionais pressiona para
baixo os preços do produtos internos e força a competitividade (contenção da
inflação). Por outro lado, a exportação cai – os produtos brasileiros ficam caros, os
preços não são competitivos no mercado internacional; a balança comercial entra
em déficit crescente; perdem-se reservas cambiais. Para honrar os compromissos
internacionais, manter a moeda estabilizada e importar, o país gasta dólares. “O
déficit acumulado, entre 1995 e 1999, na balança de transações correntes alcançou
134,7 bilhões de dólares!” (Gonçalves e Pomar, 2000: 20).
Assim, para equilibrar o balanço de pagamento, num cenário de balança
comercial deficitária, o país necessita de reservas cambiais para honrar seus
compromissos. É necessário, então, permitir e fomentar a entrada do capital de curto
prazo, aumentando a taxa de juros. Nesse contexto, o Estado assume a
remuneração desse recurso, emitindo títulos e aumentando a dívida pública. O
resultado é o enorme crescimento da dívida pública interna (Gonçalves e Pomar,
2000: 24).
Além disso, com a privatização de empresas estatais, ocorreu um
crescimento do passivo externo brasileiro. “A remessa de lucros e dividendos para o
cclxxxix
exterior triplicou de 9 bilhões de dólares, no período 1981-90, para 27,3 bilhões de
dólares no período 1991-99” (Gonçalves e Pomar, 2000: 26).
Nessa conjuntura, como o Estado tem que arcar com a remuneração dos
investimentos especulativos de curto prazo, com os serviços da dívida externa já
existente e com a dívida interna, é necessário cortar gastos públicos para obter
superávites primários. Conforme analisam Gonçalves e Pomar (2000: 24-25),
A íntima ligação entre o crescimento da dívida interna e o crescimento
do passivo externo (aí incluída a dívida e outras obrigações do país
em moeda estrangeira) explica porque o recente acordo entre o
governo brasileiro e o FMI estipulou metas precisas de superávit
fiscal.
Trata-se de garantir ao investidor estrangeiro que a dívida interna
será honrada. Caso contrário, os portadores abandonarão os títulos
do governo, transformarão seus reais em dólares e sairão do país,
gerando uma crise cambial.
Por outro lado, as empresas num cenário de juros altos não conseguem
investir na produção. A opção do mercado financeiro passa a ser mais atrativa para
os investimentos (empresários brasileiros pegam empréstimos no exterior e aplicam
no Brasil, aproveitando o diferencial da taxa de juros). Nessa situação, não há
crescimento, aumenta o desemprego e o país permanece preso nas armadilhas
de juros, abertura comercial e sobrevalorização cambial.
Após a queda de Gustavo Franco do Banco Central, o grande defensor da
política de sobrevalorização cambial, o Governo FHC desvalorizou o Real. No
entanto, a política de juros para atrair o capital de curto prazo e a manutenção de
superávites primários, para honrar os compromissos externos e controlar a inflação,
em detrimento de uma política voltada para o crescimento econômico como forma de
melhorar a produção brasileira e equilibrar o balanço de pagamentos, continuou
sendo a tônica da política econômica até o final do mandato de FHC.
Nesse contexto, aumenta o processo de desestruturação do mercado de
trabalho. “Em cada dez ocupações geradas entre 1989 e 1995, apenas duas eram
ccxc
assalariadas ante oito não-assalariadas, sendo quase cinco por conta própria e três
sem remuneração” (Pochmann, 2002: 75). O desassalariamento também cresceu:
em 1989, 64% da PEA eram assalariados; em 1995, apenas 58,2% da PEA eram de
assalariados (Pochmann, 2002: 75). O desemprego cresceu, entre 1989 e 1995,
16% em média ao ano - acréscimo de 442 mil pessoas por ano (Pochmann, 2002:
75), chegando a junho de 2003 à taxa de 20,3% (maior taxa desse mês desde
1989).
Na área das políticas sociais, como ressaltado anteriormente, a Constituição
Federal de 1988 refletiu as contradições e disputas entre projetos políticos distintos
(“liberal-corporativista” e “democracia de massa” - Coutinho, 1993).
A
institucionalidade
legal
da
ordem
social, com a CF-88, projetou para o País os
marcos para estruturação de um Estado voltado
para
universalização
dos
direitos
sociais,
participação da sociedade na definição das
políticas sociais e descentralização políticoadministrativa, ou seja, um modelo próximo ao
“welfare state social democrata”.
Sendo assim, o cenário brasileiro na conjuntura neoliberal, apresenta um eixo
central de contradição. Por um lado, o processo de democratização da sociedade,
dos anos 1980, leva-nos à construção de um padrão legal de política social baseado
na lógica do welfare state universalista, através de mecanismos que promovem
maior participação da sociedade na definição e implantação de políticas sociais,
redefinindo, assim, a noção de espaço público numa perspectiva de aprofundamento
da democracia. Por outro lado, as mudanças ocorridas em plano mundial e a
hegemonia liberal-conservadora conduzida pelo governo FHC impõem limites ao
ccxci
desenvolvimento imediato de tal padrão (Farah, 1997). Dessa forma, podemos
vislumbrar, do ponto de vista das políticas sociais no Brasil, um cenário com as
seguintes tendências: Padrão Democrático de Política Social; Padrão Neoliberal de
Política Social e Padrão Tradicional de Política Social.
O Padrão Democrático de Política Social se
pauta numa perspectiva de garantia universal de
direitos
sociais,
popular
e
baseada
na
participação
descentralização
político-
administrativa, resguardando o papel do poder
central como elemento que propicia a unidade
da
política
social
e
o
apoio
técnico,
administrativo e financeiro para sua efetivação.
Nesse sentido, o Estado tem o dever de
formular e executar (direta ou indiretamente) as
políticas sociais, garantindo a realização dos
direitos sociais.
A
Constituição
Federal,
as
Leis
Orgânicas da Saúde e da Assistência Social
(LOS e LOAS), bem como o Estatuto da Criança
e
do
Adolescente
(ECA)
ratificam
essa
proposição.
O Padrão Neoliberal de Política Social fundamenta-se na lógica do
receituário neoliberal proposto pelo Consenso de Washington - pautado na
estabilização monetária, abertura comercial e privatização - e nos preceitos de um
“social-liberalismo” que não se distingue concretamente das experiências neoliberais
de redução do Estado na área social. Configura-se contrário ao padrão democrático.
ccxcii
Essa orientação política tem tido adesão de grande parte da sociedade e de quase
todos os órgãos da mídia.
O exemplo emblemático dessa política é o Comunidade Solidária, que
desconhece a LOAS e a legitimidade do Conselho Nacional de Assistência Social e
desenvolve uma política de desresponsabilização do Estado no trato das expressões
da “questão social”, através de ações focalizadas, fragmentadas e privatizadas,
depositando a maior parte da responsabilidade, para o sucesso das ações, na
própria sociedade, apelando, assim, para solidariedade social (Sposati, 1995), no
que a mídia colabora fazendo um apelo à sociedade civil para o desenvolvimento de
medidas de caráter assistencialista, voluntário e filantrópico.
Outro aspecto a destacar refere-se à “descentralização destrutiva” (Soares,
2000) operada pelo desmonte de instituições nacionais (LBA e FCBIA), sem
planejamento prévio, combinada com a transferência das ações para os municípios,
sem o devido apoio técnico e financeiro para que os mesmos fossem capazes de
assumir as ações.
Por fim, os programas de renda mínima têm sido implementados sob uma
nítida concepção liberal de focalização e pobreza absoluta, o que contribui para a
redução de gastos sociais (Silva et alli, 2004).
Nesse quadro, as estratégias de focalização, via programas de combate à
pobreza, e descentralização, contribuem, como sinalizam Laurell (1995) e Soares
(2000) para a manutenção de mecanismos clientelistas na área social. Esse aspecto
parece bem razoável em se tratando de um governo fundado num pacto
conservador, que precisa de articular politicamente apoio para a direção estratégica
maior: a transnacionalização da economia.
ccxciii
Em termos gerais, a Política Social
desencadeada pelo governo FHC seguiu os
passos de reestruturações social-democratas,
num país que não constituiu um padrão de
intervenção do Estado na área social do porte
de tais experiências. Portanto, diminuiu o que
não existia e redefiniu o que não foi construído,
numa nítida adesão aos preceitos neoliberais.
Sendo
assim,
assistencialização
e
mercantilização das políticas sociais formam a
tendência de tal proposição (Mota, 1995).
O Padrão Tradicional de Política Social possui como orientação a lógica
assistencialista, fisiológica, caritativa, enfim, um padrão típico da nossa República
Velha, combinado com o corporativismo do pós-1930 desenvolvido, principalmente,
na área da previdência social106.
A partir desses padrões - que se conformam como determinações existentes
na realidade brasileira em relação às políticas sociais -, podemos desenvolver uma
análise de conjuntura mais precisa sobre o estado das políticas sociais sob
responsabilidade dos municípios brasileiros. Vejamos.
Após a CF-88, aos municípios foram destinados mais recursos e maior
autonomia para a implementação de políticas sociais.
Na prática, a diretriz constitucional da descentralização promoveu, por um
lado, a desresponsabilização das esferas estaduais e federal no processo de
106
A previdência social foi desenvolvida de forma segmentada. Cada categoria profissional regulamentada pelo Estado tinha
acesso a determinado conjunto de políticas sociais; a população que estava fora do mercado formal de trabalho - e seus
respectivos filhos - não tinham acesso ao sistema de previdência pública operado pelos IAP`s (Institutos de Aposentadoria e
Pensões). Essa população era atendida pelos serviços de assistência social desenvolvidos, principalmente, pelas organizações
da sociedade civil. Nessa lógica, a atuação dos sindicatos se pautava numa orientação particularista voltada apenas para o
atendimento imediato da corporação, não visando a uma luta pela universalização das políticas sociais públicas (Santos,
1987).
ccxciv
implementação das políticas sociais, dando abertura para que a prática
patrimonialista imperasse nos municípios de baixa organização da sociedade civil e
possibilitou o estabelecimento de relações utilitárias entre Estado e instituições da
sociedade
civil,
visando,
por
um
lado,
à
privatização
(no
sentido
da
desresponsabilização estatal) da política social e , por outro lado, ao atendimento de
interesses particularistas de organizações da sociedade civil que, “vendendo” seus
serviços, resolviam seus problemas financeiros – desenvolvendo, portanto, políticas
sociais de caráter neloliberal e tradicional.
Contraditoriamente, a descentralização também possibilitou aos municípios
de maior mobilização e organização da sociedade civil construir, mesmo que
tímidas, políticas participativas identificadas com o padrão democrático, com
conteúdos mais adequados às demandas sociais - aproveitando experiências bem
sucedidas da sociedade civil -, implementadas sob novas formas de gerenciamento,
através de relações com organizações da sociedade civil, garantindo maior eficácia,
eficiência e efetividade das ações.
Sendo assim, experiências de determinadas prefeituras mostram-se como um
campo em que se pode observar a ampliação da ação do poder público intervindo
na situação social e provocando melhorias na área social, enfrentando a chamada
“exclusão social” e redefinindo as relações entre o Estado (em sua expressão
municipal) e a sociedade civil, através da implementação de políticas sociais de
corte democrático107.
Cabe aqui destacar a funcionalidade do
padrão tradicional ao modelo neoliberal. Em
outras palavras, o padrão tradicional da política
social contribui para o desenvolvimento da
ccxcv
lógica de mercado, da lógica neoliberal. Nesse
sentido, o padrão tradicional e o padrão
neoliberal
podem
estar
extremamente
articulados e o padrão tradicional pode ser
utilizado funcionalmente para a potencialização
do padrão neoliberal.
A partir do quadro exposto, tendo em vista a relação entre a política
econômica e a política social e considerando a orientação neoliberal de ambas,
podemos afirmar que o cenário global no campo das políticas sociais no Brasil, ao
longo do governo FHC, apesar da co-existência de diferentes padrões e referências
para a estruturação das políticas sociais em nosso país, é constituído,
indubitavelmente, pelo padrão neoliberal.
Assim, a tendência hegemônica de política social, a despeito da existência
dos marcos constitucionais de uma política social institucional e redistributivista e
dos esforços de estruturação de políticas municipais que se aproximem mais do
padrão democrático que daquele padrão, é pautada pela lógica da privatização,
focalização e desconcentração financeira e executiva (Montaño, 2002).
Contrastando com essa conjuntura, o crescimento e fortalecimento de
organizações autônomas e democráticas na sociedade civil, apresentava um
contraponto ao projeto dominante. Do ponto de vista político, essas organizações
combatiam o caráter “delegativo” de nossa democracia, procurando contribuir na
estruturação de uma lógica estatal racional e direcionada para prover a
universalização dos direitos sociais previstos constitucionalmente (tais como: a LOS,
a LOAS e o ECA). Além disso, existia toda uma concentração de esforços para a
implementação de conselhos deliberativos e fiscalizadores (como, por exemplo, os
107
Para um balanço das experiência de prefeituras em políticas sociais, ver Lesbaupin (2000) e Jacobi (2000).
ccxcvi
conselhos de saúde, da assistência social e dos direitos da criança e do
adolescente), mecanismos de democracia participativa para gestão de políticas
públicas. Entretanto, nesse contexto, as forças que defendiam essa perspectiva,
além de não se apresentarem como hegemônicas, tiveram muitas dificuldades para
exercer uma oposição efetiva ao projeto de FHC.
Nesse sentido, a efetivação da política social no Brasil sofre os
constrangimentos e determinações de uma política econômica e social de corte
liberal e regressiva, reduzindo as possibilidades de efetivação de políticas sociais de
cunho universalista e de espaços públicos democráticos nesse campo.
No entanto, é fundamental enfatizar que essa assertiva não desconhece a
existência de propostas de contra-tendência no cenário nacional sendo efetivadas,
principalmente, pelos governos sub-nacionais, contando com instituições da
sociedade civil que compartilham um projeto público, democrático e universalista
para as políticas sociais.
Portanto, no contexto da reestruturação capitalista, no qual se desencadeia
uma verdadeira “contra-revolução liberal-conservadora”, como denomina Cardoso de
Mello (1998), a condução neoliberal da política macroeconômica do governo Cardoso,
implementa, como demonstra Behring (2003), uma “contra-reforma conservadora e
regressiva” do Estado brasileiro108.
Nessa perspectiva, na década de 1990, essa “contra-reforma” “tem a
envergadura das mudanças da década do pós-1930 e do pós-1964 e guarda nexos
com o passado” (Behring, 2003: 115), porém em sentido contrário. Ou seja,
naqueles períodos, o projeto desenvolvimentista apontava para um processo de
industrialização, que necessitava do Estado como um dos “pés” do desenvolvimento.
108
Nesta tese utilizaremos a definição proposta por Behring (2003), na medida em que particularizaremos a questão no Brasil e
concordamos com a autora que o ocorrido no país foi um movimento contrário às reformas realizadas ao longo do projeto
desenvolvimentista e, principalmente, frente às propostas presentes na década de 1980.
ccxcvii
Nesse sentido, mesmo nas condições brasileiras de reduzida permeabilidade aos
interesses das classes trabalhadoras, o protagonismo estatal e sua expansão
viabilizou a ampliação do atendimento dos interesses dos trabalhadores - via
expansão do mercado interno e das políticas sociais e da estruturação do mercado
de trabalho - ainda que de forma parcial, seletiva e com pouca qualidade; num
movimento crescente de concentração de renda, riqueza e poder das classes
dominantes, a partir da intensificação da exploração da força de trabalho. No
entanto, do ponto de vista da classe trabalhadora, com a redução do Estado a
situação se agravaria, ou sem ele, o quadro poderia ser muito pior.
Desse modo, do ponto de vista teórico, como ressalta a autora, devemos
rejeitar a utilização do termo “reforma” pelos neoliberais, mostrando que eles fazem
uma “apropriação indébita” da concepção reformista, na medida em que eles a
utilizam para identificar qualquer proposta de mudança ocorrida, independente do
sentido, da orientação sociopolítica e da finalidade de sua implementação. Dessa
forma, retira-se da concepção de reforma todo o arsenal histórico e teórico que
sempre a relacionou com a orientação da intervenção dos movimentos progressistas
e de esquerda na sociedade. Conforme assinala Nogueira (1998: 17), “devemos
reafirmar a cosangüinidade entre reformismo e esquerda.”
Apesar de longa, convém apresentar a síntese de Behring (2003: 282) sobre
esse movimento de contra-reforma:
...o que estamos analisando, embora mantenha elementos em
comum com períodos históricos anteriores, a exemplo do
conservadorismo político na condução dos processos decisórios e do
patrimonialismo, é muito diferente daqueles “saltos para adiante”,
modernizações conservadoras ou processos de revolução passiva e
“pelo alto” que engendraram a industrialização e a urbanização
brasileiras, acompanhados da formação de um mercado interno
significativo, embora sempre estreito diante das potencialidades.
Diferença que reside no fato de que se tratou de um salto para trás,
sem o sentido da ampliação das possibilidades de autonomia ou de
inclusão de segmentos no circuito “moderno”, diferente das
transformações estruturais anteriores, apesar dos limites também
ccxcviii
destas últimas. Este retrocesso é o que configura uma contrareforma, por meio da qual houve quebra de condições historicamente
construídas de efetivas reformas, dentro de um processo mais amplo
de profundas transformações.
Portanto,
é
fundamental
frisar:
as
mudanças de 1930 e 1964 foram mudanças
dentro
do
projeto
desenvolvimentista,
conduzido por um pacto conservador, e a dos
anos
1990
é
um
“projeto
radical
de
transnacionalização da economia brasileira”
(Fiori, 2001a), conduzido de forma liberal e
subordinada (Fiori, 1998), implementado no
contexto de reestruturação capitalista, guiado
pelo mesmo pacto conservador. De acordo com
a análise de Fiori (1998: 187), para manter os
mesmos interesses a estratégia tinha que
mudar:
a economia é aberta, o Estado se retira do setor produtivo, e as
empresas nacionais ou quebram ou são internacionalizadas. Do tripé
para um modelo de um só pé, onde passamos a ser ainda mais
dependentes do que antes dos humores da economia internacional, e
apostam todas nossas fichas nas virtudes dos mercados
desregulados, segundo eles, de fazerem uma correta, eficiente e
equilibrada alocação dos recursos provenientes dos investidores
privados, sobretudo os internacionais.
Assim, conforme analisa o autor (2001: 283), o projeto neoliberal no Brasil foi
operacionalizado, através da manutenção das “mesmas regras e estruturas básicas
do velho e permanente ‘pacto conservador’”. Segundo o analista (idem: 283-286),
essas estruturas se mantiveram nas relações estabelecidas entre o Estado e o
capital privado, na regulamentação do mundo do trabalho, na organização das
instituições políticas e na construção de uma nova soberania nacional.
Na relação entre o Estado e o capital privado, o discurso neoliberal pregava o
fim do “Estado cartorialista” e do “populismo econômico”, através da abertura e
ccxcix
desregulamentação dos mercados, em nome da “competitividade global” e do fim do
protecionismo. No entanto, a privatização do Estado, via transferência do patrimônio
público a grupos privados, “escolhidos a dedo”, e a feudalização das novas agências
e das velhas instituições e empresas públicas, continuou como forma de acomodar
os interesses heterogêneos da “coalizão de forças conservadoras e das várias
facções oligárquicas ou regionais da base parlamentar do governo” (Fiori, 2001b:
283).
Em relação à regulamentação do trabalho, a proposta neoliberal defendia o
fim do corporativismo que interferisse negativamente na definição, pelo mercado, do
“preço justo” da força de trabalho e que enfraquecesse o capital e prejudicasse a
“competitividade global”. Assim, os governos neoliberais desregulamentaram o
mercado de trabalho, restringindo direitos trabalhistas, congelando salários do setor
público e reduzindo a participação salarial na renda nacional, de 45% para 36%,
além de não expandir a produção de bens públicos e básicos de consumo popular
(idem: 284).
As regras e instituições políticas, outro aspecto da agenda, no essencial,
ficaram inalteradas. Manteve-se, dessa forma, a estrutura de poder compatível com
uma coalizão que incorporava, também, os segmentos mais tradicionais e
“atrasados” da política regional ou oligárquica brasileira. Sendo assim, como
ocorrera no período desenvolvimentista, também na atual conjuntura “as oligarquias
que controlam parte significativa do poder regional agrário e urbano, seguiram
obtendo posições e favores junto ao Estado central, em troca de sua capacidade de
mobilização eleitoral e parlamentar, indispensável à reprodução da ordem política
conservadora” (Fiori, 2001b: 284-285).
ccc
O último aspecto abordado por Fiori diz respeito à promessa neoliberal de
construção de uma nova soberania nacional, eliminando o “nacionalismo
anacrônico” do período desenvolvimentista. No entanto, a “transnacionalização
radical da estrutura produtiva e dos centros de decisão da economia brasileira”,
operada pelos neoliberais, produziu a fragilização do Estado e da economia
nacional, “que ficaram dependentes do capital privado internacional e do apoio do
governo norte-americano, nas situações de crise” (idem: 285).
Dentro desse panorama, a partir da reedição do pacto conservador, será
implementado o projeto liberal-conservador de transnacionalização radical da
economia brasileira, consolidando o neoliberalismo em nosso País.
Diniz (2000) apresenta dados significativos sobre a transnacionalização
radical de nossa economia, a partir do intenso processo de fusões, aquisições ou
associações de empresas nacionais com grupos estrangeiros (374 fusões e
aquisições entre 1992 e o primeiro semestre de 1997). Segundo a autora, “entre
1991 e 1997, foram adquiridas por empresas estrangeiras 96% das empresas
brasileiras do setor eletroeletrônico, 82% das empresas do setor de alimentos e 74%
das indústrias de autopeças” (idem: 92). Corroborando com Fiori, afirma
conclusivamente Diniz (id: 94): “do ponto de vista ideológico, tais mudanças apontam
para a progressão de uma perspectiva internacionalista, em contraposição à visão
nacionalista do passado”.
Nesses termos, será processada a contra-reforma do Estado, que
estabelecerá as determinações fundamentais da contra-reforma da administração
pública: o projeto de transnacionalização radical e a estrutura de dominação fundada
no pacto conservador que comandará a implementação de tal projeto.
ccci
A primeira determinação (o projeto em tela) organiza o fundamento
economicista e gerencial da proposta de contra-reforma da administração pública, e
a segunda (estrutura de coalizão de classe) articula esse fundamento com a
particularidade brasileira de manutenção dos traços tradicionais do pacto
conservador de dominação estabelecido.
O fundamento economicista e gerencial da proposta de contrareforma da administração pública: centralidade do mercado e burocratização
monocrática
A
principal
gerencialismo
administração
é
determinação
a
pública
identificação
com
do
da
administração
privada.
O gerencialismo não considera a distinção existente entre a administração
destinada a fins públicos – administração pública – e aquela destinada a fins
lucrativos – administração empresarial. No entanto, Kliksberg (1997: 87) adverte:
Gerenciar organizações públicas, nos tempos atuais, é bem diferente
de gerenciar organizações privadas, seja quanto aos dilemas que a
gerência pública tem de enfrentar, seja quanto às suas opções, aos
problemas compatibilização de objetivos, aos problemas de restrições
e de proibições seja quanto à eleição de meios. Todas estas questões
que exigem, da gerência pública, respostas técnicas específicas.
Apesar da concepção explícita de Kliksberg (1997) e outros autores – Grau
(1998), Paula (2005), Nogueira (1998 e 2004) e Abrúcio (1997), apenas para citar
alguns – que distinguem a administração pública da empresarial, nos Estados
Unidos, por exemplo, centro de influência do ensino da administração pública no
Brasil, a administração pública e a empresarial, apesar de comporem comunidades
cccii
acadêmicas separadas, são fortemente relacionadas entre si, tendo como espinha
dorsal a chamada administração científica, que é inerente à administração
empresarial (Gaetani, 1999). Portanto, mais que uma articulação ou relação estreita,
o que ocorre efetivamente é o desenvolvimento da administração pública sobre as
bases da administração empresarial, ou seja, sobre um conjunto de componentes
ético-políticos que não expressam as finalidades vinculadas a uma dimensão pública
de universalização de direitos.
O debate sobre administração pública, revigorado a partir da década de 1980 no
contexto da chamada Reforma do Estado, reatualizou a discussão acerca da existência ou
não da distinção entre administração pública e a empresarial.
Essa reatualização se fez a partir do que se convencionou denominar de
“Nova Administração Pública”, ou seja, propostas nem sempre homogêneas que
orientaram as reformas administrativas, a partir dos anos 1980, numa perspectiva de
substituição ou superação do modelo burocrático de administração (Ferlie et al.,
1996; Gaetani, 1999; Grau, 1998; Fedele, 1999).
De maneira implícita, uma determinada vertente da “Nova Administração
Pública” considera haver identificação entre as duas administrações, num
posicionamento semelhante ao desenvolvido nos EUA na década de 1960, conforme
analisam Ferlie et alli (1996), Gaetani (1999), Grau (1998) e Fedele (1999).
Por outro lado, esse mesmo contexto propiciou o fortalecimento da corrente
vinculada à “Nova Administração Pública” que se posiciona claramente a favor de
uma distinção entre a administração pública e a empresarial, tendo como
fundamento as diferentes motivações, valores, objetivos e estratégias que
conformam uma e outra administração. Tal corrente busca reforçar o caráter
democrático da administração pública, a preocupação com a cidadania, mas
também defende modificações na ordem burocrrática, a partir da utilização de
ccciii
mecanismos e ferramentas gerenciais que permitam maior agilidade e eficiência
administrativa, sem perder a preocupação com a efetividade, voltada para a
democratização. Essa concepção tem sido defendida, entre outros, por Nogueira
(1998 e 2004), Abrúcio (1997), Kliksberg, (1997), Grau (1998) e pelo Centro
Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (CLAD, 1998).
Assim, cabe ressaltar, mais uma vez, que essas duas vertentes da “Nova
Administração Pública”, diferentemente uma da outra, partem da crítica ao modelo
tradicional burocrático de gestão.
Paula (2005), no entanto, analisa que as concepções que partem do
gerencialismo não são concepções de cunho democrático, apenas adaptam o
gerencialismo a alguns elementos de democratização. No entanto, consideramos
que, em que pesem as distinções existentes entre as concepções dos diferentes
autores que incorporam mecanismos e ferramentas gerenciais, essas propostas
buscam, em linhas gerais, submeter tais mecanismos e ferramentas à finalidade
democrática, sendo que algumas de forma mais radical, voltadas para a
universalização de direitos no caminho da transformação social, enquanto outras se
colocam mais próximas do campo gerencial. O que orienta nossa análise é o
entendimento, como desenvolvido no capítulo 1, que existe uma autonomia relativa
entre meios e a finalidade da ordem administrativa.
Nesse sentido, Paro (2000; 151), ao defender uma administração escolar
orientada para a transformação social, portanto antagônica à administração
empresarial, afirma:
Isto não quer dizer, obviamente, que se deva desprezar pura e
simplesmente todo o progresso técnico havido na teoria e na prática
administrativa empresarial. Significa apenas que, em termos políticos,
o que possa haver de próprio, de específico, numa Administração
Escolar [ou, em nosso caso, na Administração Pública em geral]
voltada para a transformação social, tem de ser necessariamente
antagônico ao modo de administrar a empresa, visto que tal modo de
administrar serve a propósitos contrários à transformação social.
ccciv
Continuando, o autor explicita a centralidade da finalidade da administração
na determinação de sua orientação fundamental. Nas palavras de Paro (2000: 151):
“a possibilidade de uma administração democrática no sentido de sua articulação, na
forma e no conteúdo, com os interesses da sociedade como um todo, tem a ver com
os fins e a natureza da coisa administrada”.
Portanto, o fato de propor mecanismos e ferramentas gerenciais para a
administração não determina, em si, sua finalidade. Assim, consideramos aquelas
propostas como situadas no campo democrático, porém, não necessariamente, de
uma forma mais radical e socialmente referenciada, como desenvolvida por Paula
(2005), ou explicitamente revolucionária, conforme defendida por Paro (2000) e
Nogueira (1998 e 2004), com as quais concordamos e defendemos nesta tese.
Apesar de compreendermos que existem duas perspectivas no campo da
“Nova Administração Pública” - uma voltada para o projeto hegemônico neoliberal, a
qual identificaremos como proposta gerencial e a outra voltada para a perspectiva
democrática, que pode estar ou não vinculada a um projeto de superação da ordem
capitalista – nesta seção, apenas analisaremos a concepção gerencialista, deixando
para a conclusão do trabalho considerações acerca da perspectiva democrática.
Sendo assim, o primeiro aspecto que deve ser destacado está relacionado à
finalidade da ordem administrativa que se pretende estruturar.
A proposta hegemônica de reforma administrativa, no contexto dos anos de
1980 e 1990, como uma das dimensões da reforma do Estado, estava diretamente
vinculada ao projeto neoliberal.
Essa vinculação se apresenta explícita pela afinidade teórica existente entre
as propostas filosóficas, políticas e econômicas das escolas neoliberais austríaca e
de Chicago e a escola de Virgínia, que será a base fundamental das propostas
cccv
neoliberais para o campo da administração pública, a partir da teoria da “escolha
pública” - desenvolvida, por volta de 1968, por J. M. Buchanan e incorporada aos
estudos administrativos realizados por Niskanem, em 1971 -, a qual utiliza os
princípios da economia, numa perspectiva utilitarista, nas escolhas individuais
(Toledo, 1995; Paula, 2005, Fedele, 1999 e Grau, 1998). Conforme assinala Grau,
Os fundamentos desse enfoque são o individualismo metodológico, o
homo-economicus e a política como intercâmbio, tomando a liberdade como valor
supremo em clara conexão com as chamadas teses neoliberais da Escola de
Chicago e com o neoconservadorismo imperante (Grau, 1998: 223).
Borges (2001: 161) também nos oferece um resumo preciso da lógica da
teoria da escolha pública:
Para a TEP [teoria da escolha pública] (...) é da maior relevância a
noção de comportamento maximizador dos agentes individuais (homo
economicus). O egoísmo e a busca incessante do lucro, na visão da
economia clássica, constituem a força motriz dos mercados, cujos
resultados, num ambiente de concorrência perfeita, seriam o
equilíbrio e a eficiência geral. A teoria da escolha pública entende que
o comportamento dos homens de governo é ditado pelos mesmos
princípios utilitários e não pelo altruísmo ou interesse público.
Do ponto de vista político, a relação entre neoliberalismo e a dimensão
administrativa da reforma do Estado é apresentada por Montaño (2002). Segundo o
autor, o “projeto/processo neoliberal”, como estratégia hegemônica de
reestruturação do capital, desdobra-se em três dimensões articuladas: ofensiva ao
trabalho, reestruturação produtiva e a reforma do Estado. A reforma do Estado,
então, “está articulada com o projeto de liberar, desimpedir e desregulamentar a
acumulação de capital, retirando a legitimação sistêmica e o controle social da
‘lógica democrática’ e passando para a lógica da concorrência do mercado”
(Montaño, 2002: 29). O autor, assim, desvela a conexão existente entre a dimensão
econômica (interesses de classe/ofensiva contra o trabalho e reestruturação
produtiva) e a dimensão política e técnica da reforma do Estado. Nesse caminho,
poderíamos afirmar que, da mesma maneira que ideologicamente os neoliberais
cccvi
buscam cindir a dimensão econômica da dimensão política e técnica das mudanças
em curso, isolando as mudanças da ordem econômica das mudanças da ordem
política/técnica, no campo da chamada reforma do Estado ocorre uma outra cisão: a
da dimensão política com a dimensão técnica das propostas. Desse modo, a reforma
administrativa se apresenta como uma dimensão autônoma e independente da
política (reforma do Estado em seu conjunto) e da economia (mudanças nas
relações de produção – ofensiva contra o trabalho e reestruturação produtiva).
No entanto, a orientação da reforma do Estado está subordinada ao projeto
político que a define. Dessa forma, as dimensões que compõem a reforma do
Estado (reforma econômica, reforma fiscal, reforma previdenciária, reforma
administrativa...) também estão subordinadas ao projeto político hegemônico. Nessa
medida, a reforma administrativa não possuiu autonomia absoluta frente ao projeto
político que orienta as propostas de reforma do Estado.
Grau (1998: 221) sintetiza a vinculação teórica e política entre a proposta
hegemônica de reforma administrativa e o projeto neoliberal de forma precisa:
A matriz dominante do projeto modernizador, contudo, é uma
combinação de um projeto ideológico de redução do tamanho do
Estado , liderado pela cúpula do governo e pelo partido que lhe dá
sustentação política – casos de Inglaterra e da Nova Zelândia – e de
uma forte influência da corrente da “public choice” na interpretação do
comportamento do aparelho do Estado.
Paula (2005: 33) apresenta de maneira direta a relação entre a orientação
política neoliberal e a formulação teórica da escolha pública que fundamentará a
proposta de contra-reforma administrativa: “enquanto os neoliberais reforçavam suas
visões sobre a eficiência do mercado em relação ao Estado, os teóricos da escolha
pública elaboravam análises que sustentariam a crítica da burocracia do Estado”.
cccvii
Assim, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista político, não
há dúvidas sobre a relação entre a concepção neoliberal e a proposta hegemônica
de mudanças da administração pública.
Nesses termos a proposta de reforma administrativa de cunho neoliberal se
apresenta como uma contra-reforma, pois possui como finalidade uma ordem
centrada no mercado e na crítica às estruturas e políticas de universalização de
direitos. Portanto, a finalidade das mudanças propostas para a administração
pública, na medida de sua vinculação téorica e política com o neoliberalismo, não
pode estar voltada para a universalização e aprofundamento de direitos. Assim, a
proposta hegemônica de mudanças da administração pública aponta para a
valorização do mercado como regulador societal e de redução do Estado para área
social.
A crítica fundamental da teoria da escolha pública ao Estado, no geral, e à
burocracia, particularmente, está relacionada ao seu caráter de rent-seeking
(orientação para renda). Ou seja, de acordo com os teóricos dessa escola, os
governos e a burocracia agem buscando maximizar seus interesses individuais e/ou
organizacionais das agências estatais, prejudicando, dessa forma, a eficiência
econômica e social (Grau, 1998).
Conforme analisa Borges (2001), a respeito da concepção presente na teoria
da escolha pública, a expansão do Estado e, conseqüentemente, o aumento dos
orçamentos públicos criam as condições para políticos “orientados para renda”
ampliarem os gastos públicos, visando a vantagens individuais, levando, dessa
forma, a um processo de crescimento dos déficits públicos. Por outro lado, os
burocratas procuram canalizar esses novos recursos para suas agências,
interpretando regras de acordo com seus interesses, na perspectiva, também, de
cccviii
obtenção de rendas. Assim, de acordo com os teóricos da escolha pública,
“governos grandes e orçamento inchados significam menor liberdade para o cidadão
comum” (Idem: 169).
Portanto, conforme assinalam Andrews e Kouzmin (1998: 122):
a teoria neoclássica da Escolha Pública adquiriu um desgosto
bethamiano pelo setor público (Betham [1789] 1970), que é
constantemente posto sob suspeita de ser ineficiente, desperdiçador
(...), porque a ausência de qualquer mecanismo disciplinador permite
o comportamento predador (rent-seeking) de burocratas, de seus
clientes e dos políticos que o governam”.
De forma enfática os autores sublinham que esse raciocínio leva à crença de
que, tendencialmente, os burocratas públicos são inerentemente manipuladores, ou
até mesmo corruptos, pois distorcem informações destinadas aos superiores e
promovem políticas voltadas a seus próprios interesses, maximizando o tamanho de
suas agências em termos de pessoal e orçamento (Andrews e Kouzmin, 1998).
Nessa perspectiva, ganha fundamento teórico a proposta neoliberal de
redução da intervenção do Estado, a partir de mecanismos voltados para a
privatização de empresas públicas, desregulamentação econômica, redução de
gastos socias - via focalização, descentralização e privatização - e a conseqüente
redução do funcionalismo público.
Portanto, se a finalidade é o mercado e a redução do Estado para a área
social, num quadro de ineficiência econômica e social derivado do comportamento
rent-seeking dos políticos e da burocracia, os instrumentos administrativos devem
ser
adequados
a
essa finalidade,
buscando
superar os
comportamentos
inadequados.
Conforme analisa Borges (2001), James
Buchanan, principal expoente da teoria da
escolha pública, ao entender que a anarquia,
num mundo de indivíduos racionais egoístas,
cccix
seria inviável, uma vez que ninguém obedeceria
a regras que não fossem de seu interesse,
defende a necessidade de um agente externo
para garantir a implementação e o cumprimento
das regras, evitando o estabelecimento de uma
guerra hobbesiana de todos contra todos.
Assim, coloca-se a necessidade do Estado.
Entretanto, no quadro da situação das
democracias modernas, Buchanan analisa que
os cidadãos se sentem alheios às decisões do
governo e que os gastos realizados “refletem
mais as preferências de políticos e burocratas
auto-interessados do que as suas próprias. Por
outro lado, (...) a regra majoritária de votação
traria o risco da ‘tirania da minoria (...),
[apresentando] ‘custos externos’ ao indivíduo”.
Por isso, na perspectiva da escolha pública, a
“troca
no
mercado
é
quase
sempre
um
mecanismo decisório mais eficiente” (Borges,
2001: 168 e 169).
Dessa forma, na medida da inviabilidade
da
anarquia,
da
deficiência
do
processo
democrático e da eficiência das trocas no
mercado,
a
preferência
da
organização
sociopolítica deve ser por governos pequenos e
mercados livres. Nesse sentido, Buchanan
sugere, do ponto de vista institucional, “a
criação de regras legais rígidas, capazes de
cccx
limitar o escopo da deliberação democrática”,
visando impedir a expansão do Estado, através
do isolamento de questões como estabilidade
monetária e controle orçamentário (Borges,
2001).
Sendo assim, como perspectiva institucional, para fortalecer o mercado,
reduzir o escopo democrático, evitar o comportamento rent-seeking dos
políticos e dos burocratas e a conseqüente expansão do Estado, a teoria da
escolha pública propõe a centralização da estrutura burocrática, sob comando
político centralizado109 e, dialeticamente, aponta para sua flexibilização, via
mecanismos gerenciais, através da descentralização, da transferência de
atividades estatais para o mercado e da incorporação de mecanismos de
concorrência na administração pública, na medida em que não se pretende
expandir o Estado para a área social (Grau, 1998; Borges, 2001; Fedele, 1999 e
Paula, 2005).
Então, o cerne da proposta administrativa vinculada à concepção neoliberal
supõe a separação entre política e administração (Fedele, 1999), formulação e
execução (Paula, 2005) e contratação e prestação de serviços110 (Ferlie et alli,
1999), por intermédio de uma estrutura que combina uma centralização de poder
para a formulação e deliberação política e controle da alocação dos recursos e
descentralização da autoridade operacional (Grau, 1998).
109
Conforme analisa Borges (2001: 174), apoiado em Gray: “Subjacente a estas medidas estava a idéia de centralizar todas as
decisões governamentais nas mãos de poucos tecnocratas fiéis ao ideário neoconservador, indicados pelo partido. Como não
poderia deixar de ser, o processo de implementação de das reformas pró-mercado em países tão distintos como a Nova
Zelândia, a Inglaterra, o México e a Rússia se caracterizou pelo estilo tecnocrático e avesso à negociação com grupos sociais e
políticos opositores.”
110
Conforme apontam Ferlie et alli (1999: 170): “Há crescentes tentativas de se criar ‘paramercados’ no setor público, onde
organizações antes verticais são separadas em dois setores – o de compra e o de prestação de serviços -, sendo a relação
entre elas governadas por contrato e não por hierarquia.”
cccxi
Desse modo, convém destacar que, do ponto de vista social, a burocracia
continua sendo a forma predominante da administração pública e privada devido,
principalmente, ao seu caráter de especialização.
“Precisão rapidez, univocidade, conhecimento da documentação,
continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa,
diminuição de atritos e custos materiais e pessoais alcançam o ótimo
numa administração rigorosamente burocrática (especialmente
monocrática)” (Weber, 1999b: 212).
As mudanças que hoje se têm operado na administração capitalista, de uma
forma geral, vêm ao encontro de melhorar esses preceitos. A diminuição de
instâncias hierárquicas não é a quebra da hierarquia para garantir agilidade nas
tomadas de decisões. As “reengenharias” estão voltadas para alcançar as
necessidades descritas acima.
A redução dos mecanismos processuais da administração não indicam o
desaparecimento da burocracia, mas sua adequação à sociedade capitalista atual. A
agilidade exigida pelo capitalismo para a tomada de decisão foi atendida pela
organização burocrática. Hoje, como a velocidade das informações e processos
aumentou,
necessita-se
de
outros
procedimentos
(descentralização
em
determinados níveis, por exemplo) como forma de garantir a agilidade das respostas
administrativas. Porém, isso não altera o caráter burocrático da organização.
Em outras palavras, as características determinantes da burocracia se
mantêm intactas, até hoje, como proposta predominante para organização e
direção dos centros de decisão do capitalismo em sua fase atual (financeira e
flexível), nas sociedades com relações capitalistas estabelecidas, ou se apresentam
como modelo a ser perseguido para a estruturação de uma racionalidade adequada
ao desenvolvimento das referidas relações, nas sociedades onde o capitalismo
ainda se encontra em processo de expansão e enraizamento na cultura local.
cccxii
Por outro lado, na periferia dos centros de decisão das empresas e dos
Estados as propostas são de enfraquecimento da administração burocrática:
seja por conta dos processos de terceirização e flexibilização dos contratos de
trabalho que ocorrem nas empresas privadas, seja por conta do processo de
diminuição da estrutura estatal – proposto pela chamada reforma administrativa -,
realizada através da combinação público-privado (privatização, terceirização ou
“publicização”) para a efetivação das ações estatais e da estruturação do quadro
administrativo
por
vias
não
burocráticas
(terceirização
e
cargos
comissionados/cargos de confiança).
Podemos considerar que esse formato de
enfraquecimento/flexibilização
principalmente
quadro
através
da
administrativo
da
burocracia,
estruturação
por
vias
do
não
burocráticas, pode assumir uma feição que se
assemelha
ao
que
Weber
define
como
“burocracia patrimonial”. De acordo com o
autor:
Quando trabalham funcionários não-livres (...) dentro de estruturas
hierárquicas, com competências objetivas, portanto de modo
burocrático formal, falamos de ‘burocracia patrimonial’ (Weber, 1999a:
145).
Na medida em que parte do quadro administrativo passa a ser composto de
funcionários que não passam por uma seleção de competência impessoal, via
concurso público, mas através de uma relação direta com o dirigente/senhor, forja-se
uma situação típica de dominação tradicional, pois, conforme ressalta Weber, em
relação à dominação tradicional:
...seu quadro administrativo não se compõe primariamente de
‘funcionários’ mas de ‘servidores pessoais’ (...) Não são os deveres
objetivos do cargo que determinam as relações entre o quadro
cccxiii
administrativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal do servidor”
(Weber, 1999a: 148).
Em outras palavras, podemos afirmar que
parte do quadro administrativo, atualmente,
pode se aproximar da situação de recrutamento
na dominação tradicional definida por Weber
como recrutamento extrapatrimonial. Ou seja,
um recrutamento em virtude de um pacto de
fidelidade com o senhor ou então devido à
relação de piedade para com o senhor que os
funcionários livres estabelecem (Weber, 1999a:
149).
Portanto, hoje ocorre, do ponto de vista administrativo, um processo de
burocratização combinado com elementos gerenciais de flexibilização - que
podem tender à patrimonialização111 -, ou seja, um modelo que em hipótese
alguma pode ser considerado pós-burocrático. Vejamos esse aspecto um pouco
mais detalhadamente.
A intensificação da centralização burocrática configura uma burocracia
monocrática. Segundo Weber, a característica monocrática da burocracia se
expressa pela concentração do poder necessária para alcançar “tecnicamente o
máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, rigor e confiabilidade –
isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados -,
intensidade e extensibilidade dos serviços e aplicabilidade formalmente universal a
todas as espécies de tarefas” (Weber, 1999a: 145).
111
Diniz (2000: 56), apesar de não aprofundar esse aspecto teoricamente, levanta esta possibilidade: “A implantação de um
padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e procedimentos, não elimina a possibilidade de persistência ou mesmo
do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento do Executivo com a estrutura parlamentar-partidária.”
cccxiv
Sendo assim, a estruturação de uma burocracia monocrática garante a
direção do capital num cenário de baixa contra-hegemonia. Nesse contexto, a
concentração de poder viabiliza a organização da sociedade, em termos legais
(abertura comercial, financeirização, redução do papel regulador do Estado...), no
sentido de propiciar a expansão capitalista em sua formatação atual, dispensando a
necessidade de uma estrutura burocrática para além dos núcleos de poder. O
processo de burocratização monocrática, na atual conjuntura, refere-se à dominação
monopólica que está ocorrendo e sua implicação na transformação desse poder
econômico em dominação autoritária, visto que, como ressalta Weber, a dominação
em virtude de uma posição monopólica pode transformar-se numa dominação
autoritária.
“... a dominação puramente condicionada pela situação de mercado
ou por situações de interesse pode ser sentida, precisamente por sua
falta de regulamentos, como algo muito mais opressivo do que uma
autoridade expressamente regulamentada na forma de determinados
deveres de obediência” (Weber, 1999b: 191).
Historicamente, a intervenção burocrática na sociedade se apresentou como
uma condição necessária para constituição das sociedades de mercado, como muito
bem sinalizou Marx, em relação ao processo de acumulação primitiva, Weber, ao
pensar a relação capitalismo e burocracia112 e Polanyi ao mostrar como isso se
processou ao longo do século XX. Portanto, o fortalecimento da burocracia no
quadro atual é uma necessidade para o desenvolvimento do capitalismo flexível.
Conforme analisa Borges (2001: 177):
No processo de construção e manutenção do livre-mercado os
governos sempre enfrentam pressões contrárias poderosas, seja de
grupos organizados como sindicatos e associações empresariais,
seja de políticos de oposição ou de elementos da própria burocracia
estatal. Ao defender regras legais rígidas capazes de reduzir o
escopo da deliberação democrática, a construção de burocracias
fortemente insuladas e a centralização política dos governos a TEP
112
Conforme Oliveira registra, há um reducionismo quando o conceito de burocracia é identificado com serviço público, pois,
como lembra o autor, para Weber o “conceito de burocracia tem capacidade heurística para entender o que é capitalismo, e
não apenas a administração do Estado” (Oliveira, 2001: 142).
cccxv
[teoria da escolha pública] apenas trata de reconhecer o fato já
apontado por historiadores econômicos como Polanyi e outros de que
a construção de mercados livres tem como contrapartida a ação de
um Estado forte e centralizado.
Por outro lado, a expressão desse poder econômico monopólico cria as
condições para a cadeia administrativa ser estabelecida através do processo de
burocratização monocrático combinado com elementos de flexibilização gerencial,
que tende a ter um corpo de servidores com base na lealdade para com o senhor,
propiciando a submissão de parte considerável do quadro administrativo ao grupo
dominante.
Em outras palavras, a burocratização é limitada aos nichos de decisão
central. A cadeia administrativa pode e deve ser processada por uma estrutura
gerencial flexível, podendo assumir um caráter patrimonial, que garanta lealdade
máxima à condução determinada pelo pólo dirigente e pela alta burocracia, visando
impedir/diminuir as possibilidades de intervenções administrativas contestatórias. A
estrutura burocrática, pelo caráter de liberdade, especialização, conhecimento e
seleção por competência do servidor, pode colocar em risco a direção hegemônica
proposta, na medida em que abre possibilidades dos níveis intermediários e
operacionais da administração burocrática constituírem movimentos de resistência
ao projeto dominante.
A
possibilidade
de
estruturação
do
caráter patrimonial da administração atual se
apresenta, principalmente, no recrutamento e
seleção dos servidores “periféricos” e de níveis
intermediários
e
operacionais,
tanto
nas
empresas quanto no Estado, que combinam um
certo nível de competência com “pacto de
fidelidade”
cccxvi
com
o
senhor.
Dessa
forma,
articulam-se as regras formalmente definidas
com uma estrutura patrimonial para garanti-las
e
não
colocá-las
em
questão.
Com
isso
fragilizam-se ainda mais as possibilidades de
construção contra-hegemônica na sociedade,
na medida em que se combina servidor livre
cooptado, por suas condições especiais de
trabalho, para contribuir com a condução
hegemônica posta, e servidores não livres que
dependem do senhor para manter seu emprego
e por isso devotam lealdade máxima para com o
projeto hegemônico.
No contexto traçado acima, será possível falar da organização estatal ou de
uma empresa privada sem mencionar princípios de competência definidos
formalmente, hierarquia, documentação e administração baseada em regras? Ou
ainda: existe alguma organização (estatal ou empresarial) cujo núcleo estratégico do
quadro administrativo não seja livre, nomeado por uma hierarquia, com
competências
definidas,
contratados
formalmente
(segundo
qualificação
reconhecida), remunerados com salários em dinheiro, que exercem o cargo como
profissão única ou principal, com perspectiva de carreira, trabalhando em separação
com os meios administrativos e submetidos a um sistema de disciplina e controle?
Nesse sentido, o que estamos enfatizando é que a burocracia weberianamente falando, e nos termos determinados aqui - não é um modelo de
gestão como o taylorismo, fordismo ou toyotismo, pois todos são modelos de gestão
burocrática com a presença de mais ou menos determinações do chamado tipo
cccxvii
puro. Porém, sem sombra de dúvidas, os traços essenciais da burocracia
permanecem nesses modelos.
Do ponto de vista teórico, conforme desenvolvido no primeiro capítulo e
sublinhado por Paula (2005) e Diniz (2000), a burocracia não é apenas uma
estrutura administrativa; ela é, acima de tudo, uma relação de dominação, sendo seu
estatuto teórico, portanto, distinto do estatuto de um estilo específico de gestão. Por
outro lado, “é importante evitar a utilização do tipo ideal como referência para
identificar a burocracia, pois isso vem ajudando a legitimar a idéia de que as
organizações burocráticas estão se convertendo em organizações pós-burocráticas”
(Paula, 2005: 95). Adiante a autora (idem: 140) analisa a questão de forma sintética
e precisa: “é importante lembrar que a transição para a organização pós-burocrática
é um mito, pois temos uma flexibilização da burocracia e uma manutenção da
dominação”.
A empresa privada, portanto, não deixou de ser burocrática em seus traços e
determinações essenciais. O máximo que acontece é que ela mudou determinados
procedimentos e organização do trabalho, incorporando estruturas não burocráticas
(pensemos em atividades terceirizadas fundamentais para a lógica atual do
capitalismo e a situação dos trabalhadores e gerentes dessas empresas periféricas),
porém sem alterar, e até mesmo fortalecendo, a estrutura burocrática do centro
estratégico.
A carreira e a proteção na burocracia empresarial são compensadas pelos
altos salários, o que leva o funcionário a ter uma relação maior de subordinação com
seu senhor. E, do ponto de vista do empresário, a possibilidade de rotatividade de
pessoal, mesmo em escalões estratégicos, devido à existência de oferta de mão-deobra qualificada, possibilita a entrada e saída de gerentes sem que ocorram
cccxviii
mudanças abruptas de continuidade na burocracia empresarial. Ou seja, o
funcionário empresarial está pressionado pelos dois lados: falta de proteção
trabalhista e oferta de mão-de-obra qualificada.
No caso da empresa, talvez o elemento que possibilita uma certa
garantia/segurança para o funcionário é o “segredo burocrático” conquistado pela
prática profissional.
Assim, o taylorismo, fordismo e toyotismo, enquanto
modelos de
administração, nada mais são do que formas diferentes de organizar a estrutura
burocrática da empresa e seu processo de produção.
Portanto, não existe modelo de gestão que não seja burocrático desenvolvido
pelas empresas, pois a incorporação de elementos de flexibilização gerencial – que
podem tender a ser elementos “patrimoniais” -, requer uma forte burocratização.
Nesse sentido, se formos rigorosos com os conceitos e reflexões apresentados até
aqui, diferentemente do que o modismo neoliberal apregoa, mudar a gestão do
Estado numa perspectiva gerencial não significa implantar um modelo pósburocrático oriundo e desenvolvido na empresa privada, pois ele não existe. O que
existe são possibilidades de modelos de gestão dentro da ordem burocrática,
através do desenvolvimento de algumas características e redução da importância de
outras, reforçando os elementos de flexibilização gerencial, que podem até se
constituir como determinações de uma administração patrimonialista113.
Ao criticar a arrogância da tese do
esgotamento da burocracia e da formulação de
uma nova modalidade de administração pública,
Nogueira (2004: 42) destaca:
113
Nesse sentido, a tese expressa vai ao encontro da hipótese sugerida por Paula (2005: 95): “a organização pós-moderna é
uma nova expressão da burocracia, pois trata-se de uma adaptação do antigo modelo organizacional ao novo contexto
histórico. Por outro lado, sua aparente aproximação do modelo pós-burocrático está relacionada com a confusão entre a
cccxix
Na verdade, nenhuma reforma do aparelho do Estado feita sob o
capitalismo tem como se objetivar contra a burocracia, em nome da
superação de algum “defeito estrutural” que esse modelo conteria. Se
for pensada com critérios políticos e pragmáticos consistentes, e não
como agitação, ela só pode ter como meta reconstruir a burocracia
(...). Não havia nos anos 1900, e nem há hoje, qualquer motivo
justificável para que a reforma do aparelho do Estado seja “orientada
pelo mercado” em vez de se concentrar na recuperação e na
atualização das capacidades burocráticas. Eventuais sugestões
derivadas dos procedimentos de mercado deveriam ser recebidas
como um elemento reformador adicional, não como eixo principal.
Por outro lado, retirar do setor privado sua relação com a burocracia significa
projetar a lógica administrativa empresarial como referência de administração
(Oliveira, 2001), viabilizando a incorporação dessa lógica na administração pública.
Conseqüentemente, esse mecanismo faz com que a finalidade economicista passe a
ser o elemento central da administração estatal. Nesse sentido, a burocracia estatal,
além de servir mediatamente para a manutenção da ordem do capital, é pressionada
para atuar diretamente com esse objetivo
Em outras palavras, num quadro de profunda concentração do poder
econômico nas mãos de poucas empresas e numa situação de hegemonia
significativa da burguesia, todas as instituições da sociedade passam a ser forçadas
a operar mais diretamente dentro da lógica do capital. Esta se configura como a
orientação da ideologia e da ação política dominante. E a estrutura do Estado não
foge a essa regra. Conforme salienta Diniz (2000: 21), a globalização é conduzida,
também, e, sobretudo, por uma lógica política:
Esta por sua vez, tem a ver com a nova configuração das relações de
poder entre as potências mundiais, com a formação de blocos e
instâncias supranacionais de poder, ou ainda com as redes
transnacionais de conexões, através das quais se articulam alianças
estratégicas, envolvendo atores externos e internos, como as grandes
corporações multinacionais e as organizações financeiras
internacionais, ou ainda tecnocratas em posição-chave, burocratas de
alto nível e outros segmentos das eleites estratégicas. Tais redes
permitem não só a difusão de argumentos técnicos, mas também o
delineamento de novos parâmetros e valores, dando origem a uma
ideologia da globalização com alto poder de contágio e capaz de
burocracia e o tipo ideal.”
cccxx
promover um verdadeiro choque semântico, que subverte conceitos e
significados.
Fiori (1998:26) reforça essa análise ao mostrar que a globalização “é também
o resultado de decisões políticas e econômicas tomadas de forma cada vez mais
concentrada por alguns oligopólios e bancos globais e alguns poucos governos
nacionais”, não se tratando, portanto, de um processo derivado, exclusivamente “do
progresso técnico ou da evolução competitiva dos mercados.”
De acordo com Diniz (2000), esse processo de centralização burocrática é
potencializado, em termos globais, pelas chamadas “comunidades epistêmicas”,
constituídas a partir da difusão internacional de determinado conhecimento
especializado na área das políticas públicas, que passa a ser consensual entre
especialistas que acabam formando uma rede de tecnocratas (nacionais e
estrangeiros), cujo prestígio e reconhecimento internacional funcionam como uma
nova fonte de poder para socializar determinados paradigmas de análise. Conforme
salienta a autora,
...a comunidade-chave de teor transnacional é constituída de
economistas treinados nas universidades americanas ou européias,
que tendem a adquirir grande influência como mentores das reformas
e programas de estabilização. Muitos desses economistas integram
durante algum tempo o staff de agências multilaterais, como o FMI e
o Banco Mundial, levando para seus países de origem orientações
afinadas com o pensamento canônico nos círculos internacionais.
Ademais, o recrutamento para postos de direção, nas agências
estatais estratégicas, como o Ministério da Fazenda e o Banco
Central, tende a subordinar-se a essa rede de conexões, já que um
trânsito fácil nos círculos financeiros internacionais torna-se requisito
importante para ascender a tais funções (Diniz, 2000: 22).
Enfim, podemos dizer que a exigência de maior racionalidade do ponto de
vista do capital, ou seja uma administração contínua, rigorosa, intensa, calculável,
visando ao máximo de rendimento, requer a centralização de comando cada vez
mais intensa. As decisões da empresa capitalista não podem ficar à mercê de regras
e normas controladoras estabelecidas pelo Estado. A reforma do Estado e, em seu
interior, a reforma administrativa visam reestruturar a burocratização da sociedade
cccxxi
enquanto mecanismo de administração/dominação da sociedade de massas,
buscando “monocratizar” cada vez mais a burocracia nas mãos do grande capital
financeiro e inserir elementos de flexibilização gerencial no restante da cadeia
administrativa, visando à agilidade e à redução de custos – o que abre
possibilidades para o desenvolvimento de traços patrimonialistas na administração.
Nesse sentido, não estamos frente a um modelo pós-burocrático, mas
exatamente o contrário, vivemos um processo de aprofundamento da burocratização
da sociedade capitalista.
Sendo assim, a reforma da administração pública - chamada gerencial nada mais é, em sua essência, que uma proposta vinculada ao neoliberalismo
baseada na sugestão de procedimentos gerenciais flexíveis, num quadro de
centralização burocrática, para adequar a ordem administrativa a uma nova
forma de comando, mais direta e mais explícita, efetivada pelas classes
dominantes.
Por outro lado, o fortalecimento do Estado realizado, também, através da
estruturação burocrática de suas ações, pode ser um empecilho para os interesses
do capital transnacional, na medida em que amplia as possibilidades de diferentes
projetos políticos no interior do funcionalismo. Assim, para poder tomar decisões e
expandir, o capital transnacional necessita de determinadas regras que devem ser
adotadas pelo Estado. Por isso, através de seu poder e de seus interlocutores ou
representantes políticos (FMI, BIRD, BID), provocam as mudanças necessárias para
melhor administrar sua ação e exercer sua dominação.
Nesse quadro, o recurso à flexibilização gerencial ou a uma “burocracia
patrimonial” ou a elementos “patrimonialistas”, combinado com a burocratização do
núcleo central das decisões políticas e econômicas - expresso através da ação e das
cccxxii
propostas de sua burocracia empresarial e política -, contribui com o processo de
fortalecimento “monocrático” do grande capital. Essa configuração cria obstáculos
para a construção de possibilidades de estabelecimento de um contraponto aos
interesses do capital, na medida em que
enfraquece a organização burocrática
estatal em sua amplitude.
Nesses termos, os neoliberais não são contrários nem ao Estado nem à
burocracia. Eles são contrários aos aspectos do Estado e da burocracia que podem
fortalecer a construção da universalidade, a realização da liberdade, ou seja, de sua
racionalidade, no sentido hegeliano. Em outras palavras, eles são contrários a
determinados aspectos do Estado e da burocracia. Esses aspectos, como
procuramos demonstrar no capítulo 1, podem fortalecer na sociedade a luta por
transformações estruturais que levariam, aí sim, a mudanças do próprio Estado e de
sua organização administrativa.
O que o neoliberalismo faz não é destruir a burocracia, enquanto ordem
administrativa racional, “núcleo de toda administração de massa” (Weber, 1999a:
146), mas definir uma organização burocrática mais adequada à configuração do
capitalismo contemporâneo. Conforme destaca Paula (2005: 97):
Partindo do pensamento de Weber, constatamos que a
burocracia flexível continua se baseando nas relações
associativas racionais, que o autor considera a base da
dominação burocrática. No entanto, uma vez que a rigidez não é
mais o melhor caminho para responder às contingências e obter
a obediência dos funcionários, várias transformações
organizacionais estão em curso.
Efetivamente, a proposta neoliberal implica desmobilizar o Estado, enquanto
possibilidade de universalidade (ampliação do atendimento aos interesses das
camadas dominadas da sociedade), buscando, conseqüentemente, inviabilizar
estruturalmente uma burocracia, também, com essa orientação.
cccxxiii
Sendo
assim,
os
elementos
de
flexibilização gerencial nada mais são do que
estratégias para estruturar uma burocracia
flexível
que
combina
descentralização,
monocratização
separando
a
política
e
da
técnica e a formulação da execução.
Nesses termos, o gerencialismo, além de
não se constituir como um novo paradigma de
administração, possui vinculação orgânica com
a teoria da escolha pública, apesar de seus
defensores evitarem se identificar com tal
corrente do pensamento neoclássico, buscando
se
apresentar
como
uma
solução
“pós-
moderna”, sem ideologia, para os problemas
administrativos
do
governo
(Andrews
e
Kouzmin, 1998: 98). Paula (2005: 53) corrobora
essa análise afirmando que “o gerencialismo
contribuiu
para
esvaziar
as
práticas
neoconservadoras de sua substância política
original, pois atribuiu às medidas de reforma um
verniz
de
eficiência
e
significados
aparentemente progressistas como excelência,
renovação,
modernização
e
empreendedorismo.”
Conforme destaca Andrews e Kouzmin
(1998:
118),
a
essência
da
administração
gerencial “tem sido a de reorientar o ‘negócio’
do setor público de forma que não mais sirva ao
cccxxiv
Estado de Bem Estar Social, mas sim a um
Estado que clama como seu principal objetivo
dar apoio a uma economia competitiva global”,
através da transposição da lógica do mercado
para
a
administração
pública
(Andrews
e
Kouzmin, 1998 e Fedele, 1999).
Em síntese, o gerencialismo não passa
de tecnologias de flexibilização e valorização do
mercado
que
compõem
a
proposta
de
monocratização burocrática necessária para a
implementação
do
projeto
de
transnacionalização radical.
Assim, o projeto gerencialista ataca a finalidade de universalização de direitos e sua
dimensão racional/impessoal da ordem administrativa burocrática que potencializaria aquela
finalidade. Ratifica-se uma finalidade fundada no atendimento de necessidades mínimas da
população, coerente com a proposição neoliberal de reforço do mercado, e na mudança da
estrutura burocrática para flexibilizá-la, na medida em que não se propõe a universalização
de direitos.
A particularidade brasileira da proposta de contra-reforma da administração
pública: o tratamento paradoxal da burocracia e o patrimonialismo em
transformismo114
Para a análise da particularidade brasileira da proposta de contra-reforma da
administração pública, devemos trabalhar com as duas determinações fundamentais
antes assinaladas: o projeto social, econômico e político hegemônico e a coalizão de
classe que dirige a implementação desse projeto.
114
Desenvolvo, quanto à noção de transformismo aplicada à crítica do “neopatrimonialismo”, as breves sugestões que a Profª
Drª Ana Elizabete Mota ofereceu durante a defesa da Tese de doutoramento de Ana Maria Amoroso Costa, na Escola de
cccxxv
Na medida em que Bresser Pereira foi o ideólogo da proposta de contrareforma administrativa do governo FHC, utilizaremos seus textos (1996, 1998a e
1998b) e o Plano Diretor da Reforma Administrativa, como base da análise que
desenvolveremos.
O caminho analítico que seguiremos parte da crítica às tentativas (Bresser,
1996, 1998a e 1998b e Grau, 1998) de negar a articulação da proposta de alteração da
administração pública do governo FHC com as orientações do gerencialismo
neoliberal.
Nesse sentido, buscaremos mostrar a vinculação orgânica existente entre o
Plano Diretor e a perspectiva neoliberal, a partir de três dimensões distintas, mas
articuladas dialeticamente, quais sejam: política, teórica e institucional.
Do ponto de vista político, podemos destacar diferentes aspectos que mostram
nitidamente a vinculação entre o gerencialismo neoliberal e a proposta de mudanças
administrativas do governo FHC.
Em primeiro lugar, como demonstrado anteriormente, o projeto implementado
pelo governo FHC é um projeto orientado para a transnacionalização radical da
economia brasileira, numa perspectiva liberal conservadora. Dessa forma, a finalidade
que orienta a reforma do Estado e, no seu interior, a reforma administrativa brasileira
é uma orientação claramente neoliberal, portanto, uma orientação política que
determina uma verdadeira “contra-reforma” na administração pública.
Outro aspecto a destacar refere-se à valorização do mercado explicitada pelo
ideólogo da contra-reforma. Segundo o autor:
o novo conservadorismo realizou uma crítica útil dos problemas
enfrentados pelo mundo, particularmente para as distorções que
vitimaram o Estado, mas que (...) apresentou soluções parciais
senão equivocadas para esses problemas. O mercado é
certamente um mecanismo maravilhoso. Não tenho restrições à
idéia de que todas as reformas econômicas devem ser
orientadas ao mercado. Eu diria até que elas deveriam ser market
biased – ter um viés a favor do mercado. O que eu quero dizer
com isso é que devemos sempre partir do pressuposto de que o
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em janeiro de 2006.
cccxxvi
mercado terá um papel positivo na coordenação da economia
(Bresser Pereira, 1976: 17).
Esse aspecto mostra como Bresser Pereira se fundamenta na concepção
neoliberal, ainda que negue logo em seguida.
A negação da vinculação ao ideário neoliberal é argumentada dizendo apenas
que sua posição não mitifica o mercado, como fazem os neoliberais, e que a
economia orientada para o mercado não se confunde com a idéia de uma economia
coordenada pelo mercado. Segundo o autor, a orientação deve ser o objetivo de
qualquer economia que pretenda ser competitiva. A coordenação centrada no
mercado é um equívoco, uma vez que a coordenação de uma economia deve ser
realizada a partir da combinação da competitividade, desenvolvida pelo mercado, e da
cooperação, articulada pelo Estado.
Substantivamente, esses aspectos não são antagônicos aos preceitos do
neoliberalismo, visto que é possível não mitificar o mercado, mas privilegiá-lo como o
melhor regulador societal e, por outro lado, a combinação mercado-Estado para
coordenar a economia é algo defendido e implementado pelos neoliberais - por isso,
argutamente, Netto (1995), como vimos, qualifica a proposta neoliberal como a defesa
do Estado máximo para o capital.
O terceiro aspecto que podemos destacar é a forma como o ideólogo da
contra-reforma administrativa do governo FHC interpreta a crise dos anos 1970 e
1980.
Segundo Bresser Pereira (1996 e 1998b) , a crise econômica dos anos 1980 se
configura como uma crise do Estado: crise fiscal, crise do modo de intervenção do
Estado (keynesiano na economia e welfareano no social) e crise do modelo
burocrático de administração do Estado. Portanto, segundo o autor e ideólogo, a crise
contemporânea não se configurou como uma crise econômica do capitalismo, mas
sim como uma crise do Estado.
cccxxvii
Entretanto, como vimos anteriormente, as crises econômicas que se
manifestam desde os anos 1970 e sua conseqüente redução da taxa de crescimento
mundial contribuem para colocar em questão o padrão welfare state de regulação da
sociedade, sob o argumento de uma suposta crise fiscal. No entanto, conforme
análise de Teixeira (2000), Tavares (1993a, 1998), Cardoso de Mello (1998), Fiori (1993,
1995 e 1998), o que ocorre de fato nesse período é uma crise financeira profunda que
provocará uma crise fiscal, devido ao aumento do gasto público com juros e serviços
da dívida, e não uma crise fiscal decorrente do aumento do gasto público em
investimentos, custeios e programas sociais não acompanhados pelo aumento de
receita. Simultaneamente, o desenvolvimento tecnológico pautado na robótica, microeletrônica, informática, novos mecanismos de comunicação on line, assim como as
mudanças na organização do processo produtivo que se translada de uma orientação
fordista para uma orientação flexível provocam mudanças radicais no mundo do
trabalho (Antunes, 1995). A esses fatos aliam-se o desmoronamento das experiências
de socialismo de Estado e a ofensiva liberal-conservadora.
Tal ofensiva, através dos governos Tatcher, Reagan e Kohl, impôs ao mundo
uma hegemonia ideológica e de experiências concretas pautadas na liberalização do
mercado como elemento central para atingir melhor regulação social. Dessa forma,
estabeleceu-se uma ideologia com projeção mundial pautada na proposta de
esvaziamento do Estado e de seu papel regulador da sociedade, produzindo uma
agenda política centrada na reestruturação estatal.
De fato, a análise de Bresser Pereira sobre a crise do Estado é tipicamente
neoliberal. Em decorrência da análise realizada acerca da crise, o autor define a
estratégia social-liberal como aquela que tem como prioridade a orientação para o
mercado, afirmando que: “a interpretação da crise e a correspondente estratégia
social-liberal tomam emprestado do paradigma neoliberal a sua orientação ao
mercado e a crença de que as funções do Estado foram severamente distorcidas“
(Bresser Pereira, 1996: 20). Assim, completa o autor, é necessário reformar o Estado
cccxxviii
tendo como primazia “reformas econômicas orientadas ao mercado, privatização,
desregulamentação, liberalização comercial, assim como disciplina fiscal e as
políticas monetárias restritivas” (idem: 22). Ou seja, Bresser Pereira defende um
receituário tipicamente neoliberal, uma cópia do Consenso de Washington. Como
ressalta Andrews e Kousmin (1998: 99): “a reforma administrativa brasileira tem sido
guiada pela mesma filosofia impulsionadora do programa de privatizações”.
Ratificando essas análises, Paula (2005: 117) sintetiza a direção política da proposta
de contra-reforma administrativa do governo FHC de forma precisa:
A crise do nacional-desenvolvimentismo e as críticas ao
patrimonialismo e autoritarismo do Estado brasileiro
estimularam a emergência de um consenso político de caráter
liberal que se baseia na articulação entre a estratégia de
desenvolvimento dependente e associado, as estratégias
neoliberais de estabilização econômica e as estratégias
administrativas dominantes no cenário das reformas orientadas
para o mercado.
Esta articulação sustentou a formação da aliança política que
levou o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) ao poder,
viabilizando a reforma dos anos 1990 e a implementação da nova
administração pública no Brasil.
No entanto, para se distanciar do neoliberalismo, o ex-ministro rotula a
estratégia defendida por ele e pelo governo FHC de social-liberal. Uma tentativa de se
apresentar como uma esquerda moderna, alternativa, vinculada ao movimento da
“terceira via”.
Paula (20045: 70-77), então, mostra as conexões e continuidades entre esses
movimentos e a concepção neoliberal. A autora conclui que, apesar de dirigir críticas
ao neoconservadorismo, esse movimento mantém o eixo liberal e o adapta à
globalização; por outro lado, não despreza determinadas reformas neoconservadoras,
pois têm fundamento liberal. Dessa maneira, o traço de continuidade entre a terceira
via e o neoconservadorismo se estabelece pela via liberal.
Portanto, do ponto de vista político, a “reforma” de FHC não se distinguiu do
neoliberalismo, como resalta Nogueira (2004: 53), “a reforma estacionou nos limites
da propalada desconstrução neoliberal do Estado, dedicando-se a desenhar uma
cccxxix
imagem negativa do fenômeno estatal e a conceber a reforma como uma operação
para comprimir o Estado, não para melhorá-lo”.
Do ponto de vista teórico, a primeira questão a destacar refere-se à concepção
de Bresser Pereira que identifica administração pública com administração privada.
A partir da segunda metade dos anos 1960 ,o debate, iniciado nos Estados Unidos,
sobre a integração necessária entre a administração pública e a empresarial - sob o
argumento de que no mundo moderno não há distinção nítida entre as duas administrações
-, apesar de não ter prosperado naquele país, encontrou no Brasil um campo fértil para o
seu desenvolvimento: Constituição de 1967, Decreto-Lei 200, o “milagre econômico” e a
radicalização do regime autoritário (Gaetani, 1999).
No caso brasileiro, portanto, essa relação tornou-se uma efetiva “absorção da
administração pública pela administração empresarial”, nas palavras de Gaetani:
Embora esse debate [sobre a integração necessária entre a
administração pública e a empresarial] não tenha prosperado nos
EUA, no Brasil o desenrolar dos acontecimentos revela que se
encaminhou para uma fusão ou integração, que na prática resultou na
absorção da administração pública pela área de administração de
empresas, em termos gerais. O resultado foi a adoção de currículos
integrados nos cursos de Administração, sem adjetivações. (...) Ao
longo do tempo, administração tornou-se sinônimo de administração
de empresas (Gaetani, 1999: 103).
Bresser Pereira (1998b), ao fazer uma crítica a Pollitt e a Abrúcio,
desconsidera a distinção entre administração pública e administração empresarial.
Depois de afirmar que a identificação do gerencialismo com idéias neoliberais se faz
devido ao fato de as primeiras reformas terem sido implementadas por governos
conservadores (Thatcher e Reagan) e introduzidas simultaneamente aos programas
de ajuste estrutural para enfrentamento da crise fiscal do Estado, desenvolve o
seguinte argumento para tentar mostrar que uma possível perspectiva democrática
ou centrada no cidadão, que distingue administração pública de administração
privada, seria, apenas, uma tentativa de reatualização do modelo burocrático
tradicional:
cccxxx
“ As reações políticas à idéia da administração pública gerencial têm
uma origem ideológica óbvia. O livro Managerialism and the public
service, de Pollitt (1990), é bom exemplo desse fato. O
managerialism é visto como um conjunto de idéias e crenças que
tomam como valores máximos a própria gerência, o objetivo de
aumento constante da produtividade, e a orientação para o
consumidor. Abrúcio (1997), em panorama da administração pública
gerencial, compara esse ‘gerencialismo puro’, pelo qual designa a
‘nova administração pública’, com a abordagem adotada por Pollitt,
‘orientada para o serviço público’ e que visa ser uma alternativa
gerencial ao modelo britânico. Na verdade esse modo de ver as
coisas é apenas uma tentativa de dar atualidade ao velho modelo
burocrático, não é uma alternativa gerencial. A idéia de opor a
orientação para o consumidor (gerencialismo puro) à orientação para
o cidadão (gerencialismo reformado) não faz sentido algum (Bresser
pereira, 1998b: 32-33).
O segundo aspecto a ser considerado é a crítica ao modelo
burocrático realizado pelo ideólogo da contra-reforma
administrativa do governo FHC.
De acordo com Bresser Pereira, a “Administração Pública Gerencial”
expressa o processo de mudança do modelo burocrático de administração para o
modelo gerencial (Bresser Pereira, 1998a, 1998b, 1996).
O autor considera que o advento do modelo burocrático de administração foi
necessário para que se estabelecesse a distinção entre o público e o privado,
elemento fundamental de construção do Estado moderno. Portanto, superar o
modelo patrimonialista de administração pré-capitalista, em que os bens privados do
príncipe se confundiam com os bens públicos e as relações pessoais estruturavam a
condução das coisas do Estado, era uma tarefa central para o desenvolvimento
capitalista.
No entanto, segundo Bresser Pereira, a crise econômica dos anos 1980, ao
se configurar como uma crise do Estado, no geral, e, particularmente, numa crise do
modelo burocrático de administração do Estado, requer uma reforma do Estado que
passa, necessariamente, pela reforma do modelo de administração do Estado.
De acordo com o autor, o padrão burocrático de administração pública entra
em xeque devido, principalmente, à rigidez e à ineficiência do serviço público
cccxxxi
(Bresser Pereira, 1996: 20) e seu caráter antidemocrático (Bresser Pereira, 1996:
272). Essas características do serviço público burocrático teriam como causas os
seguintes aspectos: apropriação privada do aparelho público, através de processos
de corrupção de seus agentes; exagerada ênfase nos procedimentos – fato que não
propiciava uma atenção adequada aos resultados da administração e gerava
processos extremamente dispendiosos e lentos; atuação auto-referenciada da
burocracia - a partir da formação de uma classe tecnoburocrata -, não privilegiando,
dessa forma, a centralidade do cidadão como referência para o serviço público; falta
de accountability.
Nesse quadro de crise do modo burocrático de administração do Estado,
inserido numa crise do Estado - causa da crise econômica dos anos 1980 -, é que se
encontra, segundo o ex-ministro do governo FHC, a administração pública gerencial
como alternativa ao modelo administrativo existente.
A crítica de Bresser Pereira à burocracia deve ser problematizada por dois
ângulos. O equívoco teórico do autor no trato da burocracia e a fragilidade empírica
de seus argumentos.
Em relação ao aspecto teórico sobre a burocracia, o autor incorre na mesma
concepção equivocada, criticada na seção anterior, que trata a burocracia num
mesmo nível teórico que o gerencialismo, buscando apresentá-lo como uma
alternativa de ordem administrativa à burocracia e ao patrimonialismo, quando, na
verdade, o gerencialismo se estrutura como uma proposta que combina um
processo de monocratização e flexibilização da burocracia, podendo incorporar
traços do patrimonialismo.
Oliveira (2001: 142), de forma incisiva e irônica, aponta para o reducionismo
operado por Bresser Pereira quando trata o conceito de burocracia identificado com
cccxxxii
serviço público, enquanto para Weber o “conceito de burocracia tem capacidade
heurística para entender o que é capitalismo, e não apenas a administração do
Estado”.
Oliveira (id, ibid) sinaliza, também, que o ex-ministro “retira do setor privado,
de sua administração, qualquer relação com a burocracia”, possibilitando, dessa
forma, concentrar o ônus desse modelo de administração nas mãos do Estado,
liberando o setor privado para se projetar como espaço privilegiado e exclusivo de
modelos eficientes de administração. Essa engrenagem é utilizada para reforçar a
idéia da necessidade de incorporação pelo Estado de modelos de gestão
desenvolvidos pelas empresas privadas, reforçando o modelo economicista
funcional à lógica do capital no contexto neoliberal.
Outro aspecto a ser destacado da crítica de Bresser Pereira diz respeito à
forma como ele a articula com democracia.
Como ressalta Sônia Fleury (1997), além de a burocracia ter sido fundamental
na construção do Estado democrático moderno, as questões relativas à
centralização/descentralização, responsabilização da gestão pública e controle
social não são inerentes à administração burocrática, mas, antes, trata-se da
questão política de assegurar a utilização do Estado para a promoção do interesse
público (Fleury, 1997). Portanto, não podemos debitar o caráter antidemocrático do
modelo
de
administração
burocrática
apenas
às
forças
intrínsecas
ao
desenvolvimento da burocracia.
Na mesma linha de raciocínio, Oliveira (2001) reage ao fato de que Bresser
Pereira considera a crise do Estado como produto da expansão democrática e, em
nenhum momento, levanta a possibilidade de identificar essa crise como expressão
(e não causa) de uma crise democrática ou, pelo menos, considerar que essa crise
cccxxxiii
pode colocar em risco a democracia. Nesse sentido, Oliveira inverte radicalmente os
argumentos de Bresser Pereira, abrindo um leque de alternativas analíticas bem
mais profundas e complexas para situarmos a crise do modelo burocrático de
administração.
Para concluir a crítica a Bresser Pereira, no que tange ao tratamento dado pelo
autor à questão burocrática, cabe ressaltar a fragilidade de seus argumentos, do
ponto de vista empírico.
Nesse caso, o estudo de Peter Evans (1993) é conclusivo. De acordo com o
autor, o problema dos Estados do Terceiro Mundo não é a sua natureza burocrática,
mas a falta de burocracia. No caso particular do Brasil, conforme destaca Evans, os
problemas são: a) excesso de recrutamento não meritocrático – cargos de confiança;
b) bolsões de eficiência; c) incrementalismo ou reforma por acréscimo, dificultando a
coordenação política e estimulando o recurso a soluções personalistas; d) relação do
Estado com as elites agrárias tradicionais; e) falta de estrutura burocrática estável
prejudicando o estabelecimento de laços do tipo “orientação administrativa”, jogando
a relação público-privado para canais individualizados – “anéis burocráticos” (Evans,
1993: 140-143).
Para finalizar a análise, do ponto de vista teórico, da vinculação da proposta de
mudança administrativa elaborada e conduzida pelo governo FHC ao ideário
neoliberal, apresentaremos a afinidade existente entre a concepção gerencialista de
Bresser Pereira com a teoria da escolha pública.
Nesse sentido, Paula (2005) e Andrews e Kouzmin (1998), através de análises
rigorosas, desmontam qualquer possibilidade de separação entre os fundamentos da
proposta de contra-reforma administrativa de FHC e a perspectiva da teoria da
escolha pública.
O trabalho de Paula (2005) analisa, num primeiro momento, a construção e
consolidação teórico-prática das propostas neoliberais para a administração pública.
cccxxxiv
A autora, dessa forma, mostra as conexões existentes entre o neoliberalismo, a teoria
da escolha pública, o movimento “reinventando o governo”115 e a terceira via,
afirmando que, apesar de algumas diferenças entre as perspectivas, todas possuem
como núcleo teórico-prático o neoliberalismo e a teoria da escolha pública.
Paula (idem) inicia o trabalho explicitando a fundamentação neoliberal e da
teoria da escolha pública da chamada “Nova Administração Pública” (gerencialismo).
Em seguida, mostra a relação do movimento “reinventando o governo” com o
movimento gerencialista americano e compara os princípios daquele movimento com
preceitos do neoliberalismo e da teoria da escolha pública, concluindo que o
movimento “reinventando o governo” possui a mesma concepção teórico-prática
daqueles preceitos, porém adequando-a à linguagem gerencialista116. Em relação à
terceira via, a autora, a partir da análise crítica do pensamento de Anthony Giddens,
mostra o paradoxo dessa corrente, na medida em que ela, do ponto de vista do
discurso, critica o neoconservadorismo, mas, do ponto de vista teórico-prático
preserva os elementos econômicos e morais do neoliberalismo para defender sua
proposta de modelo de gestão.
A partir desse trabalho teórico, Paula (2005), ao identificar o Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado com a vertente gerencial, relaciona explicitamente a
fundamentação da proposta com os preceitos de neoliberalismo e, implicitamente,
com a teoria da escolha pública.
A relação entre a fundamentação do Plano Diretor e a teoria da escolha pública
é realizada de forma explícita e rigorosa por Andrews e Kouzmin (1998), Conforme
sintetizam os autores117:
115
Movimento de “reforma” administrativa originado nos Estados Unidos, no contexto do governo Clinton, baseado nas
indicações sobre a necessidade da descentralização administrativa e incorporação de mecanismos gerenciais na
administração pública, sugerido pelos consultores David Osborne e Ted Gaebler, através do livro “Reinventando o Gogerno”.
116
Grau (1998: 222-223) também mostrará a relação entre trabalho de Osborne e Gaebler e o enfoque mercadológico da
administração pública.
117
A análise dos autores é realizada com base no trabalho de Bresser Pereira “A Reforma do Estado dos anos 90: lógica e
mecanismos de controle”, apresentado pelo autor, em 1997, por ocasião da segunda reunião do círculo de Montevideo, em
Barcelona.
cccxxxv
“Reconstrutir o Estado“, de acordo com o Ministro Bresser
Pereira (...) significa diminuir o tamanho do Estado, desregular a
economia, aumento a governança e a governabilidade. O
primeiro objetivo seria alcançado por meio das privatizações, da
terceirização e da transferência de serviços públicos para
organizações não governamentais (publicização). Uma menor
intervenção do Estado na economia seria alcançada com a
adoção de mecanismos de mercado. Para aumentar a
governança (...) seria necessário realizar o ajuste fiscal ,
implantar a administração gerencial e separar a formulação da
implementação de políticas públicas. O aumento da
governabilidade (...) seria realizada pela melhoria da democracia
representativa e pela introdução do controle social. Todos estes
objetivos, com exceção da governabilidade, estão baseados nos
pressupostos teóricos da Escolha Pública (Andrews e Kouzmin,
1998: 100).
Partindo desta síntese, os autores, detalhadamente, demostram as relações
entre cada um desses aspectos e a teoria da escolha pública. Para o objetivo desta
seção, parece-nos suficiente sublinharmos alguns elementos analíticos
desenvolvidos pelos autores, já que não é o caso de proceder a um resumo de seu
brilhante trabalho.
A primeira relação identificada pelos autores entre a concepção de Bresser
Pereira e a teoria da escolha pública refere-se à concepção do ex-ministro sobre o
“pressuposto de que o crescimento do Estado é inerente ao próprio Estado, uma vez
que os teóricos da Escolha Pública acreditam que os servidores públicos agem
apenas na busca de seus interesses pessoais (rent-seeking)” (Idem: 103).
Os autores destacam de forma enfática a relação entre a idéia de redução do
Estado, defendida por Bresser Pereira, e a teoria da escolha pública, na medida em
que tal teoria defende essa concepção “tanto pelo pressuposto de que os políticos
agem para maximizar os votos ou de que burocratas agem para maximizar o
orçamento de seus bureaux” (idem: 106).
Outro aspecto que os autores destacam é sobre a identificação entre a
proposta presente no Plano Diretor de constituir “quase-mercados” para o
desenvolvimento dos serviços sociais e a defesa da “expansão da analogia de
mercado para a esfera política e, portanto, para os serviços públicos e sociais” (idem:
108) feita pela teoria da escolha pública.
cccxxxvi
Por fim, gostaríamos de ressaltar que o ex-ministro, ao considerar o mercado
como o melhor mecanismo de controle para a administração pública, em detrimento
do controle social e do controle da administração gerencial, ao proclamar “a
superioridade hierárquica do mercado sobre o controle social (...), endossa as
propostas da Nova Administração Pública e da teoria da Escolha Pública“ (idem: 110).
Sendo assim, nada mais afinado com o ideário neoliberal e da escolha pública
que a concepção teórica que fundamenta o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado.
Vejamos, então, para concluir a análise da particularidade brasileira da contrareforma administrativa, o Plano Diretor sob o ponto de vista institucional.
A estratégia do Plano Diretor era viabilizar o ajuste fiscal118 e a mudança
institucional da administração pública, através de dois mecanismos.
O primeiro mecanismo estava voltado, por um lado, para a redução do aparelho
do Estado (o que provocaria um impacto imediato nas contas públicas), via
privatização, terceirização, extinção de órgãos e focalização dos gastos sociais e, por
outro lado, para a centralização e fortalecimento dos núcleos de decisão e
controladores das políticas (núcleos estratégicos).
Do ponto de vista da ordem administrativa, esse mecanismo que combina
redução dos gastos com fortalecimento dos centros de decisão, estrutura uma
ambigüidade no tratamento da burocracia.
Por um lado, a centralização das decisões é realizada através do processo de
“monocratização” da burocracia. Essa concentração de poder se efetiva nos
chamados núcleos estratégicos do Estado. No caso da organização administrativa do
governo FHC, esse procedimento é inconteste. Diniz (2000: 90) analisa de forma
contundente:
O padrão tecnocrático de gestão persistiu durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso, que reforçou o processo de
118
Conforme sinaliza Diniz (2000: 52-53), “a orientação básica do governo esteve voltada para as questões relativas à crise
fiscal e à necessidade de alcançar a austeridade orçamentária”.
cccxxxvii
insulamento burocrático, atribuindo papel primordial ao
Ministério da Fazenda, ao Banco Central e ao Tesouro Nacional,
que formariam, ao lado do BNDES, o núcleo responsável pelas
decisões, sobretudo no que se refere à política econômicofinanceira, controlando as informações estratégicas,
principalmente aquelas que circulam nos meios internacionais, e
dispondo de canais privilegiados de acesso às decisões
externas. Aos demais ministérios caberia uma posição
relativamente periférica, em geral tendo conhecimento das
decisões depois de estas terem sido tomadas. Ou seja, o círculo
de poder decisório tonou-se extremamente restrito, operando
sob condições de confinamento burocrático, sem transparência
e freqüentemente de forma sigilosa. O estilo tecnocrático foi
fortalecido pelo amplo uso, por parte do Executivo, do
instrumento das medidas provisórias, editadas e reeditadas
numa proporção significativamente superior a que se verificara
nos governos anteriores.
Essa estruturação segue tipicamente a cartilha neoliberal e da teoria da
escolha pública. Ou seja, desideologiza-se a política e despolitiza-se a gestão visando
garantir a direção social neoliberal a ser implementada pelos governos (Fiori, 2001a:
135 e 142).
Corroborando essa análise, Borges (2001) destaca que a proposta de
autonomia do Banco Central e a Lei de Responsabilidade Fiscal configuram-se como
estratégias para consolidar essa ordem administrativa fundada na centralização
burocrática. “É melhor confiar em burocracias altamente insuladas e adeptas ao
pensamento econômico liberal ou em regras legais rígidas definidas
constitucionalmente do que na pureza ideológica dos representantes eleitos” (idem:
175).
Pelo lado da estratégia de redução dos gastos públicos, encontraremos a
diminuição da estrutura burocrática da administração pública. A Emenda
Constitucional nº 19 e o processo de terceirização, a que voltaremos adiante, são
expressões emblemáticas dessa estratégia.
A EC nº 19 formalizou, no plano institucional, uma série de possibilidades para
restringir a estruturação do quadro burocrático da administração pública. De acordo
com Diniz (2000: 51-52):
...o cerne das propostas do Executivo estaria constituído pela
flexibilização do serviço público, notadamente em relação à
estabilidade (admitida apenas para o núcleo estratégico e as
cccxxxviii
atividades exclusivas), ao regime jurídico único, à isonomia, à
isonomia e à forma de ingresso via concurso público, mudanças
que em seu conjunto, afetariam as bases do sistema em vigor.
Pessoa (2000) ratifica a análise de que a EC nº 19 expressa a incorporação do
gerencialismo neoliberal na medida em que, em conjunto com outras ações do
governo, implementa
a adoção em larga escala do regime celetista em substituição ao
estatutário, com possibilidade de dispensa nos moldes privados;
quebra da estabilidade; freqüentes cortes orçamentários e
aviltamento da situação dos servidores públicos; ênfase nos
"resultados", nas "metas", e menosprezo aos "procedimentos",
com a conseqüente "flexibilização" (entenda-se descaso) do
princípio da legalidade em matérias vitais, tais como licitações,
contratações de bens e serviços, nomeação / contratação /
dispensa de servidores públicos (Pessoa, 2000: 3).
Nessa perspectiva, consolida-se o tratamento paradoxal da burocracia. Por um
lado um movimento de monocratização burocrática, via núcleos estratégicos e, por
outro, o esfacelamento do quadro burocrático, via medidas de flexibilização, voltadas
para a redução do gasto público.
O trabalho de Rezende (2004) é essencial para identificarmos a ligação
umbilical entre a redução do quadro burocrático e a finalidade do ajuste fiscal. O autor
mostra que houve grande cooperação dos ministérios econômicos com o Ministério
da Administração e Reforma do Estado (MARE) para reduzir os custos de pessoal da
administração pública, devido a sua importância para a obtenção do ajuste fiscal. De
acordo com Rezende, o MARE foi extremamente eficiente, pois, de 1995 a 1999, a
despesa com pessoal passou de 56,2% da receita corrente líquida para 39,7% e o
número de funcionários públicos civis do poder executivo caiu de 630.763, em 1995,
para 536.321, em 2000119.
O segundo mecanismo reorganizava a relação entre formulação e
implementação de políticas, redefinindo a relação de controle, através da
descentralização e estabelecimento de critério de performance, que seriam
119
Rezende (2004) não apenas menciona eficiência, como também qualifica como “sucesso” as ações empreendidas para
redução de custos e de pessoal do quadro burocrático. A avaliação de sucesso e a eficiência estão relacionados apenas ao
critério econômico do ajuste fiscal; o autor em nenhum momento explicita o que está considerando como finalidade social a ser
alcançada pelo Estado e sua relação com o tamanho do quadro burocrático e os níveis salariais atingidos. Além disso, como
apontam Diniz (2000) e Martins (1997), o Brasil não possui excesso de quadro burocrático.
cccxxxix
acompanhados via contratos de gestão, a partir da transformação de determinados
órgãos administrativos em organizações sociais ou em agências executivas. Por
outro lado, essa mudança institucional também levaria a uma maior interação entre o
poder público e o terceiro setor (programa de publicização – criação do status de
organização da sociedade civil de interesse público/OSCIP e criação do Termo de
Parceria como instrumento legal para facilitar a relação formal entre Estado e OSCIP,
viabilizando a transferência de recursos).
Nesse sentido, na lógica do Plano Diretor, a mudança institucional visava
manter a situação de ajuste fiscal (objetivo primário) e melhorar a eficácia e eficiência
das agências administrativas, através da proposta clássica gerencialista de combinar
centralização burocrática (núcleo estratégico, formado pelo presidente, ministros e
cúpula dos ministérios) com flexibilização gerencial (Agências Executivas, órgãos
estatais voltados para a implementação das atividades exclusivas do Estado: polícia,
forças armadas, órgãos de fiscalização, regulamentação e de transferências de
recursos; Agências Reguladoras, órgãos estatais voltados para a regulação e
regulamentação do serviços públicos prestados pelo mercado: Agência Nacional do
Petróleo, Agência Nacional de Telecomunicações, Agência Nacional de Energia
Elétrica, Banco Central e Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e
Organizações Sociais/OS e Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público/OSCIP, órgãos públicos-não estatais, voltados para serviços não exclusivos,
ou seja, serviços vinculados aos direitos sociais).
A análise de Rezende (2004) sobre a implementação da reforma administrativa
no Brasil mostra como o objetivo do ajuste fiscal foi alcançado, contudo sem a
efetivação da mudança institucional em termos da descentralização. De acordo com o
autor, as resistências vinham de duas frentes: dos órgãos controladores e
responsáveis econômicos pelo ajuste fiscal (principalmente Ministério da Fazenda) e
das próprias agências que deveriam mudar de status institucional.
cccxl
A resistência dos primeiros estava centrada na desconfiança de que a
estrutura descentralizada pudesse efetivamente garantir a manutenção do ajuste
fiscal, melhorar a performance do Estado e não pressionar o aumento do gasto
público, através da corrupção e descontrole das ações do Estado, assim como
ocorrera com a descentralização radical implementada durante a ditadura militar.
Nesse sentido, fica nítido que, para o ideário neoliberal, o aumento do gasto
público - seja para a expansão das ações do Estado, seja para alimentar a corrupção
ou o clientelismo necessários para a efetivação do projeto - deve ser contido. O limite
é o ajuste fiscal. Se é necessário utilizar mecanismos clientelistas para sua
viabilização, esses mecanismos não podem ficar sem controle do centro de decisão
político e burocrático, sob pena de comprometer a finalidade precípua do ajuste fiscal
que garante o superávit primário. Dessa forma, os mecanismos clientelistas devem
obedecer, de maneira direta, à racionalidade econômica neoliberal. Essa preocupação
do centro de decisão político-burocrático reafirma a possibilidade teórica, aventada
na seção anterior, da utilização prático-política das ferramentas gerencias para
estruturar elementos patrimonialistas na ordem administrativa.
As razões da resistência das agências administrativas se colocavam em outro
patamar: receio de que a descentralização levasse à redução orçamentária e
desresponsabilização do governo federal sobre a sobrevivência das agências; análise
de que a reforma priorizava as atividades exclusivas do Estado e, assim, essas
agências, ao mudarem seu status institucional se afastaria, mais ainda, da proteção
do governo federal, além do fato de que a criação desses órgãos fosse vista como
forma de desresponsabilizar o Estado de suas ações na área social.
Essa descrição das resistências à reforma administrativa apontam para quatro
questões que merecem atenção.
Primeiramente, cabe destacar que, do ponto de vista estratégico, não havia
discordância no governo sobre a posição do ajuste fiscal como finalidade central da
reforma e que as medidas institucionais deveriam estar subordinadas a tal preceito.
cccxli
Portanto, privatização, focalização de gastos sociais, redução de pessoal eram pontos
incontestes.
Em segundo lugar, podemos observar que, administrativamente, também não
havia divergências em promover a centralização burocrática e definir uma hierarquia
de comando “monocrático” na administração pública e desenvolver programas
sociais através de articulação com organizações da sociedade civil.
A terceira questão refere-se à clivagem tática no comando do governo sobre a
eficiência e eficácia da descentralização das agências administrativas em relação à
capacidade de controle da burocracia centralizada em relação a essas novas
instituições, para garantir a manutenção do ajuste fiscal120. Nesse caso, os ministérios
econômicos se comportam defendendo a posição de que a centralização é
fundamental para a eficiência macroeconômica imposta pelo neoliberalismo.
Nesses termos, diferentemente da análise de Rezende (2004), não
consideramos que ocorreu uma “falha seqüencial” na implementação da reforma
administrativa, na medida em que o objetivo de “mudança institucional” estava
subordinado ao objetivo maior do “ajuste fiscal”. Ou seja, na avaliação dos
responsáveis pela reforma, a “mudança institucional” proposta inviabilizaria atingir a
meta do “ajuste fiscal”. Portanto, abandonar as propostas de redefinição da relação
entre formulação e implementação, via descentralização, e reforçar a estrutura de
centralização burocrática para garantir o “ajuste fiscal” não significou uma “falha
seqüencial”, mas sim uma reorientação de rumos voltada para a efetivação do
objetivo precípuo da reforma. Nesse sentido, a tese da “falha seqüencial”
desenvolvida por Rezende é meramente formal, ou seja, a falha ocorreu porque a
mudança institucional prevista no Plano Diretor não foi realizada.
120
É interessante perceber, através da pesquisa realizada por Rezende (2004), como o MARE procurou convencer os
ministérios controladores de que a descentralização proposta no Plano Diretor era mais eficaz para o ajuste fiscal do que
manter as agências na estrutura burocrática tradicional. Ou seja, não havia qualquer divergência estratégica entre as posições.
Conforme analisa o autor: “Enquanto o MARE entendia que a mudança institucional era fator decisivo para o ajuste fiscal, para
as demais agências essa mudança imporia perdas, descontrole e, fundamentalmente, redução da performance” (idem: 115).
cccxlii
O último aspecto a destacar está relacionado à resistência democrática
presente no interior da estrutura burocrática, que se posicionava de forma reativa
contra o desmonte do Estado que estava se processando, mesmo que no interior
dessa resistência ocorressem motivações de tipo corporativo-particularista.
Nesse sentido, a radicalização da contra-reforma administrativa, via
mecanismos e ferramentas gerenciais, principalmente a criação de agências
executivas e organizações sociais, não se efetivou por completo devido a avaliações
realizadas no centro do comando político e burocrático, que questionavam se essas
estratégias seriam efetivamente funcionais ao ajuste fiscal, e devido à resistência
democrática de setores da burocracia e da sociedade civil.
Dessa maneira, esses elementos gerenciais pautados na descentralização e
flexibilização institucional, via organizações sociais e agências executivas, não foram
possíveis de servir à lógica tradicional, mantida pelo pacto de dominação
conservador do governo FHC, pelo simples fato de sua não implementação efetiva.
No entanto, o pacto de dominação conservador exige alternativas para a
incorporação dos setores tradicionais na estrutura de poder e dominação. Assim,
para viabilizar a influência dos setores tradicionais na ordem administrativa, através
dos mecanismos gerenciais de descentralização, foram mantidos os excessivos
cargos de confiança, intensificou-se a terceirização de serviços (estratégia de
contratação de servidores periféricos e de níveis intermediários e operacionais), foi
ampliada a ação pulverizada de programas sociais realizados em parceria com
organizações da sociedade civil e refuncionalizou-se a liberação das emendas
parlamentares121. Os recursos disponíveis para a efetivação desses mecanismos
ficaram sob o controle do centro de decisão política e burocrática.
Dessa forma, a estrutura patrimonialista se altera. A determinação da lealdade
entre o senhor e o servidor se mantém, todavia a base de seu fundamento deixa de
121
Conforme sublinha Diniz (2000: 56), “a implantação de um padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e
procedimentos, não elimina a possibilidade da persistência ou mesmo do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento
do Executivo com a estrutura parlamentar-partidária. Neste sentido, mais uma vez teríamos a sobrevivência de um sistema
cccxliii
ser a tradição para ser a racionalidade economicista e o poder coercitivo e
discricionário da burocracia monocratizada. Vejamos melhor essa assertiva.
Uma das particularidades da ordem administrativa brasileira sob o gerencialismo é
que ela realiza a lealdade entre senhor-servidor não mais de forma típica, ou seja, baseada
na tradição. A lealdade senhor-servidor, na ordem administrativa gerencial brasileira, é
obtida através da centralização burocrática e difusão ideológica do pensamento único (só
existe uma forma de conduzir a política a economia e a sociedade), portanto racional-legal,
combinada com os estratégias de flexibilização gerencial que possibilitam, num quadro de
monocratização burocrática, agir coercitivamente, através de mecanismos legais (liberação
de recursos para programas sociais, emendas parlamentares, terceirização, cargos de
confiança), para obter apoio político dos setores tradicionais para o projeto de
transnacionalização, viabilizando, dessa forma, a incorporação desses segmentos na
estrutura de poder.
A título de exemplo sobre o funcionamento desses mecanismos, como
recursos voltados para organizar a participação política de setores tradicionais na
estrutura de dominação, as estratégias baseadas na refuncionalização das emendas
parlamentares e na intensificação da terceirização são emblemáticas.
A liberação de emendas parlamentares para a base do governo tem sido um
instrumento utilizado para garantir a lealdade política, a partir de um mecanismo
formal-legal. A compra do apoio do político se dá através de um mecanismo legal: as
emendas parlamentares. Assim, para viabilizar a racionalidade neoliberal da reforma
da previdência, por exemplo, utiliza-se a forma legal das emendas parlamentares,
visando garantir o apoio dos setores político-tradicionais. A liberação legal das
emendas orçamentárias dos parlamentares, para efetivar a racionalidade neoliberal da
reforma da previdência, é uma forma “racional-legal”, portanto, tipicamente
burocrática, de realizar a lealdade senhor-servidor, através de uma relação de
submissão, tipicamente patrimonialista.
híbrido, desafiando a meta de uma transformação drástica do legado histórico”.
cccxliv
A estrutura de obtenção da lealdade via coerção se intensifica e se manifesta,
através da terceirização dos servidores, em diferentes níveis da administração
pública. Os servidores terceirizados, por serem contratados sem obedecer a um
processo de seleção pública, ainda que sejam qualificados para o exercício
profisional, são mais suscetíveis à coerção e à discricionaridade dos gestores, na
medida em que não possuem autonomia por não possuírem, principalmente, o
“direito ao cargo” e a estrutura de “impessoalidade” da burocracia. Dessa maneira, a
racionalidade neoliberal da terceirização cumpre duas funções; reduz a despesa
pública com pessoal, flexibilizando a administração de recursos humanos, e limita o
poder do quadro burocrático permanente (Borges, 2001).
Os mecanismos gerenciais que viabilizaram a flexibilização da administração pública
foram o que, no caso brasileiro, possibilitaram articular a ordem administrativa neoliberal
centralizada burocraticamente, baseada na finalidade precípua de redução do Estado e
ajuste fiscal, com a lógica tradicional patrimonialista necessária para contemplar uma
dominação fundada na continuidade do pacto conservador.
De outra forma, Diniz (2000: 102) ratifica essa análise ao afirmar que:
...tanto a alta tecnocracia insulada na burocracia, quanto a
ampla e heterogênea coalizão parlamentar de sustentação do
governo foram cruciais para a implementação do programa
governamental. Este dependia da aprovação das reformas
constitucionais para alcançar seus objetivos. Para tanto, o
presidente disporia não só de uma ampla base de apoio, como
também de uma distribuição interna de poder que favorecia os
líderes dos partidos e as presidências da Câmara e do Senado,
cabendo ainda mencionar o recurso ao intercâmbio clientelista
para distribuição de cargos na administração pública, como
forma de assegurar a coesão da base governista.
Cabe destacar que, por um lado, ao restringir a descentralização, o núcleo
estratégico burocrático buscou garantir seu controle sobre a possibilidade de
expansão dos gastos públicos, garantindo a hegemonia do ajuste fiscal necessária ao
projeto de transnacionalização. Por outro lado, para viabilizar o apoio político para o
projeto, era necessário incorporar na estrutura de poder a participação dos setores
tradicionais.
cccxlv
A incorporação desses setores na estrutura de dominação exigia uma ordem
administrativa que contemplasse traços de patrimonialismo. Ou seja, o novo
ordenamento administrativo, além de garantir o projeto de transnacionalização, via
uma ordem monocrática da burocracia, deveria também manter, através da
estruturação de uma ordem administrativa com elementos de patrimonialismo, a
participação dos setores tradicionais no poder, para viabilizar o pacto de dominação
conservador articulado pelo governo FHC.
Nesse sentido, podemos dizer que ocorre um transformismo na ordem
patrimonialista brasileira, em que os setores tradicionais, para se manterem no poder,
aderem à finalidade neoliberal de transnacionalização radical da economia nacional e
se adéquam aos novos instrumentos administrativos para viabilizar a manutenção da
dominação tradicional.
Diferentemente do transformismo italiano que implicou um movimento de
adesão de setores democráticos a propostas moderadas e conservadoras (Gramsci:
2002: 286), o transformismo operado na ordem administrativa patrimonialista refere-se
ao movimento de adesão dos setores políticos tradicionais à lógica neoliberal,
portanto, um transformismo realizado no próprio campo conservador. Em outras
palavras, a ordem administrativa patrimonialista, fundada na dominação tradicional,
alterou-se parcialmente, para se adequar à lógica de dominação racional-legal
neoliberal122.
O gerencialismo do governo FHC, portanto, estrutura-se possibilitando a
manutenção da dominação tradicional. Não suprime nem supera o patrimonialismo.
Na verdade, como vimos, a contra-reforma administrativa, através da dimensão
flexível/gerencial, repõe o patrimonialismo sobre bases racional-legais.
122
De forma análoga, Pinho (1998: 8), apesar de não aprofundar a questão, sugere que analisemos a manutenção do
patrimonialismo na ordem administrativa brasileira como sendo um movimento “camaleônico” “que consegue não só sobreviver
como, ao que parece, se reforçar mesmo sofrendo a ordem econômica mudanças modernizantes apreciáveis”.
cccxlvi
A possibilidade, exposta na seção anterior, de o mecanismo gerencial se
estruturar a partir de orientação patrimonialista, realiza-se no caso brasileiro, via,
principalmente, as emendas parlamentares e a terceirização.
No entanto, cabe frisar mais uma vez que o gerencialismo, através da
refuncionalização das emendas parlamentares e da terceirização, não reproduz de
forma direta o caráter típico do patrimonialismo, fundado na relação tradicional de
lealdade entre o senhor e o servidor.
Portanto, a ordem administrativa brasileira se reestrutura mantendo a
imbricação da burocracia com o patrimonialismo, porém num contexto de
monocratização burocrática e patrimonialismo em transformismo123, mediado
pelos mecanismos de flexibilização gerencial. Em relação à burocracia, ocorre
um tratamento ambíguo, pois ao mesmo tempo em que reforça as decisões
burocráticas centrais em determinadas áreas, esvazia a burocracia em nome
de uma descentralização que na verdade se materializa através da
desresponsabilização e privatização das ações que deveriam ser estatais e da
constituição de quadro profissional extrapatrimonial.
Nesse sentido, divergimos da análise que
identifica a existência de uma trifrontalidade,
baseada na presença simultânea da burocracia,
patrimonialismo
e
gerencialismo
na
administração pública brasileira dos anos 1990
(Pinho, 1998 e Nogueira, 2004). Primeiramente,
como vimos na seção anterior, o gerencialismo
não pode ser considerado um paradigma de
123
Paula (2005) analisa o processo de combinação de “monocratização” da burocracia com elementos do patrimonialismo, no
quadro da programática gerencialista, recorrendo ao conceito de “neopatrimonialismo” de Schwartzman (1982). Porém, como
vimos anteriormente, consideramos inadequada a formulação de Schwartzman para analisar a estrutura da ordem
administrativa. Conseqüentemente, também discordamos de sua utilização para interpretar o caso do gerencialismo.
Entendemos que a categoria “burocracia monocrática” e “patrimonialismo em transformismo” possui muito mais capacidade
heurística para a interpretação crítica da proposta gerencial.
cccxlvii
ordem administrativa do mesmo estatuto teórico
do patrimonialismo e da burocracia. Além disso,
os recursos gerenciais de flexibilização da
ordem administrativa não possuem finalidade
em si, eles são funcionais para a manutenção da
relação
de
tradicional
dominação
que
se
racional-legal
mantêm
necessárias
e
e
imbricadas para implementar o projeto de
transnacionalização
radical
da
economia
nacional, sob condução do pacto de dominação
conservador.
Sendo assim, esse quadro de contrareforma
do
administrativa
Estado
produz
e
de
o
contra-reforma
estreitamento
de
condições para a ampliação e universalização
de direitos e a redução das possibilidades de
construção e fortalecimento da espinha dorsal
burocrática necessária para conduzir políticas
públicas universalistas.
cccxlviii
V - À GUISA DE CONCLUSÃO:
REFERÊNCIAS PARA A RESISTÊNCIA AO
GERENCIALISMO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
5.1. As razões históricas da imbricação do patrimonialismo com a
burocracia na administração pública brasileira: breve síntese
Como vimos, o Estado patrimonialista não possui vínculo genético com a
oligarquia agrária cafeeira, ele é produto do processo de colonização portuguesa
que traz para o Brasil sua estrutura estatal e administrativa e organiza a sociedade
colonial a partir do padrão patrimonialista vigente.
Essa estrutura protege e controla os senhores rurais, pois eles são os
elementos fundamentais para a exploração dos recursos existentes em benefício da
coroa. Embora os senhores rurais desejem a proteção e o status garantidos por sua
vinculação à coroa, não querem o controle da coroa sobre seus negócios. O Estado,
então, afigura-se como a possibilidade de status para os proprietários rurais e, ao
mesmo tempo, com a expressão da opressão a que se submetem. O Estado,
durante o período colonial, será a expressão do poder da nobreza, da burguesia
comercial (que só se interessa na exploração colonial) e do poder senhorial. A
dimensão patrimonialista da administração brasileira advém, de um lado, do poder
do Rei de Portugal que controla o reino, baseado numa organização centralizada e,
de outro lado, da tradição descentralizada da estrutura “patriarcal” dos proprietários
rurais. A dimensão burocrática, apesar de praticamente ausente, existe devido à
necessidade de se organizar os empreendimentos da coroa (comércio, navegação).
A partir do Império e, mais fortemente, durante a República Velha, abre-se
espaço para a presença/influência política de setores não diretamente identificados
e relacionados com a dominação tradicional; possibilita-se a identificação de setores
cccxlix
do estamento senhorial com a ideologia e utopia liberais, tanto do ponto de vista
político quanto econômico e gera tensões entre as lógicas distintas presentes na
ordem administrativa estatal.
Nesse quadro, não há uma relação entre “atraso” e “moderno”, a dominação
senhorial/coronelista, para se objetivar, num contexto marcado por um projeto de
integração nacional e expansão da economia exportadora capitalista, necessitará
combinar estilos de dominação tradicional - pois a estrutura social (primeiramente
mercantil-escravista, posteriormente capitalista-exportadora) nasce e se desenvolve
a partir da escravidão e de setores livres que vivem e sobrevivem da relação de
favor que estabelece com o proprietário rural (seja em sua versão senhorial, seja em
sua versão coronel) - com elementos de racionalidade e formalismo de tipo
burocrático necessários para integração nacional e expansão capitalista na sua
dimensão de comercialização, já que a produção é realizada à base da escravidão,
num primeiro momento, e por uma extensa exploração da força de trabalho, no
momento pós-abolição.
Nesse período (Império e República Velha), o elemento patrimonial se
sobrepõe ao elemento burocrático da administração pública, na medida em que
temos a oligarquia agrária como classe dominante de uma economia mercantil
escravista e da economia exportadora capitalista, ambas exportadoras de produtos
agrícolas. A exigência da racionalidade burocrática se limita a determinadas ações
relativas à política econômica de proteção à exportação, segurança e integração
nacional. A ausência de direitos civis, políticos e sociais reduz a necessidade de
estruturas burocráticas do Estado.
Nesse sentido, o Estado deve expressar essa dominação cuja base é uma
elite tradicional que deve organizar a economia exportadora capitalista. Mais uma
cccl
vez a manutenção da dimensão racional-legal se faz necessária devido ao fato de o
projeto econômico em tela ser nitidamente capitalista. Por outro lado, a questão de
tal projeto ser dirigido por uma elite tradicional exige a manutenção de mecanismos
patrimonialistas na organização da dominação.
Portanto, a ordem administrativa brasileira se realiza através do
imbricação do patrimonialismo com a burocracia, na medida em que está
vinculada (genética, estrutural e funcionalmente) à dominação constituída por
frações senhoriais/oligáquicas e burguesas para conduzir o processo da
expansão capitalista, que tem início no Império e se consolida na República
Velha. Nesse sentido não há dualismo. O novo se imbrica com o velho, o velho
é funcional ao novo.
Resumindo, o fato relevante que ocorre na primeira república, que implica a
ordem administrativa do Estado brasileiro, diz respeito à consolidação do processo
originado durante o Império que combina patrimonialismo e burocracia com
especialização, um certo nível de racionalidade capitalista e ausência de
impessoalidade. Contudo, diferentemente da centralização presente no segundo
reinado imperial, a ordem administrativa passa a expressar a dominação
hegemonizada pela oligarquia cafeeira, através de uma estrutura descentralizada do
poder.
Assim, a dialética patrimonialismo-burocracia, sob hegemonia do
primeiro termo, consolida-se como marca genética da estruturação da
administração pública brasileira, durante a primeira república.
O patrimonialismo, a partir da origem ibérica e centralizadora, combina-se
com a estrutura “patriarcal” colonial, fortalecendo essa lógica de dominação tanto a
partir da superestrutura estatal, quanto da organização do poder local. A neófita
cccli
burocracia brasileira será desenvolvida a partir da necessidade de especialização e
racionalidade instrumental capitalista, porém evitando a impessoalidade como
critério para a composição de seus quadros, reforçando, dessa feita, a lógica
patrimonialista de recrutamento baseada na lealdade pessoal (fundada na tradição,
relação de confiança, pacto de fidelidade ou relação de piedade).
Esse amálgama é consolidado na República Velha, através da organização
política descentralizada e da ausência de participação das classes subalternas na
estrutura de poder, para viabilizar o projeto nacional da economia agro-exportadora
capitalista, conduzido pelas oligarquias agrárias, sob hegemonia da oligarquia
cafeeira paulista.
Esse é o cenário que se inicia na
Independência,
consolida-se
com
a
Proclamação da República e encontra seu
esgotamento no final da República Velha,
quando entra em crise a economia exportadora
capitalista e a hegemonia da oligarquia cafeeira,
o que projeta um novo objetivo político: a
industrialização e urbanização do País.
Assim sendo, no contexto do projeto desenvolvimentista de expansão capitalista,
Fiori (1995: 27) apresenta uma síntese consistente sobre o ordenamento estatal e sua
ordem administrativa:
O Estado, mormente o seu setor produtivo e financeiro,
estabelece uma relação corporativa com o empresariado
nacional, protegendo seu lucro relativo, aumentando o potencial
de acumulação e absorvendo o custo desta expansão. A
administração pública, através de suas agências previdenciárias
e múltiplas instâncias administrativas, dispensa serviços sociais
e cria vínculos empregatícios absorvendo, na dinâmica estatal,
parcelas cada vez maiores da população economicamente ativa.
Como a negociação salarial dos pólos mais dinâmicos da
indústria processava-se de forma individualizada em acordos de
empresas, os conflitos salariais e redistributivos perdiam seu
potencial político; ou melhor: tinham limitado potencial de
ccclii
difusão, o que por sua vez, permitia que as atividades de bemestar do Estado se processassem clientelisticamente, embora
sem o vigor das negociações corporativas.
Para completar esse quadro, lembremos que o projeto de expansão
capitalista, de sua fase restringida até a consolidação monopólica, orientou-se sob o
signo da “dupla articulação” e da incorporação seletiva e parcial das camadas
populares.
Tal situação implicou uma manifestação particular na esfera política e na
máquina estatal brasileiras, a partir do comportamento presente na esfera
econômica. Mesmo porque esse processo de expansão capitalista foi conduzido
pelas forças sociais fundamentais presentes nesse movimento. Portanto, a relação
arcaico-moderno aparece também na configuração do Estado brasileiro e da sua
direção política, assim como na estruturação de sua máquina estatal. Obviamente,
longe de ser apenas o “reflexo” do econômico na política, essa situação se entrelaça
dialeticamente com os rumos da expansão capitalista, influenciando as decisões
econômicas no sentido de garantir, ao máximo, a perpetuação do poder das elites
agrárias tradicionais combinadas com a emergente burguesia. Isso significa dizer
que não há uma evolução natural - ou mecanicamente amarrada nas condições
objetivas - do processo de expansão capitalista no Brasil, devido a sua situação
periférica (desenvolvida a partir da sua economia exportadora capitalista no
momento de dominação em escala mundial do capitalismo monopolista – Cardoso
de Mello, 1998); mas sim que a correlação de forças da época propicia tomadas de
decisão econômica dentro desse quadro objetivo que reforça a concentração de
renda, propriedade e poder.
Sendo assim, a configuração do Estado e de sua máquina pública vão
expressar essa hegemonia. Do ponto de vista do Estado, as classes dominantes
cccliii
(agrário e industrial) garantirão a reprodução da ordem, incorporando setores
populares de acordo com a pressão existente e importância para a acumulação.
Para implementar as ações do Estado combinam-se, dessa forma, elementos
“novos” (burocráticos) e “arcaicos” (patrimonialistas) como forma de garantir a
estrutura de dominação existente. Portanto, a ordem administrativa é composta de
um imbricação entre a dimensão patrimonialista e a burocrática que, dialeticamente,
são funcionais, do ponto de vista estrutural, para a operação de dominação
presente.
Por um lado, é necessário planejar a industrialização desde sua fase
restringida até a consolidação monopólica. Para isso, necessita-se de um quadro
administrativo especializado e profissional, assim como certas regras e normas bem
definidas, ou seja, necessita-se de burocracia.
No entanto, esse planejamento deve garantir a manutenção da concentração
de renda, propriedade e poder das elites dominantes, por isso essa burocracia deve
criar canais de comunicação com as elites empresariais. Tal planejamento, portanto,
não deve incorporar, substantivamente, os interesses das classes trabalhadoras.
A máquina estatal deve possuir, então, estruturas para atender a
determinados interesses das classes trabalhadoras, mas que sejam estruturas que
não estejam estratégica e diretamente ligadas aos projetos de expansão capitalista,
nem que possam interferir significativamente em sua condução (aqui a articulação
dialética entre a economia e o social é nítida). Nesse sentido, a matriz burocrática
vai ser necessária nessa dimensão, porém criando canais de comunicação com a
representação da classe operária e, também, dos empresários, como forma de
regular o atendimento dos interesses do trabalho.
cccliv
Simultaneamente a esses mecanismos, ainda que a elite tradicional se
mantenha como fiadora do projeto de desenvolvimento - deixa de ser a fração
dominante hegemônica -, na medida em que oferece apoio político ao projeto de
expansão tipicamente capitalista (industrial). Sendo assim, a máquina estatal
também abrigará um espaço para a continuidade de sua influência nas diferentes
questões a serem debatidas e na garantia da reprodução de sua fatia de domínio
político. Dessa maneira, a lógica patrimonialista se apresenta como necessária –
todavia deixando de ser hegemônica - para a manutenção da estrutura de
dominação da sociedade brasileira.
Desse modo, o patrimonialismo não se apresenta como um elemento de
atraso que deve ser superado para o desenvolvimento do País. Ele é uma
determinação central do nosso modelo de desenvolvimento capitalista, não
sendo um obstáculo para tal.
A lógica dialética de Oliveira (2003) e Cardoso de Mello (1998) ajudam a
desvelar a não dualidade da ordem administrativa. Patrimonialismo e burocracia se
imbricam como estruturas de poder e estilos de dominação necessários para a
particularidade do desenvolvimento capitalista brasileiro.
A manutenção do processo de relações de produção não-capitalista (na
agricultura e no setor terciário) se desenvolve sob uma estrutura de poder tradicional
que
exige
uma
ordem
administrativa
tradicional
não-capitalista,
ou
seja,
patrimonialista. No entanto, como a manutenção dessas relações de produção são
necessárias para a acumulação capitalista brasileira, a estrutura global de poder
deve incorporar as classes dominantes tradicionais. O Estado, então, ao expressar
essa coalizão de classes para conduzir a expansão e consolidação capitalista,
precisa contemplar os diferentes tipos de dominação e as diferentes lógicas
ccclv
administrativas (dominação racional e burocracia e dominação tradicional e
patrimonialismo) que compõem essa estrutura de poder.
Dessa forma, como vimos no capítulo 3, a ordem administrativa brasileira
vai ser uma imbricação de patrimonialismo e burocracia, não por uma
dualidade entre o “arcaico” e o “novo”, mas sim pela necessidade de ter uma
ordem administrativa adequada à lógica de dominação e à estrutura de poder
forjada por nossa “revolução burguesa”.
As implicações desse entendimento nos
remetem a pensar o patrimonialismo na ordem
administrativa
no
Brasil
não
como
uma
dimensão que precisa ser modernizada para a
superação do “velho” (tradicional) - elemento
inercial que teima em persistir e que precisa ser
expurgado, pois é um óbice para a eficiência da
administração
pública.
Antes
precisa
ser
entendido como constituinte da particularidade
de nossa administração pública, advinda da
particularidade de nossa estrutura de poder
responsável pela expansão do capitalismo no
Brasil.
Nesses termos, a configuração estatal e a burocracia criadas e desenvolvidas
no Brasil foram precárias para proporcionar a universalização de direitos, devido à
coalizão conservadora das classes que conduziu a modernização capitalista – a qual
constituiu um Estado forte, porém não permeável aos interesses populares/das
classes subalternas - e à parcialidade da racionalidade burocrática desenvolvida, na
medida em que sua realização plena foi evitada ou interferida, através de sua
ccclvi
articulação com patrimonialismo/clientelismo, objetivando garantir a manutenção de
privilégios e, simultaneamente, visando viabilizar os interesses imediatos da
burguesia industrial nascente, via expansão do “insulamento burocrático” e
estruturação dos “anéis burocráticos”. Portanto, o Estado e a burocracia no Brasil
não produziram ampliação significativa de direitos124. No entanto, o Estado e a
burocracia, mesmo nas condições brasileiras de pouca permeabilidade para as
classes trabalhadoras e produto de uma coalizão conservadora de classes,
atenderam a determinados interesses dos dominados. A redução do Estado e da
burocracia, certamente, poderia criar uma situação muito mais grave ou causar uma
deterioração de grandes proporções no quadro vigente.
No contexto da redemocratização brasileira, abre-se pela primeira vez no
cenário nacional a possibilidade de maior incorporação dos interesses da classe
trabalhadora na estrutura de poder. Os anos de 1980 e início dos anos 1990 se
apresentam como um período de forte disputa hegemônica entre dois projetos:
liberal-corporativismo e social-democrata (Coutinho, 1993).
Mesmo sofrendo as influências internacionais tanto do ponto de vista
econômico: a crise, suas derivações (financeirização, reestruturação produtiva e
mundialização) e o conseqüente rebatimento na questão da dívida externa; quanto
do ponto de vista político: o contexto hegemonizado pelo pensamento neoliberal
direcionado para a programática de apoio à internacionalização da economia e para
a crítica à intervenção do Estado na área social (crítica ao Estado de Bem-estar
capitalista e às experiências socialistas); a década de 1980, no Brasil, expressou a
resistência ao alinhamento imediato a esses ideários.
124
Fernandes (1981: 254), ao analisar as transições para o capitalismo adverte: “Na periferia, essa transição torna-se muito
mais selvagem que nas nações hegemônicas e centrais, impedindo qualquer conciliação concreta, aparentemente a curto e a
longo prazo, entre democracia, capitalismo e autodeterminação.”
ccclvii
Essa resistência contou efetivamente não apenas com o fortalecimento dos
setores democráticos da sociedade civil, mas também com um certo receio das
classes dominantes em abrir mão do apoio do aparato público estatal para a
manutenção de seus privilégios, que poderia advir de uma política pautada na
refuncionalização do Estado, e sua conseqüente redução, para efetivar um projeto
radical de transnacionalização econômica.
A Constituição Federal de 1988 é o exemplo material emblemático de
resistência nacional aos preceitos neoliberais in toten. A área social e a questão da
administração pública foram os aspectos centrais que expressaram a influência das
forças democráticas e populares no destino do país.
A universalização e o aprofundamento de direitos de cidadania como dever do Estado e a
estruturação de uma ordem classicamente burocrática, no sentido do fortalecimento das
dimensões de formalidade, mérito e impessoalidade da administração pública, previstos na
carta magna de 1988, mostram um caminho democrático a ser seguido do ponto de vista
político e institucional, portanto, antagônico à hegemonia internacional da época e à história
de desenvolvimento do Estado brasileiro e de sua ordem administrativa. Essa possibilidade
aberta se apresentava factível pelo fortalecimento dos setores democráticos que propunham
um projeto de desenvolvimento que incorporasse substantivamente os interesses populares
e que, politicamente, exigiam uma ruptura da burguesia com os setores tradicionais.
Dessa forma, buscava-se articular um projeto para o país baseado na incorporação
substantiva da classe trabalhadora no desenvolvimento econômico e social, a ser conduzido
por uma coalizão de classes que excluísse os setores tradicionais. Por isso, a necessidade de
um Estado forte na área social e o conseqüente fortalecimento da estrutura da burocracia,
nas dimensões de impessoalidade e formalidade. Nessa configuração, abre-se a
ccclviii
possibilidade teórica e política para romper com a imbricação da burocracia com o
patrimonialismo que marcou a origem e o desenvolvimento da ordem administrativa
brasileira.
No entanto, essa possibilidade teórica e política não se efetivou. A situação econômica do
país não melhora e, a partir do início dos anos 1990, um novo consenso entre as forças
conservadoras foi se constituindo em torno da idéia da inexorabilidade de, mais uma vez, o
Brasil inserir-se de forma subordinada ao capital internacional, porém, agora, no contexto
capitalista hegemonizado pelo mundo das finanças. As forças tradicionais foram
rearticuladas e convencidas de que, nas novas condições da economia internacional, era
necessário, para manter o pacto de dominação conservador, que houvesse uma mudança de
estratégia em relação ao papel do Estado na sociedade. A negação do papel do Estado como
agente produtivo direto e como provedor de políticas sociais seria o cerne das mudanças
que se faziam necessárias para a manutenção do pacto conservador de dominação (Fiori,
1998).
Em outras palavras, em meados da década de 1990, sob liderança de Fernando Henrique
Cardoso, o projeto de transnacionalização radical da economia nacional foi incorporado
como o objetivo a ser perseguido, através de uma coalizão conservadora de classe, que
reatualizou o pacto de dominação conservador, via aliança política estabelecida entre o
PSDB e o PFL.
Dessa forma, o ideário neoliberal e suas conseqüências políticas, econômicas e sociais
foram introduzidos no Brasil, a partir da manutenção de nosso tradicional pacto
conservador. Assim, implementa-se uma verdadeira “contra-reforma” do Estado brasileiro
(Behring, 2003).
ccclix
Do ponto de vista do projeto desenvolvido, a partir do receituário neoliberal aplicado no
país, ocorre um processo intensivo de internacionalização da economia, através das
privatizações, abertura comercial e desregulamentação econômica, e de reestruturação da
intervenção do Estado na área social, onde o processo de universalização de direitos sociais
foi estancado para garantir o ajuste fiscal necessário para honrar os compromissos
internacionais com o capital financeiro. Nesse sentido, a dimensão social do Estado é
enfraquecida e se organiza um Estado máximo para o capital (Netto, 1995).
A conseqüência administrativa do projeto de transnacionalização radical, que implica uma
forte coordenação das ações e a redução da intervenção do Estado na sociedade, tanto como
setor produtivo quanto como provedor de políticas sociais, é, por um lado, a concentração de
poder burocrático e, por outro, a diminuição da burocracia estatal. Entretanto, a dimensão
administrativa sofre também as conseqüências do pacto de dominação estabelecido, que
incorpora os setores tradicionais da sociedade e que, por isso, exige a manutenção de
mecanismos patrimonialistas na ordem administrativa.
Para realizar essas mudanças administrativas, será efetivada a contra-reforma
administrativa, fundamentada teoricamente nos pressupostos da teoria da escolha pública
(Andrews e Kouzmin, 1998).
Nesse sentido, a proposta da “Administração Pública Gerencial”, conforme denomina
Bresser Pereira (1996, 1998b), pauta-se na centralização burocrática, via núcleos
estratégicos do governo, combinada com a descentralização e flexibilização burocrática, via
agências executivas/reguladoras, organizações sociais e o processo de terceirização de
serviços e parcerias.
ccclx
Através da centralização burocrática, que se configura como a estruturação de uma
burocracia monocrática, viabiliza-se a coordenação das ações necessárias para o projeto de
transnacionalização. Por intermédio da flexibilização da burocracia, alcançam-se três
objetivos: diminuição de gastos públicos para contribuir com o ajuste fiscal, redução do
poder da burocracia permanente e manutenção de traços patrimonialistas na administração
pública para propiciar a participação dos setores tradicionais da estrutura de dominação.
Nessa perspectiva, a flexibilização da burocracia se apresenta como a mediação necessária
para a manutenção do patrimonialismo na ordem administrativa brasileira, que precisa se
efetivar para viabilizar a participação dos setores tradicionais na estrutura de dominação.
Tal mediação provocará mudanças na fundamentação do patrimonialismo brasileiro que
passará, da utilização dos elementos tradicionais de garantia de lealdade entre o senhor e o
servidor, para a estruturação de determinações racional-legais voltadas para viabilizar a
lealdade, baseadas na difusão ideológica do pensamento único da racionalidade
economicista e no poder coercitivo e discricionário da burocracia monocratizada, que
definirá padrões formais para repasse de recursos públicos. Portanto, a contra-reforma
administrativa efetiva um transformismo do patrimonialismo brasileiro.
Nesses termos, além de reduzir a intervenção do Estado no sentido democrático e social, o
projeto neoliberal promove a reorganização da burocracia pública, buscando centralizar as
decisões e o controle burocrático, enfraquecer os quadros permanentes e permitir a
manutenção da sua imbricação com o patrimonialismo, através de uma proposta que
combina monocratização com flexibilização da burocracia.
Nesse sentido, o projeto de transnacionalização radical da economia nacional, conduzido
pelo pacto conservador de dominação, promove uma contra-reforma do Estado - que o
ccclxi
enfraquece em sua dimensão social e democrática - e uma contra-reforma administrativa que inviabiliza o fortalecimento da dimensão formal, meritocrática e impessoal da
burocracia. A contra-reforma operada destrói as condições necessárias para o Brasil
trilhar no caminho da universalização e aprofundamento de direitos.
Consideramos que a tese, então, pôde demonstrar, nos limites de nossa
capacidade e das condições de sua operacionalização, que a origem e o
desenvolvimento da adminstração pública brasileira se efetivou através da imbricação da
burocracia com o patrimonialismo, determinada por dois elementos fundamentais.
O primeiro elemento refere-se ao projeto de implantação e expansão das relações
capitalistas no país, do início da industrialização até a atual fase de transnacionalização
radical da economia nacional. A gênese e a consolidação desse processo se realizou
através do protagonismo e ampliação da intervenção estatal, combinando uma “dupla
articulação” (relação do capital nacional com o capital internacional e com os setores
“pré-capitalistas”) com uma inclusão parcial e fragmentada da classe trabalhadora.
Na conjuntura atual, o projeto capitalista neoliberal intensifica a internacionalização
da economia nacional, esvaziando a intervenção do Estado no setor produtivo, tanto
como agente direto quanto como indutor de uma política industrial de
desenvolvimento estratégico da economia nacional, e nas ações voltadas para a
incorporação da classe trabalhadora, via políticas sociais de caráter institucional e
universalista.
O segundo elemento determinante do processo de imbricação da burocracia com o
patrimonialismo diz respeito à estrutura de dominação constituída para desenvolver os
projetos de expansão capitalista, que sempre fora baseada num pacto conservador que
congregava a burguesia nacional e os setores tradicionais da sociedade. A opção de
dominação conservadora de nossa burguesia determinou, ao longo de nossa história,
a inclusão parcial e fragmentada da classe trabalhadora na participação do usufruto
ccclxii
das riquezas produzidas e a manutenção dos setores tradicionais na estrutura de
poder e dominação da sociedade.
Essas duas determinações produziram um Estado frágil para atender aos interesses
da classe trabalhadora e uma administração pública que não se realizou efetivamente como
uma estrutura racional-legal, imbricando-se, desde as origens, a mecanismos voltados para
a manutenção da lógica patrimonial, em sua forma tradicional ou em sua expressão
transformista.
Nesse sentido não há dualidade estrutural na ordem administrativa brasileira.
Há uma totalidade que compreende o projeto socioeconômico e o pacto de
dominação que necessita de lógicas administrativas contraditórias. Essa situação
gera tensões e conflitos intra-administrativos que só se resolvem efetivamente com a
alteração do projeto e da estrutura de dominação (Fernandes, 1981:44). Enquanto
houver no Brasil um pacto de dominação que combine uma ordem racional-legal com
uma ordem tradicional, não iremos superar os estrangulamentos da administração
pública enquanto campo de clientelismo e patrimonialismo.
Assim sendo, o projeto de expansão do capitalismo brasileiro e o pacto conservador
de dominação que o conduziu não propiciaram a construção das duas condições
necessárias para desenvolver uma proposta de universalização e aprofundamento de
direitos: um Estado forte do ponto de vista social e uma ordem administrativa fundada numa
estrutura burocrática racional-legal, que garantisse o mérito, a impessoalidade e o
desenvolvimento de regras e normas formais para a intervenção estatal.
Complexificando a situação, diferentemente do que ocorrera durante as fases de
início e de consolidação da industrialização, quando o Estado, ao assumir o protagonismo
do processo, abria espaços para a incorporação das demandas da classe trabalhadora
(mesmo que parcial e fragmentada), pois necessitava expandir a dimensão burocrática da
administração, na conjuntura atual apresenta, no quadro da contra-reforma do Estado e
administração pública, um movimento político-institucional de bloqueio e regressão desses
espaços.
ccclxiii
5.2. Referências para a constituição de uma administração pública
democrática
A orientação político-institucional das propostas: a construção contra-hegemônica ao
neoliberalismo
Como vimos, ao longo desta tese, para desenvolver uma “gestão social”
voltada para efetivar a universalização e o aprofundamento de direitos sociais,
necessita-se de um Estado interventor expressivo para o social e uma estrutura
administrativa racional-legal, ou seja, burocrática.
Hoje, no Brasil, não temos condições estruturais para esse desenvolvimento,
ou seja, não possuímos um Estado expressivo para a área social nem tampouco
uma estrutura administrativa racional.
O que fazer, então, na medida em que o assistente social, dentre outros
profissionais, assume a gestão de Políticas e Programas Sociais?
No quadro geral de uma perspectiva de
longo prazo, nosso interesse, para concluir esta
tese, é clarear quais as possibilidades do “aqui
e agora” que nos permitam agir no campo da
prática
sociais,
profissional,
no
caso
sem
a
sedução
irresponsáveis
e
nem
de
gestores
pelas
atitudes
tampouco
cair
na
armadilha das “leis objetivas” que impedem a
intervenção.
Cumpre
apresentar/explicitar,
àqueles que atuam na área de gestão social,
estratégias e orientações para a intervenção que,
como Mészáros (2003: 122) aponta, são ações
ccclxiv
modestas,
“mas
com
plena
consciência
das
limitações existentes e das dificuldades para
sustentar a jornada em seu horizonte temporal mais
distante”.
Assim sendo, quais as pistas, do ponto de vista do emprego de
mecanismos/estratégias
gerenciais,
para
a
intervenção
de
profissionais
comprometidos com uma perspectiva de universalização e aprofundamento de
direitos que assumem a responsabilidade de gerenciar políticas e programas sociais
no contexto atual? Essa é a questão com que concluiremos esta tese.
Para fazer frente ao quadro exposto, no sentido de uma construção contrahegemônica, a administração pública numa perspectiva democrática não pode se
confundir com o “tecnicismo” nem com o chamado “gerencialismo”.
A perspectiva proposta pelo presente trabalho encontra-se referenciada numa
matriz voltada para a ampliação da cidadania e democracia que reconhece as
especificidades e dilemas da gestão social pública (Kliksberg, 1997; Nogueira, 1998;
Grau, 1998; Paula, 2005), enquanto responsabilidade do Estado, contextualizada no
cenário das mudanças societárias contemporâneas e que evoca direitos sociais
universais, transparência, accountability, participação política, eqüidade e justiça
como elementos essenciais para a gerência de programas sociais. Tal perspectiva
está referenciada numa concepção que denominamos de “administração pública
democrática”.
Nessa ótica, é fundamental situarmos, inicialmente, a questão central da
administração pública, qual seja: a finalidade voltada para eqüidade, justiça social,
accountability
e
democracia,
numa
orientação
aprofundamento dos direitos.
ccclxv
de
universalização
e
Como vimos, a sociedade capitalista nunca permitirá a emancipação humana,
no entanto, defendemos que a construção de uma sociedade emancipada deve se
pautar em melhoras imediatas para a população. Dessa forma, a estruturação da
administração pública pode ser efetivada num duplo sentido: acumular mudanças
para uma radical transformação societária e possibilitar melhoras imediatas na
condição de vida das classes subalternas, através de uma perspeciva reformistarevolucionária.
Nesse sentido, a administração pública deve ser realizada à luz dessa concepção. Ou seja,
deve-se gerir baseando-se na finalidade de universalização e aprofundamento dos direitos
sociais.
Como temos sinalizado de forma reiterada, não podemos prescindir de Estado forte na área
social e burocracia estruturada, principalmente na dimensão de sua racionalidade, para
conduzir a universalização e aprofundamento de direitos numa sociedade de classes.
Apesar de não serem suficientes, são estas as condições necessárias.
No entanto, a estruturação de um Estado com fim voltado para a universalização de
direitos e, em conseqüência, uma ordem administrativa burocrática que efetive essa
finalidade, depende da existência na sociedade de uma hegemonia nessa direção. Assim,
como já enunciamos em outros momentos, a tarefa central para a construção de uma
ordem administrativa democrática e universalista é construir essa hegemonia no Brasil
(um projeto de democracia de massa ou social democrata ou modelo europeu, segundo
reflexão de Coutinho). Dessa forma, o modelo de desenvolvimento econômico deve estar
orientado nessa direção.
ccclxvi
Portanto, a questão essencial para a efetivação de uma administração pública democrática
é eminentemente política (Diniz, 2000). Ou seja, depende da capacidade de as forças
democráticas conquistarem hegemonia em torno de uma finalidade ético-política voltada
para a universalização e para o aprofundamento de direitos, que venha a ser conduzida
pelo Estado. Conforme sinaliza Nogueira (1998: 179), ao refletir sobre as possibilidades de
uma reforma democrática do Estado:
As condições de avanço e êxito dependem, como nunca, de um grande
esforço para articular as várias dimensões da questão do Estado, que é,
como se sabe, uma questão intrinsecamente política, pertinente, antes de
mais nada, ao campo do relacionamento entre o Estado e a sociedade. Que
depende por isso mesmo, da construção de consensos, pactos políticos e
projetos e requer o alcance de um equilíbrio dinâmico entre vontade
política e razão crítica.
Fiori (1998: 139) ratifica essa análise apresentando mais uma mediação
para o êxito de uma reforma democrática. Segundo o autor, é
necessária uma outra direção política que permita implementar outra
política econômica que se adéqüe à finalidade de universalização e
aprofundamento de direitos.
Em outras palavras, para implementar uma reforma administrativa
democrática, exige-se uma ação política voltada para a construção de
hegemonia pautada na finalidade de universalização e aprofundamento
de direitos que, ao se efetivar como direção social através do Estado,
possa aplicar uma política econômica coerente com essa orientação
finalística.
Sendo assim, em última instância, as determinações para uma efetiva reforma
democrática da administração estão localizadas no tipo de formação social do
capitalismo brasileiro e em nossa estrutura de dominação, portanto, não serão
medidas técnicas que irão transformar a ordem administrativa brasileira. Por outro
lado, mesmo ocorrendo mudanças em nossa formação social e na estrutura de
poder, essas mudanças se efetivarão sobre nossas particularidades, o que significa
dizer que o produto dessas transformações certamente terão a marca de nossa
história, não reproduzindo estruturas dos países centrais. Dessa forma, não há
ccclxvii
como nos tornarmos burocráticos no sentido clássico do termo e das
experiências históricas dos países centrais.
No entanto, reforçar, do ponto de vista administrativo, a estruturação da burocracia é
uma tarefa central na luta por uma gestão social pautada na universalização e
aprofundamento de direitos, apesar de tudo indicar que o horizonte não será o surgimento
de uma burocracia welfareana em nosso país. Mas o reforço da lógica burocrática,
principalmente o fortalecimento da dimensão formal e impessoal de sua estrutura, assim
como a construção de mecanismos democratizadores (como afirmado no início do capítulo
2), no contexto em que nos encontramos, é a possibilidade administrativa de ampliarmos a
capacidade de intervenção do Estado no atendimento aos interesses das classes
trabalhadoras.
Na atual conjuntura brasileira, hegemonizada por um projeto de
transnacionalização radical da economia brasileira, conduzido por um pacto de
dominação conservador, não há como operar uma proposta de reforma administrativa
de cunho democrático, os limites são estreitos para mudanças nesse sentido. A
alteração da ordem administrativa passa pelas mudanças de projeto e de pacto de
dominação.
Na medida em que consideramos que a reforma administrativa de cunho
democrático deve estar vinculada à finalidade de universalização e aprofundamento
de direitos, o quadro atual é extremamente adverso. Fiori (1998 e 2001a) e Soares
(2001) mostram que a orientação da política econômica neoliberal inviabiliza qualquer
perspectiva de políticas sociais públicas de caráter universalista125.
125
Soares (2001: 13) apresenta a conclusão de seu estudo da seguinte forma: “A tese central é a de que as possibilidades de
uma mudança no perfil das Políticas Sociais, no sentido da sua maior universalização e progressividade, são incompatíveis
com as atuais políticas de ajuste neoliberal. Por outro lado, caso essa mudança não se efetive, dados os próprios limites
impostos pelas políticas de ajuste, pouco ou nada se pode esperar das tais soluções de tipo ‘alternativas’ propostas por tais
políticas neoliberais. Seu caráter pontual e passageiro, que apela para a ‘solidariedade da comunidade’, não poderá dar conta
dos problemas sociais latinoamericanos, sobretudo dos brasileiros, cuja magnitude e complexidade são enormes” (Soares,
2001: 13). Fiori (2001a: 133) analisa a situação da seguinte forma: “Orientados agora apenas pela bússola dos ‘equilíbrios
macroeconômicos’, esses Estados abandonaram qualquer tipo de política social universalizante, num momento em que a
estagnação ou o escasso crescimento econômico não consegue gerar a quantidade de emprego necessária para absorver a
mão-de-obra-disponível”. Em artigo anterior, o autor já havia concluído: “Tenho hoje uma visão extremamente pessimista sobre
o futuro da nossa política pública e, sobretudo, o futuro das nossas políticas sociais [...]. No meu entender, é que, por um longo
tempo, neste nosso Brasil, as políticas públicas se transformem numa espécie vizinha de um novo tipo de pastoral social”
(Fiori, 1998: 223).
ccclxviii
A luta, a partir do processo de redemocratização recente, foi
estruturar burocraticamente o Estado e democratizá-lo, abrir
espaço para a influência das classes subalternas e suas
organizações (década de 1980). No entanto, a partir da
reestruturação do capital e suas implicações na periferia como
um todo, e particularmente no Brasil, as condições
econômicas/objetivas se reduzem significativamente para
avançar com um projeto democrático.
Além disso, com o advento do neoliberalismo (crítica ao estado e sua forma
burocrática de administração) e sua implementação no Brasil, a tarefa passou a ser,
por um lado, garantir/preservar a estrutura de um Estado forte e presente (traço
construído nos anos 1930 e mantido pela ditadura militar, porém criticado pela
esquerda por ser autoritário, não viabilizar serviços de qualidade, não combater a
desigualdade e fortemente atacado pela hegemonia neoliberal) e, por outro, continuar
a luta pela estruturação de uma ordem administrativa de corte racional-legal,
permeada por instrumento de democratização e transparência das ações do governo
e da administração pública. Ou seja, a tarefa dos setores democráticos se
complexificou.
O contexto atual não apresenta uma conjuntura favorável à democratização do
Estado para a intervenção voltada para o atendimento dos interesses do trabalho,
pois as classes dominantes obtiveram uma hegemonia ampla em torno da concepção
da centralidade do mercado e, dessa forma, não têm precisado agir explicitamente de
forma coercitiva e repressiva para manter seu projeto e privilégios. Sendo assim, se
antes, num contexto mais favorável à democratização (pós- Segunda Guerra), a
burguesia brasileira possuía um horizonte estreito e conservador, na atual conjuntura
a probabilidade de ela possuir uma perspectiva democrática é muito mais reduzida.
Se aliarmos a esse quadro as dificuldades objetivas e subjetivas da classe
trabalhadora, hoje, produzir uma contra-hegemonia, no contexto do capitalismo
flexível e financeiro, torna a situação ainda mais desfavorável.
ccclxix
Assim, mesmo com todos esses fatores adversos e por causa deles, as
propostas de administração democrática, no quadro atual, devem buscar fortalecer os
movimentos de mudança de projeto e de pacto de dominação. Esta deve ser a direção
das propostas a serem implementadas no contexto atual, uma vez que, fortalecer o
Estado e a Burocracia contribui, no plano imediato, para melhorar a gestão e
implementação de ações voltadas para o atendimento das necessidades das camadas
populares, e, no mediato, reforça um movimento contra-hegemônico para reversão do
projeto e do pacto vigentes.
Conforme ressalta Fiori (1995:174-175):
...não haverá progresso enquanto o Estado não recuperar a sua
capacidade política, administrativa e financeira para exercer o
controle eficaz da gestão macroeconômica, prestar os seus
serviços básicos de maneira eficiente e coordenar uma
estratégia sistêmica de recuperação da competitividade
industrial e de produção, armazenagem e transporte de
alimentos de consumo maciço. Ou seja não haverá projeto
progressista viável sem um Estado forte...
Nesse contexto, o que estamos defendendo é uma estratégia de resgate da
função “universalizadora” do Estado e da burocracia como determinação
fundamental para a construção de uma administração pública democrática, tendo
clareza que o Estado e a burocracia não têm condições de realizar efetivamente a
universalidade, enquanto liberdade e emancipação humana. Contudo, num mundo
sob a égide do capital, o Estado e a burocracia são essenciais para contrabalançar
as dimensões anárquicas e desiguais produzidas pelo mercado.
Em outras palavras, o Estado e a burocracia são fundamentais para viabilizar o
desenvolvimento capitalista, portanto para manter a estrutura de desigualdade da
sociedade baseada na produção de mercadorias. Essa é a finalidade primária do
Estado e da burocracia. A universalidade, ou melhor, a ampliação das condições de
vida das classes populares é uma dimensão funcional e contraditória para a
realização dessa finalidade primária.
ccclxx
Sendo assim, para pensarmos em alternativas de gestão pública voltadas para
a universalização e o aprofundamento de direitos, temos de ter clareza que o objetivo
central é a construção do Estado nessa perspectiva. Portanto, é fundamental a
construção de uma hegemonia na sociedade nessa mesma direção.
Na medida em que não foi gestada uma saída democrática para a crise dos
anos 1980, a reforma administrativa sofre os constrangimentos da opção política
econômica e ideológica adotada, a partir da década de 1990. Assim, a possibilidade
para atuar, com mudanças administrativas de cunho democrático, restringe-se.
Portanto, o que se propõe como possibilidade de iniciativas na administração para
reforçar, num quadro adverso, uma perspectiva democrática para a administração
pública, não se configura num projeto radicalmente democrático, pois para esse
empreendimento necessitaria, para ser viável, de uma outra conjuntura. Nesse
sentido, não está presente um projeto socialista para a gestão da coisa pública. Mais
modestas, as propostas aqui elencadas se enquadram, a partir da concepção de
autonomia relativa do Estado e, no seu interior, a autonomia relativa da administração
pública, na identificação de propostas factíveis para simultaneamente avançar de
forma imediata na democratização da administração pública e contribuir,
mediatamente, no fortalecimento de um projeto político orientado para a ruptura com
a “dupla articulação” e com a exclusão das classes subalternas, numa perspectiva
que possa avançar na busca do fortalecimento de um projeto de sociedade que
supere os marcos do capitalismo. Portanto, estamos falando em propostas factíveis
de serem implementadas de forma imediata, que se limitam a contribuir com o avanço
democrático/acúmulo de forças para reverter a hegemonia neoliberal, apesar de possuir
como finalidade ético-política a superação da ordem do capital.
O gestor público que pretenda atuar nessa perspectiva pode e deve cumprir o papel
de ator importante na luta pela hegemonia em torno de uma ordem democrática. Conforme
observa Nogueira (2004: 243):
ccclxxi
O maior desafio dos dirigentes democráticos e dos recursos humanos
“inteligentes”, dentro e fora das organizações – ou seja, também no
Estado e na sociedade -, é dar curso a uma dinâmica de reforma
intelectual e moral que tenha potência para criar novas hegemonias.
A força, as razões administrativas e a exigência de produtividade não
são, de modo algum, o melhor caminho para se chegar a formas
solidárias e democráticas de sociabilidade ou a novos pactos de
convivência. Dirigir ficou muito mais importante que dominar.
Desta forma, concordamos inteiramente com Nogueira (1998) quando afirma que, no
atual contexto, do ponto de vista da gestão e de seus operadores, o essencial numa
proposta de construção contra-hegemônica ao neoliberalismo não está na apreensão de
tecnologias gerenciais, mas sim na qualificação das pessoas para atuar na fronteira entre a
técnica e a política.
Nesse sentido, mais uma vez concordando com a análise de Nogueira (1998: 190191), os gestores públicos, em especial os gestores sociais, devem se converter em
lideranças capazes de atuar na administração pública de forma a ampliar as adesões em
torno de um projeto democrático de sociedade e de gestão. Para isso, o gestor público deve
ter competência teórico-metodológica, ético-política e técnico-operacional tanto para analisar
os movimentos da economia, da política, da sociedade e de seus grupos e indivíduos,
quanto para “pesquisar, negociar, aproximar pessoas e interesses, planejar, executar e
avaliar”.
Assim, para finalizar esta tese, levantaremos sugestões que contribuam com
mudanças institucionais adequadas ao perfil de um gestor identificado com a finalidade de
universalização e aprofundamento de direitos, que reforcem a construção de uma
administração pública orientada para o aprofundamento e ampliação de direitos,
principalmente na área social.
Sugestões para fortalecer as resistências ao gerencialismo na administração pública
brasileira
As sugestões aqui apresentadas partem da distinção entre administração
empresarial e administração pública.
ccclxxii
A finalidade de uma perspectiva democrática de administração pública seria a de
constituir uma política pública pautada na conjugação entre accountability, eqüidade e
justiça (Abrúcio, 1997: 31). Nesse sentido, essa perspectiva exige uma institucionalidade
pública que evite a apropriação privada do aparelho público, a atuação auto-referenciada e a
falta de responsabilidade pública (Grau, 1998: 207).
No entanto, cabe frisar que essa política pública, necessariamente, deve estar
orientada na perspectiva da universalização e aprofundamento de direitos. Em nosso
entendimento, é esse aspecto que distingue radicalmente uma proposição democrática de
administração pública de uma abordagem centrada no mercado ou meramente tecnicista.
A universalização e aprofundamento de direitos nos campos civil, político e social é a
finalidade central de uma administração pública democrática. Sendo assim, a “utilização
racional dos recursos” fica subordinada a uma orientação ético-política efetivamente
democrática.
Consideramos, nesse sentido, que a proposta de administração pública democrática
pode ser concebida e conduzida numa orientação de superação do paradigma burocrático,
ou seja, um processo de negação com conservação. Negação de seus aspectos
antidemocráticos: burocratizador, reiterativo e ideológico e conservação da sua dimensão
racional-legal, num movimento de superação desses aspectos para construção de uma
sociedade fundada num patamar mais elevado de sociabilidade, ancorado numa perspectiva
de emancipação humana.
Do ponto de vista técnico-operacional, a gestão pública democrática deve
comungar com a idéia de distinção entre a administração pública e a administração
empresarial, superando o modelo burocrático a partir da introdução de elementos de
democratização, visando alcançar maior agilidade de intervenção e otimização de
recursos para melhor atingir sua finalidade.
Entretanto, concordamos inteiramente com a proposição do Centro
Latinoamericano de Administración para el Desarrollo – CLAD, quando afirma que no
ccclxxiii
caso da América Latina o desafio para a construção de uma nova gestão pública deve
contemplar a tarefa do modelo weberiano de fortalecer um núcleo estratégico
ocupado por uma burocracia profissional (CLAD, 1998). Ou seja, a dimensão
burocrática do Estado deve ser consolidada como pressuposto para viabilização da
democratização da administração, uma vez que só dessa forma se pode almejar a
combinação de inserção e autonomia (“autonomia inserida” – Evans, 1993) do Estado,
elemento necessário para a garantia de uma intervenção democrática.
Todavia, cabe ressaltar que a valorização da administração burocrática não significa
anular a crítica à ordem administrativa burocrática (ver, principalmente Capítulo 1), mas sim
tem o objetivo de destacar o esquematismo do trato da burocracia (Oliveira, 2001), as
limitações da crítica neoliberal bresseriana, destacando a necessidade da dimensão
burocrática para o avanço, no capitalismo, da universalização de direitos. Nesses termos,
torna-se fundamental reafirmar que a organização burocrática, por sua característica
processualista e reiterativa (Paro, 2000) e pela sua função ideológica, que se manifesta
através de sua passagem de mediação à dominação (Tragtenberg, 1992), não pode e não
deve servir de referência para uma perspectiva de gestão que se pretenda radicalmente
democrática. Por fim, convém também sublinhar que a crítica à burocracia, na perspectiva
deste trabalho, não se confunde, em hipótese alguma, com a crítica neoliberal à perspectiva
welfareana de bem-estar e direitos universais.
Esse aspecto é essencial, pois evita a armadilha de cairmos numa posição
conservadora de defesa do paradigma burocrático apenas como forma de reação às
proposições gerencialistas apresentadas pelos vetores políticos neoliberais e pela
intelectualidade vinculada à teoria da escolha pública, os quais insistem na identificação
entre administração empresarial e administração pública. Por outro lado, distingue a
finalidade pautada no aprofundamento e universalização dos direitos do modelo
organizacional burocrático.
Portanto, elaborar uma perspectiva democrática de gestão pública requer
superar, por um lado, o padrão burocrático de administração e, por outro, romper
ccclxxiv
radicalmente com a perspectiva da identidade entre a administração empresarial e
administração pública.
Como analisam alguns autores (Ferlie et al., 1996; Gaetani, 1999; Grau, 1998;
Fedele, 1999; Abrúcio, 1997; Paula, 2005), no contexto da hegemonia neoliberal de
propostas para a administração pública, surgiram também propostas, nem sempre
homogêneas, orientadas para uma finalidade democrática, apesar de partir da crítica à
administração clássica burocrática. Para esses autores, no campo das propostas de
mudança da administração pública, há vertentes democráticas, portanto, propostas
que não se afinam aos preceitos da teoria da escolha pública.
Existe um consenso em identificar como elemento central das vertentes
democráticas uma concepção claramente a favor de uma distinção entre a
administração pública e a empresarial, tendo como fundamento as diferentes
motivações, valores e objetivos que conformam uma e outra administração (Abrúcio,
1997; Kliksberg, 1997; Grau, 1998; CLAD, 1998; Paula, 2005). Portanto, nega-se o
enfoque de mercado presente nas propostas gerencialistas e se reafirma a finalidade
democrática e cidadã da administração pública.
Embora as sugestões possíveis de serem implementadas na gestão pública de
forma imediata sejam encontradas no campo das vertentes democráticas, o que se
percebe é que as propostas tendem a enfatizar os instrumentos de democratização e
de controle da administração pública que precisam ser desenvolvidos; com algumas
exceções126, pouco, ou quase nunca, destacam a importância do fortalecimento da
dimensão racional da estrutura burocrática.
Em nossa concepção os instrumentos de democratização que precisam ser
fortalecidos e ampliados devem ser pensados, no campo da administração pública
brasileira, a partir da estruturação de uma espinha dorsal burocrática.
126
Como destaques dessas exceções podemos registrar os trabalhos de Evans (1993 e 2003) e Nogueira (1998).
ccclxxv
O
caráter
racional
de
especialização
e
conhecimento,
além
de,
principalmente, o fato de o servidor ser livre, apresentam possibilidades para que a
administração burocrática, na conjuntura atual, contribua para o fortalecimento de
projetos de sociedade contrários à lógica da financeirização e acumulação flexível
do capitalismo contemporâneo, através, por exemplo, da construção e efetivação de
uma perspectiva de administração voltada para o aprofundamento e ampliação de
direitos.
A organização político-institucional (a esfera política, expressão institucional
das lutas de classe) determina as possibilidades de uma direção social mais voltada
aos interesses das classes subalternas a ser implementada pela burocracia pública.
Por outro lado, a existência de uma burocracia pública com a perspectiva de
racionalidade (ver capítulo 1) possibilita maior presença dos “interesses universais”
na esfera do Estado.
Dessa forma, como exposto no capítulo
2, a estruturação de uma burocracia com
sentido “universalista”, além de depender da
existência de um Estado “universalista”, precisa
ser
estruturada
de
forma
a
potencializar
aspectos de sua racionalidade, como por
exemplo: a) garantia de um certo nível de
“mecanização”; b) o “direito ao cargo”; c)
existência dos princípios das competência fixas,
mediante
regras,
leis
ou
regulamentos
administrativos; d) realização da administração
dos funcionários de acordo com regras gerais,
mais ou menos fixas e mais ou menos
ccclxxvi
abrangentes, que podem ser aprendidas; e)
existência de regras impessoais como estrutura
central do poder de mando e obediência, que
envolva tanto o senhor legal típico quanto o
corpo burocrático.
Esses
elementos
burocráticos
constituem a base sobre a qual pode se
estruturar
uma
ordem
administrativa
que
possua como perspectiva a antes mencionada
“autonomia inserida” e que seja permeada por
elementos democratizadores de controle social
e público.
A
ressalta
“autonomia
Evans
(1993),
inserida”,
articula
conforme
isolamento
burocrático e inserção na estrutura social
circundante. O “isolamento” se viabiliza pelos
elementos de racionalidade detalhados acima,
que constituem os traços típicos da burocracia.
A “inserção” se apresenta como complemento
do isolamento e possibilita o aumento de
capacidade burocrática para a intervenção na
sociedade. Nas palavras do autor:
A inserção é necessária porque as políticas devem responder
aos problemas detectados nos atores privados e dependem no
final destes atores para a sua implementação. Uma rede concreta
de laços externos permite ao Estado avaliar, monitorar e modelar
respostas privadas a iniciativas políticas, de modo prospectivo e
após o fato. Ela amplia a inteligência do Estado e aumenta a
expectativa de que as políticas serão implementadas. Admitir a
importância da inserção coloca de pernas para o ar os
argumentos em favor da insulação. As conexões com a
sociedade civil se tornam parte da solução em vez de parte do
problema (Evans, 1993: 153).
ccclxxvii
A questão da estruturação de elementos
democratizadores
para
permear
a
ordem
administrativa burocrática requer, como vimos,
compreender
dimensão
que
se
propõe
contraditória
burocrática,
visando
à
a
um
incluir
própria
uma
lógica
processo
de
superação de seus fundamentos. Ou seja, a
proposta se organiza na tensão entre burocracia
e democracia, gerando um espaço de conflitos
no
cerne
da
ordem
administrativa.
Nesse
sentido, os conflitos administrativos devem ser
vistos como essenciais para a superação da
rigidez e da resistência burocrática a um modelo
mais adequado de gestão pública voltada para a
universalização e o aprofundamento de direitos.
Para não pairar dúvidas acerca da nossa
concepção, concordamos com Behring (2003:
210) sobre a necessidade de não superestimar a
burocracia. Quando defendemos a importância
da burocracia, não é porque ela é “universal” no
sentido hegeliano, nem por ser “racional” sem
referência a valores, no sentido weberiano, mas
por
ela
apresentar
determinações
(conhecimento especializado, seleção pública,
proteção de carreira e condições de trabalho –
carreira, salário e meios de administração) que
reforçam uma possível intervenção do Estado
voltada
ccclxxviii
para
os
interesses
das
classes
dominadas e exploradas, na medida em que
essas determinações permitem, num quadro de
uma sociedade de relativa socialização do
saber,
a
composição
de
uma
burocracia
diversificada do ponto de vista teórico e
político,
portanto
ideológico,
tensionando,
dessa forma, a formulação e execução das
políticas públicas, independente da direção
governamental
implementada.
Ou
seja,
a
burocracia, além de não ser um mecanismo
operativo perfeito, também não é neutra, ainda
que esteja balizada por regras e normas e deva
obediência à direção governamental.
O que se deve evitar é a postura da
burocracia de se considerar acima das classes
ou, por ser especialista, desconsiderar a relação
com
a
sociedade
determinados
(ou
grupos
pelo
menos
sociais),
com
criando
possíveis anéis burocráticos.
Por
fundamental,
isso,
como
sinalizamos,
simultaneamente,
aprofundamento
de
propor
mecanismos
é
o
de
democratização da burocracia para viabilizar
maior controle social e público, como forma de
propiciar transparência e possibilitar maior
participação
das
classes
subalternas
na
definição e acompanhamento das políticas
públicas.
ccclxxix
Dessa forma as tecnologias de gestão pública empregadas devem favorecer
essas construções.
Portanto, cabe ressaltar, mais uma vez, que essa abordagem não despreza
as tecnologias gerenciais. Ao contrário disso, ela prima por um profundo
conhecimento dessas tecnologias e de suas potencialidades e limites na
operacionalização das ações sociais, desmistificando o discurso sobre o poder das
técnicas como elemento estratégico de enfrentamento da “questão social”,
recolocando-as em bases realistas como instrumentos potencializadores de melhor
gerência dos serviços sociais.
As tecnologias gerenciais aplicadas na área social devem perseguir tais
objetivos, já que elas não têm poder em si mesmas para reverter a atual situação da
chamada questão social. Todavia, elas podem oferecer estratégias administrativas
que consolidem a relação Estado – sociedade numa perspectiva democrática e que
melhorem a implementação das ações sociais em termos de eficiência, eficácia e
efetividade.
Nesse
sentido,
consideramos
que
as
determinações
da
chamada
“administração pública democrática” abrem caminhos para desenvolvermos, com
maior precisão, uma formulação para a gestão pública, principalmente da área
social, implicando uma nova organização institucional.
No entanto, antes de apresentarmos alguns componentes que devem constar
num processo de organização intitucional da gestão social, cabe sintetizar,
brevemente, o diagnóstico que Kliksberg desenvolve da situação na América Latina.
Segundo Kliksberg, o setor social na América Latina é um setor fraco, com
pouca influência sobre as grandes decisões relativas à política pública, tendo que
atuar sobre os dados e as decisões já tomadas em outros níveis da administração
pública. Outro aspecto que o autor destaca é a estrutura organizacional atrasada da
ccclxxx
área social em termos de estabilidade, remunerações adequadas e utilização de
tecnologias avançadas, realidade completamente diferente das estruturas modernas
existentes em outros setores das políticas públicas. A terceira característica que
convém destacar diz respeito ao fato de a política social ser um campo de intensa
luta por poder, suscetível a pressões econômicas e ao clientelismo. O quarto ponto
refere-se ao perfil
centralizador,
piramidal
e formalista
das organizações
responsáveis pela área social, o que inviabiliza processos mais intensos de
descentralização e participação. Por último é importante sublinhar que, em que
pesem os esforços realizados, a avaliação das ações sociais ainda são pouco ou
mal realizadas, o que dificulta a aferição dos acertos e desvios da política social
(Kliksberg, 1997: 122 e 123).
Com base nesse quadro, destacaremos quatro aspectos que consideramos
centrais para orientar a organização da administração pública, no intuito de viabilizar
uma gestão democrática, principalmente da área social.
O primeiro refere-se à imprescindível sintonia de orientação que deve ter a
política econômica e a política social de um governo. Ou seja, uma gestão social
democrática necessita do suporte de uma política econômica que privilegie as
demandas pela universalização e aprofundamento de direitos - só assim uma política
social poderá obter êxitos nesse campo. De outra forma, a política social enfrentará
entraves estruturais vinculados à política econômica, não viabilizando a expansão de
direitos, restringindo-se a uma ação meramente compensatória.
Um segundo componente a registrar é o binômio descentralizaçãoparticipação. A descentralização não é um valor em si; ela somente se traduz de
forma democrática se expressar um processo de participação e viabilização do
controle das ações públicas e se for operacionalizada pelo governo central,
ccclxxxi
garantindo aos níveis sub-nacionais recursos financeiros, apoio técnico e diretrizes
gerais. Só dessa forma se constrói a possibilidade do desenvolvimento efetivo de
políticas sociais descentralizadas e democráticas, com articulação e organicidade
nacional, que venham a garantir um processo de universalização de direitos sociais.
Portanto, a descentralização não se traduz diretamente em democratização,
nem tampouco em liberalização. A orientação política e as condições institucionais
mediarão a efetivação de um processo de descentralização, ponderando suas
possibilidades para fortalecer ou não o processo democrático.
O desenvolvimento de políticas sociais de forma descentralizada e
participativa nos leva a apresentar o terceiro componente institucional necessário: a
articulação do poder público com as organizações da sociedade civil. Essa
necessidade se apresenta em dois campos. O primeiro refere-se ao processo
democrático e de controle das ações públicas no nível da formulação e fiscalização
da política pública, que só pode ser efetivado através da intervenção de
organizações da sociedade civil nos espaços públicos formais ou informais
constituídos para tal fim. Nesse caso, a autonomia das organizações da sociedade
civil mostra-se essencial. O segundo diz respeito ao campo de execução de serviços
sociais, ou seja, as unidades de serviços sociais devem possuir espaços para a
manifestação dos usuários em relação ao serviço executado. Por outro lado, é
possível também pensarmos em execução de serviços realizados em co-gestão
entre estado e organizações da sociedade civil, na medida da existência na
sociedade de inúmeras instituições não estatais que atuam prestando serviços
sociais127. No entanto, cabe frisar que esse processo de articulação do poder público
com as organizações da sociedade civil não pode retirar do Estado o papel central
127
Sobre esse tema, ver Souza Filho (2003).
ccclxxxii
de responsabilidade sobre o desenvolvimento das políticas sociais, pois ele é o
único capaz de implementar ações que propiciem a universalização e o
aprofundamento de direitos. Em síntese, as organizações da sociedade civil, por um
lado, no campo da execução de serviço, atuam, no máximo, de forma a
complementar a ação do Estado, integrando a rede de unidades públicas de
atendimento. Por outro lado, no campo da formulação, são organismos fundamentais
para o processo de democratização das políticas públicas.
Por fim, a questão do poder presente nos processos de formulação e
execução das políticas sociais é central para compreendermos a complexidade e a
importância dessa ação. Os trabalhadores da política social tendem a não
reconhecer o processo de luta por poder existente no campo das políticas sociais. O
fato de a tradição histórica colocar a ação social no campo da benemerência, da
caridade e da filantropia fez com que um grande número de profissionais da área
social a considere como uma arena constituída de sujeitos sem divergência de
projetos políticos, visto que todos estão envolvidos com a causa social a partir do
seu “compromisso com o pobre”, “com a ajuda”. No máximo, criticam-se os
aproveitadores, os políticos etc. Essa visão ingênua da arena política da política
social dificulta a construção de projetos sólidos e consistentes para a área. Portanto,
considerar a luta pelo poder no campo da política social, mostra-se como
fundamental para a construção de uma projeto político pautado na universalização e
aprofundamento de direitos.
A partir das considerações levantadas neste trabalho, tornam-se nítidas a
necessidade e a possibilidade de pensarmos e agirmos no campo da administração pública
numa perspectiva articulada a movimentos de superação da ordem capitalista. Portanto,
devemos disputar, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático-político, o
debate e a estruturação da ordem administrativa brasileira, visando contribuir com a
ccclxxxiii
efetivação de perspectiva comprometida com a universalização e aprofundamento de
direitos.
Entretanto, a questão que se coloca é se a possibilidade teórica de articulação entre
administração pública e democratização, que acredito ter sido demonstrada no presente
trabalho, pode ser transmutada em efetividade histórica no caso brasileiro. Articular as
categorias
apresentadas
neste
estudo
com
o
processo
histórico
de
formação,
desenvolvimento e configuração atual do capitalismo, das políticas sociais e da
administração pública no Brasil, certamente propiciará uma análise concreta das
possibilidades e dos limites da transmutação referida acima.
Nesse sentido, e entendendo que o
modelo social democrata de Estado de BemEstar é a referência histórica no capitalismo de
um processo de expansão da universalização
de direitos sociais articulada com certo nível de
liberdade, parece-nos que o processo que
defendemos passa pelas conquistas realizadas
pelos trabalhadores através do chamado welfare
state,
porém
superação,
numa
visto
perspectiva
que
tal
de
processo
desenvolveu nos limites do capitalismo.
ccclxxxiv
sua
se
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RODRIGO DE SOUZA FILHO