Análise lingüística de dados obtidos em avaliações
metalingüísticas de sujeitos com suspeita de demências
Rosana do Carmo Novaes Pinto1
1
Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
[email protected]
Abstract. The aim of this paper is to present a discussion on data obtained
with subjects diagnosed as having different kinds of dementia in initial stages
as well as mild cognitive decline, in tests situations. The results are always
quantified and submitted to statistical analysis, in order to confirm the
diagnosis or to evaluate the disease progress. They also serve to orient family
and care takers about the dangers and limits which the subjects could be
facing in the near future. On the other hand, the dialogical episodes that take
place during the interviews and tests sessions are not considered at all and
they could lead to a better understanding of the case and also about the
relation between language and other cognitive functions, such as memory.
Keywords. Speech pathology; language evaluation; dementia; cognitive
decline; dialogic episodes
Resumo. O objetivo deste trabalho é apresentar uma discussão sobre dados
obtidos com sujeitos diagnosticados com diferentes tipos de demências em
estágio inicial e com declínio cognitivo leve, em situações de teste. Os
resultados são sempre quantificados e analisados estatisticamente, com o
objetivo de confirmar o diagnóstico ou avaliar a progressão da doença.
Servem também para orientar a família e cuidadores sobre perigos e limites
que os sujeitos podem enfrentar. Por outro lado, os episódios dialógicos que
ocorrem durante as entrevistas e durante as sessões de testes nunca são
considerados e poderiam, sem dúvida, levar a uma melhor compreensão do
caso e sobre a relação entre linguagem e outras funções cognitivas, como a
memória.
Palavras-chave. patologia de linguagem; avaliação de linguagem; demência;
declínio cognitivo; episódios dialógicos
1. Introdução
Desde os primeiros trabalhos realizados na área de Neurolingüística do IEL, a
questão da metodologia de avaliação das chamadas “patologias de linguagem” tem
ocupado grande espaço nas discussões. Coudry (1986/1988)i já enfatizava que para
melhor se compreender os fenômenos afasiológicos seria necessário que o foco passasse
a ser a análise daquilo que resta na linguagem dos sujeitos, de suas estratégias
alternativas de significação, ao contrário da visão tradicional que opera apenas com o
que falta, sobre o déficit. Caplan (1987) afirma que a neuropsicologia é certamente a
área onde mais se observa a proliferação de uma taxonomia, na tentativa de
compreender os fenômenos e classificá-los. Para cada sintoma observado é gerado um
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nome, um rótulo. Sacks (1995) chama a atenção para a existência de uma semiologia na
área, marcada pelos prefixos a e dis:
A palavra favorita da neurologia é déficit, significando deterioração ou
incapacidade de função neurológica, perda da fala, perda da linguagem, perda da
memória, perda da visão, perda da destreza, perda da identidade e inúmeras
outras deficiências e perdas de funções (ou faculdades) específicas. Para todas
essas disfunções (outro termo muito empregado), temos palavras privativas de
todo tipo – afonia, afemia, afasia, alexia, apraxia, agnosia, amnésia, ataxia – uma
palavra para cada função neural ou mental específica da qual os pacientes, em
razão de uma doença, dano ou incapacidade de desenvolvimento, podem ver-se
parcial ou inteiramente privados”.
O autor enfatiza que a doença não é uma simples perda ou excesso. É a reação
de todo o organismo que luta para vencê-la. O próprio termo “demência” significa falta
da mente, loucura, extravagânciaii. Como veremos adiante, os testes metalingüísticos
parecem servir bem para salientar apenas os aspectos patológicos, para enfatizar as
perdas que resultam do comprometimento provocado pelas diferentes patologias.
2. Considerações sobre as demências
Segundo Damasceno (1999), o diagnóstico das demências é bastante complexo,
uma vez que o envelhecimento normal do cérebro pode estar acompanhado de
alterações mentais que se confundem com estágios iniciais das demências e declínios
cognitivos. As fronteiras entre o envelhecimento normal e patológico são tênues doença e saúde não são opostos, mas um processo contínuo, como bem aponta
Canguilhem (1995).
O sintoma definidor da DA, de acordo com manuais como o DSM IViii, é a
alteração de memória, necessariamente presente, sendo sintomas secundários as afasias
(alterações de linguagem), apraxias (alterações da atividade gestual simbólica) e
agnosias (alterações nas associações e sínteses de imagens sensoriais; podem ser táteis,
visuais e auditivas). A avaliação de linguagem faz parte da avaliação neuropsicológica,
como veremos adiante, predominantemente representada pelas baterias de nomeação e
pela memorização de listas de palavras. Entretanto, o que se infere a respeito dos
resultados, na grande maioria das vezes, diz respeito apenas à questão da memória e não
das alterações da linguagem que parecem já estar presentes desde o início do quadro.
Normalmente a família, ao procurar um neurologista ou neuropsicólogo, relata
as dificuldades concernentes à memória, às alterações de comportamento, de humor,
dentre outros. Dificilmente procuram um médico para relatar alterações nas habilidades
discursivas, na interpretação de piadas ou de sentidos figurados. Mesmo porque essas
características não ocorrem apenas na patologia e variam de sujeito para sujeito. O que
se defende neste trabalho é o fato de que se a linguagem fosse observada mais
atentamente, em situações efetivas de uso, alterações de ordem pragmática e discursiva
poderiam ser detectadas e essa análise poderia contribuir para o diagnóstico mais
precoce das demências e dos declínios cognitivos.
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3. Dados de sujeitos com diagnósticos de demências em situações
metalingüísticas
As baterias de testes neuropsicológicos, como já afirmado acima, contêm subtestes de linguagem. Muitas críticas já foram feitas com relação ao fato de que se trata
de testes de “língua”, uma vez que privilegiam apenas a estrutura, os aspectos formais.
Coudry (1986) já criticava em seus primeiros estudos o fato de que se restringem a
tarefas com palavras isoladas, repetição, formação de frases descontextualizadas, etc. O
que procurarei defender a seguir é que mesmo os comentários feitos pelos sujeitos
durante a aplicação de testes certamente colaborariam para a avaliação de sua
linguagem e de outras capacidades cognitivas. Entretanto, como veremos a seguir, tudo
aquilo que o sujeito diz durante a sessão de testes é totalmente ignorado, uma vez que
tais comentários não podem ser objetivamente tratados, ao contrário dos escores que
podem ser quantificados, para o levantamento dos sintomas, para fins de classificação
em categorias clínicas.
Vale salientar que geralmente os mesmos testes são aplicados a cada nova
consulta do paciente, com o objetivo de se comparar os resultados e determinar se
houve ou não alteração nos quadros de declínio cognitivo ou de demência. O mesmo
teste geralmente apresenta diferentes versões; diferentes listas de palavras, por exemplo,
para evitar que o resultado seja influenciado por uma competência do sujeito para lidar
com o próprio teste. Em outras palavras, que ele tenha aprendido a lidar com o teste,
como se isso já não fosse algo positivo a ser registrado!
Perroni (1985), ao criticar a crença nos resultados estatísticos, afirma que a
metodologia experimental é a que mais facilmente cai na ilusão da objetividade, pois é
baseada numa visão estática da língua, dissociada do homem, que chama de “visão
antropofóbica”. Enfatiza que muitos recorrem ao método experimental pelas supostas
vantagens que se teria para, primeiramente, obter informações que não poderiam ser
obtidas apenas pela observação. Em segundo lugar, pela replicabilidade, isto é, o fato
de outros pesquisadores poderem aplicar os testes com um grande número de sujeitos, o
que levaria à generalidade, ou seja, seria possível tomar os sujeitos como representantes
de um processo que se desenvolveria de forma uniforme na mente humana. Entretanto,
afirma a autora, o controle das variáveis não significa que se está obtendo um resultado
inquestionável: “Qual seria a distinção entre significância estatística e confiabilidade?”
Além disso, enfatiza Perroni, “a noção de porcentagem atestaria a
normalidade/normatividade e serviria para estabelecer relações causais, causas estas que
anulariam as diferenças individuais e a história (...)”.
Em Novaes-Pinto (1999), discuti os resultados de sub-testes da Bateria de
Boston, dentre os quais os testes de nomeação. A crítica apontava para diferentes
questões, das quais saliento três: em primeiro lugar a má qualidade dos desenhos; os
sujeitos erravam muitas vezes porque não reconheciam as figuras (e.g. aspargo, tripé,
etc). Relacionada à primeira, a segunda questão diz respeito à escolha dos objetos a
serem nomeados: de 60 figuras, grande parte diz respeito ao léxico de uma língua
padrão, escolarizada, com muitas figuras de baixa freqüência (e.g. pergaminho, harpa,
esfinge, ábaco, unicórnio; dardo, etc). Em terceiro lugar, a metodologia de aplicação
desconsidera na pontuação quando o sujeito acessa o nome a partir de um prompting
dado pelo examinadoriv. Os resultados, evidentemente, em geral apontam para a
existência de uma população muito grande de afásicos com anomia ou dificuldade de
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encontrar palavras; uma porcentagem muito maior do que observamos com relação aos
mesmos sujeitos em situações dialógicas. Afirma-se que ele perdeu a capacidade de
acessar o léxico mental ou, pior ainda, que ele perdeu a representação mental da palavra
que dá nome a um determinado objeto. Os dados que pude observar com um falante
nativo de língua inglesa, no teste de nomeação, revelam que não se trata apenas de
problemas de tradução ou adaptação do teste para o Português. NB dá as seguintes
respostas, quando as figuras são mostradas:
Dado 1. Respostas do sujeito NB para o teste de nomeação
Figuras para
serem
nomeadas
Gaita
(harmonica)
Unicórnio
(unicorn)
Ábaco
(abacus)
Esfinge
(sphynx)
Aspargo
(arpargus)
Sanfona
(accordeon)
Paleta
(pallete)
Pergaminho
(scroll)
Respostas do sujeito NB
Escore
atribuído
Harp? (com a entonação de pergunta.)
0
A mythical animal; a horse with a horn.
0
I have no idea what that is; Chinese or
Japanese for counting…
Egypt... I know it has to do with Egypt...
“I have no idea of what that is...”
Squeezing box My wife has got one… I
call it a squeezing box…
For painters... I don´t know how they call
it.
Do you want me to read that?
(ironizando, olhando para as minúsculas
letrinhas – rabiscos - do desenho)
0
0
0
0
0
0
Além dos testes de nomeação e das listas de palavras para serem memorizadasv,
há um teste de categorização que demanda, a partir de pares de palavras, que se gere os
hiperônimos. Assim, se as palavras forem “maçã” e “banana”, o sujeito deve dizer
“frutas”; para “barco” e “carro”, deverá dizer “meios de transporte”. A realização
adequada desta tarefa deve evidenciar a capacidade preservada do sujeito para abstrair,
para perceber traços relevantes de cada objeto e, posteriormente, generalizar. Em termos
lingüísticos e cognitivos, poderíamos dizer que ele precisa passar do referente – objeto
do mundo para o objeto do discurso (Mondada, 2003); uma atividade, portanto, de
referenciação, que é essencialmente metalingüística. A tarefa em si poderia ser
interessante e possivelmente ajudaria a inferir sobre as dificuldades do sujeito, se não
fossem outras variáveis, sobre as quais passarei a comentar.
O próprio protocolo enfatiza a necessidade de se explicar bem a tarefa ao sujeito,
dando exemplos (como os acima) até garantir que ele compreenda o que deverá fazer.
No caso que destaco abaixo, um estudante estagiário em Psicologia aplicava o teste e
não seguiu essa determinaçãovi. Passou apenas a repetir a pergunta do protocolo: How
are X and Y alike? sendo a resposta esperada apenas they´re fruit, . O fato de o
estagiário não dar exemplos, evidentemente fez com que a interpretação do enunciado
passasse a ser mais aberta do que o protocolo exigia. Se alguém pergunta De que forma
uma maçã e uma banana são semelhantes?, não apenas o nome da categoria pode ser o
esperado, mas também outras características dos objetos, de forma a saturar as
possibilidades – são frutas, doces, gostosas, podem ser compradas em mercados ou
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quitandas, não são muito caras, têm casca, podem ser usadas em vitaminas, dentre
outras tantas possíveis.
Como poderemos observar abaixo, o sujeito NB, de 82 anos, com suspeita de
Demência de Alzheimer em um quadro inicial, tenta saturar as possibilidades na
comparação. Opto por reproduzir os dados em sua forma original, sem tradução, para
que se possa perceber a riqueza de seus comentários. Quando os elementos são objetos
concretos, descreve-os e compara-os de maneira apropriada. Quando são elementos
abstratos, suas respostas são criativas, adequadas e evidenciam um trabalho altamente
complexo, revelando habilidades lingüístico-cognitivas preservadas, o que seria
contrário ao diagnóstico dado, que foi baseado nos resultados quantitativos
considerados pelo examinador. Note-se que o escore também só foi considerado no caso
da palavra-alvo estar dentre as utilizadas pelo sujeito.
Dado 1. Respostas do sujeito NB para o teste de categorização
Palavras para serem
categorizadas
Respostas do sujeito NB
piano x drum
They both make noise
orange x banana
same color, fruit, tropical, tasty, buy them in a
grocery store
both detect from your surroundings
eye x ear
boat x automobile
table x chair
work x play
transport, take people to operate; go on a
surface
sit on both actually, 4 legs, stable (it has to be),
can be connected
How do you make work into play? That should
be the question...
How are they alike?
They can both be fun...
steam x fog
basically the same. When the humidity is high,
you can´t see through.
egg x seed
They are both eatable
democracia x monarquia
they are both ruled by despots; both serve for
controlling the people...
poem x statue
They can both be beautiful
praise x punishment
They both make you feel good; result of a
behavior
fly x tree
Living creatures, air movement
Hibernation x migration
Ways to avoid the winter, the bad weather,
seasonal; birds do it… I don´t know if fish
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Escore
atribuído e
palavra-alvo
0
instrumentos
musicais
5
0
órgãos do
sentido
5
0
mobília
0
atividades
sociais
humanas
0
água em estado
gasoso
0
dão origem à
vida
0
formas de
governo
0
formas de arte
0
resultado de
um julgamento
5
seres vivos
5
comportament
os em função
do tempo
enemy x friends
They are both your neighbors, people that have
attitude that might change…
0
pessoas que
você
conhece/convi
ve
Meu objetivo aqui não é o de comentar apenas o baixo escore do sujeito – nos
exemplos apresentados acima nota-se que ele “acertou”, segundo os critérios do teste,
apenas quatro dos catorze pares apresentados. Se o objetivo da avaliação por meio dos
testes é cercar-se de elementos mais objetivos para a avaliação do quadro, percebemos
que esse objetivo pode ser questionado quando respostas como a do sujeito NB são
consideradas inadequadas. Desconsiderando-se as respostas dadas, perde-se a
oportunidade, inclusive, de observar a preservação de habilidades cognitivas altamente
complexas, adquiridas em situações de escolaridade e de letramento. Retomemos a
resposta que ele dá para o par democracia x monarquia. Ele não perde de foco que o
que se quer são as semelhanças. O primeiro impulso talvez fosse inclusive referir-se à
diferença: dizer que na democracia o país é governado por um presidente e no caso da
monarquia por um rei. Mesmo que viesse a resposta esperada pelo teste: “ambas são
sistemas de governo”, não seria tão complexa quanto a relação que NB estabeleceu: de
que ambas são regidas por déspotas e que são meios de controlar as pessoas. Sua
resposta não estaria, entretanto, em direção contrária ao que se pensa sobre democracia?
Que seria um regime que representa o povo, que com seu voto elege o presidente? Pelos
comentários irônicos que NB já havia feito anteriormente, quando perguntado sobre
quem era o presidente dos Estados Unidos (fato que também não foi anotado pelo
examinador), podemos inferir que a resposta dada foi muito além daquilo que era
esperado.
Abaixo, alguns dos dados do sujeito RB, 48 anos, no mesmo teste, apenas para
efeito de comparação:
Dado 2. Respostas do sujeito RB para o teste de categorização
Palavras para serem
categorizadas
Respostas do sujeito RB
work x play
They are not!
poem x statue
I didn´t know they were!
praise x punishment
They are opposites…
Escore
atribuído e
palavraalvo
0
atividades
sociais
humanas
0
formas de
arte
0
resultado
de um
julgamento
Não se pode negar que as respostas de RB também sejam apropriadas. Ao ser
perguntado como trabalho e diversão são semelhantes, ele afirma: não são! Brinca com
seu interlocutor ao responder: Eu não sabia que eram parecidos, referindo-se à possível
semelhança entre estátua e poema e afirma que elogio e punição são opostos, não
semelhantes. Também neste caso nenhuma das respostas foi considerada correta.
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Em conjunto com as demais respostas dos outros testes das baterias aplicados, os
resultados indicaram que tanto NB quanto RB apresentam declínio cognitivo, sendo que
o primeiro (NB) foi diagnosticado com declínio cognitivo grave, mantendo-se a suspeita
de Alzheimer. O diagnóstico baseou-se exclusivamente nos escores quantitativos. Os
neuropsicólogos responsáveis em momento algum tiveram contato com as respostas dos
sujeitos acima transcritas. As sessões não foram gravadas, nada foi anotado pelo
estagiário, a não ser os números de acertos e erros, quantificados por técnicos. O
trabalho cognitivo do sujeito NB pode ser ainda revelado quando ele pede para que o
examinador lhe explique como é possível, por meio das perguntas dos testes, saber
como ele está por dentro (referindo-se ao cérebro). O estagiário respondeu que compara
os resultados dos testes anteriores com os atuais. NB, então, infere rapidamente,
brincando: So... the trick is not to do so well on this one, do better next time...
Um último exemplo pode ilustrar o fato de que todos os comentários que são
feitos pelos sujeitos durante as tarefas metalingüísticas poderiam servir como pistas não
só para que pudéssemos compreender melhor cada caso, mas também para entrever as
relações entre linguagem e outros processos cognitivos. Em um teste de discriminação
de figuras, o sujeito DR, 37 anos, após perceber que estava indo muito bem, comenta
sobre suas estratégias para memorizar as figuras mostradas e reconhece-las, dentre
outras. A folha continha as seguintes figuras, na mesma ordem:
A estratégia encontrada por DR foi pensar em um cenário no qual via uma
pirâmide, com o sol ao fundo. A terceira figura foi relacionada a um padrão egípcio,
encontrado nos desenhos de roupas, segundo ela. O sujeito DR estabelece a relação
entre os elementos em uma cena enunciativa. Essa estratégia é muito comum quando
precisamos memorizar seqüências verbais ou não-verbais. Quando o sujeito é capaz de
explicitar qual foi a estratégia que estabeleceu para executar a tarefa, estamos diante de
um dado inestimável para poder confirmar ou refutar hipóteses sobre o processamento
lingüístico-cognitivo, sobre as relações entre linguagem e memória, neste caso.
4. Considerações finais
Procurei refletir, no texto aqui apresentado, sobre as vantagens de se considerar
os comentários feitos pelos sujeitos com suspeita de demências e declínios cognitivos
durante a aplicação dos testes metalingüísticos, bem como uma análise qualitativa de
suas respostas, que podem revelar aspectos importantes sobre as capacidades
lingüísticas e cognitivas alteradas ou não, superando inclusive o que pode ser revelado
por meio da quantificação dos resultados e análise estatística, extremamente valorizados
em função da crença de objetividade. Não pretendo, com isso, desqualificar
inteiramente as avaliações neuropsicológicas, mas o levantamento dos sintomas e a
classificação deveriam levar em conta outros fatores, como a capacidade dos sujeitos
para fazer inferências, para (re)significarem os enunciados, para se utilizar de outros
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caminhos – verbais e não-verbais – para manterem-se no jogo dialógico, que os dados
acima procuraram ilustrar.
i
Tese de doutorado defendida em 1986, publicada em 1988 sob o título Diário de Narciso: afasia e
discurso, Ed. Martins Fontes.
ii
Dicionário escolar latino-português, do Prof. Ernesto Faria. Departamento Nacional de Educação;
Ministério da Educação e Cultura, 1967.
iii
DSM-IV. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Trad. Dayse Batista, 4a ed. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1995.
iv
A esse respeito, maiores detalhes podem ser vistos em Novaes-Pinto (1999).
v
Listas de palavras muito utilizadas são as da bateria Rey Auditory Verbal Learning Test.
vi
Possivelmente, ao perceber que se tratava de um senhor altamente letrado, que havia se saído bem na
tarefa anterior, o estagiário presumiu que ele havia entendido o que teria de fazer.
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