Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (813-819)
EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O
PORTUGUÊS BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES
DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O
SUJEITO
Luciene Juliano SIMÕES (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
ABSTRACT: Different types of subjects are related to the degree of connection between subject and
discourse antecedent in the speech of a Brazilian-Portuguese-speaking two-year-old child. Results reveal
the importance of recoverability of reference for the high percentage of null subjects presented by
children in the early stages of BP acquisition.
KEYWORDS: null subjects; language acquisition; discourse analysis
0. Introdução
Neste trabalho, analisarei as diferentes realizações de sujeitos referenciais nos dados de uma
criança de dois anos a fim compreender qual o peso que fatores de caráter discursivo têm sobre a
ocorrência de sujeitos nulos. Para tanto, tomo a noção de graus de conexão entre o sujeito e seu
antecedente em discurso como quadro descritivo a partir do qual os sujeitos podem ser categorizados.
Conforme será possível observar nos dados, há um grande número de ocorrências nas quais há
conectividade entre o sujeito e seu antecedente. Esta propriedade do discurso da criança, acrescida da
fácil recuperabilidade dos referentes dos sintagmas nominais utilizados, relacionada à dita concentração
da fala da criança no “aqui” e “agora”, torna a probabilidade de ocorrência de sujeitos nulos bastante alta.
Esse resultado aponta na direção de explicar a alta proporção de sujeitos nulos na produção oral
espontânea da criança não como evidência relacionada à aquisição de restrições sintáticas de nível frasal,
mas como fruto das propriedades pragmáticas e discursivas da fala da criança nos primeiros estágios de
aquisição.
1. Pressupostos e Hipóteses de Trabalho
A principal ferramenta de análise dos dados infantis a ser utilizada neste trabalho é a noção de
grau de conectividade desenvolvida por Paredes da Silva (1991 e 1993) em estudo realizado por essa
autora acerca dos fatores que determinam a opção entre a codificação de sujeitos referencias através do
que ela denomina ‘anáfora zero’ ou através do emprego de um pronome. O estudo em cujo contexto a
discussão de tal noção aparece é a análise de um corpus de cartas pessoais escritas por informantes
cariocas.
O trabalho da autora parte da interpretação anteriormente proposta por Li & Thompson (1979)
segundo a qual a escolha entre o pronome nulo e o manifesto envolve tendências e não regras categóricas
e de que essas tendências apontam na seguinte direção: a codificação do sujeito pela presença de um
pronome será mais freqüente na medida inversa da conectividade em discurso que houver entre o sujeito
em questão e seu antecedente. Partindo-se dessa interpretação, a análise não mais se concentra na simples
consideração binária entre dado e novo, mas numa classificação mais graduada do estatuto discursivo do
sujeito sob análise – entre os pontos extremos da retomada de um referente dado e da introdução de um
novo referente, vários outros pontos numa escala de conexão do discurso devem ser considerados, sendo
maior a probabilidade de aparecimento do pronome quanto mais o contexto se aproximar da
descontinuidade discursiva.
Considerando esse quadro, Paredes da Silva (1991) propõe seis graus de conexão e, através de
análise fatorial, encontra os resultados expressos nas Tabelas 1 e 2 abaixo.1 As freqüências e os pesos
relativos evidenciam haver de fato uma gradação que distingue as diferentes categorias entre si e uma
diminuição do número de pronomes empregados à medida que se chega ao grau 1 de conexão: aquele em
que a continuidade discursiva se verifica mais tipicamente, segundo a categorização da autora. Além
disso, conforme os resultados do estudo, o efeito dos graus de conexão é mais determinante, de um modo
geral, na determinação da codificação do sujeito de terceira pessoa – a escala vai de 4 a 94% de sujeitos
nulos ou, nos termos de Paredes da Silva, de casos de anáfora zero – do que naqueles de primeira pessoa
– nesse caso, a escala fica entre os 70 e os 99% de sujeitos nulos. É importante ressaltar, por fim, com
1
Respectivamente, Tabela 4 e Tabela 5 em Paredes da Silva (1991:32,33).
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BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO
DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO
relação aos números das duas tabelas, que se trata de uma variedade de dados na qual a presença de
sujeitos nulos é expressiva de forma geral, sendo, portanto, o foco da discussão os fatores que levam à
escolha de um pronome num lugar em que a gramática da língua oferece como opção o aparecimento de
uma categoria vazia.
TABELA 1
Efeito da conexão do discurso na ausência de sujeitos de 1ª pessoa2
Apl/T
Freq.
Grau 1
209/212
99%
Grau 2
336/395
85%
Grau 3
143/178
80%
Grau 4
055/078
70%
Grau 5
262/410
64%
Grau 6
266/377
70%
Prob.
.94
.59
.47
.34
.25
.23
TABELA 2
Efeito da conexão do discurso na ausência de sujeitos de 3ª pessoa3
Apl/T
Freq.
Grau 1
165/176
94%
Grau 2
079/120
66%
Grau 3
021/055
38%
Grau 4
077/243
32%
Grau 5
006/082
7%
Grau 6
001/026
4%
Prob.
.93
.70
.53
.37
.21
.15
Com relação a esse último ponto, há uma diferença crucial entre a análise de Paredes da Silva e
aquela que será aqui apresentada. A discussão das manifestações do sujeito na fala de crianças
empreendida neste trabalho tem como pano de fundo hipóteses tecidas em torno de dados de algumas
variedades da fala brasileira no âmbito da Teoria da Variação e Mudança, por exemplo Tarallo (1993) e
Duarte (1996; 2000), e em torno do que se considera a variedade brasileira do português no âmbito da
Teoria de Princípios e Parâmetros, por exemplo Figueiredo Silva (1996; 2000), segundo as quais estão em
curso mudanças gramaticais significativas no que toca à possibilidade de o sujeito ser nulo no português
falado no Brasil.
Segundo Duarte (1996), em dados do vernáculo carioca, a proporção total de sujeitos nulos é de
apenas 29% dos dados, sendo os contextos de primeira e segunda pessoas do discurso mais restritivos do
que os de terceira pessoa: na primeira pessoa do singular ocorrem 28% de nulos; na segunda, 11%; e na
terceira, 57%. Outros resultados importantes do estudo quantitativo da autora são, primeiro, que há
diferença significativa entre as diferentes faixas etárias examinadas na amostra, sendo os mais jovens os
que mais restringem os empregos de sujeitos nulos e, também, o fato de que a construção sintática em que
ocorre o sujeito afeta significativamente os percentuais; em frases relativas, por exemplo, apenas 7% dos
sujeitos são nulos. De modo geral, quanto à questão da construção sintática envolvida, há efeitos
restritivos do encaixamento no emprego de sujeitos nulos; as frases raízes são contextos preferenciais
para esse tipo de sujeito.
Esse efeito de certos tipos de encaixamento corrobora a análise proposta por Figueiredo Silva
(1996; 2000), cujo quadro de análise é bastante diferente do de Duarte. Segundo esta autora, que trabalha
no quadro da sintaxe gerativa de princípios e parâmetros, o tipo de categoria vazia presente na posição de
sujeito na gramática brasileira depende de certo tipo de ligação sintática com a posição de especificador
de CP, de tal modo que, caso essa posição esteja preenchida por elemento estranho à cadeia referencial do
sujeito, este não poderá ser nulo. Este é o caso de frases como as apresentadas em (1), ocorrências de fala
infantil. Nelas, o objeto topicalizado impede que o sujeito seja nulo.
(1) a. A2-682*A: Esse eu também conségu.
b. A5-006*A: O motoqueiro eu vou cortar.
c. A6-416*A: E esse também tu quer?
d. A16-545A: A minha malinha eu peguei.
2
Repetimos aqui a terminologia do texto original, embora não estejamos de acordo com a descrição dos
casos como contextos de “ausência de sujeito”.
3
Ver nota 2.
Luciene Juliano SIMÕES
815
Tendo por base os estudos de Duarte e Figueiredo Silva citados, em Simões (1999, 2000) realizei
análise dos dados a serem discutidos neste trabalho inspirada nas hipóteses acerca de fixação paramétrica
propostas no quadro teórico da gramática gerativa. Os resultados corroboram em grande parte as
hipóteses de trabalho lá estabelecidas. A criança observada apresentou em sua fala emprego de sujeitos
nulos em 51,2% do total de ocorrências de enunciados com verbo em toda a amostra. Essa proporção total
reflete de maneira aproximada as proporções encontradas em cada uma das faixas etárias analisadas,
sendo interessante também o fato de que a proporção média de nulos é ainda mais baixa do que a total.
Ou seja, mesmo sendo verdade que há picos percentuais, em que a criança usa mais nulos, há também
amostras em que esse percentual é ainda mais baixo. Fica também evidente nos dados que os percentuais
de sujeitos nulos variam segundo a pessoa do discurso: na primeira pessoa, ocorre uma proporção de 36%
de sujeitos nulos; na segunda, 37%; e na terceira, 63%. Numa análise mais qualitativa das construções,
inspirada em Figueiredo Silva, observou-se que as construções nas quais a autora considera a ocorrência
de nulos agramatical na gramática brasileira, há apenas dois casos de sujeito nulo.
Esse quadro de resultados referentes à criança observada em Simões (1999; 2000) levou à
interpretação de que aos 2;4 a criança brasileira já usa sujeitos nulos da mesma forma que o adulto no que
concerne às restrições sintáticas que atuam nesse subsistema. Permaneceu, no entanto, uma questão para
análise futura: a razão por que havia mais sujeitos nulos nos dados infantis do que naqueles atestados na
fala de adultos no trabalho quantitativo de Duarte (1996). Ou seja, embora os empregos sejam
qualitativamente coincidentes e quantitativamente comparáveis aos de adultos, especialmente
considerando-se os contextos de distribuição, há diferenças quantitativas entre os dados de adultos e os da
criança; tais diferenças, é possível supor, deverão desaparecer ao longo do desenvolvimento. O presente
estudo pretende lançar luz sobre essa questão.
A hipótese de trabalho em torno da qual ser organiza o trabalho é a de que as propriedades
discursivas da fala inicial tenham papel fundamental na maior presença de sujeitos nulos. Mesmo as
análises que apontam mudança no português do Brasil com relação à possibilidade de emprego dos
sujeitos nulos reconhecem que tais sujeitos seguem ocorrendo, sendo gramaticais em certos contextos.
Sendo esse o caso, é de se esperar que fatores relativos ao estatuto discursivo do sujeito ainda operem,
uma vez que, em diversos contextos, ainda há a possibilidade da opção por codificar o sujeito através de
um sintagma lexical, de um pronome ou de um sujeito nulo. Nesses casos, a escolha será regida por
propriedades funcionais do sujeito. Com base na hipótese descritiva oferecida por Paredes da Silva
(1991), analisarei parte dos dados discutidos em Simões (1999; 2000) a fim de encontrar evidências
relevantes para a compreensão da diferença quantitativa constatada entre os dados infantis e os dados de
adultos.
2. Dados
Os dados que analisarei aqui formam um conjunto de cinco sessões de observação de um menino
falante monolíngüe do português brasileiro. As cinco sessões de coleta de dados foram realizadas em
seqüência, numa periodicidade quinzenal, no início do terceiro ano de vida do menino – as idades
observadas vão de 2;4 a 2;6 meses. Cada sessão constava de uma hora durante a qual eu interagia em
situação de brincadeira espontânea com o menino em sua casa. A hora de gravação em áudio resultante de
cada sessão foi transcrita ortograficamente em sua íntegra; tais transcrições compõem o conjunto de
dados.
3. Categorias de Análise
Os dados serão analisados com relação aos seguintes aspectos: presença ou ausência do referente
do sujeito em questão no contexto extralingüístico imediato da conversa e o grau de conexão no discurso
entre o sujeito sob análise e sua menção anterior na conversa. Com relação ao grau de conexão em
discurso, serão considerados os seis graus propostos por Paredes da Silva (1991), definidos segundo os
critérios da autora acrescidos de algumas considerações necessárias para que se tornassem aplicáveis aos
dados acima descritos, evidentemente diferentes dos dados de cartas pessoais numa série de aspectos. Os
seis graus segundo os quais foram classificadas as ocorrências são os seguintes:
Grau 1 – sujeitos que apresentam o maior grau de conexão possível com seu antecedente; nesses
casos, o antecedente é o sujeito da oração anterior, ambos têm o mesmo referente e não há
qualquer mudança de tópico ou de plano discursivo – essa última característica implica que o
tempo e o modo verbal são os mesmos nas orações envolvidas.
Grau 2 – sujeitos em que há uma sutil queda na conexão discursiva com o antecedente; nesses
casos, há continuidade de tópico e correferencialidade, mas ocorre alguma mudança de plano
816 EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O PORTUGUÊS
BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO
DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO
discursivo (de figura a fundo, de real a irreal, de fato a comentário); estão incluídos aqui casos em
que há diferença de tempo e modo entre os verbos das orações envolvidas e também os casos em
que há mudança de interlocutor – esta última característica não está presente em Paredes da Silva.
Grau 3 – aqui não há continuidade estrita entre os sujeitos das orações que se sucedem, mas o
segmento que interfere entre o sujeito sob análise e seu antecedente é impessoal e não chega a
interromper o tópico. Foram analisados como pertencentes a esta categoria os sujeitos de primeira
pessoa que não tinham característica de correferencialidade, mas que não tinham valor contrastivo
com um referente anterior. Ou seja, casos em que o falante era introduzindo como referente
relevante na conversa, mas não havia nem contraste entre a referência ao falante e a referência a
outro participante nem mudança de tópico discursivo não foram considerados como casos de
descontinuidade discursiva.4
Grau 4 – neste ponto, quebra-se a topicalidade do referente, o que gera um efeito mais
significativo na conexão discursiva; são casos em que o antecedente e o sujeito em questão não
estão na mesma função sintática.
Grau 5 – há nesses casos uma queda sensível na conexão entre o sujeito e seu antecedente em
virtude da ocorrência de outro participante na posição de sujeito da oração anterior àquela sob
análise. Foram também analisados nessa categoria os casos de aparecimento de primeira pessoa
com valor contrastivo.
Grau 6 – é o grau mínimo de conexão, no qual há introdução de novos referentes e mudança de
tópico discursivo.
4. Resultados e Discussão
O Quadro 1 apresenta algumas contagens mais gerais relativas aos sujeitos analisados. Cabe
destacar dois pontos com relação aos números ali evidenciados. Primeiro, o pequeno número de sujeitos
que se referiam a outras pessoas do discurso que não a primeira do singular e a terceira. Não houve casos
de segunda pessoa do plural e pouquíssimos de segunda do singular e primeira do plural. Em virtude
desse baixo número de ocorrências, não se procedeu à analise do estatuto discursivo desses sujeitos; esta
restringiu-se aos contextos de primeira pessoa do singular e aos de terceira do singular e plural tomadas
conjuntamente. O outro ponto que cabe destacar é o baixíssimo número de sujeitos cujo referente não
estava presente no contexto imediato da interação face-a-face em curso na sessão. Essa proporção
confirma mais uma vez a característica de “aqui e agora” das conversas de crianças pequenas e demonstra
que, em qualquer dos casos de conectividade discursiva, os sujeitos têm referentes facilmente
recuperáveis, desde que esteja assegurado foco de atenção conjunta entre os interlocutores. Veremos a
seguir que esse fator é crucial para certas ocorrências aparentemente desviantes atestadas nos dados.
QUADRO 1: Distribuição do sujeitos por pessoa do discurso e pela presença ou ausência do referente no
contexto extralingüístico imediato
Total de ocorrências
Referentes presentes na situação
Referentes ausentes da situação
Ocorrências descartadas
Ocorrências de 1ª pessoa do singular
Ocorrências de 3ª pessoa
Outras pessoas
652
618 (94,7%)
22 (3,4%)
12
170
456
14
As Tabelas 3 e 4 apresentam os resultados da correlação entre o tipo de sujeito e seus grau de
conexão em discurso; na Tabela 3, são apresentados os números referentes à primeira pessoa do singular e
na Tabela 4, à terceira pessoa.
4
Devo essa análise à contribuição pessoal da colega Ana Maria S. Zilles, que sugeriu que em termos
informacionais as propriedades referenciais da primeira pessoa são bastante diferentes das de pronomes
de terceira pessoa. Num diálogo, parece que de fato a primeira pessoa é altamente topical, sendo seu
aparecimento sem um antecedente em discurso de natureza distinta daquela de um elemento de terceira
pessoa. Ou seja, a primeira pessoa só foi considerada um caso de introdução de referente quando tinha
valor contrastivo com um referente anteriormente mencionado em discurso. Ver a propósito, a noção de
shifter sugerida por Jakobson (1970).
Luciene Juliano SIMÕES
817
TABELA 3: Efeitos do grau de conexão no discurso na ocorrência de pronomes ou nulos de 1ª pessoa do
singular nos dados de uma criança de 2 anos de idade
Pronomes
Grau 1
Grau 2
Grau 3
Grau 4
Grau 5
Grau 6
7/110
5/110
28/110
0/110
52/110
18/110
Nulos
6,3%
4,5%
25,5%
47,3%
16,3%
1/60
17/60
38/60
0/60
2/60
2/60
1,6%
28,3%
63,3%
3,3%
3,3%
TABELA 4: Efeitos do grau de conexão no discurso na ocorrência de sujeitos manifestos ou nulos de 3ª
pessoa nos dados de uma criança de 2 anos de idade
Grau 1
Grau 2
Grau 3
Grau 4
Grau 5
Grau 6
Pronomes
8/75
10,6%
26/75 34,6%
16/75 21,3%
4/75
5,3%
14/75 18,6%
7/75
9,3%
Nulos
28/232 12,06%
125/232 53,8%
44/232
18,9%
7/232
3,0%
7/232
3,0%
21/232
9,0%
Demonstrativos
2/72
2,7%
6/72
8,3%
2/72
2,7%
0/72
57/72
79,1%
5/72
6,9%
SNs lexicais
1/77
1,2%
2/77
2,5%
0/77
5/77
6,5%
40/77 51,9%
29/77 37,6%
Começando a discussão desses resultados pelos da Tabela 4, referente à terceira pessoa, a primeira
questão a ressaltar é que a correlação mais importante é aquela que se estabelece entre o aparecimento de
sujeitos nulos e os graus mais altos de conexão em discurso. A conexão de grau 2, exemplificada pela
ocorrência em (2) e referente, na quase totalidade dos casos, ao aparecimento do antecedente na fala do
interlocutor no turno imediatamente anterior àquele em que ocorre o nulo, é responsável pela maior parte
dos empregos de sujeito nulo. Além disso, somando-se os casos de nulo dos três primeiros graus –
aqueles que permanecem dentro de um limite de continuidade discursiva – teremos uma proporção de
197/232 sujeitos nulos; ou seja, 85% das ocorrências de sujeito nulo aparecem em contextos de
continuidade discursiva, podendo seu emprego ser considerado uma marca de continuidade discursiva na
fala da criança observada.
(2)L: Pum! Caiu a caixa.
A: Caiu assim. (2;5:19)
Por fim, ainda com relação a essa questão, embora a relação entre o emprego da anáfora zero e a
continuidade discursiva não seja considerada uma regra categórica, mas um fator condicionante de
natureza gradual, a presença de 21 casos desse tipo de sujeito no grau 6 de conexão pode ser considerado
evidência de que a criança não distribui seus sujeitos de forma comparável à distribuição adulta, devendo
a direção desses condicionamentos ainda ser adquirida ulteriormente. Isso porque, em primeiro lugar, a
proporção deste emprego aumenta na direção do menor grau de continuidade discursiva ao invés de
diminuir e, além disso, porque, na realidade, os graus 4 e 5 de conexão não se demonstraram de fato úteis
para a interpretação dos dados, não parecendo operar de modo significativo no discurso da criança.
Dito de outro modo, parece que especialmente os graus 5 e 6, selecionados como fatores que
levam a uma despreferência pelo sujeito nulo no adulto, atuam de maneira diferente aqui. Nossa
interpretação para essa maior aceitação do sujeito nulo nesses contextos está relacionada ao achado de
que a quase totalidade dos sujeitos da amostra se referem a objetos e participantes da brincadeira que
estão imediatamente presentes na situação de interação, sendo, desse modo, altamente recuperáveis
mesmo que, se considerados no fluxo do discurso, sejam informacionalmente novos e ocorram em
contexto de descontinuidade de tópico. É interessante notar com relação a isso que a totalidade dos casos
encontrados são de sujeitos que se referem a objetos que estão sendo manipulados pelo menino ou que se
movimentaram ou foram movimentados no desenrolar das ações da brincadeira sendo narrada, o que
significa que eram objetos não apenas presentes na situação, mas também perceptualmente salientes: o
exemplo em (3) ilustra esse conjunto de ocorrências.
(3)L: Tu vai come(r) picolé?
A: Vou
L: O pai foi buscar?
A: Pai (chamando o pai)
818 EMPREGO VARIÁVEL DE SUJEITO NULO NA FALA DE UMA CRIANÇA ADQUIRINDO O PORTUGUÊS
BRASILEIRO: INTERAÇÃO ENTRE RESTRIÇÕES SINTÁTICAS E FATORES DISCURSIVOS NO CONDICIONAMENTO
DA ESCOLHA ENTRE MODOS DE CODIFICAR O SUJEITO
I: Eu gosto de chocolate Nestlé
(L tinha trazido bombons para as crianças, por isso I está falando em chocolates. A está brincando
com papel e lápis enquanto a interação se desenrola)
A: Não tá colado
L: Quê?
A: Não tá colado isso. (2;5:19)
Participam da conversa o menino (A), a entrevistadora (L), o pai (P) e a irmã do menino (I). O
tópico da conversa era o que as crianças comeriam; na linha grifada, o menino introduz novo tópico
fazendo uso de sujeito nulo. Nesse ponto, vale notar que ele está com o objeto referido nas mãos ao dizer
que “não tá colado”. Curiosamente, a entrevistadora não entende, e o menino faz um reparo exatamente
na direção de introduzir um demonstrativo à direita – emprego claramente condicionado por quebra de
continuidade referencial nos dados, conforme se pode ler na Tabela 4 na coluna dos demonstrativos.
A outra evidência interessante com relação à Tabela 4 é a distribuição dos pronomes de terceira
pessoa. Suas ocorrências, embora sejam mais altas nas três primeiras categorias, não estão tão
concentradas nem nas categorias de continuidade, nem nas de descontinuidade. Parece mesmo que aqui o
pronome não é uma marca de descontinuidade, o que seria de se esperar num conjunto de dados nos quais
o sujeito nulo é simultaneamente restringido por fatores sintáticos frasais que forçam o emprego do
pronome em contextos bastante contínuos discursivamente. Por fim, fica evidente que os demonstrativos
e o emprego de nomes próprios e descrições definidas são os mecanismos mais condicionados pelos graus
de descontinuidade discursiva, o que se poderia esperar.
Quanto à Tabela 3, relativa aos empregos de primeira pessoa, as mesmas direções de
condicionamento ficam corroboradas. As ocorrências de sujeito nulo estão concentradas nas categorias de
continuidade, sendo seu emprego marginal nos contextos cujo grau de conexão discursiva é baixo. Ou
seja, novamente os nulos são marcas de continuidade discursiva. No caso da primeira pessoa, não
havendo mais contrastes do que o do aparecimento de um pronome versus o não aparecimento, o
pronome está mais nitidamente ligado aos graus de descontinuidade, sendo seu aparecimento
especialmente motivado pelo fato de o referente ter um valor contrastivo com relação a um referente
animado anteriormente mencionado na conversa. Nesse sentido, vale examinar os exemplos. Nos casos
em (4), temos ocorrências classificadas como grau 3 e 2, pois, embora a primeira pessoa não tivesse
menção anterior no diálogo, ela não cria descontinuidade. Já no caso em (6), temos um caso de grau 5 de
conexão, pois a primeira pessoa aparece com valor contrastivo; não só a irmã do menino deve sair, mas
ele também.
(4)A: Mais [A está comendo um picolé]
A: Tila o papel fora. Tila o papel fola.
P: Tirar o papel fora?
A: Não consigo. Não consigo morder. (2,5:19)
(5) P: É a Luisa que tá vestindo a capa dela porque ela vai sair. O André só vais vestir a dele mais
tarde, quando ele sair, né?
A: Eu também quero sair.
A: Eu quero ir no super. (2;4:18)
Assim, parece que os resultados obtidos em termos de proporções já indicam que a criança
conhece o contraste entre continuidade e descontinuidade discursiva e que tal contraste condiciona as
diferentes realizações dos sujeitos em sua fala espontânea. Tal condicionamento vai especialmente na
direção da despreferência por nulos em situação de descontinuidade, tornando tais sujeitos marcas de
continuidade. Sendo o discurso em questão pouco complexo, constituído de perguntas e respostas
adjacentes referentes ao aqui e agora da interação, muitos são os casos de continuidade discursiva
máxima, determinando uma freqüência relativamente alta de sujeitos nulos.
5. Considerações Finais
Este trabalho teve por objetivo explorar a noção de grau de conexão no discurso como
possibilidade de compreensão da freqüência de sujeitos nulos na fala de uma criança. Tal compreensão
insere-se numa interpretação da gramática em questão como uma gramática restritiva com relação ao
emprego de sujeitos nulos, o que tornava sua alta freqüência inesperada. Sugerimos aqui que os números
de tais sujeitos não são tão altos porque a criança não conhece os fatores que os restringem, mas porque
as condições discursivas do uso da língua pela criança favorecem o aparecimento de sujeitos não
Luciene Juliano SIMÕES
819
manifestos. A fim de confirmar a plausibilidade de uma tal explicação, pesquisas futuras deverão
examinar os números em termos do peso relativo dos diferentes fatores sintáticos e discursivos que
afetam o emprego de sujeitos nulos e pronominais, uma vez que apenas a proporção não nos oferece
respostas realmente seguras com relação aos condicionamentos verificados. Além disso, pesquisa futura
deverá também observar se há uma correlação entre o tipo de discurso e a queda desses percentuais em
fases posteriores do desenvolvimento infantil.
RESUMO: Diferentes tipos de sujeito são correlacionados ao grau de conexão no discurso entre o sujeito
e seu antecedente para entender por que a criança pequena falante de português brasileiro apresenta
número maior de nulos do que o adulto. A recuperabilidade do referente é apontada como determinante
no emprego de nulos pela criança.
PALAVRAS-CHAVE: sujeito nulo; aquisição da linguagem; conexão em discurso
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