MARÇO
2001
1
ANO 9
Nº 1 ■ MARÇO/2001
TIRAGEM: 38 000 EXEMPLARES
■
■
Geografia e Política Internacional
URBANIZAÇÃO,
Geografia e Política Internacional
MUNDO
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MUNDO
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CONCEITO E PRECONCEITO
O
discurso do preconceito manipula, muitas
vezes, a geografia. “O Sul é meu país”. “O Nordeste não aceita a opressão”. “São Paulo exige os
seus direitos”. Quantas vezes elites políticas e econômicas espertas vestiram fantasias regionais
abrangentes para aumentar o seu poder e encher
os seus bolsos, à custa dos pobres do Sul, do Nordeste ou de São Paulo?
© Pompeu/Studio 47
Para servir à manipulação, a geografia tem que ser,
antes, falsificada. Toda a diversidade de uma região
desaparece sob um rótulo “geográfico”. Os verdadeiros conflitos esmaecem, abrindo caminho para
dilemas inventados.
O COLAPSO DOS
ACORDOS DE OSLO
Veja o dossiê às páginas 6, 7 e 8
Em setembro de 1993, os Acordos de Oslo, simbolizados pelo histórico aperto de mãos entre o
então primeiro-ministro israelense Yitzhak
Rabin e o líder palestino Yasser Arafat, delinearam um caminho tortuoso e incerto para a paz
na Palestina.
Essa chance foi perdida. As eleições de fevereiro
último em Israel, que conduziram o ultraconservador Ariel Sharon ao poder, fecharam o ciclo aberto em Oslo. As duas nações que, em função dos caprichos da história e da geografia, compartilham a Palestina, optaram pelo impasse.
Essa é uma opção pela violência. Agora, no lugar da negociação e das concessões, arquiteta-se
em Israel a separação física, unilateral, entre os
dois povos. Mas separar é quase uma utopia. E
utopias são perigosas.
Pág. 4
Que Fazer?
O jogo da manipulação prefere trabalhar com a
dualidade. Saúde e Doença. Bem e Mal. Nós e Eles.
Conferir “geografia” à dualidade é atingir a perfeição. “Nós” somos o círculo de dentro. “Eles”, o de
fora. “Eles” nos cercam, oprimem. “Nós” resistimos.
Esse jogo está na revista Veja de 24 de janeiro de
2001, que trata da urbanização e da periferia das
metrópoles brasileiras. Um petardo ideológico destinado a promover o preconceito. Para desmascarálo, é preciso retroceder do preconceito ao conceito.
TEXTO & CULTURA
A cidade na literatura brasileira, com
Mário de Andrade, Manuel Bandeira e
Oswald de Andrade, entre outros
Págs. 10 e 11
E mais...
● Editorial – Pinochet não está atrás das grades, mas está preso. Um sinal de alerta para pretendentes
a ditador.
Pág. 3
● O Banco Central dos Estados Unidos, febrilmente, baixa as taxas de juros. Sinais de recessão na
locomotiva da economia mundial.
Pág. 3
● George Bush, o filho, é o herdeiro da “nova direita” de Reagan e de George Bush, o pai. A “nova
direita” tem planos para a América Latina.
Pág. 5
● O Meio e o Homem – A ciência tem novas informações sobre o aquecimento global. Quem ganha
com elas no tabuleiro da política internacional?
Pág. 9
● Diário de Viagem – A Cidade do México guarda os segredos de três Méxicos. Nenhum deles se
parece com as imagens caricaturais que circulam no Brasil.
Pág. 12
“e-mundo” em crise
Seria um tremendo equívoco tomar a crise financeira como sinal de que o mundo “e”, os espaços
virtuais, a sociedade da informação e a economia do
conhecimento não passam de superficiais artifícios de
marketing para vender computadores, equipamentos,
software e novos serviços de manutenção.
0 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO
6
MUNDO E T&C - 2001
Agora
só falta
você!!!
As escolas assinantes de Mundo agora
participam do Clube Mundo. Trata-se de
uma plataforma exclusiva para um elenco
de atividades, produtos e serviços
oferecidos pela Editora Pangea e
instituições parceiras. Entre os suportes
pedagógicos que apresentamos estão o
Concurso Nacional de Redação, a Central
de Palestras e os Cadernos de Pangea.
Todos os professores das escolas que
participam do Clube Mundo têm direito
ao Passaporte da Nova Escola, um cartão
personalizado que assegura acesso gratuito
ou privilegiado a materiais educacionais
como a newsletter eletrônica de Mundo
(que começará a ser publicada no final de
março), a National Geographic e o Le
Monde Diplomatique em português, a
revista Caros Amigos e a coleção
encadernada Rebeldes Brasileiros. E isso é
só o começo: vem muito mais por aí!
O lançamento de Clube Mundo é a
realização de um projeto, há tempo
acalentado. Representa uma iniciativa
destinada a contribuir para a
construção de um ensino capaz de – na
expressão pertinente dos Parâmetros
Curriculares Nacionais –
“ensinar a aprender e a pensar”.
0 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO
6
MUNDO E T&C - 2001
Agora só falta você!!!
1. História e objetivo do concurso
O Concurso de Redação de Mundo e Texto&Cultura
nasceu, em 1996, com o objetivo de estimular o hábito
de ler, escrever, estudar, refletir. Isso tudo é particularmente importante no mundo contemporâneo, quando as novas tecnologias de informação praticamente
dispensam o uso do texto. Ler e interpretar, condição
indispensável para o exercício da cidadania, já está se
tornando hábito raro.
Esta é a preocupação central do concurso: estimular o
hábito do contato com o texto e, assim, contribuir
para o processo de formação de massa crítica no Brasil. Mas, para que o concurso tenha êxito, é essencial
a colaboração dos professores, especialmente os da área
de Comunicação e Expressão. As normas do concurso, sintetizadas nessa página, prevêem a participação
ativa do mestre.
Relacione os textos seguintes e redija uma dissertação,
em prosa, discutindo as idéias neles contidas. Não deixe de colocar título.
É possível saber se se é feliz, ouvindo o vento. Este lembra
ao infeliz a fragilidade de sua casa e basta para arrancálo de seu sono leve ou de algum pesadelo. A quem é feliz, a
canção do vento sugere segurança e proteção: o furioso silvar do vento anuncia que este último não tem mais poder
algum sobre aquele.
(Theodor Adorno).
Em todos os fatos da natureza há algo de maravilhoso.
(Aristóteles).
PANGEA - Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, Gilson Schwartz (Que Fazer?),
Jayme Brener, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic
(Cartografia), Jorge M. B. Almeida (Texto & Cultura).
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Miriam de Carvalho Abões
Pesquisa Iconográfica: Vera Lucia da Silva Barrionuevo
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
Ilustração: Maringoni
Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP. CEP
05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564 Fax: (0XX11) 3726.1658 - E-mail: [email protected]
Distribuidor: Bahia - Alitônio Carlos Moreira Fone: (0XX71) 327 2088/9986 6344 (cel.).
Colaboradores: Newton Carlos, J. B. Natali, Nicolau
Sevcenko, Rabino Henry I. Sobel, Hassan El Emleh
(Fed. Palestina do Brasil).
Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas
individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos nos
seguintes endereços, em São Paulo:
• Laboratório de Ensino e Material Didático (Lemad) Prédio do Depto. de Geografia e História - USP
• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900.
Homepage: http://www.moderna.com.br/mundo
■ Qual é a forma de participação?
Cada escola poderá enviar até três redações. Tomamos
a liberdade de sugerir que as escolas realizem um concurso interno de seleção. Importante: todos os leitores de Mundo podem participar, mas apenas mediante
a intermediação das escolas. Por razões pedagógicas, não
aceitamos redações enviadas sem a anuência da escola.
Por razões técnicas, não podemos receber, ler e julgar
milhares de redações. Isso significa que só receberemos
os trabalhos indicados pelas escolas.
■ Qual é o prazo para o envio das redações?
Serão aceitas redações recebidas na sede de Pangea,
em São Paulo (veja o endereço no Expediente) até
10 de julho de 2001.
2. Tema da dissertação
Acordei com o barulho da louça caindo dos armários. Corri
para o quarto de minha filha, enquanto pedaços do teto
despencavam sobre minha cabeça. Logo depois, o prédio
desmoronou, matando todos os nossos vizinhos. Ficamos
enterradas por várias horas, até que uma equipe de socorro finalmente ouviu nossos gritos e nos salvou. Foi Deus
quem nos protegeu.
(Relato de uma sobrevivente do terremoto do
México, 1985).
E X P E D I E N T E
■ Quem poderá participar?
Todos os alunos do Ensino Médio das escolas assinantes de Mundo, que fazem parte, automaticamente, do Clube Mundo.
3. Regulamento do concurso
As escolas que participam de Clube Mundo estão recebendo o regulamento completo, bem como folhas
padronizadas para a entrega das dissertações. Divulgamos, a seguir, uma síntese dos tópicos principais:
■ Quais devem ser as características das dissertações?
As dissertações devem ter até 40 linhas e, obrigatoriamente, conter título. Cada escola receberá três
folhas pautadas e numeradas, para a transcrição dos
textos selecionados. Adequadamente preenchidos –
com letra legível! – deverão ser remetidos à sede de
Pangea. Este formato é obrigatório, inclusive para
garantir o sigilo: a Comissão Julgadora não terá acesso ao nome dos autores ou das respectivas escolas.
A fim de assegurar a credibilidade do concurso, não
aceitaremos redações enviadas em outro formato.
■ Quem julgará os trabalhos?
As redações serão avaliadas por uma Comissão
Julgadora integrada por professores de Comunicação e Expressão de reconhecido saber e experiência
no Ensino Médio. Sua composição será divulgada
oportunamente.
■ Haverá prêmios para os trabalhos vencedores?
Sim. Os autores das cinco melhores redações serão premiados por Pangea e empresas que patrocinam o Concurso. Os prêmios serão divulgados oportunamente.
■ As redações serão publicadas?
A redação vencedora será publicada e comentada na
edição de outubro de 2001 de Mundo. Outras redações podem, eventualmente, ser publicadas. Importante: os autores, ao participarem do concurso, concedem a Mundo o direito de publicar suas redações, sem
remuneração autoral, no próprio boletim ou sob outra
forma. Os trabalhos enviados não serão devolvidos.
O mundo não é branco ou preto
Desde 1993, Mundo insiste que as coisas não são
brancas ou pretas. Que a história, a geografia, a
política, o discurso e a cultura são multifacetários.
Que os chavões maniqueístas não explicam o
mundo. Que há uma infinidade de versões rodeando cada fenômeno e cada fato.
Contudo, por limitações de orçamento, Mundo explicou tudo isso em branco e preto (e mais
uma única cor, a cada edição). Agora, graças
aos nossos leitores e ao nosso patrocinador, a
Editora Moderna, derrubamos esse muro. A
partir dessa primeira edição de 2001, Mundo
ganhou todas as cores do mundo. É uma reconciliação entre forma e conteúdo, que não
podia deixar de vir acompanhada por uma vasta
reforma gráfica. Um presente aos nossos assinantes, para comemorar o novo século.
• PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO •
Sua escola está
participando do
Clube Mundo!
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AS IMPRESSÕES DIGITAIS DE PINOCHET
EM DEZEMBRO, O JUIZ CHILENO JUAN
GUZMÁN DETERMINOU A PRISÃO DOMICILIAR
DO GENERAL AUGUSTO PINOCHET, ABRINDO
MAIS UM DRAMÁTICO CAPÍTULO DA BATALHA
INICIADA EM
6 DE OUTUBRO DE 1998, QUAN-
DO O EX-DITADOR CHILENO FOI DETIDO EM
LONDRES. NOS DOIS CASOS, A ACUSAÇÃO É A
MESMA: PINOCHET É O RESPONSÁVEL PELAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS – INCLUINDO
SEQÜESTRO, TORTURA, EXECUÇÃO E “DESAPARECIMENTO” DE PRESOS POLÍTICOS – PRATICADAS DURANTE OS 17 ANOS DE SUA DITADURA, INICIADA EM 1973, COM UM GOLPE DE
ESTADO QUE DEPÔS O PRESIDENTE ELEITO SALVADOR ALLENDE.
OS ADVOGADOS DE PINOCHET APELARAM, INVOCANDO A IDADE, 85 ANOS, E A SUPOSTA PRECARIEDADE DO ESTADO FÍSICO E MENTAL DO EX-DITADOR – OS MESMOS ARGUMENTOS QUE O LIVRARAM DA EXTRADIÇÃO DA GRÃ-
BRETANHA PARA A ESPANHA. DESTA VEZ, PERDERAM: A SUPREMA CORTE, BASEANDO-SE NAS EVIDÊNCIAS APRESENTADAS POR GUZMÁN, QUE INICIOU SUAS INVESTIGAÇÕES EM JANEIRO DE 1998,
AUTORIZOU O INDICIAMENTO E O INTERROGATÓRIO DO GENERAL. PINOCHET TEVE QUE PASSAR
POR TODOS OS PROCEDIMENTOS POLICIAIS TÍPICOS, INCLUINDO O REGISTRO DE SUAS IMPRESSÕES
DIGITAIS. CONTRA TODAS AS EXPECTATIVAS, O
INQUÉRITO PROSSEGUE.
TRATA-SE, OBVIAMENTE, DE UMA EXTRAORDINÁRIA VITÓRIA DA LUTA PELA DEMOCRACIA E
CONTRA A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS,
QUE, ALIÁS, JÁ ESTÁ FAZENDO ESCOLA.
NO
DE FEVEREIRO, UM JUIZ DO
DIA
3
SENEGAL INDICIOU
O EX- DITADOR HISSÉNE HABRÉ, TAMBÉM SOB
ACUSAÇÃO DE PRÁTICA DE TORTURAS. MAIS IMPORTANTE AINDA DO QUE O EVENTUAL IMPACTO “LOCAL” QUE O “CASO PINOCHET ” POSSA
TER NESTE OU NAQUELE PAÍS, É O FATO DE QUE
ELE EXPLICITOU UM SENTIMENTO UNIVERSAL
DE CONDENAÇÃO AOS DITADORES.
CONSAGROU A IDÉIA DE QUE NADA JUSTIFICA O EM PREGO DE MÉTODOS AUTORITÁRIOS, E DE QUE
NINGUÉM , SEQUER UM CHEFE DE E STADO ,
ESTÁ ACIMA DOS PRINCÍPIOS UNIVERSAIS CONSAGRADOS PELA C ARTA DOS DIREITOS H UMANOS DA ONU.
EM OUTROS TERMOS, O “CASO PINOCHET” PAVIMENTOU O CAMINHO PARA A CONSTITUIÇÃO DE UM TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, CUJA EXISTÊNCIA, ALIÁS, JÁ FOI APROVADA PELA MAIORIA DAS NAÇÕES, MAS ESBARRA
NO VETO DE UM GRUPO IMPORTANTE DE PAÍSES, QUE INCLUI ESTADOS UNIDOS, CHINA E
ISRAEL. MAIS UMA VEZ, A HISTÓRIA SE ARTICULA COMO SUTIL IRONIA: UM DOS MAIS CRUÉIS
DE TODOS OS DITADORES VIVE PARA VER O SEU
PRÓPRIO PAÍS ERGUER-SE ENTRE AS NAÇÕES
COMO CAMPEÃO DA DEMOCRACIA.
O POUSO DA ÁGUIA
O ESPECTRO DA RECESSÃO NORTE-AMERICANA
RONDA A ECONOMIA MUNDIAL
E
mbora as perspectivas econômicas ainda sejam predominantemente otimistas no Brasil, com horizonte de retomada do crescimento e controle da inflação, o cenário continua sujeito a pressões e incertezas que vêm da economia
global. O foco potencial de instabilidade é o rumo da economia norte-americana. Há temores de que o desaquecimento nos Estados Unidos, registrado
com força no último trimestre, vire uma
recessão, a despeito das reduções de taxas de juros promovidas pelo Fed (o Banco Central) desde o início de 2001.
A queda mais rápida dos juros
americanos, decidida em janeiro, teve em
parte o efeito de acentuar os temores de
que os Estados Unidos podem estar passando de um “pouso suave” para uma
“aterrissagem forçada”, em meio a uma
recessão. O próprio presidente do Fed,
Alan Greenspan, reconheceu que teve de
agir mais rápido porque a intensidade da
desaceleração foi maior que a esperada,
tudo piorando muito rapidamente.
De todo modo, é evidente que as
reduções de juros trariam alívio apenas
num horizonte de médio prazo, de modo
que a ação do Fed, mesmo que não seja
tardia, é incapaz de promover uma reversão abrupta do quadro de desaquecimento econômico. Os juros caem, mas
a angústia com o fim do ciclo de prosperidade aumenta.
A economia oscila, em grande
parte ao sabor das expectativas dos consumidores e produtores. O longo ciclo
de prosperidade nos Estados Unidos,
iniciado em 1993, alicerçou-se sobre o
comportamento das bolsas de valores. A
Bolsa de Nova York bateu recordes atrás
de recordes. A Nasdaq, bolsa eletrônica
que comercializa ações das empresas de
alta tecnologia, foi inflada por uma gorda bolha especulativa. A classe média
americana, que investe parte significativa da sua poupança nas bolsas, consumiu como nunca e endividou-se pesadamente, lastreada na renda proporcionada pelas ações. A queda vertical da
Nasdaq, no ano passado, inverteu o sinal das expectativas.
A queda dos juros destina-se a
evitar uma retração violenta do consumo, que pode atirar o país na recessão.
Mas também há o temor de que reduções muito fortes e seguidas dos juros
levem a novas ondas de endividamento,
sobretudo entre os consumidores, o que
apenas aumentaria a fragilidade do sistema econômico numa conjuntura de
desaquecimento. Mais dívida, com renda em queda, significa maiores dificuldades, no futuro, para pagar as dívidas.
De outro lado, o Fed precisa levar em conta os efeitos da redução dos
juros sobre a paridade do dólar frente ao
euro e ao iene. Nas últimas semanas, o
euro, que vinha perdendo força, voltou
a se valorizar. Com juros muito baixos,
uma desvalorização mais rápida do dólar e o conseqüente encarecimento dos
bens importados pode gerar pressões inflacionárias nos Estados Unidos. Será que
o Fed continuaria reduzindo os juros e
ajudando a segurar a economia se a inflação levantar a cabeça?
Outro dado, fonte de otimismo
para alguns, é que Greenspan afirmou
que uma política de estímulo fiscal via
CID
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E
corte de impostos – compromisso de
campanha do presidente George W. Bush
– seria oportuna e ajudaria a evitar uma
recessão, tirando da política de juros a
responsabilidade exclusiva pela administração do “pouso suave”.
Há, no entanto, algumas boas
notícias, a começar pelo consenso de que
os preços do petróleo devem se estabilizar ou mesmo recuar ainda mais nos próximos meses. Outro aspecto positivo é
que a reversão no processo de desvalorização do euro cria espaço para reduções
de juros por parte do Banco Central
Europeu, o que favoreceria o crescimento econômico global (compensando em
parte o esfriamento nos EUA). A GrãBretanha e o Japão já anunciaram cortes
nas suas taxas de juros.
A economia global continua
caminhando sobre o fio da navalha.
Mais do que nunca, todos estão de
olho nos Estados Unidos, a locomotiva que pode frear suavemente ou
descarrilar desastrosamente.
NADA NOS UNE, TUDO NOS SEPARA. SERÁ?
N
JORDÂNIA
Rio Jordão
CISJORDÂNIA
os bares antigos das maiores
Vitória eleitoral de Sharon reforça a idéia de
cidades brasileiras, é comum ver azuleseparação definitiva entre Israel e os palestinos,
jos com a imagem de um aperto de mãos,
sem um acordo de paz. Isso é possível?
sob a frase “tudo nos une, nada nos separa”, simbolizando a amizade entre brasileiros e portugueses/espanhóis, uma
referência à origem do proprietário.
US$ 1.600 ao ano, o que equivalia a 10%
Um dos sonhos de Sharon tamNa mão oposta, a vitória históri- da renda per capita em Israel. A metade bém é arrancar da economia israelense
ca do ultraconservador Ariel Sharon nas dos palestinos vive em moradias com os cerca de 120 mil palestinos dos terrieleições israelenses de fevereiro, com mais de oito pessoas e 91% das casas da tórios ocupados, que trabalham em fun62% dos votos, poderia ser simbolizada Cisjordânia e de Gaza são classificadas ções mal-remuneradas. Para tanto, ele
em uma só idéia-chave, a ser pendurada como superlotadas. A taxa de desempre- pensa incentivar a imigração de trabaem placas dos bares de israelenses e pa- go, que era de 9,5% na Cisjordânia e de lhadores romenos, filipinos e tailandeses.
lestinos: “tudo nos separa, nada nos une”. 16,9% em Gaza, em 1999, certamente Imagine-se o impacto dessa separação
Sharon e seu partido, o Likud, não acre- cresceu muito, já que os conflitos recen- “definitiva” sobre a sociedade palestina:
ditam em um acordo de paz definitivo tes causaram perdas de US$ 1 bilhão à 25,9% da força de trabalho da Cisjordâcom os palestinos, nem a curto nem a economia palestina, até fevereiro.
nia e 15,7% dos trabalhadores de Gaza
médio prazo. Contentam-se em reduzir
as dimensões da intifada, a
rebelião palestina – por meio
REGIÃO DA
LÍBANO
CISJORDÂNIA DIVIDIDA
PALESTINA
da repressão ou de um acordo parcial que não envolva
novas concessões territoriais.
◆◆
MAR
Assim, Sharon ganharia tem◆◆
MEDITERRÂNEO
po para separar de vez israelenses e palestinos, em ter◆
mos sociais e econômicos. Se
FAIXA
◆
◆
DE GAZA
◆
necessário, por meio da
◆◆
ISRAEL
◆
EGITO
◆
construção de um grande
◆
(Sinai)
◆
muro, dividindo as áreas ju◆
◆ ◆ ◆
◆ ◆
◆
daicas e árabes.
◆
◆
◆
◆
◆
Territórios
◆
Esse plano congela◆
◆
ocupados
JORDÂNIA
◆◆◆ ◆
◆ ◆◆◆
◆
por Israel
ria a existência de duas
◆◆
◆ ◆
◆
grandes crateras, a separa◆
◆
◆
◆◆ ◆
◆ ◆
◆
rem as duas comunidades.
FAIXA DE GAZA
◆
◆
◆
◆
◆
◆
◆
◆
◆
A primeira é uma cratera
◆
◆
◆
◆
◆
externa. Sem um acordo
◆
MAR
◆
◆
◆
MEDITERRÂNEO
sobre as fronteiras defini◆
◆
◆
◆◆ ◆◆
◆
◆
◆
tivas, o líder palestino
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◆
◆
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◆
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Yasser Arafat decretaria o
◆
◆
◆
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◆
◆
◆
nascimento de um Estado
◆ ◆
I S R A E L
◆
◆
◆ ◆ ◆
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independente nas áreas
◆
◆
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que já domina. Isso quer
◆
◆
◆ ◆
dizer um amontoado de
Jerusalém
◆
EGITO
◆
“ilhas” de população pales◆
I S R A E L
◆
Sob controle palestino
◆ ◆
◆
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◆ Colônias israelenses
radas da Faixa de Gaza por
◆◆ ◆
◆
Sob controle de Israel
◆◆
◆◆
◆
colônias e cidades judaicas
◆
◆
(veja o Mapa).
◆
◆
◆
Isso, em uma situaTerritórios sob o controle
◆
◆
da Autoridade Palestina
◆
ção econômica inviável. De
◆
Territórios sob o controle
acordo com o censo palestimisto de Israel e palestinos
MAR MORTO
◆
◆
◆
◆
no de 1995 (bem antes, porTerritórios sob o controle
exclusivo de Israel
tanto, do início da nova
◆
◆
Projetos de extensão de
intifada, que piorou tudo),
◆
colônias israelenses
◆
◆
◆ ◆
a renda per capita na Cisjor◆ Colônias israelenses
◆
◆ ◆
dânia e Gaza era inferior a
0
10
20 Km
Separação versus paz
A vitória de Sharon e de seu plano de “separação” foram conseqüência do colapso dos Acordos de Oslo, de paz entre
israelenses e palestinos, assinados em 1993. O primeiro-ministro israelense Ehud Barak, do Partido Trabalhista, jogou
todas as suas cartas na hipótese de um acordo definitivo, antes das eleições. Ele chegou a oferecer a Arafat o controle de
94% da Cisjordânia, da totalidade de Gaza e soberania palestina sobre algumas partes de Jerusalém Oriental, inclusive
a Esplanada das Mesquitas. Era chegar mais longe que qualquer outro governo israelense. Mas era menos que Arafat
podia aceitar, sob a violência terrível da repressão de Israel à intifada palestina.
Arafat retrucou com a exigência de retorno dos milhões de refugiados que deixaram o atual território de Israel a
partir da guerra de 1948-49, que assinalou a criação do Estado judeu. Israel não poderia aceitar essa exigência, que
reduziria os judeus a pouco mais de metade da população israelense. Arafat sabia disso, mas temia que a assinatura do
acordo proposto por Barak soasse como traição aos princípios da luta palestina, abrindo caminho para a sua própria
substituição por líderes mais radicais. O “não” de Arafat sepultou o governo de Barak, pavimentou o caminho da vitória
eleitoral de Sharon e encerrou o ciclo histórico aberto pelos Acordos de Oslo.
obtêm sua sobrevivência labutando em
Israel. Isso, quando se fala em economia
formal. Toda uma rede de negócios informais – que vão dos camelôs de Jerusalém Oriental a vendedores de peças de
carros roubados – vale-se de relações
clandestinas entre israelenses e palestinos.
A tentativa de separação entre israelenses e palestinos, sem um verdadeiro acordo de paz, também congela uma
fratura existente dentro de Israel. O país,
de seis milhões de habitantes, conta com
uma importante minoria árabe (20% da
população). Mesmo tendo a cidadania israelense, essa população árabe, remanescente do êxodo palestino que se seguiu à
guerra de 1948-49, não goza dos mesmos direitos da maioria judaica. E as estatísticas são reveladoras. O desemprego, por exemplo, que vitimava 8,5% dos
judeus israelenses em 1999, atingia
11,4% dos cidadãos árabes.
Acontece que essa “fratura interna” aumenta dia a dia. Cada casal judeu
tem, em média, 2,2 filhos, enquanto um
casal árabe em Israel gera 3,4 filhos (nos
territórios ocupados, a média é de 6,06
filhos). Projeções feitas pelo Escritório
Central de Estatísticas de Israel indicam
que a porcentagem total dos judeus sobre o conjunto da população do país deve
cair de 82%, em 1995, para 80% em
2005 e 74% em 2020. E só não cai mais
rapidamente devido à imigração de judeus da ex-União Soviética, que, aliás,
vem diminuindo ano a ano.
No conjunto da Palestina (que
inclui Israel e os territórios ocupados),
os judeus devem se tornar minoria bem
mais cedo. Em poucas décadas, não serão mais que um terço da população total. A demografia pressiona a política e
funciona como argumento para os defensores da separação física entre os dois
povos. Ironicamente, Israel precisa de um
Estado Palestino.
O plano de “separação total” entre judeus e palestinos não é de fácil execução. Para ser implementado, supõe a
redução da intensidade da intifada. De
fato, Sharon parece trabalhar com o cenário de um conflito prolongado, mas de
baixa intensidade, nos moldes do confronto de décadas entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte. Mas a “separação”, com seu impacto econômico sobre
a população de Gaza e da Cisjordânia,
deve acirrar ainda mais o ódio a Israel, reforçando as facções hostis a qualquer acordo de paz – em especial, os fundamentalistas muçulmanos da Hamas.
Esse ódio já funciona como cimento entre as duas “fraturas” –
protagonizadas pelas populações árabes
“de dentro” e “de fora” de Israel. Note-se
que os árabes israelenses foram personagens de destaque do início da nova
intifada. O acirramento desse ódio faria
com que a proposta de “separação”, encarada por Sharon como alternativa para
reduzir a rebelião palestina sem um acordo de paz, se transformasse em combustível de uma onda ainda maior de violência. A placa correta a ser pendurada nos
bares do Oriente Médio seria, então:
“nada nos une, nada nos separa”. Em letras escritas com sangue, é claro.
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BUSH: DE OLHO NA AMÉRICA LATINA
A “nova direita” republicana, herdeira de
Reagan, quer abrir mercados no continente e
reforçar o combate às guerrilhas colombianas
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
O
presidente George W. Bush,
dos Estados Unidos, passou seus primeiros dias de Casa Branca fazendo chamadas telefônicas ao redor do mundo. A primeira foi para Vicente Fox, o novo presidente do México. Ficou acertado que
Bush iria ao rancho de Fox no pontapé
inicial das viagens ao exterior como chefe de Estado americano, rompendo tradição que colocava o Canadá como cabeça da agenda de estréia. Para manter a
sombra da tradição, o primeiro-ministro canadense tratou de antecipar-se aos
demais numa visita a Washington, seguido dos ministros do Exterior e Defesa.
Segundo Fox, ele e Bush são rancheiros e usam botas e isso explicaria a
guinada para o México. Como governador do Texas, em questões externas Bush
só tinha o México como um “foco real”.
A fronteira comum faz com que as políticas locais de um e outro lado se confundam. Mas parece que o olhar do governo Bush na direção do sul vai muito
além do México. O objetivo seria colocar na linha de frente, entre as prioridades da diplomacia americana, o continente americano. Agilizar o projeto de
seu pai, o ex-presidente Bush (1989-92),
de integrar o continente, “do Alasca à
Terra do Fogo”. Bill Clinton (19932000) encampou-o, realizou a Conferência de Cúpula de Miami, em 1995, que
aprovou a criação, em dez anos, da Área
de Livre Comércio das Américas (Alca).
De lá para cá, a idéia pouco avançou. Dificuldades com o Congresso dos
Estados Unidos. Resistências ao sul comandadas pelo Brasil, que quer antes
a integração sul-americana, como contrapeso ao poderio do irmão maior. Bush,
o filho, pretende quebrar impasses, promete um coquetel de acordos bilaterais
como entrada e já tem o Chile fazendo o
papel de Cavalo de Tróia no Cone Sul.
Como encaixar tudo isso na história das
relações entre os Estados Unidos e a
América Latina?
O presidente republicano Dwight
Eisenhower, nos anos 1950, colocara a
América Latina na Guerra Fria, definindo,
na Carta da Organização dos Estados
Americanos (OEA), um novo “inimigo
extracontinental” – o comunismo soviético – e autorizando o primeiro golpe da CIA
no continente, na Guatemala, em 1954.
Também planejou a invasão de Cuba.
Encerrado o ciclo de mediocridade de Eisenhower, instalaram-se em
Washington “os melhores e mais brilhantes” do democrata John Kennedy. O
rotundo fracasso da invasão de Cuba,
herdada da administração anterior, levou
Kennedy a criar o que supunha ser um
eficiente instrumento político de contenção do comunismo: a Aliança para o Progresso. Os Estados Unidos se tornariam
parceiros de reformas sociais e econômicas, que afinal se revelaram inaceitáveis
para as elites latino-americanas. Assassinado Kennedy, o sucessor democrata,
Lyndon Johnson, quase afogado no lamaçal do Vietnã, retomou a intervenção
militar pura e simples como maneira de
barrar o “inimigo extracontinental”.
Mandou tropas à República Dominicana. Seu candidato, já que o Vietnã removeu as condições políticas para que
disputasse a reeleição, foi derrotado pelo
republicano Richard Nixon.
Por essa época, nos Estados Unidos, entrava em cena uma “nova direita”, formada no interior do Partido Republicano, mas distinta da elite conservadora tradicional. Em 1966, Ronald
Reagan tomou o governo da Califórnia
das mãos de um liberal. Assim, o berço
da contracultura tornava-se também a
pista de decolagem da “nova direita”.
Dois anos depois, Nixon se elegia presidente. Ao mesmo tempo, o Texas produzia George Bush, o pai.
Tempos de ditadura
Nixon não fazia parte da velha elite republicana, nem da “nova direita”, que
criticou sem parar a sua política de
distensão com a União Soviética, mas sustentou as estratégias de ambas para a América Latina. Foi a época de ouro da CIA.
Golpes militares no Chile, Argentina, Uruguai. Nixon caiu, vítima do escândalo de
Watergate, mas o democrata Jimmy Carter
só conseguiu ficar um mandato.
Depois, entre 1981 e 1988, veio
Reagan. Na Casa Branca por dois mandatos, o ator medíocre transformado em
presidente entronizou a “nova direita”.
Honduras, El Salvador e Costa Rica foram transformados em cabeças-de-ponte
militares contra a Nicarágua, então sob o
regime de esquerda da Frente Sandinista.
Invasão da ilhota caribenha de Granada,
para remover um exótico governo apoiado por Cuba. Bush, o pai, era o vice de
Reagan e herdeiro da “nova direita”.
Com Bush, a Guerra Fria se esgotaria e, no crepúsculo de seu único
mandato, foi feita a primeira operação
militar de envergadura contra um “outro inimigo”, o narcotráfico. Tropas americanas desembarcaram no Panamá e
prenderam o manda-chuva nativo, general Manuel Noriega, ex-agente da CIA,
acusado de negócios com drogas. A necessidade de os Estados Unidos “mudarem completamente de guarda-roupas”,
em relação à América Latina, percebida
pelo Bush pai, foi assumida pelo seu sucessor, Bill Clinton.
A segurança nacional dos Estados Unidos passou a ser encarada em termos econômicos. “A guerra comercial
substitui a Guerra Fria”, escreveu a analista política francesa Jeanette Habel. A
revista Foreign Policy falou de uma “opção latino-americana”. A América Latina, lembrou, é a única região do mundo
onde os Estados Unidos têm saldos comerciais positivos. A região compra mais
produtos americanos do que o Japão.
Mas Clinton, embora ciente, negligenciou o continente. Privilegiou o que a
“nova direita” chama, depreciativamente, de “nation-building”, operações tidas
como humanitárias, nos Bálcãs e Haiti,
por exemplo.
O fato, no entanto, é que a “nova
direita” está de volta. Com Bush filho,
instala-se em Washington um governo
unilateralista, voltado cruamente para os
interesses dos Estados Unidos, que retoma, nos termos da pós-Guerra Fria, a cruzada conservadora iniciada por Reagan
em 1966. “A velha turma de Bush, a continuação de Reagan, volta a Washington”,
escreveu o jornal The Washington Post a
respeito de um primeiro escalão de vete-
ranos que haviam se refugiado nas
corporações privadas. São quatro ex-altos executivos nesse escalão. Um governo de milionários, a começar pelo presidente, com a obsessão de abrir mercados
do jeito que for necessário. A “opção latino-americana” ganha espaço.
Mas as tentações intervencionistas continuam vigentes. O velho Bush
recorreu seis vezes às operações militares
internacionais: no Golfo Pérsico, duas
vezes na Somália, Panamá, Libéria e Filipinas, onde aviões de guerra americanos ajudaram a espantar golpistas. Agora, a Latin American Newsletter, editada
em Londres, fala de “considerável” participação dos Estados Unidos no esforço de
“contenção” da guerra civil colombiana.
O Comando Sul dos Estados Unidos executa operações especiais na região amazônica, ao longo da fronteira do Equador e
do Peru com a Colômbia.
“A crise interna da Colômbia
ameaça a segurança nacional dos Estados Unidos”, disse Clinton em carta ao
presidente colombiano Andrés Pastrana.
Clinton fez parceria com Pastrana no
Plano Colômbia. Esse plano pretende
combinar medidas sociais de combate à
coca e esvaziamento da guerra civil com
medidas militares, batendo forte na
“narcoguerrilha”, expressão do jargão do
Pentágono que associa, de modo simplista, as guerrilhas de esquerda aos narcotraficantes. Fantasma de outro Vietnã, na
opinião de muitos analistas, inclusive
americanos. Bush já manifestou seu entusiasmo pelo Plano Colômbia e comenta-se que não vai com a cara de Hugo
Chávez, o presidente da Venezuela.
Demétrio Magnoli
Editor de Mundo
“NÓS” E “ELES”
A ideologia do sanitarismo social, que identifica a periferia ao crime, nas páginas de Veja
O
discurso autoritário fecha-se
sobre si mesmo. Não bombardeia os fatos
com interrogações, mas torce-os e os amolda a conclusões pré-fabricadas. Não elabora
argumentos, produz slogans. Não registra
imagens, mas adora montagens. Ignora a realidade, substituindo-a pelo preconceito.
A revista Veja habituou-se a inserir,
entre as suas abundantes páginas de variedades e fofocas, uma ou outra matéria supostamente séria, de análise econômica e
social. Essas matérias são modelos do discurso autoritário.
A capa da edição de 24 de janeiro
traz a manchete O cerco da periferia, acompanhada por uma chamada que sintetiza a
tese da matéria principal: “Os bairros de classe média estão sendo espremidos por um
cinturão de pobreza e criminalidade que cresce seis vezes mais que a região central das
metrópoles brasileiras”. A tese aparece “confirmada” por uma montagem fotográfica na
qual uma vasta mancha de urbanização “periférica”, em cinza, comprime um “centro”
colorido formado por edifícios célebres de
São Paulo e bairros residenciais arborizados.
A matéria, assinada por Alexandre
Secco e Larissa Squeff, apresenta-se como
análise rigorosa da metropolização no Brasil. Está recheada por estatísticas. Cita estudos acadêmicos e reproduz opiniões de urbanistas. Apresenta equívocos flagrantes,
chegando a confundir região metropolitana
com os municípios das capitais estaduais.
Mas, sobretudo, é uma construção ideológica sobre a urbanização brasileira, estruturada
como alicerce para o preconceito social.
O edifício do preconceito ergue-se
sobre quatro pilares:
1. A abordagem histórica errada do
processo de metropolização
Para passar a idéia de uma “explosão da
periferia”, a matéria veicula a noção de
que a expansão periférica das aglomerações metropolitanas acelerou-se nas últimas décadas. A verdade é outra. As metrópoles (e suas periferias) expandiramse em ritmo mais acelerado nas décadas
do pós-guerra. Depois, com a redução
do crescimento vegetativo e do êxodo
rural, desacelerou-se o ritmo de incremento demográfico das metrópoles.
Atualmente, a configuração de cinturões
urbanos periféricos caracteriza, principalmente, as cidades médias (veja a matéria à pág. 7).
2. A interpretação equivocada das
estatísticas sobre a urbanização
Para enfatizar o caráter dramático da
pobreza urbana no Brasil, a matéria
compara a taxa de urbanização brasileira, superior a 80%, com as taxas da
Índia (28%) e da China (31%). Mas
só se pode comparar taxas obtidas a
partir de critérios censitários homogêneos. O IBGE computa como população urbana todos os residentes nas áreas
das sedes de municípios, distritos ou povoados, sem levar em conta as densidades demográficas ou os totais populacionais. Assim, residentes em povoados
com menos de mil habitantes, no Sertão nordestino ou na Amazônia, aparecem sob a inflacionada rubrica “população urbana”. Na China e na Índia
utilizam-se critérios diferentes. Além
disso, mesmo ignorando a diferença de
critérios, os “escassos” 31% de chineses que residem no meio urbano representam quase 500 milhões de habitantes: mais ou menos o triplo de toda a
população brasileira!
3. A manipulação inescrupulosa das
estatísticas sociais e econômicas
Para identificar a “periferia” às idéias de
pobreza e criminalidade, a matéria oferece uma tabela de indicadores de renda, emprego, consumo, alfabetização,
saneamento e segurança do “centro” e
da “periferia” de oito regiões metropolitanas brasileiras. As médias do “centro” de São Paulo são misturadas às dos
“centros” de Belo Horizonte, Curitiba,
Recife e outras cidades para gerar uma
“supermédia”. As médias da “periferia”
de São Paulo são misturadas às das “periferias” de Belo Horizonte, Curitiba,
Recife e outras cidades para gerar outra
“supermédia”. Assim, “aprendemos” que
70% das casas do “centro” estão ligadas
ao sistema de esgoto, contra apenas 30%
das casas da “periferia”. O resultado impressiona os incautos, mas a comparação é absurda. Pode-se comparar indicadores de uma cidade com os de outra. Pode-se comparar indicadores de
diversas regiões da mesma cidade. Mas
não se pode criar, por uma operação
aritmética, um “centro médio” e uma
“periferia média”. A ausência de significado da travessura aritmética de Veja fica
evidente quando se sabe, por exemplo,
que apenas 33% dos domicílios da região metropolitana de Recife estão ligadas ao sistema de esgoto, contra 87%
dos domicílios da região metropolitana
de Belo Horizonte. Na “lógica” de Veja,
Recife inteira é “periferia” e Belo Horizonte inteira é “centro”!
4. A incompreensão dos mecanismos
concretos de segregação urbana
Para isolar a “periferia” da cidade como
um todo, a matéria imagina que a pobreza urbana se apresenta em “estágios”
e que a periferia é o mais baixo degrau
dessa “escada”. A favela seria um “estágio” menos dramático pois – “ensinam”
os autores – algumas oferecem até “locadoras de vídeo, bancos e academias de
ginástica”. Mas, fora da redoma de manipulações estatísticas de Veja, os mecanismos de segregação urbana são muito
mais complexos. Os pobres inserem-se no
mundo urbano por diferentes vias, que se
abrem ou se fecham ao sabor dos ciclos
econômicos, do mercado imobiliário de
terrenos e aluguéis, dos preços dos materiais de construção, da oferta de empregos nas diferentes regiões da cidade, da
implantação de serviços públicos de
transporte, iluminação, água e esgoto
(veja a matéria à pág. 8). Nas metrópoles brasileiras reais, há periferias “centrais” e condomínios de luxo “periféricos”. Há cortiços e moradores de rua. Há
favelas miseráveis, erguidas sobre enseadas ou igarapés contaminados. Em todos esses lugares existem estabelecimentos comerciais, legalizados ou clandestinos (ou uma mistura de ambos).
A matéria inventa uma “periferia”
destituída de tempo e lugar. A “periferia”
de Veja não existe em nenhuma cidade brasileira. É um artefato ideológico descrito
pela manipulação de médias aritméticas e
ilustrado por montagens fotográficas. O
discurso autoritário tem uma preferência
obsessiva por imagens simples, infantis,
poderosas. A “periferia” inventada pela revista é um largo anel, em permanente expansão, que rodeia e asfixia o diminuto
núcleo central. Dois círculos concêntricos
desenhados no papel.
Na matéria, a criminalidade não
está associada a nenhum nexo social específico. Aparece como propriedade inerente
à periferia, junto com o cinza da paisagem,
a contaminação das águas e a doença das
pessoas. Veja retoma e atualiza a ideologia
do sanitarismo social do século XIX, que
identificava a pobreza à doença. O nome
do elegante bairro de Higienópolis, em São
Paulo, surgiu dessa ideologia: suas mansões
arborizadas, erguidas em área elevada, segregavam os banqueiros e cafeicultores dos
mosquitos e dos pobres que “infestavam”
as várzeas baixas da cidade.
O sanitarismo social é um programa de ação que vem sendo aplicado há anos
em diversas metrópoles brasileiras. Esse programa manifesta-se nas chacinas intermitentes em favelas e bairros periféricos, nas
rondas e batidas policiais que humilham os
pobres, na multiplicação das empresas privadas de segurança patrimonial, na indústria de blindagem de veículos, na proliferação de condomínios fechados e murados.
O programa do sanitarismo social
jamais reduziu a violência ou ampliou a segurança nas cidades. Mas vende revista.
Novas tendências da urbanização brasileira
U
m mito corrente diz que assistimos, atualmente, a uma “explosão da periferia”
nas metrópoles brasileiras. Mas a “explosão da periferia” já ocorreu, há tempo. A urbanista
Yvonne Mautner explica:
Na década de 1920, mais precisamente em 1927, dois anos após a instalação da
primeira montadora de automóveis no país (a General Motors), é negada a aprovação do Plano
Integrado de Transportes da Light. O “Polvo” perde, portanto, para os grupos de interesse ligados ao transporte rodoviário: marco inicial da próxima passagem dos trilhos ao pneu, que iria
ser ao longo dos anos (...) um dos fatores a propiciar um intenso processo de periferização em
São Paulo.
(...) A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a extensão do assalariamento, o
acesso por ônibus à terra distante e barata da periferia, a industrialização dos materiais básicos
de construção, somados à crise do aluguel e às frágeis políticas habitacionais do Estado, tornaram o trinômio loteamento popular/casa própria/autoconstrução a forma predominante de
assentamento residencial da classe trabalhadora. (“A periferia como fronteira de expansão do
capital”, O processo de urbanização no Brasil, Edusp, 1999, p. 247-248).
As maiores taxas de crescimento demográfico das grandes cidades registraram-se
entre as décadas de 1940 e 1970. Desde 1980, ocorre desaceleração do crescimento populacional dos municípios das principais cidades, em todas as regiões (veja o Gráfico 1).
O processo brasileiro de
urbanização apoiou-se essencialmente no êxodo rural. Mas os Gráfico 1
mecanismos do êxodo rural
TAXAS DE CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO
EM ALGUMAS METRÓPOLES BRASILEIRAS
continuam escondidos sob uma
densa camada de mitos. Na matéria A explosão da periferia, Veja
confunde tudo ao afirmar que
“o campo entrou em colapso
por excesso de gente e falta de
oportunidades”. Jamais houve
“excesso de gente” no meio rural brasileiro, caracterizado por
densidades demográficas muito
FONTE: Censos, FIBGE.
baixas. Mesmo assim, formouse uma superpopulação relativa,
que não é um conceito demográfico, mas econômico. A modernização técnica da
agropecuária, associada à persistência da concentração fundiária, gerou excedentes de força de trabalho, que foram repelidos para as cidades.
O campo não “entrou em colapso”, pois produz alimentos para as cidades, matériasprimas para a indústria, commodities para a exportação e lucros para os proprietários de
terras, empresários rurais, além de consumir máquinas, insumos e financiamentos bancários. O que “entrou em colapso” foram os fundamentos econômicos da sobrevivência e
reprodução dos agricultores familiares e trabalhadores rurais.
A incapacidade de compreender os mecanismos do êxodo rural conduz a outro mito,
que aparece na matéria de Veja: a idéia de que os migrantes do campo “se mudaram em busca
dos confortos e das oportunidades que imaginavam desfrutar nas grandes cidades”, como se
tivessem errado, acreditando numa miragem. Mas os migrantes acertaram. Diante das dramáticas opções existentes, tomaram a decisão econômica racional.
Utilizando a renda familiar per capita e os preços regionais dos bens de consumo
essenciais, traçou-se uma linha nacional de pobreza. Em 1997, 34% dos brasileiros encontravam-se abaixo da linha de pobreza. Mas essa é uma média nacional. As diferenças entre o
meio urbano e o rural são significativas: cerca de 42% da população rural estava abaixo dessa
linha, contra 30% da população urbana. A taxa de analfabetismo é de 10% no meio urbano,
contra 30% no meio rural. O analfabetismo funcional atinge cerca de 24% da população
urbana, contra 56% da população rural. A taxa de escolarização dos jovens de 18 e 19 anos
alcança 52% no meio urbano, mas apenas 37% no meio rural. As periferias urbanas configuraram-se pelo afluxo de trabalhadores expulsos do campo que buscavam assegurar a sobrevivência familiar e um futuro melhor para seus filhos.
O processo de urbanização brasileiro foi essencialmente concentrador. Em 1950, o
país tinha três cidades de grande porte: apenas o Rio de Janeiro, São Paulo e Recife abrigavam mais de 500 mil habitantes. Em 1998, nada menos que 26 aglomerações urbanas já
tinham ultrapassado a marca de meio milhão de habitantes. Em 1950, existiam nove
cidades de porte médio, no intervalo de 100 mil a 500 mil habitantes; em 1998, já eram
mais de 150 (veja o Gráfico 2).
Há algum tempo, registra-se atenuação do crescimento das maiores cidades. O
crescimento vegetativo diminuiu, o ritmo das migrações interregionais reduziu-se sensivelmente e o padrão do êxodo rural modificou-se. O poder de atração das cidades médias,
que desempenham funções de centros submetropolitanos ou capitais regionais, tornou-se
maior que o das metrópoles. Essa nova tendência continua a gerar metropolização: as
cidades médias de hoje serão metrópoles no futuro próximo.
Contudo, a
tendência de expansão acelerada das cidades médias iluGráfico 2
mina um novo desafio, que
CIDADES MAIS POPULOSAS
está ligado ao planejamento
regional. Em diversas áreas
do país, configuram-se “corredores” de urbanização nos
quais intensificam-se os fenômenos de conurbação e
aprofundam-se as interações
entre as cidades.
No Estado de São
Paulo, sobre os eixos das
FONTE: Censos, FIBGE.
rodovias Bandeirantes,
Anhangüera e Washington
Luiz delineou-se um “corredor” que irradia-se da metrópole paulista para Jundiaí, Campinas, Americana, Limeira, Rio Claro, São Carlos, Araraquara e Ribeirão Preto. Outros
“corredores”, menos caracterizados, começam a se delinear em Minas Gerais, irradiandose de Belo Horizonte para o Vale do Aço; no norte do Paraná, entre Londrina e Maringá;
no Rio Grande do Sul, entre Porto Alegre e Caxias do Sul; em Santa Catarina, no Vale do
Itajaí.
Os fenômenos regionais de conurbação restringiam-se, antes, às nove regiões metropolitanas originais. A configuração de “corredores” de urbanização alicerçados sobre
cidades médias dinamiza processos de valorização imobiliária, ligados à concorrência entre diferentes usos do solo. Os usos industriais, residenciais e de lazer competem entre si e
tendem a expulsar os usos agrícolas tradicionais. Os mananciais que fornecem água para a
população das dezenas de cidades sofrem os efeitos das descargas industriais e da poluição
gerada por novos loteamentos. Os eixos regionais de transportes são incorporados às manchas urbanas, comportando-se como vias de tráfego local.
As prefeituras, isoladamente, não têm jurisdição para intervir com eficácia sobre
problemas que ultrapassam os limites políticos municipais. A “urbanização total” solicita
um esforço extraordinário de planejamento regional e gestão urbana integrada.
Vozes da periferia
O poeta alemão Hans Magnus Enzesberger criou o conceito de “guerra civil urbana”. Uma guerra não-declarada, presente nas grandes cidades do planeta, com maior ou
menor grau de violência. Gerada pelo aumento das desigualdades sociais, do desemprego e
da exclusão social, essa guerra também se alimentaria do medo e do preconceito. Os muros
altos, as grades e guaritas que separam os condomínios de luxo de seus vizinhos mais pobres
não seriam, como se costuma pensar, uma conseqüência dessa “guerra civil”. Seriam, antes,
uma de suas causas. O “outro” passa a ser visto como inimigo, uma vez desfeitos os laços de
cidadania. A violência é então apresentada como um dos traços marcantes dos bairros mais
pobres, sem que as causas dessa violência sejam postas em questão.
Na luta contra essa “visão de fora”, que distorce e condena, artistas e escritores das
regiões mais pobres se empenham em narrar as complexidades do cotidiano da “periferia”, mostrando o quanto esse conceito é complexo. Livros como Cidade de Deus, de
Paulo Lins, e Capão Pecado, de Ferréz, apresentam a dura realidade de dois dos bairros
mais populosos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Apesar das diferenças, ambos mostram
o quanto o medo, as tragédias das drogas e da violência são conseqüências, e não causas,
dos maiores problemas vividos por essas comunidades.
Leia com atenção os dois trechos abaixo. O primeiro foi composto por Gilberto
Gil, em 1983, na música Punk da periferia; o segundo trecho faz parte do rap Periferia é
periferia, do grupo paulista Racionais MCs. Relacione os textos e escreva uma redação
discutindo os pontos de vista e as idéias contidas nestas duas músicas:
“Das feridas que a pobreza cria / Sou o pus / Sou o que de resto restaria / Aos
urubus / Pus por isso mesmo este blusão carniça / Fiz no rosto este make-up pó caliça /
Quis trazer nossa desgraça à luz / Transo lixo, curto porcaria / Tenho dó / Da esperança vã
da minha tia / Da vovó / Esgotados os poderes da ciência / Esgotada toda a nossa paciência / Eis que esta cidade é um esgoto só / Sou o punk da periferia / Sou da Freguesia do Ó
/ Ó, aqui pra vocês! / Sou da Freguesia”.
“O chefe da casa trabalha e nunca está / Ninguém vê sair, ninguém escuta chegar / O
trabalho ocupa todo o seu tempo / Hora extra é necessária pro alimento / Uns reais a mais no
salário / esmola do patrão / Cuzão milionário! / Ser escravo do dinheiro é isso, fulano! / 360
dias por ano sem plano / Se a escravidão acabar pra você / Vai viver de quem? / Vai viver de
quê? / O sistema manipula sem ninguém saber. / A lavagem cerebral te fez esquecer / que
andar com as próprias pernas não é difícil / Mais fácil se entregar / se omitir / Nas ruas áridas
da selva. / Eu já vi lágrimas demais, / o bastante para um filme de guerra !”
D
urante as décadas de 1950 e 1960, a população
de São Paulo cresceu, em média, 5% ao ano. Centenas
de novos habitantes chegavam diariamente à cidade, em
sua maioria vindos do Nordeste e de Minas Gerais. Além
disso, nessa época, ainda era comum a existência de famílias numerosas, principalmente entre os mais pobres.
Como os novos habitantes não tinham acesso aos
imóveis localizados nas áreas centrais, dotadas de infraestrutura, a periferia se tornou o destino da maioria dos
pobres e o paraíso dos especuladores imobiliários. Abrir
loteamentos clandestinos, ou seja, em desacordo com
as normas municipais de uso do solo, passou a ser um
verdadeiro negócio da China. Quanto mais distantes,
melhor: o truque era deixar espaços vazios entre os novos loteamentos e a área já urbanizada. Dessa forma,
quando o poder público asfaltasse as vias de acesso e
expandisse a rede de água, luz, esgoto e transporte, os
terrenos vazios seriam valorizados.
Mas a chegada das infra-estruturas e serviços públicos, ao promover valorização imobiliária, removia os
pobres para mais longe, substituindo-os por populações
com poder aquisitivo um pouco maior. Assim, periferias
tornavam-se “centro”, enquanto surgiam novas periferias.
Nos loteamentos periféricos, que se esparramavam por todos os lados da cidade, o padrão de moradia
era a autoconstrução. As famílias erguiam as suas casas
ao poucos, cômodo a cômodo, à noite e nos finais de
semana. Mesmo se o loteamento era legalizado, as habitações permaneciam clandestinas, devido aos custos
proibitivos de aprovação da planta. De acordo com estimativas precárias da Secretaria Municipal de Habitação, existem pelo menos 730 mil lotes ilegais na cidade, que ocupam 17% do território paulistano e abrigam mais de três milhões de pessoas.
Na década de 1980, a segregação espacial assumiu novos contornos. Para uma parcela cada vez mais
significativa dos pobres, incapacitada de adquirir terrenos e construir suas casas mesmo nas periferias distantes, as favelas se transformaram em principal opção de
moradia. No município de São Paulo, a população
favelada não passava de 1% em 1973, elevou-se a quase
8% em 1987 e chegou a 20% em 1994, data do último
levantamento. Isso significa que há pelos menos dois
milhões de pessoas vivendo em favelas na capital
paulista, a maior parte delas em áreas desprezadas pelo
mercado imobiliário formal por apresentarem riscos
CLANDESTINA
Mecanismos da segregação
urbana reforçam padrão
centro-periferia no novo
ambiente de estabilização
demográfica
ambientais. É o caso, por exemplo, das margens de
córregos, sujeitas a enchentes, e das encostas com declives acentuados, sob risco de desmoronamentos.
Considerados em conjunto, os loteamentos clandestinos, as favelas e os cortiços formam a “cidade ilegal”: aquela que não atende ao aparato jurídico de normas sobre a ocupação do espaço urbano. A Secretaria
de Habitação estima que pelo menos a metade da população da cidade de São Paulo – 5,5 milhões de pessoas –
mora em habitações irregulares.
Grandes mudanças
A dinâmica demográfica da cidade também conheceu mudanças importantes nas últimas décadas. De
acordo com os dados preliminares do censo 2000, o incremento populacional da cidade caiu para menos de
1% ao ano, o que significa que São Paulo está parando
de crescer. Em grande parte, isso pode ser atribuído ao
declínio do crescimento vegetativo e do movimento migratório, ligado à forte redução do emprego industrial e
à saturação do mercado de trabalho no município.
Entretanto, enquanto a “cidade legal” perde população, a “cidade ilegal” continua em expansão. Todos os
distritos das regiões centrais experimentaram retração demográfica entre 1991 e 1996. Por outro lado, os distritos
periféricos do Sul – nas áreas de mananciais das represas
Billings e Guarapiranga – e do extremo Norte, na área de
preservação da Serra da Cantareira, tiveram forte incremento demográfico (veja o Mapa 1). Os distritos que mais
ganharam população no período são, em geral, os que
apresentam os piores indicadores sociais (veja o Mapa 2).
O caso do Grajaú é emblemático: a população
do distrito, um dos mais pobres do município, cresceu
mais de 40% em apenas cinco anos. A expansão
desordenada dos loteamentos irregulares no Grajaú agrava os problemas de contaminação da represa Billings,
essencial para o abastecimento hídrico do conjunto da
região metropolitana. Depois do Grajaú, Cidade
Regina Araújo
Especial para Mundo
Tiradentes, Jardim Ângela e Iguatemi, também situados nas extremidades periféricas do município, foram
os distritos que mais ganharam população.
A dinâmica recente de crescimento de São
Paulo reafirma o antigo padrão centro-periferia de exclusão social. A população de alta renda está concentrada nos distritos centrais do município. Por outro lado,
o crescimento desordenado dos distritos mais pobres
ameaça fortemente as áreas de proteção ambiental, situados nos extremo sul e norte, além de gerar uma crise
sem precedentes no sistema de transportes coletivos,
aumentando as distâncias a serem percorridas pela população trabalhadora.
Entretanto, esse padrão é apenas um modelo
genérico, ao qual escapam muitos dos mecanismos contemporâneos de segregação. O movimento das edge
cities, iniciado pela pioneira Alphaville na década de
1970, embaralhou as cartas da segregação espacial na
metrópole. Muitas vezes situados fora dos limites municipais, os condomínios de luxo guardados por forte
aparato de segurança atraíram parcelas da população
de alta renda. Atualmente, os “suburbanos” ricos pressionam o poder público para melhorar a qualidade e
resolver os problemas de congestionamentos das estradas que lhes dão acesso às áreas centrais.
Além disso, nem sempre existe uma distância
física separando os “incluídos” dos “excluídos”. Distritos como Morumbi e Vila Andrade, por exemplo, conheceram uma fantástica proliferação de imóveis de alto
luxo nos últimos decênios. Entretanto, na vizinhança
dos novos condomínios, situa-se a favela de Paraisópolis,
uma das famosas da cidade, com mais de cinco mil barracos. Nesses casos, as fronteiras da segregação delimitam fisicamente micro-espaços, circundados por muros, grades, guaritas e circuitos fechados de televisão.
Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo e
autora de livros didáticos voltados para o Ensino
Fundamental e Médio.
Mapa 1
Mapa 2
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO:
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO:
diferença do número
de habitantes entre 1991 e 1996
chefes de família com 15 anos
ou mais de estudo (%)
1996
DIMINUIÇÃO POPULACIONAL
em até 5 mil pessoas
de 5 mil a 10 mil pessoas
mais de 10 mil pessoas
AUMENTO POPULACIONAL
menos de 12%
de 12 a 24%
de 0 a 30 mil pessoas
de 24 a 48%
de 30 a 60 mil pessoas
mais de 48%
de 60 a 90 mil pessoas
mais de 90 mil pessoas
FONTE: Mapa da exclusão/inclusão social, 2000
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A SÃO PAULO
FONTE: Mapa da exclusão/inclusão social, 2000
MARÇO
2001
8
9
AQUECIMENTO GLOBAL É OBRA
HUMANA, AFIRMA O IPCC
fósseis na produção e consumo de energia (veja o Gráfico 1). Isso tem tudo a
ver com o nível de industrialização e o
modelo energético adotado pelos diversos países.
Os países desenvolvidos são os
principais responsáveis pelo aumento do
teor de “gases de estufa” na atmosfera.
As nações que primeiro se industrializaram, lançaram à atmosfera grandes quantidades de “gases de estufa”, muito antes
que se conhecessem as suas conseqüências. Potências como os Estados Unidos,
Japão e Alemanha são atualmente responsáveis por um terço das emissões
mundiais. Se somarmos as emissões da
Rússia e de países muito populosos,
como China e Índia, teremos cerca de
60% das emissões anuais (veja o Gráfico
2). Os países industrializados, apesar de
abrigarem apenas 20% da população
mundial, utilizam cerca de 80% dos recursos disponíveis no planeta.
A Convenção do Clima atribui
aos países ricos a maior parcela de responsabilidade na luta contra as mudan-
ças do clima e também a maior parte da
conta a ser paga. Por isso, recomendava
que esses países tomassem a iniciativa,
reduzindo suas emissões de “gases de estufa”. Na mesma direção, a Convenção
reconheceu que as nações mais pobres
têm direito ao desenvolvimento econômico e são mais vulneráveis aos efeitos
das mudanças climáticas.
Em poucos anos, ficou claro que
o frágil compromisso em se tentar congelar as emissões não seria cumprido pela
maior parte dos países desenvolvidos,
especialmente os Estados Unidos. Além
disso, ocorria significativo aumento das
emissões por parte de países subdesenvolvidos, em particular a China. Esse
pano de fundo condicionou as discussões da Conferência das Partes, em Kioto,
no Japão, em 1997.
O Protocolo de Kioto apresentou
uma nova visão sobre as políticas globais
para o meio ambiente. Fixou-se a meta
de redução de 5% sobre os níveis de
emissão de 1990, a ser atingida entre
2008 e 2012. Criou-se também um sis-
CID
Gráfico 1
Gráfico 2
ATIVIDADES GERADORAS DE GASES DE ESTUFA
EMISSÕES ANUAIS DE DIÓXIDO DE CARBONO
(% DO TOTAL MUNDIAL)
Estados Unidos
8%
3%
Produção e consumo
de energia
24,1%
China
Emissão de CFC
Rússia
14%
41,1%
Agricultura
57%
Japão
14,1%
Índia
Desmatamento
17%
3,7%
8,0%
4,0% 5,0%
Indústria
Alemanha
Outros
FONTE: Greenpeace, Aquecimento global.
FONTE: World Resources Institute, World Resources, 1998-1999.
Gráfico 3
Gráfico 4
PREVISÃO DE ELEVAÇÃO DO NÍVEL DO MAR
PREVISÃO DE ELEVAÇÃO DAS TEMPERATURAS GLOBAIS
6
5
PREVISÃO INICIAL
PREVISÃO RECENTE (HAIA, 2000)
4
3
2
1
0
ANO
(cm)
( 0 C)
2000
2020
2040
2060
100
AUMENTO DA TEMPERATURA GLOBAL (cm)
O
último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em
Haia, na Holanda, em novembro de
2000, não dissipou todas as controvérsias científicas mas fez a balança
inclinar-se com força para um dos lados. As evidências indicam que o
aquecimento global é mais intenso
que o imaginado e que deriva, essencialmente, das atividades humanas.
O IPCC foi criado em 1988,
reunindo cientistas de diversos países, para produzir pesquisas que fundamentassem as discussões previstas
para a Conferência sobre o Meio
Ambiente e o Desenvolvimento
(ECO-92), no Rio de Janeiro. Na
ECO-92, foi negociada e assinada a
Convenção/Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
Reconhecendo que mudanças no clima afetam todos os seres
humanos, os governos presentes na
ECO-92 passaram a ser Partes da
Convenção e se comprometeram a
elaborar uma estratégia global destinada a “proteger o sistema climático
para as atuais e futuras gerações”.
Contudo, apesar dessa disposição
genérica, desde logo emergiram dois
tipos de controvérsias.
A primeira, de caráter científico, centrava-se na discussão da intensidade e das causas do aquecimento global. Uma corrente científica
sustentava que o aquecimento global
seria resultante, fundamentalmente,
de causas naturais ligadas às oscilações climáticas que pontuam a história geológica do planeta. Outra
corrente, majoritária, atribuía o aquecimento global principalmente a causas antropogênicas.
A segunda controvérsia tinha
caráter político e refletia o choque de
interesses entre os diversos grupos de
países. Os Estados Unidos, gigantesco emissor de “gases de estufa”, por
exemplo, opunham-se à fixação de
limites rígidos para as emissões. Entre os europeus, por outro lado, predominava uma postura muito mais
favorável à fixação de tetos máximos
e a intervenções duras para reduzir as
emissões.
Durante a década de 1990
ocorreram cinco Conferências das
Partes. As controvérsias científicas e
políticas adquiriram clareza e intensidade. A contribuição das atividades
humanas para a emissão de “gases de
estufa”, especialmente o dióxido de
carbono, pode ser claramente definida. As atividades agropecuárias e os
desmatamentos geram quantidades
apreciáveis de “gases de estufa”, mas
cerca de 60% do total das emissões
decorrem da queima de combustíveis
AUMENTO DA TEMPERATURA GLOBAL ( 0C)
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MARÇO
2001
Nelson Bacic Olic
Da redação de Mundo
2080
2100
LIMITE SUPERIOR
LIMITE INFERIOR
80
60
40
20
0
ANO
2000
2020
FONTE: UNEP e WMD
2040
2060
2080
2100
tema de créditos de emissões entre
os países, que seriam válidas apenas
para os países desenvolvidos. Estes
teriam duas opções: investir na redução das emissões, por meio de duras
medidas econômicas, ou comprar
créditos de emissões de países que
emitissem “gases de estufa” em quantidades inferiores às fixadas pelas suas
cotas. Em outras palavras: seria possível pagar para poluir, dentro do teto
global máximo de emissões.
O Protocolo de Kioto ainda
não está em vigor, mas é o mais importante tratado internacional sobre
o aquecimento global. Dificilmente
as emissões serão reduzidas num futuro próximo. A maior parte dos observadores não acredita na meta de
redução de 5% sobre as emissões de
1990 e considera que será uma grande vitória se for possível apenas congelar os níveis atuais de emissões.
Amparada no relatório do
IPCC, a Conferência de Haia ressaltou a urgência cada vez maior de se
aplicar o Protocolo de Kioto. O relatório golpeia as esperanças de um
aquecimento global quase insignificante. E comprova, com maior base
científica, que a contribuição
antropogênica para o aquecimento
global é decisiva.
As evidências científicas indicam que houve um aumento de
0,5ºC na temperatura média da superfície da Terra desde 1975. As médias térmicas registradas no último
quarto de século parecem ser as maiores do milênio. Os anos de 1990, 1991,
1995, 1997 e 1998 figuram entre os
mais quentes desde que se fazem registros térmicos sistemáticos.
Antes de Haia, as previsões
eram de um aquecimento entre 1ºC
e 3,5ºC ao longo do século XXI. Mas
as pesquisas recentes, cada vez mais
sofisticadas, têm apontado que a temperatura média da superfície poderá
subir entre 1,4ºC e 5,8ºC (veja o Gráfico 3). As mesmas pesquisas são um
duro golpe para os que “absolvem” as
sociedades humanas no processo em
curso de aquecimento global.
As previsões mais pessimistas
sinalizam inundações catastróficas, secas terríveis, ciclones e furacões devastadores, derretimento de geleiras e a
conseqüente elevação dos níveis médios dos oceanos entre 0,5 e 1 metro
(veja o Gráfico 4). Nesse último caso,
a inundação de áreas costeiras, onde
vive a maior parte da população mundial, teria conseqüências trágicas.
Grandes cidades – como Nova York,
Londres ou Rio de Janeiro – ficariam
literalmente submersas e muitos pequenos países insulares simplesmente
desapareceriam do mapa.
SELVA DE PEDRA
A urbanização modifica e recria a Literatura brasileira
O
olhar sobre a cidade que se moderniza,
criando e recriando novas possibilidades de relações entre os homens, está inserido em uma longa tradição na
história da literatura. A multidão que se aglomera nas
cidades, fruto das necessidades criadas pela Revolução
Industrial, assim como o novo traçado urbano que a velocidade das mercadorias e pessoas torna urgente, produzem uma transformação radical na paisagem das grandes cidades européias do século XIX. A cidade burguesa,
local da produção e da circulação industrial, concentradora de mão-de-obra, traz a marca do modo de produção capitalista, que acaba moldando a organização da
vida social. Esta nova paisagem vai estar presente em grande parte da literatura “moderna”.
No Brasil, o predomínio acentuado da vida
rural (e o poder conferido aos donos de terras), a utilização de mão-de-obra escrava e a presença de homens
livres na ordem escravocrata, estão na origem de traços
definidores da vida e da cultura que persistem até o
século XX. Desde a segunda metade do século XIX, a
intersecção entre esta velha ordem aristocrática e uma
nova ordem, fundada na urbanização e na industrialização, encontra ecos na nossa melhor tradição de “leitores da cidade”.
Nas primeiras décadas do século XX, quando
São Paulo e suas indústrias começam a se afirmar
como centro dinâmico da produção e da intelectualidade do país, Mário de Andrade, assim como
Oswald de Andrade, Patrícia Galvão e Antonio de
Alcântara Machado, para ficar nos mais importantes, registraram as transformações urbanísticas e sociais que ocorriam na cidade.
Não é por acaso que a primeira geração do
Modernismo é principalmente paulistana. Mário de
Andrade argumenta que só em São Paulo, “espiritualmente mais moderna que o Rio de Janeiro”, fruto do
café e da industrialização que lhe conferem um “contato técnico e espiritual com a atualidade do mundo”, o
Movimento Modernista poderia surgir.
Nesse sentido, Mário se aproxima do escritor
francês Baudelaire, o primeiro poeta a incorporar a
multidão das novas cidades como tema da poesia lírica.
Mas São Paulo não é Paris, e Mário sabe disso. Mesmo
utilizando elementos da lírica moderna, Mário pontua
o descompasso entre os signos de brasilidade e a cidade
de São Paulo, por exemplo no poema “Anhangabaú”,
no qual ele cita Manuel Bandeira:
Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris
Onde as águas, onde as mágoas dos teus sapos?
Em “Inspiração”, poema que abre o livro
Paulicéia Desvairada, de 1922, este descompasso torna-se ainda mais evidente:
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.
A paisagem urbana também revela a desigualdade social e a dominação. Nos versos de Paulicéia
Desvairada estão presentes os sinais da espacialização
desta desigualdade. O centro da cidade, sede do capital comercial e bancário, é versejado no poema “A caçada” como um “formigueiro onde todos se mordem
e devoram...”. O espaço do burguês/aristocrata se dis-
Arlenice Almeida da Silva *
© Coleção particular
Regina Araújo *
Retrato de Oswald de Andrade,
1922, de Tarsila do Amaral.
tingue do espaço do operário. A literatura, lendo a
cidade, ao mesmo tempo documenta e critica as contradições da vida urbana.
No poema “Colloque Sentimental”, o poeta
quer revelar o espaço do trabalho para os aristocratas
do elegante bairro paulistano de Higienópolis, chamando um de seus ricos moradores para conhecer os bairros onde habitam operários e imigrantes:
— Cavaleiro ... Sou Conde! – Perdão.
— Sabe que existe um Brás, um Bom Retiro?
— Apre! Respiro... Pensei que era pedido.
Só conheço Paris.
— Vem comigo então.
Esqueça um pouco os braços da vizinha...
No registro do espaço da aristocracia industrial
e cafeeira aparecem as casas “nobres de estilo” e as “mansões”, os “perfumes” e os “exércitos de casacas eruditamente bem talhadas”. No espaço do trabalho, estão “a
rua toda nua” e “as casas sem luzes”.
O livro Paulicéia Desvairada revela uma cidade
particular, São Paulo, com suas tradições próprias e protagonistas particulares. Mas revela também uma cidade universal, na qual estão presentes as cenas
arquetípicas da metrópole moderna. A multidão que
dissolve diferenças individuais, tornando igual os desiguais, é a personagem-síntese desta cidade universal,
como podemos ler no poema “Os cortejos”, descrição
da nova “selva de pedra”:
Estes homens de São Paulo,
todos iguais e desiguais
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos, uns macacos.
Os versos de Paulicéia Desvairada traduzem esta
cidade em mutação, cujo centro pulsava pelas cotações
do café, mas já não comportava o tráfego intenso dos
automóveis e bondes da cidade que se industrializava.
Traduzem ainda reminiscências orgulhosas da cidade
dos bandeirantes e dos tropeiros:
São Paulo pela noite.
Meu espírito alerta
Baila em festa a metrópole
Em 1945, Mário de Andrade publica um novo
livro de poemas sobre a cidade, intitulada Lira
Paulistana. Em carta a Alvaro Lins, escrita um ano antes, o autor define o trabalho ainda em andamento como
“uma série de poesiazinhas, umas quinze, curtas, que
não sei como chamo: 'Poemas paulistanos', 'Cuíca
paulistana' ou 'Lira Paulistana', tem que ser um nome
assim, porque são poemas de São Paulo. Ou melhor:
poemas urbanos”.
Mas o espaço de tempo transcorrido entre os
dois livros corresponde tanto a um amadurecimento
do poeta quanto a grandes transformações na vida da
cidade. A poética urbana de Mário de Andrade, que
sempre se caracterizou por um registro vivencial da paisagem, encontra nos dois livros uma forma diferente
de expressar o espanto diante da cidade moderna.
No livro de 1922, a representação da cidade utiliza elementos constitutivos da vivência urbana para tecer uma representação da metrópole: a velocidade e a
dispersão, e o exterior se transformam em simultaneidade, em superposição de imagens, em polifonia poética,
penetram intencionalmente na estrutura interna da poesia. Com esses elementos, o poeta recorta e reconstrói a
cidade real. Já os poemas de Lira Paulistana são resultado de um lirismo menos “desvairado”, mais contido, por
vezes encerrado em estruturas métricas medievais. Em
1945, a sociabilidade urbana moderna é evocada de uma
maneira quase conceitual, cristalinamente:
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A DESCOBERTA DA
MARÇO
2001
10
11
Retratando a cidade industrial
A “Semana de arte moderna” de 1922 reuniu, além de poetas como Mário e Oswald de Andrade,
músicos e pintores afinados com a nova mentalidade estética e determinados a representar artisticamente
as mudanças pelas quais passava a sociedade brasileira do início do século.
Nesse sentido, também a pintura modernista se esforçava em retratar a nova realidade da cidade
industrial. O quadro de Tarsila do Amaral, “Operários”, pintado em 1931, apresenta em um primeiro
plano várias faces de operários, das mais diversas raças e nacionalidades. Comum a todos é a feição triste e
sofrida, cansada pelo esforço do trabalho na linha de montagem, que parece estender seu domínio até
mesmo sobre o conjunto dos trabalhadores.
Ao fundo, no corte da diagonal que organiza espacialmente o quadro, o céu azul torna-se cinza
com a fumaça das chaminés. As janelas da indústria não são transparentes, não se vê o que ali dentro
acontece. A multidão de operários, literalmente amontoada, encara com olhos fixos o espectador, esperando que este consiga descobrir os “segredos” e as “surpresas” desses homens e mulheres.
Escolha um dos personagens do quadro e escreva, com a inspiração dos poemas de Mário de
Andrade citados no ensaio de Regina Araujo, a história de um desses rostos. Compartilhe com os colegas
sua redação, discutindo em classe o problema, eminentemente moderno, das relações entre os indivíduos
e a multidão.
Depois sobe um homem,
No banco sentou,
Companheiro vou.
O bonde está cheio,
De novo porém
Não sou mais ninguém.
O indivíduo na grande cidade, sozinho na
multidão. A multidão que aniquila o indivíduo. Todas
essa evocações emanam do poema, que só precisa de
um pequeno fragmento da cidade, o interior de um
bonde, como cenário.
Lira Paulistana resgata assim a trágica missão
baudelairiana de “atribuir uma alma à multidão”, de
buscar rastros de individualidade e de humanidade na
metrópole devoradora:
Este homem que vai sozinho
Por estas praças, por estas ruas,
Tem consigo um segredo enorme,
É um homem.
Esta mulher igual às outras
Por estas ruas, por estas praças,
Traz uma surpresa cruel,
É uma mulher.
A poesia é concebida como um momento de
redenção, capaz de recuperar a individualidade perdida
em meio à uniformidade que impera nas ruas da cidade moderna. O “segredo enorme” e a “cruel surpresa”
são revelados, nesse encontro improvável, pela força da
imaginação poética. Nas ruas e praças da cidade industrial, a “multidão solitária” caminha perdida, esperando que o olhar do poeta desvende seus segredos, antes
que estes sejam completamente devorados pelo turbilhão da selva de pedra.
Neste texto, Regina Araújo, retoma alguns temas de sua
dissertação de mestrado No meio da multidão. Um diálogo entre
Mário de Andrade e a Geografia (USP, 1992).
© Acervo Artístico Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo
Operários, 1933, de Tarsila do Amaral.
O bonde e a carroça
O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lesto carroceiro
Trepou na boléia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote.
São Paulo: 1900/10 - largo do Tesouro,
bonde Pary.
Após ler atentamente o poema, discuta com os colegas o sentido geral do texto, com o auxílio das
seguintes questões:
a) O poema é composto por elementos que opõem dois mundos distintos, o do “progresso” e o do
“atraso”. Identifique esses elementos e o modo como atuam na cena descrita pelo poema.
b) Quais são as características que aproximam e diferenciam o motorneiro do carroceiro? Qual a razão do
conflito entre eles? Como o conflito encontra uma solução?
c) Como pode ser interpretado o castigo ao “fugitivo atrelado”, que encerra o poema?
São Paulo: 1900/10 - foto da Rua São Bento
© G. Gaensly/SMC
A poesia modernista também estava atenta ao modo como a expansão da cidade moderna entrava em
confronto e incorporava os resquícios da cidade antiga. Oswald de Andrade, em um célebre poema, narra
os encontros e desencontros entre esses dois momentos da vida urbana, que disputavam as ruas apertadas
do centro de São Paulo:
© G. Gaensly/SMC
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MARÇO
2001
O bonde abre a viagem,
No bando, ninguém,
Estou só, estou sem.
ANO 4
■
Nº 1
■
OUTUBRO 2001
■
tecnologia ■ vocação ■ emprego ■
Que Fazer?
Essa é uma crise com “e” maiúsculo. “E”?
Cris e
É o “e” de e-mail, e-business, e-government...
Todas palavras, não por acaso, do inglês. Afinal foi nos EUA que decolou a revolução eletrônica
contemporânea nas tecnologias da informação, que
transformou o nerd de garagem Bill Gates no homem
mais rico do mundo.
Desde março do ano 2000, no entanto, o mundo “e” mergulhou numa crise financeira sem precedentes, depois de um período longo de valorização,
acumulação de riqueza e especulação comparadas
à corrida do ouro (que, aliás, também foi na Califórnia,
há mais de um século).
Empregos e carreiras no mundo “e”, as mais promissoras até poucos meses atrás, tornaram-se opções
de altíssimo risco. O desemprego nos setores ligados
diretamente à Internet tem crescido, junto com o ceticismo dos investidores diante de mirabolantes planos de
negócios criados por adolescentes e jovens. Todas as
revistas especializadas em tecnologia e economia virtual estampam em suas capas chamadas ainda coloridas, ainda criativas do design e na linguagem, mas agora tratando invariavelmente da crise no mundo “e”.
Fala-se que houve uma “bolha”. E que agora, com o desaquecimento da economia norte-americana, o horizonte
ficou muito mais incerto e as e-carreiras tendem a perder glamour.
Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Sim é verdade que a bolha estourou, o desemprego cresceu e uma certa
miltologia do jovem empreendedor se estilhaçou. Mas, cuidado: as mudanças provocadas pelas novas tecnologias
de informação e comunicação estão apenas começando. O mundo “e” ainda está em construção!
Seria um tremendo equívoco tomar a crise financeira (fenômeno que, de resto, afeta todos os mercados inevitavelmente, em economias capitalistas) como sinal de que o mundo “e”, os espaços virtuais, a sociedade da informação e a economia do conhecimento não passam de superficiais artifícios de marketing para vender computadores,
equipamentos, software e novos serviços de manutenção.
Como toda área sujeita a um ritmo intenso de mudança tecnológica, a Internet e as empresas voltadas ao
mundo das redes virtuais continuarão sujeitas a muita instabilidade, riscos de fracasso e novas formas de
empreendedorismo.
Enquanto isso, um número crescente de governos, a começar do norte-americano, investe na expansão das
redes e na ligação de todas as áreas da vida social e econômica por meio de tecnologias de informação.
A colonização desse mundo novo, nem sempre admireavel, está apenas começando.
✔ A educação e os vilões eletrônicos
✔ Desemprego na era virtual
Quanto mais se democratiza o acesso aos computadores, mais
força ganha um discurso que acusa a Internet de ser a grande
vilã dos nossos lares, escolas e empregos.
O trabalhador do futuro, seja qual for a sua especialidade
ou setor, precisa estar habituado à gestão do próprio conhecimento.
Pág. 2
Pág. 3
✔ Nova economia não é consenso
O surgimento de uma “nova economia”, com regras e mecanismos
distintos da economia industrial, ainda não é consenso entre os
especialistas. A preocupação com a desigualdade entre países e
classes no acesso às novas tecnologias também aumenta.
Pág. 2
✔ Por que vocie não olha pra mim?
pela Internet é possível ser e não ser ao mesmo tempo, revelandose e ocultando-se por trás de um certo anonimato.
Pág. 4
março 2000
março 2000
2
3
A educação e os vilões eletrônicos
ção” é apenas uma porta que se abriu para novos problemas.
A televisão não escapou a essa dura sina. Mesmo antes
dela, já se dizia que os telefones vieram sofisticar a arte do
trote. Uma certa depressão atinge agora educadores e escolas, depois da febre internética que durou bem uns cinco anos.
Sempre se disse que a Internet “encurtou distâncias”,
“otimizou a comunicação”, “democratizou a informação” (nada
diferente do que se dizia da TV).
Mas, quanto mais se democratizou também o acesso aos
computadores, mais força foi ganhando um certo discurso que antes via na TV uma fonte de deseducação dos jovens e agora acha
que a Internet é a grande vilã dos nossos lares, escolas e empregos.
Projetou-se na Internet e nos softwares educacionais enorme esperança. Acreditava-se que o mundo eletrônico resgataria nas escolas a motivação para estudar. Isso não aconteceu.
A mesma descrença em relação ao “mundo artificial criado pela TV” está se voltando agora ao “paraíso virtual” criado
pela web. Mas é possível extrair pelo menos seis lições desse
pessimismo que só consegue enxergar vilões eletrônicos.
1. O Meio NÃO é a mensagem
Primeira: é perigoso confundir “meio” e “mensagem”. Os meios
eletrônicos não são culpados pelas “mensagens” que veiculam.
Quem as escolheu foram seres humanos, e não os próprios meios. Sempre se disse que “o papel aceita tudo”. É verdade. Os meios eletrônicos também. Eles reproduzem um a um
todos os “vícios” e “virtudes” sociais. E não têm culpa de serem velozes. Foram concebidos assim pelo ser humano.
Funcionam como lente de aumento para problemas muito
mais antigos do que o mundo “e”. Problemas que estão nas
relações sociais, nas famílias, nas cabeças, no passado e no
presente. Obviamente, está em jogo nossas capacidades, individuais e coletivas de imaginar o futuro.
2. A Mensagem não é o meio
A segunda “lição” decorre da primeira: houve uma certa
hipertrofia, combinada com euforia e propaganda, da tecno-
logia em si (afinal, a indústria de computadores produz
obsolescência acelerada, para permitir a entrada de novos
produtos e assim gerar mais lucros).
Mas o que realmente é necessário para usar de modo
inteligente uma máquina? O governo brasileiro acaba de anunciar uma política de estímulo à produção de computadores por
cerca de R$ 500. A indústria, claro, chiou.
A mensagem, portanto, não é o meio – embora os meios
de fato progridam tecnicamente, é o conteúdo em suas dimensões sociais, políticas e estratégicas que deveria interessar mais
a todos os envolvidos na rede.
Quanto aos meios (tipos de rede, de máquinas e de software),
merecem uma discussão específica (preços, potência, acesso, etc.).
5. Só sei que nada sei
A quinta lição: os professores estão numa enrascada. Veja só.
Nada é mais dinâmico do que as mudanças no conhecimento. O
professor deveria, portanto, ser tão dinâmico quanto essas mudanças, para poder acompanhá-las e transmiti-las.
Só que a grande maioria deles hoje não estuda mais, pois
tem que trabalhar muito para compor um ganho mensal
satisfatório. Sem se atualizar, torna-se obsoleto. E tudo que é
obsoleto perde valor. Logo, continua sendo mal pago.
Como romper o círculo vicioso? Trocando o pneu com o
carro em movimento. Ou o professor se atualiza, ou terá seu
prazo de validade vencido.
6. Ensino à distância: veio para ficar
3. Alienação: quem, eu?
Sexta e última lição: o crescimento do ensino à distância,
via meios eletrônicos, é uma solução que já virou problema,
mas veio para ficar.
Se ele for interativo, recuperará a motivação do aluno e terá
eficácia. A experiência norte-americana dos mentores aponta para
essa possibilidade. Mas, se continuar majoritariamente pouco
interativo, não passará – na melhor da hipóteses – também de
uma usina de shows, talvez melhores do que os “shows” do professor com giz, lousa, diário de classe, apostila e saliva... Mas
sem “ambiência humana”, sem troca, os “cursos” tendem a não
passar de práticas de adestramento.
A terceira lição: eleger os meios eletrônicos de comunicação ora como heróis, ora como vilões da deseducação é uma
forma de escapismo, de busca da [bode expiatório”.
É acreditar num cômico cenário de ficção científica em
que máquinas criam braços, pernas e voz, e passam a dominar os homens. É fazer exatamente o que se critica nos maníacos por TV e Internet: “alienar-se” – isto é, ser dominado pela
ação do “outro”, colocar nas mãos de alguém ou de alguma
entidade a responsabilidade por tudo o que acontece conosco.
É voltar a ser criança, no mau sentido do termo.
4. Educação = Interação
Moral da história
A quarta: a aprendizagem, dentro ou fora da escola, exige
um esforço pessoal e uma dedicação especial, tanto do aluno
quanto do professor.
Seja na “aula-show” tradicional (aquela com piadinhas e muita
encenação do professor), seja na “aula-show” eletrônica, pouco ou
quase nada mudou em termos de interatividade: o aluno – na melhor
das hipóteses – pode até mesmo continuar babando com o que vê.
Numa ou noutra, no entanto, não foi chamado a participar, a criar, a propor, a simular, a criticar. E não existe aprendizagem sem interação e crítica. E tem mais: na hora em que o
show acaba, estudar continua sendo uma coisa muito chata.
O paradoxo do desemprego na era virtual
As manchetes de jornais e revistas consagraram a divisão entre “velha” e “nova” economia. Mas a distinção tende a desaparecer:
simplesmente a nova economia penetra todos os setores da velha economia.
Agricultura é coisa antiga? As plantações do futuro terão sementes e chips de controle.
Fabricar panos ou toalhas é coisa de tecelão, trabalhador manual? O setor têxtil modernizou-se e hoje exxibe os mais sofisticados
sistemas de design gráfico e automação industrial.
O zelador do prédio era uma pessoa que no máximo consertava um cano ou cuidava dos faxineiros? Os prédios inteligentes
exigem zeladores que mais parecem administradores de empresas ou prefeitos.
Enquanto isso, surgem novas profissões: coordenadores de projetos, gerentes de terceirização, programadores visuais multimídia,
administradores de comunidades virtuais, engenheiros de redes.
Essa economia que está surgindo, totalmente nova ou renovando o que já existe, funciona com base em redes de conhecimento.
Portanto transformar-se num elo de uma cadeia de transmissão de conhecimento é a melhor forma de ficar próximo a um bom emprego.
“Cadeia de transmissão”: não basta já ter algum diploma pendurado na parede. Há quem diga que os diplomas deveriam ser dados
com prazo de validade, como leite e outros produtos perecíveis. Para competir no mercado de trabalho, não basta ter uma competência,
é preciso ser competitivo, ou seja, estar disposto a reformular e atualizar continuamente conhecimentos, habilidades e atitudes.
O trabalhador do futuro, seja qual for a sua especialidade ou setor, precisa estar habituado à gestão do próprio conhecimento. E
desde os primódios da humanidade é evidente que sabedoria e conhecimento só se atualizam quando proliferam as relações entre
pessoas que ensinam, debatem, experimentam, pesquisam e dialogam.
O paradoxo dramático da nossa época, tão exigente em competição e competências, é que nem as escolas estão preparadas para esse
novo sistema nem as empresas conseguem resolver suas carências de mão de obra especializada. Enquanto isso, o desemprego aumenta.
(Trecho do livro: “As profissões do futuro”, de Gilson Schwartz, Publifolha, 2000).
A tarefa que vai para casa nesse início de século continua
sendo aquela que é mais antiga do que a própria escola: conhecer
a si mesmo e fazer disso uma experiência coletiva.
O surgimento de uma “nova economia”, com regras e mecanismos distintos da economia industrial, ainda não é consenso entre
os especialistas. A preocupação com a desigualdade entre países e
classes no acesso às novas tecnologias também aumenta.
A cidade de Genebra tem mais largura de banda disponível
para seus cidadãos que toda a América Latina. É baixa a densidade intra-regional da Internet e das telecomunicações na América
Latina. No que se refere ao tráfego telefônico internacional, 30 a
50% 9dependendo do país), ocorre dentro da região. Mas no caso
do tráfego de IP 9conexão à Internet), menos de 1% se situa dentro
da região. Esses são alguns dos perigos associados ao surgimento
de um “abismo digital” no nova economia.
Para o economista Hal Varian, autor do livro “information Rules”
e professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, um dos
mais destacados defensores da idéia de que não há proopriamente
uma nova economia, há riscos de uma disputa exagerada entre
empresas em segmentos de alta tecnologia levar a um “crash” semelhante aos já ocorridos em ciclos tecnológicos do passado.
Ele sublima também a importância da diferenciação de produtos para que as empresas consigam sobreviver nesse ambiente
competitivo, mas adverte que as guerras de preços e a canibalização
dos mercados ameaçam a lucratividade das empresas.
Outro economista, Eli Noam, da Universidade Columbia, em
Nova York, refuta tanto os neoanarquistas quanto os neoliberais
que defendem uma Internet totalmente livre. Ele considera a regulação
dos novos mercados inevitável.
Ela já é tecnicamente possível, dependendo apenas de vontade política e instituições adequadas. Para Noam, a regulação vai
ser possível a partir do momento em que se difundir a nova base
tecnológica da Internet, conhecida como IPv6 (Internet protocol, versão 6), que possibilitará o tráfego de pacotes de informação associados a “envelopes” de identificação digital.
Ou seja, a nova geração da Internet estará associada integralmente a uma estrutura de identificação do tipo de informação
que navega, que navega e com que grau de prioridade.
Em vez de imaginar um futuro totalitário (imaginado pelo escritor George Orwell na figura de um “Big Brother”), Noam acredita que serão possíveis políticas de distribuição de renda e de democratização do acesso a informação e conhecimento.
CID
N ão existem “soluções”, dizem os céticos. Toda “solu-
Nova economia ainda
não é consenso
Ouro de tolo
Na metade do ano passado, a revista ou empresa brasileira que quisesse
contratar um jornalista enfrentava grandes dificuldades. A enorme proliferação
de sites, portais e empresas provedoras de conteúdo sugava centenas de profissionais. Nomes consagrados do jornalismo foram de mala e cuia para os novos
sites, onde pareciam estar as maiores oportunidades. Era difícil até encontrar
um estudante de segundo ano de jornalismo que não estivesse empregado.
O brilho falso, o ouro de tolo da Internet como salvação da lavoura,
durou pouco tempo. O suficiente para que o estrondo da Nasdaq – cujas
cotações infladas financiavam a Internet febril em todo o mundo – inviabilizasse
inúmeras iniciativas da tal “nova economia”. E fizesse muitas outras reduzir
drasticamente as suas apostas.
Folha On Line, Terra, Agência Estado, Submarino e muitos outros demitiram centenas de profissionais nos últimos meses. Outros, como o site feminino Obsidiana foram vendidos a preços bem reduzidos, em relação ao ano
anterior. IG e BOL tiveram que começar a oferecer serviços de Internet paga.
O site Amélia, mantido pelo peso-pesado Pão de Açúcar, fechou o ano de
2000 com um prejuízo de mais de R$ 19 milhões.
Junto, despencaram os valores de propaganda pagos por espaços em
sites na Internet. Hoje, a fonte principal de renda, na web, é a intermediação de
negócios (o chamado B2B, ou business-to-business). Ainda assim, o volume de
dinheiro gerado via Internet é muito inferior ao que se imaginava há um ano, o
que baixa as expectativas de muito gente. Vale a recente frase de efeito de um
empresário da “nova economia”: “Meu sonho é que minha empresa se converta
à velha economia”, disse ele.
outubro 2000
POR QUE VOCÊ NÃO OLHA PRA MIM?
N o Brasil existem atualmente mais de sete milhões
O que importa é que essa exclusividade de contatos
de usuários da Internet (são 110 milhões nos EUA). Estamos
vem sendo abalada pelo advento da Internet. Em que outro
apenas no começo de uma nova cultura, a chamada sociemeio o jovem acessa adultos do mundo inteiro e com eles
pode bater papos informais, trocar confidências, pedir condade da informação. Mas a tendência é que o acesso à
selhos, debater idéias, tudo isso
rede mundial termine sendo tão
sem a cobrança familiar?
simples e natural quanto ligar a
TV. E qual o impacto desse fenôO trânsito de informações
meno virtual no mundo real?
e experiências que a Rede Mundial oferece seja o espaço idePara o adolescente, há 90%
al para os adolescentes.
de chance de já ter entrado em
No mundo virtual, um unialgum bate-papo na web. Nesverso vivo de conhecimento inse momento, no mundo inteiro,
telectual, cultural e humano conmilhões de pessoas estão se cojuga, num mesmo veículo, a
nhecendo, namorando, casando,
“preguiça solar” dos jovens e
brigando, rindo, pesquisando ou
sua sede de variedades.
apenas passando o tempo, senMais que olhar por um
tados sozinhos, olhando para
Máquinas nos ajudam a fazer
caleidoscópio. É estar dentro
uma tela imóvel e “falante” (mas
contatos.
E
daí?
dele, entrando e saindo como
que também “escuta” e “vê” por
o desejo mandar.
meio de equipamentos e acessórios cada vez mais rápidos e
E do ponto de vista da afetividade, que outro contexto
sofisticados).
será mais protegido do que a intimidade do próprio quarto,
A rede está ligada 24 horas por dia. É de se esperar
a partir do qual um adolescente pode se aventurar amorosaque essa nova forma de comunicação – ao mesmo tempo
mente sem tanto risco de expor suas fragilidades? Fazer ou
solitária e comunitária - crie novos padrões de atitude e
não contato, eis a questão.
modifique os antigos comportamentos.
Pela Internet é possível ser e não ser ao mesmo tempo,
Afinal, trata-se de um gigantesco banco de dados e
revelando-se e ocultando-se por trás da cortina de um certo
de gente dos mais variados campos do saber, disponível
anonimato. Escondendo as aparências – que causam tantos
para o mundo inteiro ao alcance de um click.
medos, inseguranças e preconceitos – parece que o mundo
É difícil se manter imune a esse novo modo de se relaafetivo pode se expandir com mais liberdade e propiciar
cionar, que vai além de uma ligação telefônica (onde a
amizades até mais verdadeiras do que as cotidianas.
relação se restringe ao par), ou de uma carta (que tem o
Enquanto o jovem ousa fazer ligações mais ou menos
tempo e distância como obstáculos) ou mesmo de um properigosas, a aprendizagem humanista acontece a cada
grama de TV, assistido na passividade da poltrona.
descoberta: como se vive no Alaska? o que pensa um afriO tipo de contato que a Internet trouxe para as novas
cano sobre esporte? como as dinamarquesas vivem o amor?
gerações é bastante especial. E até contraditório. Há pouco
Tudo isso ao vivo e próximo. Mesmo que o aprendizado
tempo atrás, dos anos 70 aos 90, antes da popularização
seja “à distância”.
da Internet, notava-se que os adolescentes restringiam seus
Além do aspecto lúdico e cultural, algo mais sutil e
relacionamentos aos seus pares etários, evitando maiores
profundo vai se anunciando em cada deslocamento
contatos com os adultos, fossem ou não da família.
internáutico, em cada participação nos manifestos, listas,
Essa modalidade horizontal (interagir só com os colecompras, vendas, projetos, que circulam no cyberspace.
gas jovens) foi se afirmando em detrimento de uma diversidade de experiências, como viajar com os pais (os que
Uma troca coletiva vai sendo gradualmente costurada a
viajam parecem visivelmente descontentes) ou conversar
cada entrada na rede, criando uma espécie de “cérebro glointeressadamente com adultos – professores, tios, amigos
bal”, como havia previsto o visionário H.G.Wells em 1938.
da família etc.
Uma mente planetária é instantaneamente acessada
Essa convivência foi perdendo prestígio entre os adoem qualquer ponto da Terra, distribuindo valores e mensalescentes, que passaram a se fechar nos grupos etários,
gens. Os jovens se alimentam dessa imensa tela norteadora
usando códigos comuns que acabaram excluindo adultos.
e também a fomentam. Nem sempre de forma crítica e
Não cabe aqui analisar se essa é uma reação ao fato de
criativa, é verdade. Mas se tornou impossível ignorar o
os próprios jovens terem sido excluídos de uma sociedade
fenômeno coletivo e as oportunidades para cada um.
que não lhes dá espaço produtivo legitimado, preferindo
Mesmo quando parecemos isolados, podemos estar
guardá-los em banho-maria até que “cresçam”...
conectados ao mundo.
Expediente
Editor:
Gilson Schwartz
e-mail: [email protected]
Consultores: Luiz Paulo Labriola e
Yudith Rosenbaum
Pesquisa: Knowware Consultoria
Projeto gráfico: Wladimir Senise
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é um suplemento dos boletins
Mundo
Geografia e Política Internacional e
Texto & Cultura
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Não pode ser vendido ou distribuído
separadamente.
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MÉXICO-TENOCHTITLÁN:
ONDE A ÁGUIA DEVOROU A COBRA
V
ista de cima, a Cidade do México impressiona. Vindo de avião, do sul, vê-se uma imensa área relativamente uniforme: seca, plana e horizontal. Quase não
há edifícios altos e o efeito-planície (na verdade, um
planalto em um vale a 2.200 metros de altitude) só é
interrompido pelos vulcões: o Popocatépetl (“montanha que fuma”) – que anda emitindo cinza e fumaça
ultimamente – e o Ixtaccihuátl (“mulher adormecida”).
Vista de baixo, a Cidade do México também
impressiona. Faltam pontos de onde se possa ver o horizonte. Mas logo se descobre por quê: claro, os terremotos. Todos os anos – dizem aqui que “depois da época de chuvas” – há pelo menos um ou outro terremoto
menor. E, às vezes, um terremoto mais grave, como foi
o de 1985. Eu mesma, nos três anos em que estou aqui,
já passei por vários terremotos menores. Por falta de
experiência, geralmente só percebo o terremoto depois
que ele já terminou: da última vez, pensei que estavam
passando caminhões na minha rua – e era um terremoto de mais de 7 pontos na escala Richter.
Mas não é só a geografia que impressiona. É
impossível estar na Cidade do México sem ficar de boca
aberta pelo que este país tem de história e de cultura. A
história começa com a fundação de Tenochtitlán: diz a
lenda que os mexicas (ou astecas) tinham sido informados de que deveriam fundar uma cidade no lugar em
que encontrassem uma águia devorando uma cobra. E a
encontraram, há uns 700 anos, num lago que ficava
onde hoje está o centro histórico da cidade. Depois dis-
so, bastou aos espanhóis aproveitar o que já havia: construíram a Catedral em cima do Templo Maior mexica,
que ficava exatamente no ponto que corresponderia ao
centro do universo. E construíram ao lado o Zócalo, a
belíssima praça central, onde até hoje está o centro do
poder político, o Palácio Nacional. E todo o atual centro histórico em volta, com a imponência das construções espanholas. A poucos quarteirões de meu apartamento fica a casa em que teria morado o conquistador
espanhol Hernán Cortez com sua amante indígena,
Malinche, nos idos de 1521.
Mas há também o México contemporâneo, que
oscila entre os extremos de um México que quer ser
igual aos Estados Unidos quando crescer e o MéxicoTenochtitlán-latino-americano-alternativo. No meio,
está um México híbrido, que inclui um pouco de cada
coisa. Primeiro, o México “moderno” (no melhor e no
pior sentidos da palavra): nada a ver com as imagens
que circulam no Brasil – os mexicanos de sombrero dormindo encostados em cactos, que vêm da visão que os
americanos têm do país. O México “moderno” não fica
a dever nada a qualquer metrópole do mundo: tem tudo
o que se possa imaginar, uma vida acadêmica e cultural
invejável mesmo para uma paulistana, e problemas urbanos similares aos das metrópoles brasileiras.
Depois, o México colonial espanhol, machista,
convencional e cheio de nove-horas. Parte dele é formado pela religiosidade popular católica, que gera resultados interessantes: a última aparição aqui da Vir-
gem Maria (na figura da Virgem de Guadalupe, padroeira do México e exemplo do sincretismo de tradições
indígenas com espanholas) foi há uns cinco anos, na
estação de metrô Hidalgo. Hoje se cultua nesse lugar a
“Nossa Senhora do Metrô”, com altar e tudo.
Mas o terceiro lado é o mais interessante: a antiga Tenochtitlán, o México indígena, que sobrevive de
uma maneira ou de outra em toda a população da cidade – em sua grande maioria mestiça de indígenas e espanhóis, muitos falando náhuatl, otomí e outras línguas indígenas. Um exemplo das tradições indígenas é
a festa de mortos em um bairro como Mixquic, no sul
da cidade: no dia de finados, as pessoas se reúnem no
cemitério para festejar, com comida, música e dança, a
volta dos mortos, que vêm visitar os parentes. A influência indígena não se limita às festas tradicionais: está
também na comida (baseada em milho, feijão e pimenta), no espanhol falado no México, e até na geografia.
Mesmo ao vulcão Popocatépetl se fazem oferendas, com
a esperança de que ele, contenha suas erupções e continue preservando a vasta extensão de Tenochtitlán ao
seu lado. Tomara que funcionem.
*Socióloga e mestre em Filosofia. Lecionou no Instituto
Tecnológico e de Estudos Superiores de Monterrey
(México) e prepara seu doutorado em Filosofia na
Universidade de Frankfurt, Alemanha.
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Miriam M. S. Madureira* - Especial para Mundo
MARÇO
2001
12
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