MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
ANO
8
• N o 6 • OUTUBRO
Tiragem: 38 000 exemplares
2000
OUTUBRO
2000
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MUNDO
Geografia e Política Internacional
A ÚLTIMA CHANCE DA PAZ NA PALESTINA
© Reuters-Presslink
H
á fronteiras construídas no espaço e outras construídas no tempo. Israelenses e palestinos, antagonistas na disputa por quilômetros e, às vezes, metros
quadrados de uma terra duplamente santa, tornaram-se parceiros na corrida para a
data fatal. Quando novembro chegar, a ausência de um acordo definitivo de paz
pode conduzi-los, uma vez mais, para um confronto que ninguém parece querer.
Yasser Arafat, o presidente da Autoridade Palestina, apostou tudo na paz.
Nessa aposta, seria a virtual dissolução da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e a passagem do bastão do nacionalismo palestino para o movimento
islâmico Hamas.
Ehud Barak, o primeiro-ministro trabalhista de Israel, fez a mesma aposta. Um fracasso quase certamente conduziria a um governo de união nacional –
um gabinete de guerra destinado a enfrentar a tempestade.
Fina ironia. Arafat e Barak, os duelistas, compartilham a mesma nau
desgovernada. Juntos, com baldes minúsculos, lutam contra os vagalhões que inundam o convés. Lado a lado, manobram leme e velas rumo ao porto da paz. Tão
perto. Tão longe.
Leia o dossiê às págs. 6 a 9
TEXTO & CULTURA
O romance histórico: de Balzac, no século
XIX, aos contemporâneos Ramsés e
Alexandros, um caso de amor com o público
Que Fazer?
Vestibular 2000
Hora de escolhas para muitos, o vestibular 2000
está chegando. Nesta edição, sugerimos uma brecha no
cotidiano de preparo para as provas, uma parada para pensar: o que afinal queremos realizar e como aumentar as
chances de sobrevivência?
De um lado, redes de conhecimento começam a
organizar uma nova economia, novos mercados, novas
profissões e formas de trabalhar. De outro, a necessidade
de diálogo com o passado, as expectativas dos pais e o
nosso próprio repertório de expectativas.
Vídeo histórico
Os dez anos da queda do Muro de
Berlim estão registrados em um
vídeo realizado pelo boletim
Mundo, pela TV USP e pelo
NUPRI-USP, com depoimentos,
entre outros, do ex-chanceler
brasileiro Celso Lafer. O preço,
para assinantes, é de R$19. E para
não-assinantes, é de R$24. Mais
informações na sede de Pangea.
No esporte de alto nível, alguns vilões
recorrem às drogas para vencer, mas os
órgãos esportivos máximos, auxiliados por
tecnologias laboratoriais de ponta,
descobrem e punem com rigor os casos de
doping. Certo? Errado. O uso de doping é
crônico no esporte de alto nível. Esse é o
caminho da fama e da fortuna no
espetáculo esportivo globalizado.
Pág. 12
© Simon Bruty/Allsport-Getty Images
O LADO SUJO DAS OLIMPÍADAS
E mais...
■ Editorial – A terceira edição do Enem recebeu, como as anteriores, elogios generalizados. Mas os elogios encobrem
a sabotagem praticada pela maioria das universidades públicas.
Pág. 3
■ Joint Vision 2020. Esse é o nome do documento estratégico do Pentágono, que troca o tradicional foco europeu
por uma nova prioridade: o teatro asiático.
Pág. 3
■ O Meio e o Homem – Há 40 anos, nascia a Sudene e, com ela, o planejamento regional no Brasil. Hoje, o
Nordeste abriga diversas áreas de economia dinâmica. Mas continua a ser o foco dos piores indicadores do país.
Pág. 4
■ O Meio e o Homem – O Censo 2000, o maior jamais realizado no país, está quase concluído. Recenseamentos são
meios para a definição de políticas públicas. Mas são também instrumentos de construção da nacionalidade.
Pág. 5
50 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO
MUNDO E T&C - 2000
Conheça agora os vencedores
OUTUBRO
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MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
50 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO
MUNDO E T&C - 2000
Índice Geral de Mundo-2000
Você encontra aqui o índice de tudo o que foi publicado no
boletim Mundo – Geografia e Política Internacional em
2000. Na primeira parte do índice, os assuntos são listados
segundo o número da edição em que aparecem. Na
segunda, que também contém os temas desta edição de
outubro, o índice é organizado por região geopolítica Os
números em negrito (fora dos parênteses) indicam a edição
do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas.
■ No 1 - março/2000
Os monopólios da economia da informação
Putin e a reconstrução da Grande Rússia
A Áustria xenófoba
O Equador, entre a revolução e a dolarização
Editorial: Pinochet e a Justiça Internacional
O Meio e o Homem: Óleo na Baía de Guanabara
Diário de Viagem: São Francisco e o Vale do Silício
■ No 2 - abril/2000
Polêmica: latifúndio e reforma agrária no Brasil
A guerra fiscal e a federação brasileira
A aliança estratégica do Cone Sul
Rio Branco, o arquiteto das fronteiras
Editorial: Guerra fiscal e regionalismo
O Meio e o Homem: Estresse hídrico no Brasil
Diário de Viagem: Parque da Serra da Capivara (PI)
■ No 3 - maio/2000
Estado, guerras étnicas e miséria na África
Taiwan diante da China
Israel diante da paz no Oriente Médio
Editorial: A farsa de Mugabe no Zimbábue
O Meio e o Homem: Etnias e ecossistemas no Vale do Níger
Diário de Viagem: Moçambique
■ No 4 - agosto/2000
Reunião de Cúpula Sul-Americana em Brasília
Poder militar ainda ronda a América Latina
A fraude e o terceiro mandato de Fujimori
Aperto de mãos histórico na península coreana
Operação Condor: a internacional da repressão
Editorial: A diplomacia brasileira e a fraude peruana
O Meio e o Homem: Integração física da América do Sul
Diário de Viagem: Cingapura
■ No 5 - setembro/2000
Genoma Humano: um tiro científico no racismo
Suely Carneiro e a luta contra o racismo
Racismo, uma invenção do imperialismo
AIDS, tragédia social e demográfica africana
O México, depois do PRI
Editorial: Olimpíada das corporações
O Meio e o Homem: Recursos naturais e guerra em Angola
Diário de Viagem: Angola
■ O Mapa de Mundo
Globalização – 1:(6-7) 6:(12)
Estados Unidos – 1:(9) 6:(3)
Europa Ocidental – 1:(8)
CEI – 1:(4-5)
América Latina – 1:(3) 2:(9) 4:(3) 4:(6-7-8-9) 5:(3)
Brasil – 2:(3-4-5-6-7-8) 4:(12) 6:(4)
Oriente e Pacífico – 3:(4-5) 4:(4-5)
África Subsaariana – 3:(6-7-8-9-12) 5:(9-12)
Oriente Médio – 3:(3) 6:(6-7-8-9)
Meio Ambiente – 1:(12) 2:(12)
Racismo – 5:(4-5-6-7-8)
E X P E D I E N T E
PANGEA - Edição e
Comercialização de Material
Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, Gilson Schwartz (Que Fazer?),
Jayme Brener, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia), Jorge
M. B. Almeida (Texto & Cultura).
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Miriam de Carvalho Abões
Pesquisa Iconográfica: Vera Lucia da Silva Barrionuevo
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
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Gilda Cristina Falleiros - Fonefax: (0XX67) 782 9456
Colaboradores: Newton Carlos, J. B. Natali, Nicolau Sevcenko,
Rabino Henry I. Sobel, Hassan El Emleh (Fed. Palestina do
Brasil) e as ONGs Anistia Internacional e Greenpeace.
Assinaturas: Por razões técnicas, não oferecemos assinaturas
individuais. Exemplares avulsos podem ser obtidos nos seguintes
endereços, em São Paulo:
• Laboratório de Ensino e Material Didático (Lemad) - Prédio
do Depto. de Geografia e História - USP
• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900.
Homepage: http://www.moderna.com.br/mundo
Conheça agora os vencedores
F
oi o maior de todos os concursos nacionais promovidos por Mundo e Texto&Cultura. A Comissão
Julgadora teve a árdua tarefa de escolher as redações vencedoras, entre cerca de 150 trabalhos concorrentes. Abaixo,
os cinco primeiros colocados e a redação vencedora, comentada. A todos os que participaram, os nossos parabéns!
■ 1º lugar: Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro
Colégio Dinâmico, Goiânia (GO)
Profa. Rose Mary Borgo Falhari
■ 2º lugar: Nataly Horner Hoe de Castro
Colégio Cidade de Atibaia/Anglo, Atibaia (SP)
Profa. Olívia R. da Silva
■ 3º lugar: Marília Zannon de Andrade
Colégio Pelicano, Poços de Caldas (MG)
Profa. Lúcia R. M. Pereira
■ 4º lugar: Rodrigo Gomes Lobo
Colégio Koelle, Rio Claro (SP)
Profa. Maria Inêz S. Rodrigues Fonseca
■ 5º lugar: Bruno Pompeu Marques Filho
Lumens Pré-Vestibulares, Santos (SP)
Profa. Maria Elisa V. R. Tesseroli
O Mundo Fantástico dos Botões
(Qual é o messias?)
O gosto do messias, seu cheiro, sua aparência
às nossas vistas, sua textura, sua barulheira e seus
sacramentos são os mesmos num amplo Ocidente
(que é um extra-Ocidente). O messias seria a tãotecnologia. – (Messias? De deus ou do diabo?).
Sob uma cada vez maior monocultura norteamericana, expande-se todo um maquinário belo
e desigual em relação às pessoas. Podemos viver
no melhor dos mundos desde tempos de antanho.
Mas como que perdemos o antanho e viramos
nossas viseiras a um futuro que vem como um
míssil, um projétil em nossa direção. Esperamos,
sem perceber, algo.
A tecnologia, que é messias de deus e do diabo ao mesmo tempo, não passa de instrumento
para um trabalho criativo e não-braçal e para um
lazer mais presente, constante e realista e virtual.
Mas espera-se que a tecnologia nos dê um mundo
libertário, de igualdade e liberdade utópicas. Não
é bem esse mundo que vamos ganhar da
tecnologia, pelo visto.
[Aperta-se um botão: cafezinho, hambúrguer
(ou pão de queijo). Outro: banho. Piii: sexo. Outro: deus. Teeé: mensagens/massagens eletrônicas.
Outro: contato com a empresa distante para enviar relatórios. Mais um: vigilância sobre o filho,
que estuda via computador em casa. Um outro:
segurança – “Tire esse homem de cima de mim
que o traseiro dele está apertando os botões da
minha camisa em mim e está doendo!” – Vem um
segurança (humano) e cumpre a ordem.]
Corre-se o risco de que o mundo futuro divida-se em, basicamente, duas classes sociais: os detentores de botões e os sem-botões. E todos vivendo no Mundo Fantástico dos Botões.
Botão não é livro e não faz livro. Nem pão
de queijo dos bons. Botão não é sorriso. Botão é botão, botão, botão. Botão não sabe o
que é ética. Botão não é homem e homem não
pode ser botão.
A tecnologia deve repetir-se. O humano mal
consegue repetir-se. O humano deve, a partir de
movimentações que vão além do Terceiro Setor
(ONGs, etc), erguer um circo. Na balada: o indivíduo tem de ser divíduo – dividir-se em suas
ações e atividades, sendo ao mesmo tempo palhaço-que-carimba-sorrisos e máquinasaltimbanca. Assim se gosta do trabalho. Assim
se morre trabalhando, como se o trabalho fosse
ócio e lazer ao mesmo tempo.
(E seremos conservados em gelo tecnológico,
sorrindo nosso ócio e sendo vistos em museus
como lazer.)
Comentário
Flora Christina Bender Garcia
Um concurso libertário liberta seus concorrentes das
amarras de um gênero rígido. E a professora Rose Mary,
como aconteceu no concurso do ano passado, aproveitou
muito bem essa liberdade. A dissertação de Marcelo, inteligentemente, se constrói de forma e conteúdo,
constitutivamente. Palavras e sinais de pontuação são tratados tanto no plano do significado quanto do
significante. São conceitos e objetos.
Há a proposição inicial, a argumentação e a conclusão. Pode até não parecer, mas o crítico e quase insuportável parágrafo final é uma conclusão, que responde à
primeira frase do texto:
(Qual é o messias?)
(E seremos conservados em gelo tecnológico, sorrindo nosso ócio e sendo vistos em museus como lazer.)
A dissertação se fecha, coerente e redondinha. Tão
redonda que também vem entre parênteses.
Não param por aí as transgressões. Os sinais de pontuação funcionam eficazmente como pontuação e, ambiguamente, podem ter outra leitura. São sinais objeto, à
moda dos poetas concretos. Seu uso é lícito e o escritor é
atípico, na sua apropriação.
Fora de parênteses e colchetes, tem-se um narrador
“normal”, digamos, um argumentador:
Sob uma cada vez maior monocultura norte-americana, expande-se todo um maquinário belo e desigual em
relação às pessoas. Podemos viver no melhor dos mundos
desde tempos de antanho.
Há, também, um enunciador que transgride e parece
esconder-se atrás dos biombos dos parênteses, por introduzir metáforas amparadas na simbologia religiosa: “messias”,
“deus”, “diabo”. Com minúsculas, é claro, pois se referem ao
mundo dos homens, não do Ser Supremo, místico. Não há
heresia, porque não fala de entidades religiosas.
E, num abuso maior, apresenta entre colchetes (não
usuais em textos verbais, argumentativos ou não; mais
próximos da linguagem matemática) cenas dos capítulos
atuais. Como num filme à parte, predominam os elementos narrativos, à guisa de ilustração. Eqüivalem a uma
câmera: veja o ilustre espectador/leitor que o mundo atual é
assim, por isso somos conservados em gelo tecnológico. Qual
a estátua de sal em que a mulher de Lot foi transformada,
ao olhar para trás.
Terá Marcelo percebido também essa metáfora religiosa?
Quem detém o botão detém o poder. Os outros são
sem-botões, num mundo em que se deveria tê-los. Numa
linguagem politicamente correta e atual, são os incluídos e
os excluídos. E quem tem botão pode ir ao maravilhoso
mundo mágico de Orlando, aproveitando para dar um
pulinho ao maravilhoso mundo das compras e das evasões
fiscais: Miami. Quem tem botão come hambúrguer e toma
cafezinho, antes nosso (agora, globalizado e da Colômbia
ou de países africanos), acompanhado de pão de queijo.
Não se fazem mais cafezinhos como antigamente:
Resta-nos o ainda não globalizado pão de queijo, antes
regional, agora uma instituição nacional.
Quem não tem botão pode unir-se a quem não tem
terra, a quem não detém o poder e tenta, agressivamente,
é vero, valer-se de seus direitos de ter terra/botão.
O antepenúltimo parágrafo é emblemático: não se pode
prestar homenagens a deus e ao diabo. Ou se gosta de botões ou de gente, porque botão não é livro, não faz livro,
nem pão de queijo, nem sorriso. Nem tem ética. Homem
deve ter livro, fazer/comer pão de queijo, sorrir, ser ético.
Botão é globalizado, impessoal, padronizado, pasteurizado.
Tecnológico. Gélido. Conserva e mata, paradoxalmente.
Grande sacada o neologismo do final: o indivíduo tem
de ser divíduo — dividir-se em suas ações e atividades, sendo ao mesmo tempo palhaço-que-carimba-sorrisos e máquina-saltimbanca. Fusão de bobo Plin e Menelão.
Até modos e tempos verbais têm função poética. Em
O messias seria a tão-tecnologia, o futuro do pretérito (que
deveria continuar se chamando condicional); o presente
do indicativo, na argumentação aparente e subjacente, e
o inexorável futuro do presente, na conclusão que não
nos oferece perspectivas:
(E seremos conservados…).
Lindo, lindo, lindo, Marcelo! Marcelo que, sendo
goiano, deve comer o mineiro/brasileiro pão de queijo,
enquanto trama seus textos e lê livros.
Sem botões, no fantástico mundo da imaginação.
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
E
D
EM AGOSTO, REALIZOU-SE A TERCEIRA EDIÇÃO DO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO
(ENEM), QUE TEVE NÚMERO RECORDE DE INSCRITOS: MAIS DE 390 MIL. A PROVA, QUE SE PROPÕE A
AVALIAR A COMPREENSÃO DAS GRANDES ESTRUTURAS DAS DISCIPLINAS DO ENSINO MÉDIO, RECEBEU
PELA TERCEIRA VEZ ELOGIOS GENERALIZADOS DOS
REPRESENTANTES DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS.
ENTRE UM ELOGIO E OUTRO, QUASE TODOS REAFIRMARAM (EM GERAL, INDIRETAMENTE) A PRIMAZIA DOS SEUS PRÓPRIOS EXAMES VESTIBULARES.
COMO JÁ SE TORNOU COSTUMEIRO, REPRESENTANTES DA USP E DA UNESP RECORRERAM ÀS ESTATÍSTICAS PARA DEMONSTRAR QUE A LISTA DE APROVADOS NESSAS UNIVERSIDADES POUCO MUDARIA CASO
ESTIVESSE BASEADA NO
ENEM.
É HORA DE ESCLARECER AS COISAS. NA SUA
ESMAGADORA MAIORIA, OS DIRIGENTES DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS SABOTAM ATIVAMENTE O ENEM.
DAS 128 INSTITUIÇÕES QUE INCORPORAM A NOTA
DO ENEM, APENAS 15 SÃO PÚBLICAS. POR ISSO, O
I
T
O
R
I
NÚMERO RECORDE DE INSCRITOS É, AINDA, UMA DECEPÇÃO.
E AS MUITAS DEZENAS DE VESTIBULARES ESPALHADOS POR TODO O PAÍS PERMANECEM INTACTOS,
MESMO QUANDO SÃO PROVAS DE NÍVEL LASTIMÁVEL,
ALGUMAS BEIRANDO A INDIGÊNCIA INTELECTUAL.
HÁ POUCO MAIS DE UM ANO, O EDITORIAL
DE MUNDO DE SETEMBRO DE 1999 PROPUNHA UMA
“FÓRMULA SIMPLES, DIRETA E HONESTA: A SUBSTITUIÇÃO DA PRIMEIRA FASE DOS VESTIBULARES PELO
ENEM”. É PRECISAMENTE POR TEMOR A ESSA PROPOSTA QUE ALGUMAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS INVENTARAM COMPLICADOS SISTEMAS DE ADIÇÃO MARGINAL DOS RESULTADOS DO ENEM AOS DE SEUS SACROSSANTOS VESTIBULARES: TRATA-SE DE INCORPORAR PARA MELHOR SABOTAR...
MAS QUAL É O ARGUMENTO CONTRA ESSA PROPOSTA, QUE SUBSTITUI DEZENAS DE PROVAS REGIONAIS
DE QUALIDADE HETEROGÊNEA POR UMA PROVA NACIONAL ELOGIADA POR TODOS? POR QUE SE OPOR A UMA
IDÉIA QUE ASSEGURA A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA,
EXPRESSA NA SEGUNDA FASE DOS VESTIBULARES?
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OUTUBRO
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CHEGA DE HIPOCRISIA. A SABOTAGEM DO
ENEM NÃO DERIVA DA DEFESA DE CONVICÇÕES,
MAS DE LUCROS, CARREIRAS E PODER QUE PROSPERAM À SOMBRA DA ÁRVORE FRONDOSA DOS IMENSOS VESTIBULARES EM DUAS FASES. EGRÉGIOS REPRESENTANTES DA FUVEST EXPLICAM – COM CARA
DE QUEM CONTA GRANDE NOVIDADE! – QUE O
ENEM NÃO “DEMOCRATIZA” O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR, POIS, ASSIM COMO NOS VESTIBULARES, OS CANDIDATOS MAIS BEM PREPARADOS CONSEGUEM NOTAS MELHORES. IMERSOS NESSA PROFUNDA FILOSOFIA , ESQUECEM DE CALCULAR
QUANTOS REAIS CUSTA A INSCRIÇÃO EM INÚMEROS VESTIBULARES!
ANO QUE VEM, O ENEM SERÁ GRATUITO PARA
TODOS OS ALUNOS DE ESCOLAS PÚBLICAS. ISSO NÃO
MELHORA O NÍVEL DO ENSINO PÚBLICO E NÃO GARANTE NOTA PARA NINGUÉM. MAS AO MENOS EXPELE O COBRADOR DA PORTA DE ENTRADA. SANTA INGENUIDADE: AS UNIVERSIDADES PÚBLICAS TÊM SUAS
PRÓPRIAS PORTAS. E NÃO ABREM MÃO DA GRANA.
Tese discute jornalismo na globalização
tado junto ao Departamento de História da FFLCH-USP. Além do orientador, o
historiador Nicolau Sevcenko, participaram da banca, os historiadores István Jancsó
e Jorge Grespan, o jornalista Jair Borin e o economista Gilson Schwartz.
O PENTÁGONO TROCA A EUROPA PELA ÁSIA
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
A
atualização do planejamento estratégico do Pentágono, concluída em junho e que resultou no documento Joint Vision 2020, encaminhado ao Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas
dos EUA, revela um olhar novo sobre o
sistema internacional e as prioridades da
política externa de Washington. O foco
central deixou de ser a Europa, apesar das
preocupações com situações tipo Kosovo.
Numa primeira versão, a China foi apontada com todas as letras como o futuro
adversário “em potencial”.
O texto final, suavizado pela Casa
Branca, se limita a advertir sobre a possível
ascensão de um “competidor de peso”, sem
citá-lo nominalmente. Mas é da China que
se trata. De modo mais amplo, o Pentágono
passa a encarar a Ásia como a mais provável
arena de conflitos militares no século XXI.
Ou, no mínimo, de disputas envolvendo
corridas armamentistas. A nova orientação
já se reflete em mudanças significativas,
como a construção de mais submarinos de
ataque destinados ao Oceano Pacífico.
Há mais “jogos de guerra” e estudos estratégicos relacionados com a Ásia.
O Departamento de Estado entra com
ações diplomáticas para reconfigurar a presença militar dos Estados Unidos, num
arco que vai de Teerã a Tóquio. Diante da
aproximação, ainda incipiente, entre as
Coréias, o Pentágono revê o sentido da
presença das tropas norte-americanas na
Coréia do Sul. Como se consolida a convicção de que a China, cedo ou tarde,
emergirá como grande potência, com influência significativa sobre a Ásia, a presença das tropas deixa de circunscrever-se
ao “estado de guerra” na península coreana.
Elas se tornam peças de potenciais conflitos de maior envergadura. Não podem ser
repatriadas.
Até há pouco, a Marinha norteamericana tinha no Oceano Atlântico 60%
de seus submarinos de ataque. Agora, eles
já são metade no Atlântico e metade no Pacífico. Daqui a pouco, os do Pacífico serão
maioria. Há dez anos, 90% dos especialistas militares dos Estados Unidos se concentravam em cenários de confrontos entre
exércitos na Europa. Hoje, 50% ou mais se
voltam para o teatro asiático.
O Exército, força principal na Europa, baixa a segundo plano, enquanto
Marinha e Força Aérea multiplicam seus
“jogos de guerra” na Ásia, à procura de respostas para grandes questões que podem
colocar-se “concretamente” em futuro próximo. Índia e Paquistão travarão uma guerra atômica, ou pior, armas atômicas do
Paquistão cairão em mãos de guerrilheiros
islâmicos do Afeganistão? O Irã se tornará
nuclear? A Indonésia se esfacelará? A
Coréia do Norte despencará pacificamente? Estados Unidos e China conseguirão
evitar um conflito nuclear?
A Ásia, como novo ponto focal,
aparece em dois lances diplomáticos e militares de longo alcance. O primeiro trata
de assegurar a presença militar dos Estados Unidos no Japão e península coreana,
mesmo com o desaparecimento da “ameaça norte-coreana”.
O outro lance destina-se a abrir as
portas para uma “reentrada” militar dos
Estados Unidos no sudeste asiático, 25
anos depois do fim da Guerra do Vietnã e
dez anos depois do abandono das bases nas
Filipinas. O reatamento militar com as
Clinton:
Oriente, volver...
Filipinas pode servir de modelo para um
“redesenho” da presença no Pacífico. Em
vez de bases que são pequenos universos
fechados à gente do lugar, tropas dos EUA
e das Filipinas realizarão exercícios conjuntos sistemáticos.
Ao mesmo tempo, Washington
amplia seus contatos militares com a Austrália. Dez mil de seus soldados participaram de manobras na região de Queensland.
Este ano, pela primeira vez, tropas de
Cingapura estiveram no “Cobra Gold”,
exercício americano-tailandês. Em
Cingapura está em construção um pier especial para receber porta-aviões nucleares
dos EUA. O chefe do Pentágono, William
Cohen, fala da “tirania da distância” quando se refere ao Pacífico, e anuncia mais
encomendas de C-17, enormes aviões de
transporte militar.
A Força Aérea precisará de bombardeiros de maior alcance e a Marinha,
de barcos que possam operar a longa distância. No estreito de Málaca, por exemplo, rota do petróleo do Golfo Pérsico para
o Japão e o restante da Ásia, cuja relevância estratégica impõe ênfase em poder naval, aéreo e espacial. Eliot Cohen, professor de estudos estratégicos da Johns
Hopkins University, prevê que o futuro
chefe do Estado-Maior Conjunto sairá da
Marinha ou Força Aérea e não mais do
Exército. Com a guinada da Europa para
a Ásia, o Pentágono talvez consiga o que
reivindica há anos – um orçamento tão
gordo quanto o dos tempos da Guerra Fria.
© Jason Reed/Reuters-Presslink
O jornalista José Arbex Jr., editor multimídia de Pangea e integrante da redação
de Mundo, defendeu, a 13 de setembro, tese de doutorado intitulada Telejornovelismo
(mídia e história no contexto da Guerra do Golfo). O trabalho, que desvenda os mecanismos de colonização do jornalismo pela indústria do entretenimento, foi apresen-
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Nelson Bacic Olic
Da redação de Mundo
O NORDESTE,
NOS
40
ANOS DA
SUDENE
O Meio e o Homem
© Wagner Avancini/Angular
H
á 40 anos era criada a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), o primeiro órgão efetivo de planejamento regional no Brasil.
Seu idealizador e primeiro superintendente, o economista paraibano Celso
Furtado, norteava-se pela idéia da intervenção estatal como meio para a promoção do desenvolvimento regional.
Naquela época, e mesmo muito antes
dela, o Nordeste já era a mais problemática das regiões brasileiras.
Os debates sobre a questão nordestina reativaram-se no contexto internacional da Guerra Fria, num momento marcado pelo sucesso da Revolução
Cubana de 1959, que entusiasmou movimentos de esquerda no Brasil e em
toda a América Latina.
As estratégias de desenvolvimento regional propostas pela Sudene davam
ênfase à industrialização, por meio de
investimentos privados direcionados por
incentivos fiscais ou de investimentos estatais nos setores de infra-estrutura viária
e energética. No setor agropecuário, a
Sudene tinha como objetivo implementar
reformas para ampliar a produção agrícola, promovendo a utilização de técnicas modernas de irrigação no semi-árido,
e introduzindo profundas modificações
na estrutura agrária da Zona da Mata. No
final, imaginava-se, essas transformações
econômicas contribuiriam para mudar o
trágico perfil social da região.
Nos últimos 40 anos, o Nordeste mudou muito. Do ponto de vista
demográfico, a região tinha em 1960
cerca de 22 milhões de habitantes (38%
da população brasileira). Atualmente, a
população regional é de aproximadamente 47 milhões (27% do total). Nesse período, a relação entre população urbana e rural conheceu uma inversão –
hoje, mais de dois terços dos nordestinos vivem em áreas urbanas.
Do ponto de vista econômico, não
é fácil avaliar a ação da Sudene. Todavia,
qualquer avaliação deve levar em conta que
as políticas de desenvolvimento do Nordeste verificaram-se num contexto mundial em rápido processo de transformação
e que foram aplicadas a uma região periférica de um país periférico.
Verificou-se forte diversificação da
estrutura industrial, com maior crescimento do setor de bens intermediários,
em detrimento do setor de bens de consumo não-duráveis, segmento industrial
predominante antes da Sudene. Quanto
ao setor agropecuário, alguns espaços agrícolas apresentaram significativo processo
de modernização, sobretudo aqueles onde
se desenvolveram as técnicas de irrigação.
O setor de serviços conheceu importante
dinamização, especialmente nas capitais
estaduais e regionais.
Mas a participação do Produto
Interno Bruto (PIB) nordestino no con-
NORDESTE: FOCOS DE MAIOR DINAMISMO ECONÔMICO
▲
PA
junto do PIB nacional praticamente não
se modificou. Se, em 1960, o PIB regional
representava cerca de 12% do total, atualmente representa 13% e corresponde a
apenas pouco mais de um terço do PIB do
estado de São Paulo. No interior do Nordeste, os desequilíbrios econômicos são
enormes: os três maiores estados – Bahia,
Pernambuco e Ceará – respondem por cerca de 75% do PIB regional. A Bahia, sozinha, contribui com 31% do total regional. No extremo oposto, Sergipe tem participação de apenas 4%.
O fracasso da estratégia da Sudene
fica mais evidente no âmbito social. Hoje,
como há 40 anos, a região exibe as maiores concentrações de pobreza e os índices
vitais mais baixos do país. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU
evidencia o desastre: todos os estados nordestinos apresentam resultados inferiores
à média brasileira. Entre os dez menores
IDHs do país, oito são de estados do Nordeste. Entre as regiões brasileiras, o Nordeste também apresenta a maior taxa de
mortalidade infantil e a menor expectativa de vida.
Nova organização
A noção espacial de uma Região
Nordeste, tal como existe hoje, é recente –
data da primeira metade do século XX.
Antes, existiam vários “nordestes”, áreas
com características geoeconômicas bastante diferenciadas e que mantinham relações
tênues entre si. O Nordeste atual, como
região individualizada, é fruto do processo de integração nacional, induzido pela
industrialização. O desenvolvimento da
indústria por substituição de importações
engendrou o mercado nacional e a concentração da riqueza no Sudeste, definindo o Nordeste como região periférica.
Interpretar o Nordeste apenas
como região-problema – com áreas assoladas periodicamente pela seca e enormes
bolsões de pobreza, onde a ação do Estado
quase sempre só fez consolidar velhas estruturas e perpetuar situações de miséria –
tornou-se insuficiente, na atualidade, para
entender o espaço nordestino. Hoje, mais
do que em qualquer época do passado, um
dos principais aspectos a ser destacado é a
diversidade cada vez maior da organização
espacial interna do Nordeste.
No Nordeste atual, convivem focos de expressivo dinamismo econômico e
áreas onde as estruturas tradicionais se cristalizaram há muito tempo. Não resta dú-
OCEANO ATLÂNTICO
SÃO LUIS
▲
1
3
MARANHÃO
FORTALEZA
CEARÁ
TERESINA
RIO GRANDE
DO NORTE
▲
NATAL
4
PARAÍBA
▲
J. PESSOA
PIAUÍ
▲
PERNAMBUCO
2
RECIFE
Petrolina
4
TO
●
●
ALAGOAS
Juazeiro
SERGIPE
▲
MACEIÓ
▲
ARACAJU
2
BAHIA
▲ 5
SALVADOR
GO
MG
vida de que a maior diversidade geoeconômica do Nordeste (especialmente seus
focos de dinamismo econômico), resulta,
ao menos em parte, da ação modernizadora
da Sudene.
No interior do Nordeste, podem-se
distinguir pelo menos sete áreas de maior
dinamismo econômico (veja o Mapa). Essas áreas fundamentam-se em atividades
turísticas, industriais ou agropecuárias:
• o pólo petroquímico de Camaçari, na
Bahia;
• o pólo têxtil e de confecções de Fortaleza, no Ceará;
• o complexo mineral-metalúrgico de
Carajás, que abrange extensas áreas do
Pará e Maranhão;
• as áreas de moderna agricultura de grãos,
especialmente soja, do oeste da Bahia e
porções meridionais do Maranhão e
Piauí;
• o pólo agroindustrial de PetrolinaJuazeiro, cuja base é a fruticultura
irrigada, no médio vale do São Francisco, na Bahia e Pernambuco;
• o pólo de fruticultura irrigada do vale
do rio Açu, no Rio Grande do Norte;
• os diversos pólos turísticos implantados nas
principais cidades da região, especialmente as capitais, e em áreas adjacentes a elas.
As áreas do Nordeste nas quais a resistência às mudanças continua sendo a
“marca registrada” do ambiente sócio-eco-
▲
1
2
3
4
5
Principais pólos turísticos
Complexo mineral
metalúrgico
Moderna agricultura
de grãos
Pólo têxtil e de confecções
Pólo agroindustrial
(agricultura irrigada)
Pólo petroquímico
nômico, correspondem à tradicional cultura canavieira da Zona da Mata e à combinação entre a pecuária extensiva e a pequena agricultura do sertão semi-árido.
Nessas amplas porções do território nordestino, o processo de modernização,
quando ocorreu, foi espacialmente seletivo e restrito, contribuindo para a manutenção das estruturas tradicionais.
Essas áreas, de ocupação antiga,
têm em comum o rígido controle econômico e político estabelecido pelas oligarquias fundiárias, que criaram mecanismos de preservação do seu poder. A
concentração da propriedade da terra,
hoje, como no passado, funciona como
obstáculo para o desenvolvimento. Esse
traço característico da ocupação regional vem se agravando, mesmo onde a
irrigação introduziu uma agricultura
mais modernizada.
Nesses espaços resistentes às
mudanças, os velhos esquemas sócioeconômicos e políticos alicerçam-se sobre a estrutura fundiária injusta e o controle do acesso à água. Apesar de ter contribuído para a modernização econômica de certas áreas nordestinas, a Sudene
ficou muito longe de alcançar as metas
de desenvolvimento social idealizadas
por Celso Furtado.
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
O HINO, A BANDEIRA... E O CENSO
O Meio e o Homem
Demétrio Magnoli
Editor de Mundo
D
efinida como um todo, a população é uma coleção de seres humanos. Ela é
um conjunto finito e, portanto, num dado
momento, “recenseável”. Esse ponto é bastante significativo porque, se a população
pode ser contada, implica que dela podemos ter uma imagem relativamente precisa. Ainda que essa imagem, um número,
não possa ser (como não é) estável, pois se
modifica o tempo todo. Contudo, é por esse
número que a organização que realizou o
recenseamento dispõe de uma representação da população. Sem dúvida é uma representação abstrata e resumida, mas já
satisfatória para permitir uma intervenção que busca a eficácia. O recenseamento
permite conhecer a extensão de um recurso
(que implica também um custo), no caso
a população. Nessa relação que é o recenseamento, por meio da imagem do número, o Estado ou qualquer tipo de organização procura aumentar sua informação
sobre um grupo e, por conseqüência, seu
domínio sobre ele. (Claude Raffestin, Por
uma geografia do poder, São Paulo, Ática,
1993, p. 67).
Desde a Antigüidade, há censos.
Contudo, eram avaliações indiretas ou
contagens parciais da população, realizadas esporadicamente. No seu formato
atual, como prática rigorosa que se repete periodicamente, o censo surgiu junto com o Estado-Nação contemporâneo.
O primeiro recenseamento moderno foi
feito na Suécia, entre 1749 e 1750. Os ingleses inauguraram a prática em 1801, ano
em que a Irlanda foi incorporada e constituiu-se a Grã-Bretanha. Na Itália também
coincidiu com o passo decisivo para a unificação nacional, em 1861.
Ficção política
O nacionalismo ampara-se na crença de que as nações são “tão antigas quanto a história”, para usar a frase célebre de
Walter Bagehot. Mas as nações são construções históricas recentes e, como explicou o historiador Eric Hobsbawm, são frutos da árvore do nacionalismo. Antes de
ser uma informação crucial para o exercício do poder, o recenseamento funcionou
como instrumento da vasta operação política e ideológica de “invenção da nação”.
A “invenção da nação” opera, antes de tudo, por uma separação entre os
“nacionais” e os “estrangeiros”. Essas noções exigiam critérios de identificação novos – era preciso substituir as identidades
tradicionais, baseadas na região de origem
ou no clã, pela idéia abstrata da pátria contemporânea. Os censos fizeram isso, produzindo as etnias e um sistema étnico de
classificação da população.
Os Estados europeus não se contentaram em produzir etnias na Europa,
mas disseminaram-nas pelas colônias asiáticas e africanas. Os censos coloniais na
Malásia britânica eliminaram, ao longo do
tempo, as categorias classificatórias originais e as substituíram por categorias étnicas. O censo de 1881 dividia os europeus
em “residentes”, “flutuantes” e “prisioneiros”. Mas em 1911 todos eles já estavam
agrupados como “brancos”. As categorias
baseadas em identidades religiosas evaporaram depois do censo de 1871, para dar lugar
a identidades etno-nacionais: “Malaios”,
“Chineses”, “Indianos” e “Outros”. Na época, essas categorias não seriam entendidas pela
esmagadora maioria da população da colônia. Pelas mãos “recenseadoras” do colonizador, estava nascendo uma “nação malaia” e,
com ela, as sementes da hostilidade atual
entre a maioria “malaia” e a minoria “chinesa” da população da Malásia.
No Líbano, um recenseamento tornou-se a pedra fundamental de todo o Estado, impossibilitando a realização de qualquer censo posterior. A independência do
país, em 1943, só foi possível através de
um “pacto nacional” entre os líderes das
diversas comunidades religiosas. As funções
políticas e a representação parlamentar foram repartidas entre as comunidades, segundo uma proporcionalidade definida
pelo censo de 1932. A presidência e inúmeros altos cargos ficaram com os cristãos
maronitas, que eram 32% da população. Com o tempo, o crescimento
vegetativo mais rápido dos muçulmanos
modificou a proporção das comunidades religiosas na população, mas os líderes cristãos bloquearam a realização de
novos censos para congelar o sistema de
poder estabelecido em 1943. A exigência dos muçulmanos, de revisão do “pacto nacional”, e a intransigência dos cristãos acenderam a fagulha da guerra civil, que começou em 1975, arrastou-se
por quinze anos e destruiu o país.
O censo é uma fonte inesgotável
de fantasias geopolíticas. A divisão do Brasil nas cinco macrorregiões do IBGE pouco esclarece sobre o país. Os estudos sobre
a dinâmica geográfica e econômica utilizam um conceito diferente – o de complexos regionais. As políticas de desenvolvimento regional baseiam-se nas regiões
de planejamento, como a Amazônia Legal e o “Nordeste da Sudene” (veja a matéria à pág. 4). As macrorregiões do IBGE
servem, essencialmente, como critério de
organização das estatísticas censitárias. Mas
essa divisão, de tão reproduzida em livros
escolares, na imprensa e em publicações
oficiais, ganhou vida própria. Os líderes
políticos espertos sabem disso e, em causa
própria, empunham as bandeiras da defesa dos “interesses do Nordeste” (ou do
“Sul”, do “Norte”, etc.), como se tais coisas existissem.
OUTUBRO
2000
5
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
6
2
JORDÂNIA
EGITO
(Península
do Sinai)
TRANSJORDÂNIA
(Jordânia)
Estado árabe
EGITO
(Península
do Sinai)
ARÁBIA
SAUDITA
EGITO
Territórios ocupados por Israel
Estado de Israel
Estado judeu
GAZA Incorporada ao Egito
Zona internacionalizada
CISJORDÂNIA Incorporada à
Jordânia
JORDÂNIA
1
Anexado em 1981
2
Restituído ao Egito em 1982
Séculos de lamentos por Jerusalém
A consolidação de um futuro Estado palestino certamente passará pela discussão sobre o estatuto da cidade de Jerusalém. Nas
páginas do jornal Palestine Times, diversos articulistas escrevem sobre a “cidade ocupada”, enquanto o tema é abordado com o maior
cuidado nas conferências de paz mediadas pelos Estados Unidos. Como Israel insiste em manter o controle total sobre a cidade, muitos
palestinos apelam até mesmo a uma aliança com o Vaticano para uma nova cruzada, dessa vez para libertar a cidade do domínio judeu.
“O mundo não sabe que um peregrino pode viajar de qualquer canto do mundo para Jerusalém, mas um cristão ou muçulmano palestino,
morando a poucos quilômetros da cidade, não pode aí entrar para fazer suas preces”, escreve Mohamed Khodr, ativista palestino e estudioso
da história dessa cidade triplamente sagrada.
Os escritores medievais diziam que o nome Jerusalém significava “visão da paz”. Durante séculos, judeus, cristãos e muçulmanos cantaram a alegria de rezar entre os muros da “cidade abençoada”. Durante séculos, judeus, cristãos e muçulmanos se mataram pelo
controle da “cidade das oliveiras”. Já que o Deus único, adorado pelas três religiões, dificilmente tomará partido, resta esperar que um
dia os homens cheguem a um acordo, para que a cidade de Jerusalém finalmente se torne digna do nome.
Releia os textos das páginas 8 e 9 e escreva uma redação comentando o poema abaixo, de autoria desconhecida:
“Dizem que o problema é religioso, mas na verdade é político.
Dizem que o problema é político, mas na verdade é religioso.
Dizem que há um problema, mas na verdade não há solução.
Dizem que há uma verdade, mas na verdade só há mentiras.
Será que Deus está ouvindo? Jerusalém está surda.”
Mapa 4
MAR
MEDITERRÂNEO
MAR
MEDITERRÂNEO
➥
ISRAEL
Jerusalém
ISRAEL
EGITO
JORDÂNIA
MAR
MORTO
EGITO
(Península do Sinai)
ISRAEL
CISJORDÂNIA
ISRAEL
A
A
AZ
G
A
AZ
G
Z
Jerusalém
Jerusalém
A
Jerusalém
G
SÍRIA
SÍRIA
E
LÍBANO
Golã
1
MAR
MEDITERRÂNEO
D
LÍBANO
A
3. A soberania sobre Jerusalém.
Esse foi o abismo que tragou os negociadores em Camp David. Arafat reiterou
a exigência de soberania sobre a parte
oriental da cidade, ocupada por Israel
na Guerra dos Seis Dias e habitada majoritariamente por palestinos. Nenhum
líder israelense dispõe de condições políticas para fazer essa concessão. Mas
Barak parece ter abdicado da ladainha
MAR
MEDITERRÂNEO
IX
2. O Estado Palestino e suas fronteiras.
O princípio da proclamação de um Estado nacional palestino já foi aceito, explicitamente, por Barak. Uma solução
territorial parece ter sido cartografada
em Camp David. O novo Estado se
estabeleceria em toda a Faixa de Gaza
e em cerca de 90% da Cisjordânia. Israel anexaria os 10% restantes, que
abrangem os principais blocos de colônias judaicas e concederia em troca
algumas pequenas áreas despovoadas de
seu próprio território.
LÍBANO
Conquistas israelenses na
Guerra dos seis dias (1967)
A
A pirueta de Barak foi insuficiente, pois Arafat não pode, sob pena de destruir-se como líder palestino, desistir da
Cidade Velha, o coração de Jerusalém. Ao
lado do bairro muçulmano, está o quadrilátero sagrado denominado Haram alSharif pelos muçulmanos e o Monte do
Templo pelos judeus. Nesse quadrilátero
de ressonâncias milenares encontram-se
a Mesquita de Omar, no Domo do Rochedo, e a Mesquita de al-Aqsa. Segundo
versões contestadas por diversos arqueólogos, soterradas em algum lugar na
esplanada das mesquitas, estariam as ruínas do Templo de Salomão.
O futuro de Jerusalém concentra,
agora, os problemas da paz e da guerra na
Terra Santa. E alguns quarteirões pontilhados de lugares sagrados concentram o
problema da soberania sobre Jerusalém.
Todos os balões de ensaio já flutuam no
céu. Alguém – especula-se que ninguém
menos que Clinton – sugeriu a partilha
vertical e horizontal da Cidade Velha, de
modo a garantir uma soberania israelense
sobre o subsolo. Há propostas um pouco
menos imaginativas, que sondam caminhos para uma soberania compartilhada
sobre os lugares santos. Falou-se até em
“soberania divina” sobre mesquitas, templos e muros...
Detalhes irrelevantes diante do prêmio da paz? Não – sob o ponto de vista dos
nacionalismos israelense e palestino, erguidos sobre o pedestal de mitos ancestrais.
MAR
MEDITERRÂNEO
Estado de Israel
(1949/67)
A aproximação do fim do mandato britânico, em 1947, fez com que a ONU
propusesse a partilha da Palestina entre árabes e judeus (veja o Mapa 1). À época, embora os líderes árabes rejeitassem em bloco a criação de um Estado judeu, cada um deles
nutria seus próprios projetos e não existia uma liderança palestina independente. Resultado: na primeira guerra regional, em 1948, os exércitos árabes, em teoria muito superiores às forças israelenses, foram derrotados. E Israel ocupou grande parte do que
deveria ser o Estado palestino (veja o Mapa 2). Centenas de milhares de refugiados
palestinos buscaram abrigo nos países vizinhos, principalmente a Jordânia.
A Organização pela Libertação da Palestina (OLP), criada em 1964, nasceu na
verdade como um apêndice da diplomacia dos Estados árabes mais fortes. A Guerra dos
Seis Dias subordinou os palestinos da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental à ocupação militar israelense (veja o Mapa 3). Mas esse fracasso dos Estados árabes resultou na
ascensão do grupo nacionalista Al Fatah, cujo líder, Yasser Arafat, assumiu a secretariageral da OLP. Em 1970, a idéia da “unidade árabe” sofreria um novo golpe com o massacre de milhares de palestinos pelas forças jordanianas, no episódio conhecido como
Setembro Negro.
A resistência palestina transferiu-se para o Líbano de onde seria expulsa em 1982
por uma invasão israelense, que teve o apoio velado de vários países e facções árabes.
Arafat não era mais o líder de um componente do tal “mundo árabe”, mas da nação
palestina que buscava se constituir em Estado. Antes disso, em 1979, os Acordos de
Camp David, patrocinados pelos Estados Unidos, propiciaram a devolução do Sinai ao
Egito e selaram a paz entre egípcios e israelenses, dissolvendo a frente militar árabe das
guerras de 1967 e 1973.
A grande mudança ocorreria em 1987, com a explosão da Intifada (“sobressalto”,
em árabe), uma revolta popular na Cisjordânia e Gaza ocupadas. Seus líderes eram jovens representantes das dezenas de milhares de palestinos forçados a trabalhar todos os
dias em Israel, recebendo baixos salários e sendo submetidos a vergonhosas revistas policiais. O exército israelense, acostumado a enfrentar soldados árabes e guerrilheiros palestinos, reagiu de forma desastrada à Intifada, matando centenas de jovens. A liderança
do movimento não era da Al Fatah, mas de grupos independentes e do nascente movimento islâmico fundamentalista Hamas.
O hábil Arafat conseguiu, porém, assumir o comando do movimento e utilizouo para operar importante guinada: em 1988, anunciou o abandono da luta armada,
iniciando uma ofensiva política rumo ao Estado palestino e à paz com Israel. Essa iniciativa, que encontrou grande acolhida na opinião pública internacional, seria interrompida pelo apoio de Arafat ao iraquiano Saddam Hussein, na Guerra do Golfo (1991).
O líder palestino dependia economicamente do Iraque e temia que a liderança de
Saddam Hussein o sobrepujasse entre os palestinos.
O encerramento da Guerra Fria e a derrota do Iraque de Hussein abriram caminho para o processo de paz entre Israel e a OLP. Sem a União Soviética, os Estados
árabes renunciaram, em definitivo, à meta histórica da eliminação do Estado de Israel.
O vácuo geopolítico criado pela retração de Moscou foi preenchido pelos Estados Unidos. Na Guerra do Golfo, Washington concluiu uma “grande barganha” com a Síria,
entregando-lhe tacitamente o controle sobre o Líbano e comprometendo-se a pressionar
Israel a fazer concessões.
Nesse contexto de rápidas mudanças, Arafat retomou a ofensiva pela paz. Enfraquecido, terminou assinando uma espécie de “paz dos vencidos”, em 1993, que reconheceu a existência de Israel, em troca do vago princípio da devolução de territórios
palestinos ocupados. O governo constituído pela OLP, denominado Autoridade Palestina, ganhou autonomia sobre Gaza e parte da Cisjordânia (veja o Mapa 4).
Em 1993, Israel reconheceu, de forma velada, a inevitabilidade do surgimento
de um Estado palestino. De lá para cá, no tortuoso processo de paz, pontilhado por
avanços e recuos e sempre ameaçado de implosão, os líderes israelenses e palestinos tateiam
em busca de uma definição sobre as fronteiras entre os dois Estados que partilharão a
Terra Santa. Não há certeza de paz e estabilidade para a região mesmo se essa definição
for encontrada. Se não for, a violência será previsível.
F
1. O direito ao retorno dos palestinos
refugiados da guerra de 1948.
São cerca de quatro milhões de refugiados. Israel não admite o direito ao
retorno, que provocaria uma revolução
demográfica no país de 5,9 milhões de
habitantes. A solução tacitamente aceita por Arafat é a criação de um fundo
internacional para compensar os refugiados. Além disso, Israel receberia,
simbolicamente, algumas dezenas de
milhares deles.
Plano de partilha da ONU
(1947)
Mapa 3
CISJORDÂNIA
MAR MORTO
sobre a “capital eterna e indivisível” de
Israel, propondo um novo desenho dos
limites da cidade com a inclusão de vários subúrbios árabes. Assim, estaria
aberta uma fresta para a proclamação
da capital palestina numa Jerusalém
Oriental redesenhada.
MAR MORTO
dois lados saltaram barreiras tidas como
intransponíveis e roçaram o sucesso.
Agora, luta-se contra o tempo. Um
exame dos três pontos cruciais pendentes
revela que o oásis da paz exige boa dose de
criatividade, mas deixou de ser uma miragem no deserto:
Mapa 2
SÍRIA
Mapa 1
A
idéia da existência de uma nacionalidade palestina, independente de uma
“nação árabe” ampla e abstrata, é recente. Seu marco fundamental foi a falência histórica
do pan-arabismo na Guerra dos Seis Dias (1967). Sem contar com o apoio do “mundo
árabe” – e de seu principal líder, o então presidente egípcio Gamal Abdel Nasser – os
palestinos tiveram de valer-se apenas de suas próprias forças contra os ocupantes israelenses. E assim constituíram sua nacionalidade, hoje à beira de materializar-se com a
criação do Estado independente.
A formação da maioria dos Estados árabes remonta ao final da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), quando o Império Turco Otomano desmoronou. Para obter o
apoio dos chefes tribais árabes contra os turcos, os britânicos prometeram a formação de
um “grande Estado árabe”. Ao mesmo tempo, prometeram apoiar a criação de um “lar
nacional judaico” na Palestina. Esse compromisso, expresso na Declaração Balfour de
1917, destinava-se a ganhar o apoio da influente opinião pública judaica nos Estados
Unidos, que hesitaram em entrar na guerra. Era também um instrumento para mobilizar as massas de judeus na Rússia contra a revolução comunista de 1917.
Londres frustrou o mundo árabe, entregando a seu principal líder, o emir Faiçal,
apenas o desértico reino da Transjordânia, enquanto os ricos Síria e Líbano permaneciam sob mandato francês. Palestina e Iraque caíram sob mandato britânico.
Nas três décadas seguintes, os ingleses conseguiram desagradar a árabes e judeus
na Palestina. Sob pressão internacional, a Grã-Bretanha permitia que judeus perseguidos pelo nazismo na Europa se instalassem em terras compradas a camponeses palestinos, enfurecendo os líderes árabes. Por outro lado, temendo a ira dos árabes, maiores
provedores do seu petróleo, os britânicos impunham limites à imigração judaica na Palestina, o que enfurecia os líderes sionistas.
CISJORDÂNIA
Reprodução
(Edward W. Said, The question of Palestine, New York, Random House, 1992, p. 243-244)
Nacionalidade: palestina
MAR MORTO
A Palestina é a última grande causa do século XX com raízes fincadas no período
clássico do imperialismo. Tenho certeza de que seus protagonistas, árabes e judeus,
sobreviverão ao antagonismo, porque é certo que a coexistência, a tolerância e a solidariedade
devem prevalecer sobre o exclusivismo, a intransigência e o segregacionismo. O povo palestino
constitui hoje uma nação no exílio, não uma coleção aleatória de indivíduos. Qualquer um
que conheça um mínimo sobre esse povo sabe, também, dos profundos laços existenciais que o
mantém unido, e que o conectam histórica, cultural e politicamente à terra da Palestina.
Por demasiados anos, as políticas oficiais de Israel e dos Estados Unidos (...) assumiram que os
palestinos se dissolveriam no mundo árabe (...) ou que os palestinos aceitariam uma
subserviência permanente sob a “limitada autonomia” de uma espécie de bantustão. (...)
Porém, parte dos judeus israelenses e não israelenses compreenderam que se israelenses e
palestinos podem ter algum futuro decente, ele deve ser um futuro compartilhado,
não baseado na anulação de um lado pelo outro.
MAIO
2000
7
LUGARES SANTOS DIVIDEM A TERRA SANTA
O
dia 13 de setembro era o limite.
Agora, depois do fracasso das negociações
patrocinadas por Bill Clinton em Camp
David, é novembro – Yasser Arafat, o presidente da Autoridade Palestina, não parece ter alternativa à várias vezes prometida
proclamação do Estado soberano. Negociações frenéticas com Israel estão em andamento, mantendo viva a esperança de
um acordo definitivo de paz na região. Se
essas tentativas derradeiras fracassarem, o
novo Estado já nascerá, ao menos tecnicamente, em guerra com os israelenses.
Há sete anos, em 13 de setembro
de 1993, um aperto de mãos histórico entre Arafat e o então primeiro-ministro de
Israel, Yitzhak Rabin, simbolizou o espírito
dos Acordos de Oslo. A conjuntura internacional e regional da época tinha empurrado os dois nacionalismos rivais para um
“processo de paz”. O princípio sobre o qual
tudo se assentava era o da devolução dos
territórios palestinos ocupados na Guerra
dos Seis Dias (leia matéria à pág. 7).
Nos termos vagos dos acordos, o
recuo gradual de Israel de áreas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza daria lugar à implantação de zonas de autonomia palestina. A confiança, paulatinamente construída, seria o combustível para a retomada das
negociações sobre os fulcros de irredutíveis
oposições. No encerramento do século, a
Terra Santa poderia se tornar, enfim, uma
terra de paz.
Nada saiu como previa o roteiro.
Em novembro de 1995, Rabin foi assassinado por um fanático judeu, que o culpava por “vender” Samaria e Judéia – os nomes bíblicos da Cisjordânia ocupada. Em
maio de 1996, após uma campanha eleitoral pontilhada por atentados cometidos
pelas facções radicais do Hamas, o principal agrupamento islâmico palestino, o Partido Trabalhista cedeu o poder ao Likud.
O novo governo de Israel, contrário aos
Acordos de Oslo, praticamente congelou
o processo de paz, conduzindo sucessivas
rodadas de negociações a pontos mortos,
dilatando prazos intermediários de retiradas e semeando milhares de novas residências de colonos na Cisjordânia.
Muitas vezes, o trem quase descarrilou. Em outubro de 1998, um novo empurrão americano produziu o acordo intermediário de Wye Plantation. Naquele momento, contudo, esvaíam-se as esperanças
em uma paz abrangente do tipo mencionado por Shimon Peres, o líder trabalhista
derrotado em 1996, que falava num “mercado comum da água” e na integração econômica dos Estados do Oriente Médio. O
“espírito de Wye Plantation” não era o da
“paz dos bravos” anunciada em Oslo, mas
o da “paz dos vencedores”. Num clima sombrio, desenhavam-se mapas de um futuro
Estado palestino fragmentado – um arquipélago de ilhas minúsculas de soberania
rodeadas por faixas de colônias israelenses.
A vitória do trabalhista Ehud
Barak, nas eleições de maio de 1999 em
Israel, reacendeu o fogo da esperança.
Barak apostou as fichas do seu governo na
conclusão do longo processo de paz e lançou-se a novas rodadas de negociações com
Arafat. Em Camp David, em julho, os tabus que separam os duelistas foram finalmente abordados. E, apesar do desenlace
melancólico da tentativa, sabe-se que os
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
➥
MAIO
2000
Territórios palestinos autônomos
Territórios sob controle israelense
JORDÂNIA
MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO • PANGEA • MUNDO
AS RAÍZES DO ESTADO DE ISRAEL
O
s judeus constituíram, ao longo da Idade Média européia, um povo “diferente”. Proibidos pelos governantes cristãos de possuir terras e de exercer inúmeros ofícios, eram, entretanto, bem-vindos
como usurários e comerciantes, peças fundamentais para financiar guerras e cortes
luxuosas. A “diferença” judaica era, em
geral, marcada pela obrigação de usar roupas singulares e de viver em bairros diferentes, os guetos.
Em momentos de agitação popular – camponeses revoltados com a alta de
preços, por exemplo – ou de cofres vazios
nas cortes, um pogrom, um saque aos bairros judaicos, habilmente dirigido por reis,
nobres e líderes religiosos acalmava corpos,
espíritos e bolsos. “Os judeus mataram
Cristo” era o mote favorito dos antisemitas...
O ataque aos judeus – às vezes
mesclados a outros grupos, como os ciganos ou os mouros, na Espanha – de fato
constituiu um elemento importante na
afirmação de Estados unitários cristãos. São
os casos da Reconquista católica da
Espanha e da consolidação de Portugal, no
século XV. Ou da revolta camponesa medieval de Chmelniecki, até hoje um herói
popular na Polônia.
Essa incômoda posição de bodes
expiatórios levou os judeus europeus a reagirem de duas formas à discriminação.
Muitos resolveram celebrar a “diferença”
(afinal, a Bíblia não diz que os judeus são o
povo escolhido por Deus?), afastando-se ao
máximo dos “góim”, os não judeus. Foi o
caso do movimento hassidista, nascido na
Polônia do século XVIII, e cujos fiéis até
hoje usam roupas negras, barbas longas
e deixam crescer os cabelos das têmporas – são “diferentes” em qualquer país
onde vivam.
Outra parcela da população judaica européia engajou-se em massa nos mo-
O POVO “DIFERENTE”
O sionismo, força nacionalista que construiu Israel, só se
tornou majoritário entre os judeus da Europa após o
genocídio nazista
© Hulton Getty/Getty Images
8
Nazistas fazem boicote a lojas de judeus
vimentos que pregavam a igualdade e a
emancipação de todos os cidadãos. Primeiro, a Revolução Francesa de 1789, com sua
mensagem internacionalista, que permitiu
a emancipação dos judeus em várias partes da Europa. Depois, o socialismo, que
empolgou multidões de judeus. Não por
acaso, muitos de seus líderes eram judeus
– como o ucraniano Leon Trotsky, a polonesa Rosa Luxemburgo e o alemão Eduard
Bernstein.
O sionismo, a idéia de criar um
Estado judeu, nasceu no fim do século
XIX, quando nacionalismos pipocavam
por todos os cantos. O curioso é que o
grande teórico do sionismo, o jornalista
húngaro Theodor Herzl (1860-1904) ten-
tou “vender” aos governantes europeus a
idéia de um Estado Judeu – inicialmente
em Uganda, depois na Palestina – como
um bom negócio para todos. Os governos
se veriam livres da multidão de judeus pobres que migravam da Polônia ou Rússia
rumo à França ou à Alemanha em busca
de uma vida melhor. E os judeus prósperos poderiam gozar da emancipação, e
mesmo da assimilação, sem serem comparados aos “primos” esfarrapados. Observe
esse trecho do livro O Estado Judeu, a carta-programa política de Herzl:
“... o movimento que proponho, e que
há de levar à formação de um Estado, prejudicaria tão pouco aos franceses israelitas como
aos assimilados de outros países. Pelo contrá-
rio, lhe seria proveitoso (...). Poderiam assimilar-se tranqüilamente, já que o atual movimento anti-semita seria detido para sempre.” Em outro trecho, Herzl dizia: “os judeus pobres levam o anti-semitismo à Inglaterra e já o levaram à América”.
Corrente minoritária
O sionismo foi francamente
minoritário entre os judeus da Europa, em
relação às seitas religiosas e às correntes
emancipacionistas, até a Segunda Guerra
Mundial. Grupos sionistas-socialistas, pequenos mas muito ativos, começaram a
enviar seus integrantes à Palestina para criar
os kibutzim (comunas agrícolas) no final
do século XIX, na tentativa de sair do plano das idéias. Contavam com o apoio de
milionários judeus da Europa e dos Estados Unidos, que compravam terras de
grandes proprietários turcos e árabes, ansiando pelo sumiço dos “primos pobres”
de sua vizinhança.
Só o genocídio de seis milhões de
judeus pelos nazistas é que transformou o
sionismo em força majoritária entre os sobreviventes. As teses dos assimilacionistas
haviam sido demolidas, já que elites “cultas”, como as da Alemanha e da Áustria,
apoiaram sem problemas o extermínio. E
a massa religiosa fora chacinada quase sem
reagir, apesar de seus apelos a Deus...
Uma ressalva: desde o momento em
que tomaram o poder na Alemanha, em
1933, até pelo menos 1941, os nazistas tinham um projeto que parecia encontrar-se
com o ideal de Herzl. Pretendiam expulsar
os judeus europeus rumo à África ou à Palestina. A “solução final”, a idéia de exterminar a população judaica, nasceu apenas
no final de 1942, quando os ventos da guerra começaram a soprar a favor dos Aliados.
Naquele momento desesperado, a “solução
final” funcionou como instrumento poderoso de manutenção da solidez ideológica
do regime (olha aí o bode expiatório, outra
vez). Mas essa é outra história.
Na contracorrente do sionismo
Se há alguma coisa que realmente pode distinguir o povo judeu é o gosto
pelo debate. Livros sagrados judaicos, como a Torá, incorporam ao texto religioso
inúmeros comentários, muitas vezes conflitantes. Em um ambiente propenso à disputa intelectual, não é de espantar que um dos maiores escritores judeus da atualidade, o norte-americano Philip Roth, tenha escrito vários livros defendendo uma
visão diametralmente oposta ao sionismo: o “diasporismo”, ou seja, o retorno da
população judia concentrada em Israel aos países europeus nos quais viveram durante séculos.
Comente a seguinte passagem do livro Operação Shylock (Companhia das
Letras, 1994), no qual um personagem, duplo do próprio autor, expõe em uma
entrevista suas teses sobre o diasporismo:
“Eu sou inimigo de Israel, se o senhor deseja colocar a coisa em termos
sensacionalistas, só porque sou a favor dos judeus e Israel não é mais do interesse
dos judeus. Israel se tornou a mais grave ameaça à sobrevivência dos judeus desde o
fim da Segunda Guerra Mundial. (...) O diasporismo tem como objetivo a dispersão dos judeus no Ocidente, sobretudo o reassentamento de judeus israelenses de
origem européia nos países europeus onde havia população judaica considerável
antes da Segunda Guerra Mundial. O diasporismo planeja reconstruir tudo, não
num Oriente Médio estranho e ameaçador, mas nos próprios locais onde tudo floresceu outrora, e ao mesmo tempo busca evitar a catástrofe de um segundo
Holocausto, causado pela exaustão do sionismo como força política e ideológica. O
sionismo decidiu restaurar a vida judaica e a língua hebraica num lugar onde nenhuma das duas existiu em nenhum nível de verdadeira vitalidade durante quase
dois milênios (...) Acho que o senhor concordaria que um judeu está mais seguro
hoje andando ao léu por Berlim do que saindo desarmado nas ruas de Ramallah”.
© Hulton Getty/Getty Images
OUTUBRO
2000
Soldados israelenses em ação:
mais segurança em Berlim
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AS RAÍZES DO ESTADO PALESTINO
ma terra sem povo para um povo
sem terra – era o lema do movimento sionista, que germinou na Europa no início do século XX. A “terra sem povo” era a Palestina;
o “povo sem terra”, obviamente, era o judeu.
A premissa era completamente falsa. A Palestina nunca foi uma “terra sem
povo”. Ao contrário, foi ocupada desde
pelo menos o século VII por uma imensa
maioria de árabes muçulmanos e também
por minorias de árabes cristãos e judeus.
Isso significava, entre outras coisas, que os
judeus de origem européia só poderiam
ocupar a Palestina mediante a expulsão dos
habitantes árabes daquela região. E isso foi
feito, como reconheceu ninguém menos
que o próprio general Moshe Dayan, comandante das tropas israelenses durante a
Guerra dos Seis Dias.
“Nós viemos para este país que já
era habitado pelos árabes, e aqui estamos
estabelecendo um Estado hebreu, isto é
judaico. Em áreas consideráveis do país,
compramos as terras dos árabes. Cidades
judaicas foram construídas no lugar das
cidades árabes. Vocês nem sabem o nome
das cidades árabes, e eu não os culpo por
isso, porque nem existem mais os antigos
livros de geografia; mas não apenas os livros não mais existem, como as cidades
árabes também desapareceram.” Dayan
deu essa declaração ao jornal israelense
Haaretz de 4 de abril de 1969. A declaração foi citada pelo professor palestino
Edward Said, em seu livro The Question of
9
O POVO DA “TERRA SEM POVO”
Vitória sionista foi o triunfo da “interpretação” sobre a
“presença”. Mas a história e a cultura palestinas teimam
em existir e construir um Estado soberano
© Uzi Keren/Newsmakers-Getty Images
U
Protesto palestino: insistência em querer existir
Palestine. Temos, então, o seguinte problema: o movimento sionista europeu foi
obrigado a negar a existência dos árabes
palestinos, como forma de justificar e legitimar um suposto “retorno” do povo judeu ao seu lar de origem, a Palestina. Mas
como negar a existência de todo um povo?
O próprio Said dá uma resposta:
“Devemos entender a luta entre palestinos e
OUTUBRO
2000
sionistas como uma luta entre a presença e a
interpretação, a primeira sendo sempre derrotada e eliminada pela segunda”. E como a
“intepretação” sionista ocultou a “presença”
árabe palestina? Simples: por um jogo de
mobilização de preconceitos culturais.
Os árabes, do ponto de vista ocidental, constituíam um povo “atrasado”,
uma civilização “estranha”, que adotava
outros deuses, outras vestimentas, outro
alfabeto. Os sionistas, ao contrário, eram
cidadãos europeus (ainda quando provenientes da Europa oriental). Assim como,
à época das Grandes Navegações, os habitantes originais das Américas eram vistos
como “selvagens” – prova disso é que não
conheciam as letras efe, ele e erre, e não
tinham, portanto, “nem fé, nem lei, nem
rei” – também os árabes eram descritos
como uma civilização exótica. Eram seres
desencarnados, que não possuíam história, despojados de seu passado, seu presente e seu futuro. Eram não-seres.
E assim se construiu o mito de uma
“terra sem povo”. O movimento sionista
contava com a simpatia de uma forte percepção eurocêntrica do mundo, que
condicionava o olhar até mesmo dos intelectuais e filósofos de esquerda, como Karl
Marx, que, por exemplo, saudou o “processo civilizatório” do capitalismo inglês
durante a colonização da Índia.
Consumada, assim, a aparente vitória da “interpretação” sobre a “presença”, os líderes sionistas podem até se permitir falar do assunto com uma certa franqueza, como fez Moshe Dayan. Mas a
“presença” de uma história e de uma cultura não se deixa enterrar tão facilmente.
A memória de todo um povo que teima
em existir foi a base sobre a qual se construiu a Autoridade Palestina, forma embrionária do Estado que resgatará para esse
povo o direito à própria história.
OUTUBRO
2000
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T&C
A HISTÓRIA DO ROMANCE HISTÓRICO
Arlenice Almeida da Silva *
O francês Balzac, um grande criador
permitiram o crescimento da literatura histórica. Há um
maior interesse pelo passado, pois ele é diferente do presente e, assim, o presente ganha um valor particular. O
romance, ao captar o tempo que muda e não o tempo que
passa, é levado a sério como forma de conhecimento; torna-se um documento histórico na medida em que descreve
uma inquietude, uma ruptura de equilíbrio entre o homem e o mundo, ou seja, um tempo problemático.
O romance histórico apresenta as seguintes características formais: desenvolvimento extensivo de ações no
tempo e espaço com o objetivo de narrar a complexidade
do mundo; isolamento de determinadas ações, de modo
a elucidar-lhes os antecedentes e as conseqüências; os heróis não são positivos ou negativos, mas “médios”, isto é,
as circunstâncias sociais dominam totalmente a vida dos
indivíduos impedindo qualquer ação individual heróica.
Tal técnica possibilita o realismo através da descrição
lenta e minuciosa da complexidade social: o papel do
herói médio é o de colocar em contato os antagonismos
sociais, possibilitando a apreensão do movimento da
história como resultante desses conflitos. E, por fim, o
uso abundante do diálogo e da técnica bifocal, na qual o
autor coloca no primeiro plano personagens fictícias que
servem de ligação para um plano mais distante, onde surgem as personagens históricas e a reconstituição do momento. A narrativa oscila entre o plano inventado e o plano reconstituído, unindo ficção e realidade.
A origem
E
R
R
A
M
O
S
Por problemas de editoração, a autoria do texto
Brasil, meu mulato inzoneiro, publicado no T&C
nº 5 (setembro de 2000), foi erroneamente
atribuída à professora Vilma Arêas, colaboradora
da edição anterior. Os textos do número de
setembro são de autoria do editor de T&C.
O inglês Robin Hood, uma grande criação
© Thaís Botelho/ CID
romance histórico se distingue no âmbito
da literatura pelo seu enorme e antigo sucesso junto ao
grande público. Atualmente, séries de romances como
Alexandros, de Valério Manfredi, e Ramsés, de Christian
Jacq, intrigam os analistas com as cifras de suas vendas,
que sugerem até mesmo a imposição editorial de um
modelo bem-sucedido. Curiosamente, na primeira metade do século XIX o romance histórico foi também o gênero que mais apaixonou o público europeu. Explicar o
fenômeno com o argumento da simplicidade e ligeireza
da narrativa não parece satisfatório, pois a questão central
fica abandonada. Por que a aventura do passado nos fascina? Buscamos a ressurreição do passado no presente ou a
presença do passado ainda vivo em nós?
Seguindo a classificação da estética antiga, o romance surge de um desmembramento da literatura épica,
ligada ao conhecimento e rememoração, em novelas gregas (como Dáfnis e Cloé de Longos) e latinas (como o
Satíricon de Petrônio e O Asno de Ouro de Apuleio). Mas
é no contexto moderno que o gênero ganha força e se
propõe a uma maior aproximação da realidade. Se o épico
antigo rememorava uma grande saga nacional através de
um tempo absoluto, mítico, procurando na glorificação
do herói a “imitação de homens superiores” (Aristóteles),
o romance moderno narra os acontecimentos nacionais
em um tempo concreto, a partir da “totalidade da vida”
prosaica dos indivíduos. Por isso, um filósofo do século
XIX, Hegel, podia afirmar que o romance moderno demonstrava não ser mais possível uma narrativa épica sobre o mundo, já que a vida se tornara prosaica, cabendo
ao romance ser “a epopéia burguesa moderna”. Mas é justamente por esse desencantamento do mundo que o romance pode ser mais realista, captando o tempo histórico
através das vivências individuais.
No romance histórico moderno, portanto, ocorre
uma nova relação com o tempo. A história não é acionada
como cenário e atmosfera, e depois abandonada. Ela vai se
afirmando e o indivíduo é apreendido na sua relação exemplar e demonstrativa com a historicidade. O crítico e filósofo marxista Georg Lukács, em sua obra O Romance Histórico (1936), argumentou que a ficção histórica de alcance
surge em um período de crise, em um momento de
reavaliação do presente, passado e futuro, no qual o escritor torna-se a consciência ideológica e literária de seu tempo, capaz de dar cor, sabor e sentido às mudanças ocorridas. Por essa razão, os clássicos romances históricos se concentram no final do século XVIII e início do século XIX,
quando a Revolução Francesa e o período napoleônico produziram uma experiência histórica de ruptura em escala
nacional e européia. De 1789 a 1815, a França e a Europa
são tomadas por acontecimentos que aceleram o ritmo da
história: mudanças radicais são instauradas rapidamente e
sucumbem com a mesma velocidade. Tais circunstâncias
© Maison de Balzac, Paris
O
Embora o auge do romance histórico tenha sido o
século XIX, sua história corre paralela ao surgimento do
gênero romance. Para o medievalista Le Goff o estilo emerge quando, no século XII, o romance tende a substituir a
concepção religiosa do mundo por uma concepção histórica. Para Lukács, do ponto de vista do conteúdo, o romance moderno nasceu da luta ideológica da burguesia
contra o feudalismo. Como autores da transição,
Cervantes e Rabelais criam uma nova forma romanesca
na qual o prosaísmo da vida é o tema da narrativa, mas
combinados com sátira e ironia, em uma forma de realismo fantástico. Mas é com a publicação do livro de Madame
de La Fayette, La Princesse de Clèves (1678), que temos o
primeiro romance moderno da literatura francesa, combinando aventura, tendência psicológica e uma feição
memorialista. A heroína não é uma personagem perdida
em um passado mal definido, mas uma mulher situada
em uma época precisa, a corte de Henrique II, que, ao
remeter à corte de Luís XIV, coloca o leitor em uma relação direta entre o passado e o presente.
No século XVIII, escritores ingleses como Defoe,
Richardson, Fielding e Smollett fazem com que o romance abandone a região ilimitada do fantástico, voltando-se para a representação da vida privada. Na França, o mesmo acontece com Le Sage, Marivaux e Prévost,
de modo que o romance picaresco torna-se romance de
costumes, com um grande interesse pelo meio social e
importância aos detalhes materiais. Ao aprofundar estas
tendências, o romance torna-se histórico, no contexto
da Revolução Francesa, com a figuração do tempo nas
obras de Goethe, Schiller, Walter Scott, Balzac,
Pouchkine, Manzoni, Stendhal e Merimée. Neste século
da história, a imaginação literária ganha contornos ainda mais concretos, uma vez que a arqueologia, a filologia
e o estudo dos manuscritos passam a fornecer as bases
para as intrigas dos romances.
É com o escocês Walter Scott (1771-1832) que
uma ordem temporal se impõe pouco a pouco e a história
torna-se o centro básico do romance. Waverly (1814),
Rob Roy (1817), Ivanhoé (1819), e Quentim Durward
(1823) narram os grandes conflitos históricos ocorridos
nas relações entre a Escócia e a Inglaterra. Scott compreende a importância da história na vida humana, passando
a figurar os personagens como indivíduos submetidos ao
seu tempo, ao ritmo ditado pelos acontecimentos. Aqui,
a literatura estabelece o roteiro da formação do espírito
nacionalista escocês ao reproduzir o dinamismo que presidiu a passagem de uma Escócia arcaica e tribal para uma
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Escócia moderna e liberal, mas submetida à Inglaterra.
Se Scott é o marco da epopéia nacional moderna,
Balzac aproxima o tempo transformando o romance de
costumes em uma autêntica história crítica do presente.
No romance Les Chouans, Balzac procura integrar a matéria histórica ao projeto de sua grande obra, a Comédia
Humana. Nesse livro, o escritor trabalha com um certo
rigor documentos, cifras e detalhes para penetrar nas dificuldades reais da Bretanha: subdesenvolvimento e
marginalização da França camponesa na sociedade revolucionada que beneficiava agora a burguesia urbana.
Estamos, com Les Chouans, em uma nova prática da história: uma narrativa que coloca em jogo não simples grupos de indivíduos, atores de um drama imediato, mas os
interesses de toda uma região, sua geografia e as contradições de sua sociedade. No caso, o povo bretão contra os
soldados da República. Ao problematizar a Revolução
Francesa, Balzac introduz a ruptura na história oficial: é a
epopéia negativa, o romance do mal-estar, da história problemática, a reabertura para o romance daquilo que a história tende a fechar.
Em todo caso, no mundo globalizado de hoje, no
qual o épico cai em esquecimento e o trágico em desuso,
o romance histórico tende a perder a força de coesão social que o notabilizara no passado, pois há uma outra relação com o tempo. Vivemos em uma abundância nunca
vista de informações, mas também em uma espécie de
surdez histórica, pois nossa época parece ter esquecido
como pensar o presente historicamente. O crítico americano Frederic Jameson chamou a atenção para o fato de
que escritores como Doctorow, Morgan e García Márquez
produzem romances mais “fantásticos” que históricos, ao
reembaralharem as figuras e os nomes como se fossem
cartas, apropriando-se de fatos reais apenas para misturálos com eventos imaginários. Aqui temos o passado aniquilado, o conteúdo histórico esmaecido e a substituição
da história real pela invenção da história, isto é, o modo
pós-moderno de totalizar.
Arlenice Almeida da Silva é doutora em filosofia pela
USP e professora de história do Colégio Santa Cruz,
autora de As guerras da Independência (Ática, 1995).
O romance histórico no Brasil
Presente e passado
© Reprodução: AE
©Homem do Rio Grande, de Debret
Neste pequeno comentário podemos apenas sugerir que o surgimento do gênero romance histórico e a
qualidade da obra dependem da relação que o presente
estabelece com o passado, da necessidade que o escritor
tem de entender o passado e as ações coletivas, determinando a afirmação ou negação da nacionalidade. Seria
interessante testar tal critério em autores do século XX
como Heinrich Mann (Henrique IV), Thomas Mann (José
e seus irmãos), Romain Rolland (Jean-Christophe), Tommasi
di Lampedusa (O Leopardo) e José Saramago (O memorial
do Convento).
© Museu Histórico Nacional, RJ - Estação de Carros no Sertão. Aquarela s/ assinatura
O romance histórico do século XIX é um documento de sua época na medida em que encadeia o curso
individual e histórico como uma unidade possível, confrontando imaginação com dimensão retrospectiva, paixão e ações coletivas, ficção e realidade. Sua experiência
demonstra que há uma dimensão cognitiva da literatura,
que ela é uma forma de conhecimento sobre o tempo. A
forma romance pode dizer a história: ela não é explicada
pela história nem reduzida à história, mas ilumina a história como uma narrativa sobre a experiência passada.
Em uma nação de história curta, os escritores brasileiros sofreram uma maior influência das ficções
históricas românticas francesas – nas quais o passado é nebuloso, mítico e idealizado – que da ficção histórica
realista em língua portuguesa, como Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. A tentativa histórica de José
de Alencar em A Guerra dos Mascates (1870) gera um romance repleto de alusões à política do Império, mas
com um tratamento ainda idealizado do índio, no qual o elemento heróico pertence a um tempo lendário e
não real.
O gênero ganha espaço a partir de 1870, com Alfredo de Taunay e Franklin Távora. Mas os romances
históricos desses escritores devem mais a um regionalismo estruturado no passado do que a elementos de
constituição de uma história nacional. Em todo caso, tanto em A Retirada da Laguna, de Taunay, quanto em
O Cabeleira (1876) e O Matuto (1878), de Távora, a história desempenha um papel fundamental não só pela
tematização do cangaço e das guerras dos Mascates e do Paraguai, mas pela caracterização das linhas econômicas centrais do país, apreendidas como uma competição entre o fazendeiro e o comerciante, entre a agricultura
e a indústria.
A partir da fase realista, o elemento histórico surge em análises críticas, nas quais o tempo é captado em
descrições de costumes, fornecendo as linhas gerais da evolução do Brasil. É o caso de autores como Machado
de Assis, Lima Barreto, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Antônio Callado, cujos romances sociais
deitam raízes no solo da pátria, sem cair totalmente nos braços da história.
Nossa experiência de romance histórico mais bem-sucedida no século XX foi o ciclo épico de Érico
Veríssimo: O Tempo e o Vento. Nesse vasto painel do sul do país, há uma imbricação entre o tempo histórico do
ambiente e o fluxo de consciência das personagens. A história de duas famílias, os Terra Cambará e os Amaral
é o fio romanesco que une por dois séculos os episódios do ciclo; narrativa das paixões que assumem uma
dimensão supra-individual, fundando-se na história da comunidade.
Além da obra-prima de Érico Veríssimo, outras tentativas de enquadramento histórico marcam a história do romance brasileiro mais recente, como A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, e obras de Ana
Miranda, Rubem Fonseca, João Silvério Trevisan e Isaias Pessotti. Mas é ainda um gênero pouco fecundo entre
nós, sem a força épica que o caracterizou no século XIX. (A.A.S.)
Um gaúcho
típico e o sertão
nordestino:
matéria-prima
para autores
como Érico
Veríssimo (esq.)
Atividade de T&C
A comemoração dos 500 anos reavivou o
interesse pela história do Brasil. Além das obras
acadêmicas sobre o assunto, vários livros, filmes e
mesmo séries televisivas enfocaram o passado de
nosso país. Como vimos no texto, o recurso à
história, em uma obra de ficção, pode contribuir para a compreensão do período no qual se
passa a trama, mas também traz as marcas das
contradições e pontos de vista da época na qual
a obra foi criada. Tendo isso em mente, discuta
em sala os seguintes temas:
1) O cinema brasileiro contribui para o modo
como as pessoas vêem o passado do país? Em
que medida a imagem de um passado heróico
idealizado (como no filme Independência ou
Morte, de 1970) ou caricatural (como no filme
Carlota Joaquina, de 1995) afeta a imagem que
o espectador faz da história do Brasil?
2) Muitos filmes e romances históricos têm como
base da narrativa o confronto entre personagens bons e maus. De que modo essa visão
maniqueísta da trama pode deturpar a compreensão de uma situação histórica particular? Cite exemplos.
3) A televisão brasileira costuma dar enorme importância às chamadas séries e novelas “históricas”. Você acha que elas podem contribuir
para aumentar o interesse do público pelo estudo da história? Você já se interessou em estudar com mais profundidade uma época
abordada em alguma dessas séries?
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Osmar de Oliveira*
Especial para Mundo
Diário de Viagem
BEN JOHNSON,
Joaquim Cruz, o brasileiro que foi um dos maiores do mundo nos 800 metros rasos, deu
o sinal de alerta já nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984. Corajosamente, rompeu o
véu do silêncio e denunciou a disseminação do uso do doping no atletismo. Ele apontou
a massa de músculos da superatleta americana Florence Griffith-Joyner, a rainha dos
Jogos de Seul de 1988, como ilustração do que dizia. Florence morreu no ano passado,
aos 39 anos, com problemas cardíacos. Robson Caetano, outro brasileiro, célebre nos 200
e 100 metros rasos, sempre disse para quem quisesse ouvir que a maioria dos seus
adversários corriam dopados. O esporte de alto nível, submetido às regras do espetáculo
globalizado, tornou-se uma engrenagem de produção de dopados.
A droga é o caminho para os recordes, medidos em centésimos de segundos e premiados
com fama e fortuna. A engrenagem produz dopados aos milhares e pune o doping às
dezenas. Um Ben Johnson humilhado é o preço pago para que o esporte-espetáculo
continue a funcionar, batendo recordes e gerando heróis dopados. A convite de Mundo,
Osmar de Oliveira mostra o lado sujo do maior evento esportivo do planeta.
F
oi-se o tempo em que os atletas competiam
com suas próprias forças, com suas heranças genéticas e,
vá lá, com mínimas doses de sorte tão típicas das competições esportivas. Até o final da década de 70, os médicos
afirmavam que o atleta campeão era 90% genética e 10%
a combinação de treinamento, alimentação, determinação psicológica e uma pequena ajuda da sorte, do vento e
do material esportivo.
Esses percentuais mudaram muito. A herança
cromossômica é a mesma através dos tempos, mas não
tem cotação maior que 70%. A alimentação já é diferente para um velocista e para um lançador, para uma ginasta e para um nadador. A determinação psicológica é
regulada por técnicas rigorosas de neurolingüística e até
de hipnose. A fisiologia chega ao requinte de determinar
as alterações metabólicas em cada tipo de esforço. A
medicina esportiva já é capaz de reduzir em mais da
metade o tempo de recuperação das lesões. Aí, chegou a
vez do dinheiro para fazer supercampeões correrem atrás
de patrocínios tão rentáveis que deixam para trás as dores mais lancinantes. Depois, malditamente chegou a
“droga”, o doping para abreviar o tempo de chegada e
também o tempo da vida. Agora, já na Austrália, chegaram as roupas especiais de tecidos cibernéticos que
driblam a água e o vento.
Na década de 80, o uso de drogas começou a tomar conta do esporte, com escândalos sucessivos, principalmente no atletismo, natação, ciclismo, levantamento
de peso e futebol. As estimulantes anfetaminas já não satisfaziam os atletas que buscaram nos esteróides anabólicos
(derivados da testosterona, o hormônio masculino) a fonte para a quebra de recordes acima das capacidades físicas
naturais. Os médicos responsáveis pelas leis que controlavam o doping não imaginavam que os atletas pudessem
estar usando essas drogas tão perigosas e de múltiplos efeitos colaterais, que vão até a morte (e aconteceram inúmeras, decorrentes do uso dos esteróides). Enquanto os la© Hulton Getty/Getty Images
boratórios pesquisavam técnicas de detecção dessas substâncias na urina dos atletas, eles foram se empanturrando
delas, ficando milionários e doentes ao mesmo tempo.
Quando os exames toxicológicos ficaram mais especializados, alguns monstros sagrados do esporte passaram a ser expostos ao ridículo e ao descrédito público. O
caso mais importante foi o do canadense Ben Johnson
nas Olimpíadas de Seul, em 1988. Claro que seu recorde
mundial de 1987 fora conseguido com o uso dessas bombas, sob a supervisão do médico Mario Astafhan, que ludibriava os controles de dopagem, mas hoje está afastado
dos estádios esportivos. Ben Johnson voou baixo em Seul
(9,83 segundos nos 100 metros), virou recordista e dois
dias depois teve que devolver sua medalha, foi suspenso e
humilhado. Quando tentou voltar às pistas, sem o uso
das drogas, foi um fiasco muito grande e acabou ultrapassado até por estudantes que corriam por prazer e não pelo
dinheiro. Pasmem: ainda arrumou uma boquinha de
preparador físico particular do argentino Maradona. Outro fiasco: Maradona tropeçou na cocaína, não ganhou
mais nada e Ben voltou para o Canadá
Mas o que leva os atletas a cometerem essa loucura? No começo, era para melhorar a performance e chegar
em primeiro lugar. Agora, é por necessidade mesmo, porque quem não usa só chega do segundo lugar para trás.
A década dos recordes
No passado recente, os recordes custavam a
cair. Era um sinal de que estavam sendo alcançados
os limites da velocidade, força e resistência do ser humano. Mas o espetáculo globalizado do esporte é movido por recordes. Nas duas últimas décadas, eles começaram a cair com freqüência impressionante. O
exemplo mais evidente é fornecido pela
“prova das provas”: os 100 metros rasos
(veja o Gráfico). O célebre recorde de
Jim Hines, conseguido nos Jogos da
Cidade do México, em 1968, e considerado imbatível à época, perdurou
15 anos. O novo recorde de Calvin
Smith ainda durou oito anos. Na década de 90, depois de Carl Lewis, o recorde é quebrado a intervalos de
dois ou três anos. Como a biologia do ser humano não mudou, há algo de “misterioso” no
fenômeno...
Evolução do recorde dos 100 metros rasos
9.95
Jin
Hines
9.93
Calvin
Smith
9.86
Carl
Lewis
Fonte: IAAF
Jesse Owens, dos EUA,
astro em 1936, hoje teria
marcas medíocres
1968
O IDEAL OLÍMPICO
1983
1991
9.85
Leroy
Burrel
1994
9.84
Donovan
Bailey
1996
9.79
Maurice
Greene
1999
Salvam-se ainda os atletas dos esportes coletivos como o
basquetebol, o voleibol, o futebol e desportistas de modalidades em que o ganho de massa muscular não é interessante. Do ponto de vista médico, é incompreensível que
alguém use esses produtos para aumentar tanto a massa
muscular e, portanto, a força, mas cujas contrapartidas
abrangem agressividade, atrofia do testículo, do pênis,
diminuição da produção de espermatozóides, queda de
pelos e cabelos, afinamento da voz, câncer de fígado, lesões na próstata, facilidade de enfartar o coração, prejuízo
na função renal e até a morte.
Dinheiro compra a saúde
Há pouco, eu indaguei de um atleta americano
que nitidamente havia se drogado com esteróides por que
fazia aquilo. Ele respondeu: “Doutor, depois que fui campeão, ganhei US$ 10 milhões e agora vou gastar só US$ 1
milhão para os médicos curarem os efeitos colaterais que
a droga me deixou”. Pobre rapaz que ainda pensa que os
médicos são onipotentes e podem curar tudo...
Nesta última década, acuados pelos rigores dos exames de laboratório e pelas suspensões que lhes foram impostas, os atletas começaram a buscar outros recursos tão vergonhosos quanto maléficos. Descobriram que o hormônio de
crescimento pode fazer efeito quase parecido ao esteróide.
Sabem que podem virar diabéticos e ter deformidades nos
pés e nas mãos, mas não estão ligando para isso. Descobriram também a eritropoietina, um hormônio fabricado pelo
rim e capaz de aumentar a resistência para as provas longas
do atletismo e do ciclismo.
Os uniformes e equipamentos de alta tecnologia que
estréiam nos Jogos de Sydney não são doping. Mas são uma
covardia. Os maiôs inteiriços, que imitam a pele de tubarão e
oferecem resistência à água menor que a própria pele humana,
vão tornar as braçadas mais rápidas e os recordes devem cair.
Mas se surgir um super atleta no Djibuti ou no Equador, ele
não poderá ganhar de um australiano, alemão ou americano
vestido com essas peles deslizantes. No ciclismo, os países mais
ricos desenham bicicletas especiais, adaptadas à altura do ciclista, ao tamanho de seus braços, ao comprimento de suas
pernas, e ainda por cima cobrem sua cabeça com capacetes de
acrílico que furam o ar para aumentar a velocidade.
Quem está ganhando medalhas agora não pode ter o
mesmo orgulho daqueles vencedores de trinta anos atrás, porque não são genuínos. São bons, é verdade, mas ajudados pela
tecnologia e infelizmente, muitas vezes, pela droga. Ultrapassam os limites dos poderes humanos deixando para trás uma
multidão de jovens que querem competir limpamente. A vantagem é só financeira e isso não é pouco. Mas deve ficar aquele
sentimento de que “não ganhei por mim mesmo” e isso não é
bom para o espírito. E fica ainda a preocupação de que, em
poucos anos, as tecnologias farmacêuticas e têxteis vão produzir outros campeões não genéticos e os campeões de hoje serão
esquecidos. É a lei do mais forte, num campo em que deveria
imperar a lei do mais limpo.
*Osmar de Oliveira, jornalista de esportes da TV
Cultura e do canal a cabo PSN, é médico especializado
em Medicina Esportiva.
ANO 3
■
Nº 6
■
OUTUBRO 2000
■
tecnologia ■ vocação ■ emprego ■
Que Fazer?
Vestibular 2000
Hora de escolhas para muitos, o vestibular 2000 está chegando. Nesta edição,
sugerimos uma brecha no cotidiano de preparo para as provas, uma parada para pensar: o que afinal queremos realizar e como aumentar as chances de sobrevivência?
De um lado, redes de conhecimento começam a organizar uma nova economia,
novos mercados, novas profissões e formas de trabalhar. De outro, a necessidade de
diálogo com o passado, as expectativas dos pais e o nosso próprio repertório de expectativas. Como criar diálogo entre passado e futuro?
Até uns dez anos atrás, determinadas profissões tinham a fama de ser “elevadores
sociais”, proporcionando “status” e bons ganhos financeiros, que se estendiam não só
para os profissionais que as escolhiam, como também para os seus familiares.
Agora, tudo o que está vinculado a tecnologia parece mais promissor e rentável.
Mas, também nesse caso, todo cuidado é pouco. Primeiro, porque nos últimos meses
ocorreu um importante ajuste de mercado, em que as famosas empresas pontocom passaram a valer menos. Isso ocorreu no mundo todo: começou nos EUA e chegou ao Brasil.
Além das dificuldades comerciais, a peculiaridade da situação brasileira é a
constatação de que a péssima distribuição de renda no país é um obstáculo à difusão de
novas tecnologias. Pesquisas já revelam que o número de internatutas cresce com menos
dinamismo.
O futuro, tecnologicamente revolucionário, que parecia estar ao alcance da mão,
talvez não seja tão fácil de alcançar.
A situação torna ainda mais decisiva a preparação de cada um não só para o
vestibular, mas para um estilo de vida em que entrar na faculdade deixa de ser garantia
de uma carreira linear, previsível ou que atenda às expectativas dos que nos rodeiam.
✔ Profissões do futuro
✔ Brasil digital: o fosso pode aumentar
Para encontrar o tão sonhado emprego que se encaixa
na sua qualificação, pode não ser mais suficiente vasculhar os classificados. Se o profissional acompanhar
os movimentos do mercado e diversificar sua formação,
ele próprio criará as oportunidades. Três conceitos ou
idéias-chave fundamentam o novo paradigma de
empregabilidade: redes, conhecimento e cidadania.
O alerta foi lançado pela Câmara Americana de Comércio de São Paulo. O Brasil é um “país com desigualdades sociais tão fortes que hoje corre o risco de novamente privilegiar as camadas sociais mais ricas e aumentar a distância entre os que têm telefones e computadores e os que não têm, entre uma elite diminuta de
universitários e a massa de semi-analfabetos”.
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✔ Buscando o que fazer
O momento da escolha profissional parecia distante.
De repente, está em cima da hora. Será que o tempo
gasto despreocupadamente foi um tempo perdido? Será
que os outros ficaram à frente? E se você escolher uma
carreira e depois mudar de idéia?
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✔ Os pais também querem escolher
O que fazer para lidar com a ansiedade dos pais durante o processo de escolha profissional dos filhos? Às
vezes eles se mostram tão preocupados e angustiados
que, mesmo não intencionalmente, acabam interferindo
mais do que o desejável.
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outubro 2000
outubro 2000
2
Redes: via de acesso às profissões do futuro
Brasil digital: o fosso entre ricos
e pobres pode aumentar
Também é preciso buscar novas formas de aprendizado, não somente as que oferecem algum tipo de certificação formal. Hoje, ganha
força a idéia das redes de conhecimento, em que há intercâmbio de
informações e experiências entre profissionais de diversas áreas.
Gilson Schwartz,
editor do
Que Fazer?
e autor de
As Profissões do
Futuro.
P ara encontrar o tão sonhado emprego que se encaixa na sua
qualificação, pode não ser mais suficiente vasculhar os classificados. Se
o profissional acompanhar os movimentos do mercado e diversificar sua
formação, ele próprio criará as oportunidades. Três conceitos ou idéiaschave fundamentam o novo paradigma de empregabilidade: redes, conhecimento e cidadania.
Esses são os temas centrais do novo livro do editor do Que Fazer?, Gilson
Schwartz, As Profissões do Futuro, que acaba de ser lançado pela PubliFolha
(se você tem acesso à Internet de banda larga, confira uma entrevista ao
UOL News em www.uol.com.br/uolnews/carreira/ult267u20.shl). Schwartz,
Professor Visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de
São Paulo, está coordenando a formação de uma rede de comunicação
entre escolas de ensino médio, universidades e empresas, públicas e privadas. A seguir, algumas das principais idéias do livro.
Redes, atividades, projetos
Como valorizar o diploma, se ele não garante mais emprego?
Ampliando o conceito de emprego para uma visão mais ampla de atividades e projetos. Mas, para estar apto a se engajar em atividades e
projetos, é preciso ser conhecido e reconhecido. E isso é possível apenas
quando desenvolvemos habilidades de comunicação, entrando em contato com pessoas que atuam em áreas do nosso interesse.
Gestão do conhecimento
Numa das mais novas disciplinas da atualidade, a “gestão do conhecimento”, os especialistas ensinam que é muito importante desenvolver e ter consciência do que se denomina conhecimento “tácito”, em
oposição ao conhecimento explícito, que está nos livros. É a velha idéia
da “escola da vida”, sendo reaproveitada pelos mais avançados teóricos
das novas formas de administração de empresas.
O mais importante, portanto, é combinar a capacidade de se ligar
a redes com o permanente desenvolvimento de competências. O futuro é
cada vez mais incerto, pois um setor ou empresa pode deixar de existir a
qualquer momento. Hoje, o desenvolvimento das competências é a condição necessária (mas nem sempre suficiente) da empregabilidade.
Um mínimo de análise de mercado ajuda. Tecnologia da informação e comunicação concentram a maior demanda por profissionais qualificados. Em qualquer setor, o que é repetitivo, rotineiro e substituível por
máquinas ou softwares, está ameaçado.
Vivências
Muito cuidado com a proliferação de cursos, faculdades. Como
aumentou a demanda por profissionais qualificados, aumento a oferta de
cursos de todo tipo. Mas ainda são precárias as formas de avaliação da
qualidade dos cursos.
É nesse contexto que a vivência em projetos de qualidade pode ter
peso maior do que muito diploma (e não apenas porque em muitos casos
a qualidade dos cursos e professores é discutível, mas pela própria natureza do conhecimento gerado e distribuído em atividades e projetos, que
é tácito e favorece a formação de redes, de contatos, a inserção em
comunidades).
Buscando o que fazer
Estamos recebendo algumas cartas e e-mails com perguntas relacionadas à escolha de profissões. A partir desse número, estaremos
publicando nossas respostas.
“Sempre que achei que o momento da escolha profissional estava muito longe. De repente me dou conta de que estamos em setembro,
que o tempo passou e talvez eu não tenha feito tudo o que era preciso
para me definir por uma carreira. O que ainda posso fazer? Estou
sentindo que joguei fora meu tempo!”
Mariana (São Paulo-SP)
Mariana, quando a gente tem 15, 16, 17 anos, a nossa cabeça
está muito longe do chamado “mundo do trabalho”. Ou ela está cheia
de obrigações escolares, ou está pensando em coisas bem mais interessantes do que estudar. Geralmente, só pensam nesse “mundo” os
jovens que, por necessidades econômicas, precisam entrar nele bem
cedo, mesmo sem querer.
Para piorar, a maioria das escolas ainda está muito distante do
“mundo do trabalho”. São poucas as que oferecem aos alunos oportunidades mais concretas para eles pensarem em “vocação”, “profissões” ou “mercado de trabalho”.
Por isso, é bem provável que o tempo não tenha passado tão
rapidamente como você imagina. Talvez você tenha a impressão de
que a hora de pensar nesses assuntos chegou “de repente” porque nos
anos passados você não fez esse “exercício” de discussão sobre o
“mercado de trabalho”.
Portanto, é natural que se sinta “destreinada” para enfrentar essa
corrida. Mas sempre tem de haver um começo. Vamos a ele:
1) A sensação de que você não fez “tudo o que era preciso”
pode ser o resultado de um “truque” que inconscientemente criou para
si mesma. O truque consiste em pensar assim: “quanto mais eu acreditar que não me preparei suficientemente para a escolha profissional,
mais segurança vou ter para adiar essa decisão”. E adiar uma decisão que já pode ser tomada é, evidentemente, péssima idéia.
2) Se você não estiver sendo vítima desse “truque”, pode haver
duas causas para essa sensação: a) você é suficientemente realista e
por isso reconhece o que lhe falta; nesse caso, as coisas estão andando melhor do que você imagina; b) você é muito perfeccionista e por
isso nunca chega a uma situação que pareça satisfatória; nesse caso,
trate de se acostumar com essa dura realidade: somos imperfeitos e a
precariedade faz parte da condição humana. Nunca estamos plenamente prontos para coisa alguma.
3) Se sua hipótese (“joguei fora meu tempo”) estiver correta, sua
pergunta não pode ser mais “O que ainda posso fazer?” Você estará, a partir de agora, começando a dar todos os primeiros passos
rumo à escolha profissional. Não se assuste com isso. “Entrar na faculdade” nem sempre é um sinal de que a escolha já foi feita. Muitos
“entram” apenas para fazer um teste. Não se preocupe com o quanto os outros já “avançaram” no estudo das matérias de vestibular ou
na definição da carreira. A experiência dos “outros” nem sempre servirá para você.
Em termos práticos, isso significa que, desde já, é preciso:
a) Aproveitar o final de Ensino Médio para adquirir conhecimentos que lhe faltam (referentes às matérias da escola);
b) Começar a se informar sobre as profissões, indo atrás de
material impresso e sites da Internet que abordam a escolha profissional, e consultando profissionais das áreas que interessam a você;
c) Encarar os vestibulares como se você estivesse participando
de “simulados”. Essa experiência será importante para que, no final
do próximo ano, você já esteja “ambientada” com o tipo de disputa
em que terá de entrar.
Personalidade
A personalidade de cada um determina o sucesso do profissional?
Essa é outra questão que em geral inquieta quem está escolhendo o que
vai fazer. Claro que o sucesso profissional depende do entusiasmo de
cada um com a sua atividade. Portanto, estar atento aos próprios sentimentos também é crucial.
Mas isso não significa que há uma receita ou um modelo de personalidade fadado ao sucesso. Quanto a isso, todo o cuidado é pouco:
esse é também um campo propício à mais variada charlatanice com autointitulados consultores de neurobugigangas e psicotalismãs. Gente que
vende cursos, palestras e livros apregoando técnicas de aperfeiçoamento
da simpatia, do controle sobre os outros, do uso do poder da mente para
se sair bem no vestibular...
Mobilidade
Outra falsa discussão é a que opõe o generalista ao especialista. A
chave do emprego está na mobilidade espacial, temporal e entre níveis
de generalidade. As realidades são complexas, é preciso desenvolver
percepções sistêmicas. E ao mesmo tempo ter a capacidade de desenvolver competências específicas, especializações.
Todos precisam estar aptos a transitar entre os dois perfis. Escolher
um deles é perigoso, num mundo organizado em redes de conhecimento.
Miséria é miséria...
Riquezas são diferentes, miséria é miséria em qualquer parte. É
cada vez mais evidente que as oportunidades de emprego dependem de
distribuição de renda.
Num país miserável e sem políticas públicas consistentes, é bobagem ficar dando uma de Domenico de Masi (sociólogo italiano muito em
voga que aponta para um futuro de ócio, de expansão das atividades de
lazer, cultura e entretenimento).
A tendência à sofisticação nos padrões de qualidade de vida é
indissociável do nosso modelo de cidadania. Profissões de glamour, sofisticadas, que remuneram bem dependem da existência de nichos de
alta renda.
Mas se a renda se torna excessivamente concentrada, as oportunidades de exploração de nichos também se tornam concentradas, ou seja,
reduzem-se as perspectivas para a maioria dos profissionais, mesmo em
carreiras altamente qualificadas.
Num país pobre, as redes são restritas e se parecem mais a máfias,
ou seja, a clubes de privilegiados que impedem a exploração de suas
áreas de negócios.
Igualmente precário é achar que esses problemas serão universalmente resolvidos colocando gente pobre para tocar tambor ou fazer artesanato. A nova sociedade precisa de novas políticas sociais de largo
alcance e fôlego financeiro, não só de filantropia e assistencialismo.
O país precisa investir muito para alcançar os níveis adequados de
criatividade e competência exigidos de quem pretende ter inserção competitiva na economia global.
O alerta foi lançado pela Câmara Americana de Comércio
de São Paulo. O Brasil é um “país com desigualdades sociais tão
fortes que hoje corre o risco de novamente privilegiar as camadas
sociais mais ricas e aumentar a distância entre os que têm telefones
e computadores e os que não têm, entre uma elite diminuta de universitários e a massa de semi-analfabetos”.
A exclusão digital preocupa cada vez mais os empresários,
no mínimo porque a expansão das empresas depende da melhora
na distribuição de renda.
O número de microcomputadores instalados no Brasil deverá
passar de 11 milhões até o final do ano 2000, segundo estimativa
da Secretaria de Política e Automação do Ministério da Ciência e
Tecnologia. O Brasil já tem o 13º maior parque de PCs do mundo e
o primeiro da América Latina. Há cinco anos o País tinha apenas
2,3 milhões de micros.
Na telefonia, o salto recente é impressionante também. A previsão é fechar o ano 2000 com 35 milhões de linhas telefônicas
fixas – um aumento de 94% em relação a julho de 1998, data da
privatização do sistema Telebrás.
Hoje, cerca de 5 milhões de brasileiros navegam pela Internet, número que pode chegar a quase 8 milhões contadas as pessoas que utilizam PCs de escolas, amigos e parentes. Mas, há poucas
semanas, começaram a surgir os dados mais preocupantes: o número de pessoas com acesso à Internet já não cresce de forma tão
acelerada quanto nos dois últimos anos.
Concentração de renda é ruim para novas tecnologias
Segundo pesquisa realizada pelo Ibope de fevereiro a maio
deste ano, o número de internautas cresceu apenas 1%. A estagnação é ruim para a sociedade e, conseqüentemente, para as empresas, sublinha em reportagem de capa a revista da Câmara Americana. Significa que “uma parcela pequena da população consegue
interagir com a chamada nova economia para adquirir conhecimento ou produtos”.
Significa também que mesmo nas áreas da economia que são
consideradas mais promissoras, como tecnologia da informação e
produtos e serviços ligados à Internet, a concentração de renda na
sociedade brasileira pode ser um obstáculo para pessoas que pretendem seguir carreira em setores de alta tecnologia.
Várias iniciativas tentam dar conta do problema: distribuição
de computadores usados para escolas públicas, parcerias entre
empresas e escolas, investimentos na reciclagem dos professores e
estímulos ao chamado "empreendedorismo" são alguns dos exemplos. Na prática, no entanto, se a economia não voltar a crescer e
a renda não puder ser distribuída, o atraso do Brasil em relação a
outras economias pode aumentar.
Escolas conectadas, consumidores adestrados
Durante os próximos 10 anos a tecnologia deverá transformar as escolas da mesma maneira que modificou o mundo dos
negócios. Nos Estados Unidos.
É interessante observar e comparar. Nos EUA, as empresas
de alta tecnologia têm feito sua parte para encorajar a comunidade educacional a incorporar técnicas de educação online (conhecidas como “e-learning”). Valor investido? Já chega a US$ 6,2
bilhões durante os últimos oito anos. No Brasil, ainda é o governo
que faz o maior esforço para modernizar a rede educacional. No
setor privado, não há dados sobre investimentos nessa área. E há
algumas poucas iniciativas de parceria entre setor público, setor
privado e instituições educacionais.
Nos Estados Unidos, a IBM trabalha com cientistas para
desenvolver um projeto de “Reinvenção da Educação”. A Intel e
a Microsoft treinam professores. A Apple Computer e a América
Online se uniram a outras 20 empresas para formar o “Fórum
de Diretores Executivos sobre Educação e Tecnologia”, um grupo sediado em Washington para defender a agenda de alta
tecnologia.
O outro lado da questão também tem sido levantado em
debates: alguns consideram o movimento da educação online
muito perigoso se as instituições de ensino começarem a
aceitar produtos e serviços oferecidos “gratuitamente” pelas companhias de alta tecnologia em troca da permissão para que estas
mesmas empresas divulguem anúncios em computadores escolares. Sem falar na apetitosa formação de legiões de consumidores
cujas mentes estarão sempre associando a atividade de estudar a
algumas marcas famosas de equipamentos e softwares. No Brasil, apenas 10% das escolas têm acesso à Internet.
outubro 2000
QUANDO OS PAIS TAMBÉM QUEREM ESCOLHER...
O
que fazer para lidar com a ansiedade dos pais durante
o processo de escolha profissional dos filhos? Às vezes eles se mostram tão preocupados e angustiados que, mesmo não intencionalmente, acabam interferindo mais do que o desejável.
Por que a opção dos filhos mobiliza tanto alguns pais?
Como fazer para não se deixar sufocar pelas sugestões, perguntas, conselhos e comentários?
Até uns dez anos atrás, determinadas profissões tinham a
fama de ser “elevadores sociais”, proporcionando “status” e bons
ganhos financeiros, que se estendiam não só para os profissionais
que as escolhiam, como também para os seus familiares. Medicina,
Engenharia, Direito, Economia e Arquitetura eram algumas dessas
charmosas profissões, que asseguravam um futuro razoavelmente garantido em termos de sucesso e reconhecimento.
Atualmente, quem fizer as contas com realismo perceberá
que nenhuma dessas áreas resolve a vida de ninguém, já que engenheiros, médicos, advogados dividem-se às vezes em até três empregos ou inúmeras atividades na busca de uma remuneração melhor.
Mas o que isso a tem a ver com os pais? É que, ainda hoje,
muitos pais “batem pé” nas mesmas profissões do passado, sem perceber que a sociedade mudou e as perspectivas hoje são outras.
Mesmo ficando horas frente à TV, bombardeados pela publicidade,
poucos pais encaram a mídia como uma boa opção profissional
para os filhos, por exemplo.
Projeções e transferências
No passado, o processo de escolha vocacional dentro da família deixava muito pouco espaço para o jovem decidir com autonomia e liberdade. Algumas profissões eram quase impostas aos filhos,
que acabavam embarcando na canoa das ambições paternas, gostando ou não da viagem.
Alguns iriam perceber a incompatibilidade entre o campo forçado de trabalho em que tinham entrado e suas ocultas vocações
bem mais tarde, às vezes muito anos depois de
formados. Outros se davam conta de seu desinteresse nos primeiros anos da faculdade, mas
tinham receio de decepcionar os pais.
Muitos podem dizer: “Agora não é mais
assim! Cada um escolhe o que quiser sem que
os pais interfiram.” De fato, muita coisa mudou
da época dos nossos avós. O problema é que
as ambições dos pais continuam existindo e
podem se fazer ouvir de formas mais sutis e
menos violentas.
Vontades e preferências sempre existirão.
A questão é o que fazer com elas em meio ao
processo de reflexão sobre o que cada um quer
ser.
Um pai que desejou ser arquiteto, mas não
conseguiu vaga; outro que sonhou em ter um
filho médico para continuar a linhagem familiar; outro que já preparou o escritório de advocacia para receber seu primogênito...
Todos esses pais, querendo o melhor para
seus filhos, acabam projetando seus desejos, frustrados ou não, na vida profissional dos filhos.
Há, ainda, os que não puderam ser músicos,
atores, poetas e não conseguem tolerar que seus
filhos sejam o que eles não conseguiram.
Expediente
Editor:
Gilson Schwartz
e-mail: [email protected]
Consultores: Luiz Paulo Labriola e
Yudith Rosenbaum
Pesquisa: Knowware Consultoria
Projeto gráfico: Wladimir Senise
Que fazer?
tecnologia ■ vocação ■ emprego ■
é um suplemento dos boletins
Mundo
Geografia e Política Internacional e
Texto & Cultura
■ interpretar ■ escrever ■
Não pode ser vendido ou distribuído
separadamente.
■
Alta ansiedade
E como essas situações aparecem na prática? O entusiasmo
do pai ao falar das áreas desejadas, mesmo que o filho não compartilhe da mesma empatia com a profissão, pode criar uma inibição.
Às vezes, sem ser explícita, a ambição dos pais surge através
das visitas “encomendadas” no jantar para falar “sem compromisso” sobre as novas perspectivas da informática, da biotecnologia,
da administração...
Em situações mais extremas, os pais podem expressar seu desagrado, entristecendo todo o ambiente com a atmosfera de sua
frustração. Haja coragem para fazer frente a tanta decepção! E a
culpa, como fica? É aí que entender a aspiração dos pais como
legítima - mas que é deles e não de quem afinal está fazendo a
escolha – pode ajudar muito.
Todos os pais têm o direito de desejar e imaginar mundos
profissionais para seus filhos; todos os pais sonham com o sucesso e
a felicidade dos seus adolescentes; todos podem e devem emitir suas
opiniões de forma franca e aberta.
Tudo isso faz parte dos nossos ciclos de vida. O difícil é assegurar que o caminho dos filhos esteja o mais livre e desimpedido
possível para ser percorrido por eles mesmos, assumindo a responsabilidade de sua opção, arcando com as decorrências.
O diálogo na família é de extrema importância nessa fase,
abrindo espaço para os pais e os filhos expressarem idéias e medos,
defendendo pontos de vista sem receio.
Fontes de informação
O processo de escolha vocacional se enriquece muito com as
informações que os pais trazem, desde que elas tenham mesmo o
caráter de informações, sejam no máximo argumentos mas não imposições.
Um bom debate sobre o que está ocorrendo no mercado de
trabalho (com dados atualizados),
trazendo comentários sobre casos
conhecidos (sempre relativizados
como histórias particulares e não
buscando uma regra geral e universal) e análises o menos apaixonadas e o mais objetivas possível são
ótimos meios para enfrentar fantasias, desejos e estereótipos. Os pais,
como se vê, podem ajudar muito se
forem parceiros na elaboração das
informações e não advogarem em
causa própria.
O maior legado que aos pais
podem deixar para seus filhos é a
sua própria felicidade. Também os
filhos têm o direito de examinar sua
intimidade e respeitar seu mundo
interno, levando em conta as percepções da realidade externa e os
ensinamentos de pais e mães. O resultado será uma decisão individualizada. Autônoma, mas não
autista. E legítima.
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