A ESTRUTURA OBJETIVA DOS CRIMES DE CONCRETO PÔR-EM-PERIGO1
Stephan Doering Darcie
1.
O
CONCRETO
PÔR-EM-PERIGO
COMO
ESPÉCIE
NÃO
ÚNICA
DE
PERIGO/VIOLAÇÃO: CONSEQUÊNCIAS DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DO
ILÍCITO PENAL
A partir do advento da chamada sociedade de risco2, o direito penal passou a ser
norteado por uma idéia de prevenção, da qual decorreu, nos dizeres de Machado, não apenas um
“aumento quantitativo da reação punitiva ou da simples definição de novos comportamentos
penalmente relevantes”, mas também um “desenvolvimento de uma nova racionalidade de
imputação, a partir da utilização de figuras dogmáticas diferenciadas”3. Com efeito, a demanda
de tutela jurídico-penal de condutas estranhas ao direito penal tradicional impôs ao legislador a
necessidade de adoção de alternativas que encontram no chamado direito penal secundário o seu
1
Este estudo observa as novas regras gramaticais trazidas pelo Acordo Ortográfico firmado entre os países de língua
portuguesa.
2
Termo cuja origem remonta a Beck, para quem “os riscos e perigos de hoje se diferenciam essencialmente dos da
Idade Média pela globalidade de suas ameaças, e por suas causas modernas”, sendo, pois, “riscos da modernização”,
consistentes em “um produto global da maquinaria do progresso industrial” que aumenta “sistematicamente com seu
desenvolvimento posterior” (BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós
Surco, 2002. p. 28). É comum, também, encontrarmos a referência da sociedade contemporânea seguida de adjetivos
como “pós-moderna”, “da informação” e “tecnológica”. Amaral chama atenção para o fato de que as variadas
nomenclaturas que podem ser surpreendidas com relação à sociedade atual servem apenas para enfatizar aspectos
particulares, tratando-se, quanto à essência, do mesmo objeto (AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas da
ciência penal contemporânea: dogmática, missão do direito penal e política criminal na sociedade de risco. São
Paulo: IBCCRIM, 2007. p. 62). O que importa destacar, de fato, como o faz Silva-Sanchez, é que tal sociedade abarca
“a configuração do risco de procedência humana como fenômeno social estrutural” (SILVA-SANCHEZ, Jesús Maria. A
expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 29). Nesse mesmo sentido, acrescenta Lopes Júnior que, ao passo que na sociedade pré-industrial o
risco encontrava-se ligado a fenômenos naturais e não ostentava qualquer nexo de dependência para com a vontade
humana, na sociedade industrial clássica esse particular atributo da relação com as ações humanas passou a estar
presente, de modo que os riscos inerentes a essa sociedade acabaram por se tornar impassíveis de prévio conhecimento
e mensuração (LOPES JUNIOR, Aury. (Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal. In GAUER, Ruth M.
Chittó (Org.). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 142).
3
MACHADO, Marta Rodriguez de Assis, Sociedade do Risco e Direito Penal: Uma avaliação de novas tendências
político-criminais. São Paulo: IBCCrim, 2005. p. 23.
cenário de maior provação, do ponto de vista dogmático, em razão da natureza dos bens jurídicos
que visa a proteger, tornando patentes as dificuldades explicativas de determinados institutos4.
Dentre os pontos de maior polêmica estão, sem sombra de dúvidas, os chamados crimes
de perigo, notadamente os crimes de perigo abstrato. Isso porque a concepção que historicamente
é esboçada por amplos setores doutrinários e jurisprudenciais – no Brasil, de forma expressiva –
em relação a essa espécie de tipos penais traz em seu bojo implicações insuperáveis no tocante à
sua legitimidade.
O crime de perigo abstrato é comumente tratado como uma espécie de sinônimo de
presunção jure et de jure de perigo5. Evidente que uma compreensão do ilícito tal qual a
mencionada traz consectários indesejáveis a um direito penal que se pretende legítimo,
4
D‟AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em direito penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens
jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 78.
5
A percepção do crime de perigo abstrato como crime de presunção jure et de jure pode ser vista, entre nós, em
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Parte geral, v.1, 14. ed., São Paulo: Saraiva, 1990. p. 167; MIRABETE, Julio
Fabbrini. Manual de direito penal, v.1, 19. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 134; BITENCOURT, Cezar Roberto.
Tratado de direito penal. Parte geral, v. 1, 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 194, entre outros. Silveira assinala, o
fazendo a título de ilustração de tal incorreção doutrinária, que a característica tradicionalmente tida como marcante
dos crimes de perigo abstrato reside na ausência de perigo no tipo, havendo aqui uma “transação da decisão do
perigo do juiz ao legislador”. E prossegue, afirmando que “a presunção juris et de jure do perigo obriga o aplicador
da lei a não considerar o caso fático, aplicando a lei in genere” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal
econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 119.). No âmbito dos
tribunais brasileiros, a questão é tratada de forma idêntica. Não raro podemos encontrar julgados onde o juízo de
adequação típica entre uma conduta e um crime de perigo abstrato restringe-se à mera comprovação da realização da
conduta proibida pela norma penal, despindo-se de qualquer preocupação concernente ao seu conteúdo material.
Veja-se, apenas a título de ilustração, as inúmeras decisões relativas aos crimes de porte e de posse ilegal de armas
de uso permitido (arts. 14 e 16, respectivamente, da Lei 10.826/03), onde, após afirmada a prescindibilidade da
perícia para a apuração da potencialidade lesiva do artefato, reconhece-se expressamente a presunção absoluta do
perigo, dando-o como inerente à realização da conduta de portar ou de possuir a arma. Nesse sentido: BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 937098/RS, Quinta Turma, Relator: Ministro Jorge Mussi, Julgado em
18/09/2008, Dje 20/10/2008; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 108604 / DF, Quinta Turma, Relator:
Ministro Arnaldo Esteves Lima, Julgado em 03/03/2009, Dje 29/06/2009; SÃO PAULO. Tribunal de Justiça.
Apelação Crime Nº 990090839104, Décima Segunda Câmara de Direito Criminal, Relator: Paulo Rossi, Julgado em
09/09/2009; RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 2008.050.04710, Sétima Câmara Criminal,
Relatora: Márcia Perrini Bodart, Julgado em 10/02/2009; MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº
1.0472.04.002758-4/001, Relator: Alexandre Victor de Carvalho, Julgado em 17/06/2008; RIO GRANDE DO SUL.
Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70028662153, Segunda Câmara Criminal, Relator: José Antônio Cidade
Pitrez, Julgado em 25/06/2009; RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70030208953,
Primeira Câmara Criminal, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 08/07/2009. No último julgado, afirma o
magistrado relator que “o porte ilegal de arma de fogo constitui crime de perigo abstrato, tipificado em lei por
motivos político-criminais, sendo prescindível que a conduta do agente resulte na produção de um perigo real para o
bem jurídico tutelado – no caso, a segurança coletiva. A intenção do legislador foi justamente a de evitar a ocorrência
de crimes graves cometidos mediante a utilização de referido objeto, possuindo a nova lei de armas um caráter
predominantemente preventivo – o que, diga-se, a experiência tem demonstrado ser deveras necessário – daí por que
a presunção de perigo”.
possibilitando a oposição de questionamentos tanto em relação aos que aceitam 6 a utilização de
uma tal tipificação quanto aos que, embora reconhecendo-a conceitualmente, repelem-na7.
Quanto aos primeiros, a crítica reside no fato de a incriminação flexibilizar de forma inaceitável
uma exigência de antijuridicidade material, traduzindo-se por vezes na edição de tipos penais
desprovidos de qualquer desvalor. Quanto aos últimos, por, em antevendo a incorreção,
renunciarem a uma técnica de tutela cujo emprego constitui-se no único meio pelo qual viável a
proteção penal de determinados bens jurídicos. Em verdade, o que aqui ocorre é um silogismo
que se sustenta em equivocada premissa e que, por essa mesma razão, está fadado ao insucesso8.
A presente investigação pressuporá, de tal sorte, a exata compreensão da problemática
engendrada pela contumaz inobservância do conteúdo material do crime na concepção do ilícito
penal. É com base nessa realidade que podemos afirmar, juntamente com D‟Avila, que a
percepção do conceito de crime como ofensa a bens jurídico-penais, a despeito de seu inegável
caráter de obviedade, “encontra no direito penal contemporâneo um ambiente hostil, de difícil
afirmação e continuidade”9. Não por outra razão, aliás, é que a doutrina vem se ocupando em
apontar os limites inarredáveis de incriminação impostos pela exigência de ofensividade 10 e pela
6
Reconhecem a legitimidade dos crimes de perigo abstrato, ainda que os concebendo como delitos de perigo
presumido, entre outros, CEREZO MIR, José. Obras completas: otros estudios, v. 2. Lima: Ara Editores, 2006. p.
484; e, entre nós, PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral, v. 1. 3. ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 140.
7
Questionando a constitucionalidade de tais ilícitos-típicos, FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do
garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 383; e, entre nós,
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 27-8; DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 7. ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007. p. 43; GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 35; e BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 64 et seq.
8
Oportuna a analogia, uma vez que a conclusão se conforta na idéia de que os crimes de perigo abstrato nada mais
são do que de perigo presumido, de caráter antecipatório da tutela penal ou de mera violação de dever. De fato,
partindo-se de uma premissa maior de que todos os crimes desprovidos de ofensa a bens jurídicos são ilegítimos, e
de uma equivocada premissa menor de que os crimes de perigo abstrato são uma categoria típica desprovida de
qualquer ofensa, não se pode chegar a conclusão outra que não a de que os crimes de perigo abstrato são ilegítimos.
9
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 57.
10
Afirma D‟Avila que a fundamentação positiva da ofensividade dá-se em duas esferas: constitucional e
infraconstitucional. Na esfera constitucional, a ofensividade vem positivada tanto em âmbito principial, enquanto
“princípio-garantia constitucional” que deriva do “princípio geral fundamental de tutela de bens jurídicos”, quanto no
âmbito das regras constitucionais, a partir do reconhecimento do direito à liberdade como norma constitucional de
caráter duplo (doppelcharakter). Assim, conforme o autor, a exigência de ofensa decorre, a uma, do fato de o
princípio-garantia da ofensividade pertencer, juntamente com o princípio da intervenção penal necessária, a um
princípio reitor, o de tutela de bens jurídicos, restringindo-se ao seu âmbito de proteção, motivo pelo qual admite
ponderação, mas de tal forma a não extrapolar os limites da própria ofensividade; a duas, do fato de o direito à
liberdade tratar-se de uma norma de caráter duplo e, exatamente por essa razão, de difícil relativização, a qual apenas
poderá ocorrer diante da necessidade de proteção de interesses de estatura hierárquico-constitucional compatível. Já
na seara infra-constitucional, a fundamentação positiva da ofensividade pode ser extraída de uma análise atenta do
instituto da tentativa inidônea, do qual se depreende a existência de uma “cláusula geral de ofensividade”
teoria do bem jurídico-penal11, leituras que se contrapõem a essa hodierna tendência políticocriminal de repressão12 – por vezes supressora de direitos e de garantias fundamentais –, na
medida em que desempenham uma função legitimante na elaboração de tipos penais.
A consequência dessa aclamada concepção do ilícito-penal de bases materiais pode ser
presenciada diretamente na construção de Faria Costa13. Segundo o autor, a ofensividade pode ser
estruturada em três níveis, conforme sua incidência sobre o bem jurídico penalmente tutelado:
dano/violação, concreto pôr-em-perigo – ofensa característica dos crimes de perigo concreto – e o
cuidado-de-perigo – ofensa característica dos crimes de perigo abstrato14. D‟Avila, na mesma
senda, identifica o ilícito-típico próprio dos crimes de perigo abstrato na “interferência na esfera
de manifestação do bem jurídico”15.
O que se pretende evidenciar é, portanto, a incorreção de qualquer concepção de crime
onde não se vislumbre ofensa a um bem jurídico. Nesse horizonte compreensivo, a ofensa de
cuidado-de-perigo afigura-se como categoria-limite da noção jurídico-penal de ofensividade16.
(D‟AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Contributo à compreensão do crime como
ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 63 et seq.).
11
O bem jurídico, conforme Tavares, traduz-se em um elemento pertencente à condição do indivíduo e necessário à
sua projeção social, devendo necessariamente ser interpretado “como um valor que se incorpora à norma como seu
objeto de referência real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a
ação típica e todos os seus demais componentes”, motivo pelo qual “não há injusto sem a demonstração de efetiva
lesão ou perigo de lesão a um determinado bem jurídico” (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000. p. 179. Daí a afirmar Figueiredo Dias, com a nossa absoluta discordância, que “a
antecipação da tutela penal justifica-se e é legítima”, contanto que “com ela não se perca de vista a função de
protecção dos bens jurídicos que constitui o fundamento legitimador de qualquer sistema jurídico-penal característico
de um Estado de direito” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal. Parte geral, tomo I, questões fundamentais:
a doutrina geral do crime. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 145). Nossa objeção recai sobre o
fato de a assertiva, conquanto represente inegável contribuição à noção de bem jurídico como elemento legitimante
da norma penal de incriminação, descurar da exigência constitucional de ofensividade. A menção, todavia, é válida
justamente como forma de ilustrar a importância do papel desempenhado pelo bem jurídico na perspectiva material
de crime, compreensão que ganha densidade através dos conceitos de dignidade penal e carência de tutela penal,
muito bem trabalhados por Costa Andrade em COSTA ANDRADE, Manuel da. A «Dignidade Penal» e a «Carência
de Tutela Penal» como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime. Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, ano 2, abril-junho de 1992, p. 173-205.
12
O termo “repressão”, aqui, foi empregado de forma mais genérica, no sentido de definir o ímpeto da sociedade em
ver punidos os “transgressores”, em um afã de elaboração de tipos e de exasperação de penas. Em verdade, em rigor
terminológico a expressão que melhor exprime a tendência que pauta a atuação contemporânea da política criminal é
“prevenção”. De certa forma, pode-se dizer que a prevenção é a própria repressão elevada a patamares extremos,
porquanto naquela se perquire a incriminação em estágios prévios à ofensa ao bem jurídico penalmente relevante.
13
FARIA COSTA, José Francisco de. O perigo em direito penal. Contributo para a sua fundamentação e
compreensão dogmáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, passim.
14
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 642 et seq.
15
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 161.
16
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 90 et seq.
Ocorre que a repercussão dessa fundamentação material na compreensão do ilícito-penal
conduz à necessidade de um aprimoramento da conceituação de outra espécie de tipos penais, a
dos crimes de perigo concreto. Isso porque a leitura referente a essa categoria típica que sempre
foi levada a cabo pela doutrina e jurisprudência brasileiras, diferenciando-os dos delitos de perigo
abstrato pela necessidade de efetiva verificação de perigo caso a caso, em oposição à presunção
absoluta erradamente tida como própria dos crimes de perigo abstrato17, deve ser aperfeiçoada em
razão da exigência de ofensividade que se faz presente, também, nos crimes de perigo abstrato.
Dito de outra forma, à medida que se afirma a ofensividade como requisito inafastável, presente
também nos crimes de perigo abstrato, perde ela o seu valor enquanto critério distintivo –
comumente utilizado pela doutrina brasileira – dos crimes de perigo concreto18.
Em verdade, o concreto pôr-em-perigo, enquanto e exatamente porque categoria não
única de perigo/violação, não pode ter na ofensividade o seu traço distintivo, na medida em que
essa se faz presente, também, na violação de cuidado-de-perigo. E como bem ponderado por
D‟Avila, nada mais equivocado do que “restringir a riqueza e complexidade da noção jurídicopenal de perigo às situações tradicionalmente denominadas de perigo concreto”19. Cumpre, pois –
e a isso que se intenciona com a presente investigação –, dispensar maior atenção a essa classe
típica, trabalhando de forma pormenorizada os atributos e caracteres que lhe são próprios.
17
Entendimento sufragado, entre nós, por Marques (MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 2.
Campinas: Bookseller, 1997. p. 90-1) e Mestieri (MESTIERI, João. Manual de direito penal, v. 1. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 130). Também Fragoso afirma que nos crimes de perigo concreto “a consumação depende da
efetiva superveniência de uma situação de perigo”, ao passo que nos crimes de perigo abstrato “o perigo é presumido
e o crime não depende da efetiva constatação do perigo, sendo irrelevante a prova de que não houve qualquer
probabilidade de dano” (FRAGOSO, Heleno Claudio. Conduta punível. São Paulo: José Bushatsky, 1961. p. 84).
Santos, por sua vez, aduz que os crimes de perigo concreto distinguem-se por exigirem “a efetiva produção de perigo
para o objeto da ação”, opondo-se, assim, aos tipos de perigo abstrato, onde “a presunção de perigo da ação para o
objeto de proteção é suficiente para sua penalização, independente da produção real de perigo para o bem jurídico
protegido” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal. Parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC; Lumen Júris, 2008. p.
112).
18
Referimo-nos à ofensividade como critério de distinção na medida em que, ao conceber o crime de perigo abstrato
como uma categoria típica cujo respectivo juízo de adequação entre conduta e norma prescinde da verificação do
perigo no caso concreto – estando ele presumido de forma absoluta –, acaba-se por infirmar qualquer exigência de
ofensa a bens jurídicos. De outro lado, ao afirmar que o perigo concreto pressupõe necessariamente a constatação do
perigo caso a caso, reconhece-se que a ofensa ao bem jurídico desempenha, aqui, um papel central no juízo de
adequação típica.
19
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 78.
2.
ALGUMAS
LINHAS
ACERCA
DA
NOÇÃO
PENAL
DE
PERIGO
E
AS
INCONSISTENTES DEFINIÇÕES DE PERIGO CONCRETO
Em um primeiro momento, para uma correta compreensão acerca do que se pretenderá
investigar – atributos próprios dos crimes de perigo concreto –, pretende-se fazer um necessário
excurso sobre os elementos que constituem a própria noção penal de perigo, genericamente
compreendida, o que, para além de fixar os corretos pressupostos para qualquer incursionar no
âmbito dos crimes de perigo, evidenciará a insuficiência das definições relativas aos crimes de
perigo concreto.
De forma muito breve, superadas as teorias subjetiva20 e objetiva21, partindo-se do
magistério de Faria Costa, o perigo pode ser conceituado como “um estágio relativamente ao qual
é legítimo prever como possível o desencadear de um dano/violação para com um bem jurídicopenalmente protegido”22, sendo ele constituído por dois elementos, quais sejam, “a probabilidade
de um acontecer e o carácter danoso do mesmo”23. Com base nesse conceito, de pronto percebese que o perigo, enquanto noção relacional, possui íntima ligação com a hipótese de produção de
20
Para os defensores da teoria subjetiva – da qual, conforme Silva são os principais formuladores Janka, von Buri e
Finger (SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da constituição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003. p. 53) – a ocorrência de um fato, em uma perspectiva fenomênica, apresenta-se a
posteriori como possível desde o começo, ainda que aprioristicamente fosse considerada impossível. De outro lado,
se o mesmo fato não se perfectibiliza, não se pode afirmar que havia qualquer risco objetivo, sendo ele ab initio
impossível (JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. Tomo III, 3. ed. Buenos Aires: Losada, 1965. p.
468). O perigo, assim, seria o fruto do desconhecimento das leis causais, traduzindo-se em uma deturpada projeção
da produção de um resultado – não verificado a posteriori –, oriunda da inexatidão dos dados conhecidos por aquele
que a realiza (CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Delitos de peligro y protección de bienes jurídico-penales
supraindividuales. Nuevas formas de delincuencia y reinterpretación de tipos penales clásicos. Valência: Tirant lo
Blanch, 1999. p. 32). Entre nós, Coelho bem define que o perigo, para os partidários da teoria subjetiva, nada mais
seria do que o “produto da contingência humana, ignorância ou defeituosa percepção da realidade, não tendo
existência concreta no mundo objetivo”, consistindo em “mera impressão de medo, uma simples representação
mental de caráter puramente subjetivo” (COELHO, Walter. Teoria Geral do Crime. v. 1, 2. ed. Porto Alegre: Editora
Fabris, 1998. p. 100). Conforme ressalta Angioni, essa corrente funda-se na idéia de que, “sendo a realidade
dominada por rígidas leis causais, o perigo, submetido que está a ditas leis, não existe senão na forma de mera
impressão psicológica”20 ou, valendo-se da expressão de Hälschner, é “um filho da nossa ignorância” (ANGIONI,
Francesco. Il pericolo concreto come elemento della fattispecie penale. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1994. p. 11).
21
Já para os partidários da teoria objetiva – tais como Hälschner, Merkel, von Kries, Binding, von Liszt, Florian,
Jannitti di Guyanga, Maggiore, Carnelutti, Ranieri –, o perigo compõe a própria realidade. Um fenômeno pode
ocorrer ou não em razão de certas circunstâncias, motivo pelo qual o mesmo existe no mundo real, submetendo-se a
um cálculo de possibilidade e probabilidade estatísticas fundado em observações empíricas (JIMÉNEZ DE ASÚA,
Luis. Op. cit. [n. 19], p. 469). Silveira observa que “as teorias objetivas partem do pressuposto de que determinadas
condutas têm a propriedade de ser, genericamente, perigosas” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. cit. [n. 4], p.
112). O perigo, pois, para os objetivistas, seria uma realidade presenciada in rerum natura, com a qual apenas nos
deparamos (ANGIONI, Francesco. Op. cit. [n. 20], p. 17).
22
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 583.
23
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 584.
um dano. Por conseguinte, ainda que goze de plena autonomia quanto a esse, no que concerne ao
seu desvalor próprio24, pode-se dizer que está objetivamente limitado por esta relação 25. Dito de
outra forma, não se pode falar em perigo em caso de comprovação da total impossibilidade de
produção de um dano/violação.
Cremos, assim, que o simples cotejo entre o problemático cenário por nós referenciado
anteriormente e a gênese do conceito de perigo demonstra já a insuficiência do que se tem
entendido por perigo concreto. A comprovação casuística do perigo não é, pois, condição
necessária à caracterização dos crimes de concreto pôr-em-perigo. É, antes disso, elementar da
própria noção penal de perigo – onde estão compreendidos, por óbvio, quaisquer espécies de
crimes de perigo.
E os problemas não terminam por aqui.
24
Acompanhando a exposição de D‟Avila, os crimes de perigo não podem ser concebidos como expressão de um
direito penal exclusivamente prevencionista, lastreado no evitar de um dano/violação ao bem jurídico, de forma
independente “de um conteúdo próprio de significação para com o objeto jurídico da norma”. O autor não deixa de
reconhecer que uma tipificação de perigo, se comparada com o dano/violação, representa um aumento da área de
tutela, antecipando a proteção. Todavia, como bem adverte Faria Costa, “de maneira alguma podemos pensar que a
criminalização de condutas de pôr-em-perigo altera as coisas em termos de prevenção”, ou, de forma ainda mais
clara, “não é pelo facto de se criminalizarem comportamentos que determinam situações de pôr-em-perigo que a
prevenção criminal aumenta; ela fica na exacta posição em que ficaria se, em vez de criminalizarem as condutas de
pôr-em-perigo, se tivessem criminalizado condutas fautoras de dano/violação”. Ou seja, “o que aumenta [...] é a
própria punibilidade” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 12], p. 575). O que é importante destacar,
assim, como o faz D‟Avila, é que o crime de perigo “apenas fixa um novo ponto de tutela”, possuindo, todavia,
autêntico desvalor de resultado, desvalor este que não reside em um evento futuro (provável dano/violação), mas em
uma situação atual, autônoma, que embora possua sua gênese na relação entre a conduta e probabilidade do evento
danoso, dela se desvincula, substantivando-se como objeto pertencente a um real-construído (D‟AVILA, Fabio
Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 95 et seq, e notas 24, 36 e, de forma crítica, 42).
Referida discussão, aliás – e aqui se faz um breve, mas importante paralelo –, bem poderia ilustrar a
advertência de D‟Avila, no sentido de que “o priorizar da dimensão político-criminal termina por inverter a correta
ordem de enfrentamento dos problemas penais” (D‟AVILA, Fabio Roberto. O direito e a legislação penal brasileiros
no séc. XXI: entre a normatividade e a política criminal. In: Criminologia e sistema jurídico-penais contemporâneos.
Ruth Gauer (Org.). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 328). Isso porque o perigo, uma vez concebido como noção
dotada de um desvalor autônomo, acaba por impor critérios rigorosos para a sua verificação, critérios estes que
jamais poderão ser suplantados em nome de interesses político-criminais, sejam quais forem. Assim, apenas dentro
dos estritos limites comportados pela noção penal de perigo – devidamente interpretada à luz dos ditames
constitucionais relativos à ofensividade – é que se poderá conceber “o quadro de legitimidade no qual se
movimentará uma posterior crítica de cunho político-criminal” (D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 23], p. 332). É
dizer, partindo-se da idéia de revalorização da ciência normativa do direito penal no âmbito da ciência conjunta do
direito penal (die gesamte Strafrechtwissenschaft), uma incriminação jamais poderá transpor tais limites, óbice que
não existiria em um contexto de priorização da dimensão político-criminal para o enfrentamento dos problemas
penais – hipótese última que, infelizmente, parece melhor retratar nossa atual realidade.
25
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 111.
Mesmo os crimes de perigo abstrato demandam, para sua configuração, não apenas uma
possibilidade de dano26, mas, ao menos, uma possibilidade não-insignificante27
28
, cujo
reconhecimento exige necessariamente uma valoração29. De tal sorte, sequer pode-se cogitar de
um critério estritamente quantitativo para uma diferenciação legítima entre tais categorias.
É comum, também, encontrarmos na doutrina a distinção entre os crimes de perigo
concreto e de perigo abstrato segundo a técnica de tipificação, critério em que os delitos de perigo
concreto se diferenciariam por exigirem expressamente o resultado de perigo na redação típica 30.
26
Afinal de contas, a simples possibilidade de dano abrangeria a tutela penal de condutas insignificantemente
perigosas, uma vez que, conforme Costa Júnior, é conceito que “abrange o provável e o improvável”, o “raro e o
raríssimo”. Exatamente por essa razão é que a grande maioria dos autores trabalha com um conceito de
probabilidade, por se tratar, ainda conforme o autor, de “um grau mais intenso de possibilidade” (COSTA JÚNIOR,
Paulo José da. Nexo causal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 65).
27
D‟Avila afirma que a simples possibilidade de dano é critério demasiadamente amplo, que “embora possa
indubitavelmente afirmar o que não é relevante, não afirma, com segurança, aquilo que o é”. Faz-se necessária,
então, uma noção complementar, a ser buscada em uma dimensão normativa do real-construído, já que “não nos é
permitido, pela própria natureza das coisas, buscar no universo circunscrito pela objetividade, o que é penalmente
interessante, eis que lá não o encontraremos”. De tal sorte, ainda segundo o autor, essa noção pode ser expressa pelo
critério negativo da não-insignificância. Tal critério consiste em avaliar a significação de uma conduta típica, mas
em verificar se a significação dessa conduta típica não se encontra distante no caso concreto (D‟AVILA, Fabio
Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 171 et seq.).
28
Importante ressaltar que a ofensa ao bem jurídico-penal, como pressuposto necessário à legítima incidência da
pena, deve ser submetida a uma espécie de filtro. Isso decorre diretamente do caráter fragmentário, de ultima ratio,
do direito penal. De tal sorte, mesmo condutas que realizem o comportamento previsto pela norma proibitiva podem
ser atípicas, por não representarem, no caso concreto, uma verdadeira ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma
penal. Nesse panorama, não se pode falar em ilícito penal, porquanto incólume o valor que o direito penal visa a
salvaguardar. Sequer basta, portanto, para a configuração do perigo, a comprovação da conduta proibida ou da mera
possibilidade de dano. Interpretação diversa, diga-se, acabaria por incidir no erro apontado por Hassemer, que, ao
abordar a concretização normativa e a constituição da situação de fato, refere que “a opinião de que a aplicação da lei
consistiria na subsunção de uma situação de fato a uma norma parte de uma perspectiva não apenas ingênua, mas
também obtusa, do ponto de vista prático”, tendo em vista que “a norma não pode ser compreendida sem uma
concepção das circunstâncias nas quais ela deve ser „encaixada‟”. Ainda segundo o autor, a variedade e
complexidade das circunstâncias do mundo causam a impossibilidade de sua plena percepção, sendo elas “integradas
a um „todo‟, a uma forma – Gestalt –, que lhes dá „sentido‟”. Nesse contexto, “a percepção e linguagem humanas
não podem ser concebidas sem seleção e estruturação”, as quais, por sua vez, “não podem ser pensadas sem
princípios regentes da percepção e da decisão, sem se saber aquilo que deve ser tido como „significante‟ e
„insignificante‟, aquilo que deve ser central e aquilo que deve ser periférico” (HASSEMER, Winfried. Direito penal:
fundamentos, estrutura, política; organização e revisão Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos; tradução: Adriana
Beckman Meirelles [et. al.]. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. p. 93 et seq.).
29
Não terá espaço, aqui, um aprofundar dos critérios que deverão pautar sobredita valoração. Contudo, apenas para
fins de compreensão, salientamos que o juízo acerca do perigo relevante aos olhos do direito penal não deverá ser
orientado por critérios meramente matemáticos (tais como uma eventual compreensão de que o perigo será relevante
apenas se representar mais chances de ocorrência do dano/violação do que de inocorrência do mesmo), desprovidos
que estão de operacionalidade e significação. Nesse sentido, quanto à difícil aplicação prática da teoria da
probabilidade, remetemos o leitor a SALSBURG, David. Uma senhora toma chá...: como a estatística revolucionou
a ciência no século XX. Tradução: José Maurício Gradel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 243-5. Quanto à
ausência de significação do conceito meramente probabilístico, ver CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n.
20], p. 101 et seq.
30
Veja-se, v.g., Jescheck, para quem nos crimes de perigo (concreto) “la producción del peligro es elemento del tipo
y debe constatarse en el caso concreto” (JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general, v. 1.
Trata-se, contudo, de um critério insatisfatório para a definição de tais crimes, dada a fragilidade
de sua significação31. Por essa razão, advertimos, juntamente com Mendoza Buergo, que a
distinção relativa à inclusão do perigo como elemento típico não deve levar à mera simplificação
de identificar o crime de perigo concreto com o tipo em que apareça alguma referência ao
perigo32, embora possa, isso sim, servir de um ponto de partida.
Há, ainda, quem defenda uma distinção relativa à classe do bem jurídico tutelado. Com
efeito, são muitos os autores que sustentam que os crimes de perigo seriam, em verdade, crimes
de lesão a bens jurídicos supraindividuais33. Contudo, concordamos com Figueiredo, no sentido
de que “uma tal via compreensiva não prospera, desprovida que está de vantagens dogmáticointerpretativas e confrontante com os princípios limitadores do direito de punir”34. De fato, ao se
alargar o horizonte de abrangência dos crimes de dano, através de sua ineludível identificação
com os crimes contra bens jurídicos supraindividuais, acaba-se por esvaziar o conteúdo material
do tipo, restringindo o juízo de adequação típica da conduta à violação de um dever, e
Traducción: Mir Puig, Santiago, e Muñoz Conde, Francisco. Barcelona: Bosch, 1981. p. 358). De forma bastante
similar, Wessels, após afirmar que “os delitos de perigo concreto baseiam-se na ponderação de que um
comportamento contrário à norma pode ser perigoso para o objeto protegido e será punível tão logo o perigo, no caso
em espécie, se apresente de modo concreto”, conclui que “a ocorrência do perigo é aqui elemento do tipo”
(WESSELS, Johannes. Direito penal: parte geral. Aspectos fundamentais. Tradução: Juarez Tavares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1976. p. 8-9). A compreensão de que o perigo aqui constitui elemento do tipo penal
abrange, ainda, casos em que o legislador tipifica crimes de perigo concreto, sem, contudo, mencioná-lo na redação
do tipo incriminador. Nesse sentido, afirma Silva, citando o exemplo do crime de gestão temerária previsto no
parágrafo único do art. 4º da Lei 7.492, que “o temor, vocábulo do qual deriva a adjetivação „temerária‟, revela, a
nosso ver, a exigência do perigo de forma concreta, vislumbrando-o sob o aspecto subjetivo”, motivo pelo qual
conclui que, no presente caso, “o perigo está contido no tipo do delito em questão e isso, e não só isso, demonstra
que se trata de crime de perigo concreto” (SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Op. cit. [n. 19], p. 68-9.
31
Ora, se dissemos que o perigo é elemento imprescindível ao reconhecimento da tipicidade de qualquer conduta,
inclusive nos crimes de perigo abstrato, a asserção de que o mesmo constitui um elemento típico apenas nos crimes
de perigo concreto acaba por ser inócua. Trata-se, isso sim, de uma referência expressa, e não implícita. Contudo, do
ponto de vista prático, não haveria qualquer distinção, se a verificação do perigo é exigida de qualquer forma em
ambos os casos. Daí a afirmarmos que restringir o conceito de perigo concreto à expressa exigência típica carece de
significação, se considerada em si mesmo.
32
MENDOZA BUERGO, Blanca. Límites dogmáticos y políticos-criminales de los delitos de peligro abstracto.
Granada: Comares, 2001. p. 22.
33
A título de exemplo, veja-se a afirmação de Tiedemann, no sentido de que “el delito de peligro abstracto
representa el instrumento de técnica típicamente correspondiente a la esencia del bien jurídico supraindividual”,
acrescentando, ainda, que “el peligro parece abstracto únicamente si es referido a intereses patrimoniales
individuales, mientras que, si se toman en consideración los aspectos supraindividuales (sociales) del bien jurídico y
los aspectos de la información (por ejemplo como interés tutelado en el caso de los balances), estos intereses son
lesionados (y no únicamente puestos en peligro por el delito)” (TIEDEMANN apud REYNA ALFARO, Luis
Miguel. La Protección Penal del Médio Ambiente: Posibilidades y limites. Disponível em
<http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/articulos/a_20080526_84.pdf>. Acesso em 17 de nov. 2009.
34
FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Crimes ambientais à luz do conceito de bem jurídico-penal:
(des)criminalização, redação típica e (in)ofensividade. São Paulo: IBCCRIM, 2008. p. 228.
caracterizando, por via de consequência, uma espécie de “presunção de ofensividade material” 35.
Cremos, assim, que conceber apenas a possibilidade de lesão de ditos bens jurídicos, excluindo
sumariamente as ofensas de cuidado-de-perigo e de concreto pôr-em-perigo, parece traduzir uma
verdadeira incompreensão da complexidade do tema e das novas tendências do direito penal. A
decorrência prática desse pensar é o rechaço a uma eventual leitura de identificação dos crimes de
perigo concreto com uma dada natureza de bens jurídicos predeterminada, seja ela individual ou
supraindividual36. Diante de tais considerações, também o critério relativo à classe do bem
jurídico tutelado não serve, segundo leitura nossa, para uma correta distinção entre os crimes de
perigo.
3. ASPECTOS DE DELIMITAÇÃO DO ILÍCITO-TÍPICO DE PERIGO CONCRETO
3.1. Algumas linhas acerca da relação matricial onto-antropológica de cuidado-de-perigo de Faria
Costa e os distintos níveis de ofensividade
O direito penal, enquanto ciência social que é, não pode ter raízes outras que não na
própria essência do homem enquanto ser político, de existência em comunidade. De tal sorte, ao
se pensar o direito penal a partir do ilícito37, afora a natural decorrência disso – relativa à
concepção do crime como ofensa a bens jurídicos, em uma leitura declaradamente material do
ilícito penal –, faz-se mister, também, buscar a compreensão do próprio significado do delito a
partir dessa dimensão social, da existência do homem em comunidade. E é precisamente isso que
Faria Costa procura fazer, ao proceder a uma aproximação da analítica existencial de Heidegger
sob o olhar interessado do direito penal38.
35
FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Op. cit. [n. 33], p. 229.
Por essa razão, deixamos de concordar com Corcoy Bidasolo, ao conceber os crimes de perigo concreto como
detentores de uma dupla função. Para autora, o desvalor de tais ilícitos consiste na lesão a um dado bem jurídico
supraindividual próprio dos crimes de perigo, agregado à colocação em perigo de um bem jurídico individual,
circunstância essa que os particularizaria em relação aos delitos de perigo abstrato (CORCOY BIDASOLO,
Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 49).
37
Como explicita D‟Avila, são duas as formas de pensar o direito penal: ou parte-se da pena, da consequência da
norma penal, onde podem ser encontradas as orientações funcionalistas; ou parte-se do ilícito, objeto da norma penal,
onde se pode encontrar as “elaborações de base ontológica, entre as quais a fundamentação onto-antropológica de
cuidado-de-perigo de Faria Costa” (D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 46).
38
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 48.
36
Assim, segundo magistério de Faria Costa, afigura-se inerente à realização da
comunidade humana a existência de uma “teia de cuidados”, onde o cuidado individual, do “eu
sobre si mesmo”, apenas obtém sentido “se se abrir aos cuidados para com os outros, porque
também unicamente desse jeito, unicamente nessa reciprocidade, se encontra a segurança, a
ausência de cuidado, a carência de perigo”39, em um cenário onde é pressuposta a existência de
diversos perigos40. A realidade social é, portanto, determinada pelo cuidado41. Como bem
clarifica D‟Avila, “ser-se é, assim, cuidar-se, mas é também ser-se-com e, portanto, nessa
abertura do ser para com o outro, cuidar-se é cuidar também do outro”42.
Uma vez pressupondo-se o cuidado-para-com-o-outro como elemento formador da
realidade social, percebe-se o perigo como uma dimensão coexistente, em razão da qual “o
cuidado encontra a sua razão de ser, sendo, por isso, o cuidado, sempre cuidado-de-perigo”43. O
cuidado-de-perigo é, portanto, a matriz ontológica da qual se pode extrair o fundamento básico
do direito penal. A incidência desse é reservada, pois, à ocorrência de uma “prejudicial oscilação
dessa teia de cuidados”, ou, o que é a mesma coisa, de uma “prejudicial oscilação da relação
matricial onto-antropológica de cuidado-de-perigo”, precisamente o que constituirá o ilícito
penal44.
Porém, há que se indagar, ainda, no quê consiste essa perversão da relação ontoantropológica de cuidado-de-perigo. E a resposta pode ser extraída do modelo de crime como
ofensa a bens jurídicos. A própria abertura do homem para com o outro, pressuposto de sua
existência, acaba por sedimentar um conjunto de valores, “de bens axiologicamente relevantes e
cristalizados na história e pela história, que permitem, agora em linha reversa de fundamentação,
a existência do próprio ser comunitário”45. Quando falamos em cuidado-para-com-o-outro,
portanto, referimo-nos a tais valores. E assim sendo, a ofensa a bens jurídico-penais está a
consubstanciar, no âmbito jurídico-normativo, o intolerável atingimento da relação matricial de
39
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 319.
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 49.
41
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 319, nota 82.
42
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 49.
43
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 49.
44
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 49.
45
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 626.
40
cuidado-de-perigo46. De tal sorte, a afetação do bem jurídico em sua estrutura nuclear ou em sua
específica intencionalidade jurídico-normativa representará uma ofensa47.
Essa ofensa pode ser estruturada em três graus distintos. O primeiro nível de
ofensividade que se pode surpreender consiste no total aniquilamento do bem jurídico 48. Trata-se
da ofensa de dano/violação, a qual, ao contrário de qualquer das hipóteses de perigo/violação,
pode, em determinados casos, levar o bem tutelado pela norma à sua nadificação 49. Particularizase, ademais, pela capacidade, ainda que nem sempre verificada, de manifestar-se dentro do realverdadeiro, de forma perceptível aos sentidos50. Por essas peculiaridades, pode-se afirmar sem
qualquer receio que a ofensa de dano/violação ocupa posição central na fundamentação do ilícitotípico51.
Questionemos agora, juntamente com Faria Costa: “não será, porém, descortinável e
definível um segundo grau de ofensividade”52? A resposta, aqui, deverá recair em sentido
positivo. Voltemos ao fundamento onto-antropológico do direito penal. A perversão da relação
onto-antropológica do cuidado-de-perigo, consistente, como vimos, na depreciação dos valores
que constituem o próprio objeto do cuidar, caracteriza o ilícito penal. Dessa forma, a proibição da
colocação em perigo de tais bens reconhecidamente dignos de proteção representa uma clara
transposição para a normatividade penal dessa relação de cuidado-de-perigo53. Ou seja, nos
exatos dizeres de Faria Costa:
De forma translata e intencionalmente não rigorosa dir-se-ia que o «eu» que não
assume essa relação originária vê a sua falta imediatamente reflectida no
chamamento que a ordem jurídica lhe faz ao considerar que a relação de
46
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 50.
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 628.
48
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 629.
49
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 94. Pode-se dizer que a toda nadificação do bem jurídico
corresponderá uma ofensa de dano/violação, ao passo que nem toda ofensa de dano/violação pressuporá a
nadificação do bem jurídico. Isso se deve ao fato de que determinados bens jurídicos não comportam uma sua
nadificação. Nesse sentido, Faria Costa afirma que “um bem jurídico singularmente imaterial (por exemplo: a honra,
a dignidade) pode ser ofendido violentamente, mas por mais forte e aguda que se concretize essa violação ela nunca
poderá chegar à nadificação” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 629). Oportuno acrescentar,
ainda, determinados bens jurídicos que, em que pese sejam passíveis de nadificação, sua lesão não necessariamente a
pressuporá. Veja-se, v.g., o patrimônio, que é indiscutivelmente danificado através do delito de furto, mas não se
pode dizê-lo nadificado, porquanto subsistirá após o cometimento do crime.
50
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 94.
51
Como reconhece D‟Avila (D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 93).
52
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 630.
53
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 622.
47
cuidado-de-perigo que não redunda em dano/violação, mas tão-só em perigo é,
legitimamente, suficiente para o punir54.
O legislador, intencionando proteger um determinado bem, e de acordo com a máxima
“age sempre para com o outro de modo a manter, sem oscilações, a tensão primitiva da relação de
cuidado-de-perigo”, vê-se legitimado, nesse contexto, a cominar uma pena ao desvirtuamento
dessa relação, do qual deriva o surgimento de um perigo a esse mesmo bem55. Ou seja, “o pôrem-perigo é elemento bastante para justificar uma pena criminal”56.
Assim, de forma muito breve, a exposição a perigo genericamente compreendida
caracteriza uma forma de perversão da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo, ao lado
do dano/violação – que goza, todavia, de papel central na fundamentação do ilícito –, e por essa
razão constitui causa legítima para a cominação da pena. Deixamos em aberto, no entanto – e o
fizemos propositadamente –, as particularidades que podem ser surpreendidas no âmbito interno
do desvalor de perigo/violação. Precisamente essas particularidades serão as responsáveis pela
determinação dos dois próximos níveis de ofensividade.
Quando questionamos sobre a plausibilidade de um segundo grau de ofensividade,
procuramos demonstrar justamente o fundamento de uma incriminação de perigo – frise-se
novamente, genericamente compreendido – ao bem jurídico, à luz dessa compreensão ontoantropológica do direito penal. Todavia, referida provocação, retirada da exposição de Faria
Costa, foi originalmente empregada com outro intuito. A referência do autor, em verdade, dizia
respeito especificamente ao ato de “colocar, concretamente, em perigo um bem jurídico”57, ou
seja, aos crimes de perigo concreto. Podemos reeditar, aqui, quanto a essa espécie de ofensa, as
considerações que fizemos no que pertine ao fundamento da incriminação consistente no
perigo/violação. Contudo, o nosso foco de interesse, neste momento, é o grau de incidência do
bem jurídico, porquanto se afigura, em nosso sentir, o traço definidor da espécie de ofensa de
perigo/violação de que se cuidará. Expliquemos.
Pode-se dizer que o concreto pôr-em-perigo representa um segundo nível de
ofensividade precisamente pela proximidade que guarda com a ofensa de dano/violação. O que
não significa dizer – carece frisar – que o seu fundamento resida num possível evento futuro de
54
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 622.
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 623.
56
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 623.
57
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 630.
55
dano/violação, do qual seria apenas um minus58. Não se pode deixar de reconhecer, no entanto,
que a ofensa, aqui, em que pese não compreenda um efetivo dano, é dotada de uma considerável
perceptibilidade. Atribuímos essa elevada perceptibilidade, assim, à proximidade do bem jurídico
para com a conduta, contiguidade da qual deriva uma clara ameaça à continuidade existencial do
bem.
De outro lado, no que chamaremos de terceiro nível de ofensividade, temos a ofensa de
cuidado-de-perigo, onde podemos surpreender um certo afastamento do bem jurídico tutelado em
relação à incidência do perigo. Faria Costa, embora defendendo a legitimidade dessa categoria de
ofensa, chega a falar em ausência de bem jurídico a conformar a relação de cuidado aqui
presente59. A ofensa de cuidado-de-perigo, própria dos crimes de perigo abstrato, seria, assim, a
violação daqueles valores do viver comunitário antes mencionados, mas não caracterizadora de
um dano ou de um perigo concreto, na medida em que inexistente “a mediação de um concreto e
definível bem jurídico a «cimentar» a relação de cuidado”60. Parece mais adequada, quanto a nós,
a definição trazida por D‟Avila, para quem
o ilícito-típico do perigo abstrato distingue-se verdadeiramente do ilícito-típico
do perigo concreto pela não exigência de um bem jurídico concretamente
exposto a perigo ou, de forma ainda mais clara, pela não exigência de um bem
jurídico no raio de ação do perigo61.
E essa nossa concordância reside na expressa menção que o autor faz, no sentido de que
“o bem jurídico continua sendo a categoria normativa sobre a qual e para a qual é erigido o
ilícito-típico”, residindo a ofensa, todavia, não mais na afetação da intencionalidade normativa do
bem, mas sim na “interferência na esfera de manifestação do bem jurídico”, de forma a subtrairlhe sua tranquilidade de expressão62.
58
Sobre isso, ver FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 630, nota 145. Ver, também, nossa nota 63.
“Se a relação de cuidado-de-perigo é de matriz onto-antropológica o descortinar-se, na sua estrutura, a
permanência da intersecção de um valor tem mais a ver com a analítica e menos com a sua verdadeira dimensão. Por
isso a afirmação de uma específica relação de cuidado imposta pelo Estado e sem um bem jurídico a conformá-la não
é necessariamente uma aberração conceitual, nem, muito menos, ilegítima extrapolação dos pressupostos que nos
têm servido de base” (FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 632).
60
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 634. O autor deixa claro que “a relação de cuidado-deperigo, mesmo sem a recorrência imediata do bem jurídico, é ainda suporte material suficiente para legitimar a
incriminação de condutas violadoras dessa relação originária”.
61
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 108.
62
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 161.
59
De maneira conclusiva, cremos haver demonstrado, a partir da fundamentação ontoantropológica do direito penal, expressa na relação de cuidado-de-perigo, o fundamento para a
incriminação tanto do dano/violação, quanto do perigo/violação. Com base nisso, e estruturando a
ofensividade em três níveis distintos, subdividindo o desvalor de perigo/violação nas ofensas de
concreto pôr-em-perigo e de cuidado-de-perigo, procuramos distinguir tais categorias através de
uma análise do papel desempenhado pelo bem jurídico ou, melhor dito, de sua posição em
relação à incidência do perigo. Estruturados os distintos níveis de ofensividade que permitem
classificar os crimes como de lesão – ofensa de dano/violação –, de perigo concreto – ofensa de
concreto pôr-em-perigo – e de perigo abstrato – ofensa de cuidado-de-perigo –, acreditamos ter
adquirido densidade suficiente para trabalhar agora mais detidamente a ofensa própria dos crimes
de perigo concreto, objeto de nosso interesse na presente investigação.
3.2. O perigo e um concreto bem jurídico como elementos definidores dos crimes de perigo
concreto
Não nos parece adequada – como já tivemos a oportunidade de ressaltar – a corriqueira
conceituação dos crimes de perigo concreto, cujo cerne reside na exigência de efetiva verificação
do perigo caso a caso63. Ora, a constatação do perigo – ao menos enquanto possibilidade nãoinsignificante – não é uma exigência que também diz respeito aos crimes de perigo abstrato? A
verificação dessa possibilidade não-insignificante não deve ocorrer também à luz do caso
concreto? Não que o conceito não se aplique aos crimes de perigo concreto. O problema reside no
fato de que tal concepção serve a qualquer crime de perigo, mostrando-se, por essa razão,
insuficiente. O que há, então, de peculiar nessa espécie de ofensa?
Partindo-se da relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo devidamente transposta
para o âmbito da normatividade penal por meio da atuação do legislador, forçoso é reconhecer,
juntamente com Faria Costa64 e D‟Avila65, que sua mais pura forma de expressão ocorrerá
63
A título de exemplo, Silva define o crime de perigo concreto como “aquele segundo o qual, para o
aperfeiçoamento do tipo, exige-se a verificação efetiva do perigo, devendo este ser constatado caso a caso” (SILVA,
Ângelo Roberto Ilha da. Op. cit. [n. 25], p. 68).
64
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 632.
quando mediatizada por um concreto bem jurídico-penal. Nesse cenário, a estabilidade da relação
de cuidado-para-com-o-outro vem a representar a preservação dos valores axiologicamente
relevantes à sociedade – bens jurídicos dignos de tutela penal. Por outro lado, o desvirtuamento
dessa relação, nas mesmas circunstâncias, justificará amplamente a incidência do direito penal.
Compreendida essa adequação entre o perigo concreto e a ofensividade, cumpre indagar: quando
se pode afirmar que um bem jurídico é concretamente posto em perigo ou efetivamente
ameaçado66?
Valendo-nos do magistério de Faria Costa, “um bem jurídico é concretamente posto em
perigo quando a sua normativa intencionalidade é perturbada por força de uma acção humana
responsável”67. Essa perturbação deverá ser fruto de uma conduta da qual resulte um perigo
dotado de elevado conteúdo de significação. Por essa razão, Binding refere-se a uma “comoção
da certeza de ser” do bem jurídico68.
Demuth, por sua vez, define o perigo concreto como uma “crise do bem jurídico” (Krise
des Rechtsgutes)69. Segundo o autor, trata-se de um processo de desenvolvimento do perigo até
então existente – consubstanciado na simples possibilidade de dano –, do qual resulta uma
significativa ameaça à existência do bem jurídico, e um “objetivo agravamento da sua situação”,
perceptíveis como um “valor da realidade” (Wirklichkeitswert)70. Gallas, de forma bastante
similar, vê no concreto pôr-em-perigo o agravamento da situação do bem jurídico, dado no
formato de uma crise, de tal forma a ameaçar a sua existência ou integridade, em um processo
que culmina no âmbito de uma efetiva “realidade social” (soziale Realität)71. Essa realidade
social, ainda segundo o autor, pode ser percebida através de uma reação do meio ou do portador
do bem jurídico, no sentido de evitação do resultado temido72.
65
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 106.
Mantovani afirma que para constatar a existência dos crimes de perigo concreto “è necessario accertare, in ciascun
caso, se il bene protetto sai stato effetivamente minacciato” (MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale: parte
generale. Padova: Cedam, 1979. p. 200). O que ora indagamos, todavia, não é o modo pelo qual se verifica se o bem
jurídico esteve efetivamente ameaçado, mas o significado dessa efetiva ameaça ao bem protegido.
67
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 630.
68
BINDING, Die Normen und ihre Übertretung, 1922, apud FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p.
630.
69
DEMUTH, Der normative Gefahrbegriff. Ein Beitrag zur Dogmatik der konkreten Gefährdungsdelikte, 1980, apud
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107, nota 60.
70
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107, nota 60.
71
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107, nota 60.
72
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107, nota 60.
66
Assim, nos crimes de perigo concreto, o grau de perigo penalmente relevante de que
falamos alhures – aqui, necessariamente compreendido segundo as exigências próprias dessa
ofensa, em absoluta conformidade com o que mencionamos acerca da imprescindibilidade de
interpretação do perigo à luz do âmbito próprio do tipo penal – é trasladado à realidade social,
ameaçando a continuidade existencial do bem jurídico, com veemência tamanha que, vale
reiterar, é plenamente concebível a possibilidade de reação do meio ou do portador do bem
jurídico. Essa perceptibilidade da situação de perigo – decorra ela da forma de expressão da
situação de perigo como um valor da realidade ou como uma efetiva realidade social – possui
um papel fundamental na caracterização da ofensa de concreto pôr-em-perigo, e dela constitui um
traço marcante73. E é precisamente a isso que Jescheck se refere quando diz que o perigo
(concreto) deve ser entendido como um estado anormal em que, para um dado observador, em
vista das circunstâncias concretas e atuais, a produção de um dano afigura-se evidente74.
Disso resulta, como bem percebe Roxin, duas conclusões: em primeiro lugar, para a
configuração de um crime de perigo concreto, “ha de existir un objeto de la acción y haber
entrado en el ámbito operativo de quien lo pone en peligro”75. Retornemos ao exemplo da
73
Tanto isso é verdade que grande parte das construções relativas ao resultado de perigo concreto, partindo
justamente dessa clara perceptibilidade da situação de perigo, versam sobre a natureza das circunstâncias que deram
lugar à inocorrência do dano/violação, quando o mesmo era esperado.
74
JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit. [n. 180], p. 358.
75
ROXIN, Claus. Op. cit. [n. 106], p. 404. Chamamos especial atenção para o fato de que esse objeto da ação não
deve ser identificado com o bem jurídico tutelado pelo tipo penal. Entendemos, juntamente com Jescheck, que os
bens jurídicos não constituem objetos apreensíveis pelos sentidos, no âmbito do mundo real, mas “valores ideales del
orden social”. O objeto da ação, de outro lado, consiste no concreto objeto sobre o qual recai a ação (JESCHECK,
Hans-Heinrich. Op. cit. [n. 180], p. 354), ou, nos dizeres de Souza, na “coisa ou pessoa sobre os quais, no plano real
e causal, recai a conduta” (SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. O meio ambiente (natural) como sujeito passivo
dos crimes ambientais. Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e
outras questões. Coord.: Fabio Roberto D‟Avila; Paulo Vinicius Sporleder de Souza. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 249). De maneira nenhuma estamos a sugerir, também, que a
referência do tipo penal ao perigo deva ser relacionada ao objeto material. Isso porque, como bem salienta Jescheck,
é o bem jurídico “el punto de partida y la idea que preside la formación del tipo” (JESCHECK, Hans-Heinrich. Op.
cit. [n. 180], p. 350). De tal sorte, valendo-nos da assertiva de Escriva Gregori, o ataque ao objeto material (ou objeto
da ação, como referem os alemães) apenas será contemplado quando pressuposto para a afirmação do atentado ao
bem jurídico (ESCRIVA GREGORI, Jose Maria. Op. cit. [n. 167], p. 41). E dita constatação apenas vem em
benefício do tanto afirmado anteriormente (vide supra, 3.2). Ou seja, segundo leitura nossa, o objeto da ação será
relevante apenas enquanto forma de expressão do bem jurídico, seja ele individual ou supraindividual. Nesse mesmo
sentido, Figueiredo Dias afirma que “ao nível do tipo objectivo de ilícito o objecto da acção aparece como
manifestação real desta noção abstracta, é a realidade que se projecta a partir daquela ideia genérica e que é
ameaçada ou lesada com a prática da conduta típica” (FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Op. cit. [n. 11], p. 308). O
objeto material, per se, é despiciendo, de modo que não é a sua lesão ou – em nosso caso específico – o seu perigo de
lesão o ponto no qual se funda o tipo penal, mas sim a ofensa ao bem jurídico tutelado, todavia devidamente
corporificado – quando for o caso – naquele objeto. Essa é, portanto, a interpretação a ser levada a cabo quando nos
referirmos ao objeto da ação.
ultrapassagem imprudente próxima a uma curva. Nessas circunstâncias, a ocorrência de um
acidente envolvendo um veículo que viesse em sentido contrário seria inevitável. Ocorre que,
casualmente, nenhum automóvel trafegava na pista oposta, razão pela qual a manobra
desenvolveu-se de maneira bem sucedida. Aqui, a conduta não caracteriza um perigo concreto
precisamente por haver faltado esse objeto material, circunstância da qual decorre a não
configuração do resultado de perigo exigido pelo tipo penal. De forma mais precisa, o bem
jurídico não esteve no campo de ação da fonte de perigo, afastando, por conseguinte, a ocorrência
de um concreto pôr-em-perigo.
Em segundo lugar, essa perturbação da intencionalidade normativa do bem jurídico,
gerada a partir de sua presença no campo de ação do perigo, deve ser responsável pela criação de
um perigo próximo de lesão ao objeto material76, ou, nas palavras de Faria Costa, possuir uma
intensidade tão elevada “que implique objectiva „comoção da certeza de ser‟”77.
Portanto, para que se possa efetivamente falar em concreto pôr-em-perigo, o bem
jurídico necessariamente deverá figurar no raio de ação da fonte de perigo78, e ter atingida a sua
tranquilidade existencial79. Por essa razão afirmamos anteriormente que as distintas espécies de
perigo/violação podem ser conceituadas de forma mais satisfatória através do papel
desempenhado pelo bem jurídico: nos crimes de concreto pôr-em-perigo, a atuação do bem
jurídico frente à situação de perigo é pautada por um caráter de imediação.
De forma definitiva: partimos de uma noção do concreto pôr-em-perigo como uma
ofensa que, para além de pressupor um perigo, exige uma significativa proximidade do bem
jurídico tutelado em relação à situação de perigo, circunstância que é responsável pela distinção
entre essa forma de afetação e a ofensa de cuidado-de-perigo.
Disso decorre a imposição de um particular momento de verificação dos crimes de
concreto pôr-em-perigo, onde se intenciona averiguar a ocorrência dessa efetiva possibilidade de
76
ROXIN, Claus. Op. cit. [n. 106], p. 404.
FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 13], p. 630.
78
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107, nota 61. Salvo melhor juízo, assim também entende Welzel,
quando afirma que “se inquiere en relación a un bien jurídico de si fue puesto en peligro, se presupone como dado
que el bien jurídico ha entrado en el ámbito de influencia de un suceso determinado y se averigua a partir de este
momento en el tiempo de si podría ser lesionado por influencia de tal acontecimiento”. Conclui, pois, que “con el
problema de si ha puesto en peligro un bien jurídico se erige un segundo juicio de adecuancia que tiene como base no
la situación al momento de ejecución de la acción, sino al momento en que el bien jurídico entra en el ámbito de
influencia de la acción” (WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Traducción: Juan Bustos Ramírez y Sergio Yáñez
Pérez. Santiago de Chile: Editorial de Chile, 1997. p. 164-5).
79
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107.
77
afetação do bem jurídico80. Trata-se de um juízo que deverá constatar a presença do bem jurídico
no raio de ação do perigo, bem como a ocorrência de uma intensa perturbação de sua
intencionalidade normativa – atingindo a sua tranquilidade existencial –, de forma a possibilitar a
subsunção do caso concreto ao tipo de perigo concreto, cuja expressa exigência de um resultado
de perigo lhe é peculiar81.
O modus operandi da verificação dessa efetiva ameaça sofrida pelo bem jurídico, ou
seja, a forma pela qual se aferirá se o bem jurídico tutelado realmente figurou no raio de ação da
conduta perigosa e a intensidade com que o fez, são pontos que serão esclarecidos a partir de
agora, no estudo direcionado aos critérios de acertamento dos crimes de perigo concreto.
3.3. Critérios de acertamento
Até o presente momento, buscamos demonstrar o que deve ser compreendido ao se falar
em perigo concreto. O resultado de perigo exigido no tipo penal respectivo não é critério
suficiente para sua definição, caracterizando apenas um ponto de partida. Ao estudarmos os
crimes de concreto pôr-em-perigo, a tarefa que nos incumbe e da qual não podemos escapar é a
de enxergar mais além, ou seja, compreender o significado dessa exigência típica de resultado.
Partindo do fundamento onto-antropológico do direito penal, fundado na preservação da
relação de cuidado-de-perigo, traçamos, em um primeiro momento, as linhas iniciais para uma
compreensão da legitimidade da punição dos crimes de perigo/violação. Em um segundo
momento, definimos a ofensa própria dos delitos de perigo concreto como uma particular forma
de afetação do bem jurídico-penal, cujo traço característico é a notável contiguidade desse em
80
Nesse sentido, Mendoza Buergo, distinguindo os crimes de perigo abstrato dos crimes de perigo concreto, afirma
que “en éstos últimos es característico un momento que los diferencia de los primeros y que indica que esa
posibilidad no existe sólo de manera genérica, sino que afecta a determinado objeto que encarna el bien jurídico y
representa para este, de facto, un riesgo serio” (MENDOZA BUERGO, Blanca. Op. cit. [n. 46], p. 27). Como se vê, a
autora faz expressa menção no sentido de que a afetação é relacionada a “determinado objeto que encarna el bien
jurídico”. Preferimos, todavia, ainda que inteiramente de acordo com a assertiva da Professora Mendoza Buergo,
apenas com o intuito de evitar eventuais incompreensões, ligar conceitualmente a afetação ao próprio bem jurídico,
na medida em que é ele, o bem jurídico – e não o objeto através do qual o mesmo se corporifica –, o valor sobre o
qual incide a ofensa, ou, reiterando os dizeres de Jescheck, “o ponto de partida e a ideia que preside a formação do
tipo” (JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit. [n. 180], p. 350).
81
Tal entendimento pode ser surpreendido também em Luzón Peña, para quem os delitos de perigo concreto
“requieren que la acción produzca un resultado de concreto peligro de lesión inmediata o próxima para algún bien
jurídico (que estuvo próximo o a punto de lesionarse)” (LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel. Curso de Derecho Penal.
Parte general. Madrid: Editorial Universitas, 1996. p. 314).
relação à situação de perigo oriunda da conduta. Essa proximidade pode ser desdobrada em dois
caracteres constatáveis: a presença de um concreto bem jurídico no raio de ação do perigo e a
intensa perturbação de sua intencionalidade normativa, de forma a lhe causar uma verdadeira
“comoção da certeza de ser”82. Apenas na presença desses dois fatores é que se poderá afirmar a
ocorrência do resultado de perigo exigido expressamente pelo tipo de concreto pôr-em-perigo, na
medida em que neles reside o significado de dita imposição típica, significado este que
inicialmente nos propusemos a aclarar83.
Pois bem. Compreendida a essência da ofensa de concreto pôr-em-perigo, há que se
investigar a forma pela qual se pode afirmar se determinada situação caracterizou um perigo
concreto. Ou seja, partindo das conclusões acima expostas, a questão que ora deve ser elucidada
consiste exatamente no desvendar dos critérios que devem utilizados para aferir se o bem
jurídico-penal tutelado realmente figurou no raio de ação da conduta perigosa, e o grau de
intensidade do perigo de dano que dela resultou.
Trata-se de um enfoque igualmente importante para a releitura dos crimes de perigo
concreto que ora buscamos. Alguns autores, inclusive, chegam a definir o perigo concreto com
base nos critérios pertinentes ao próprio juízo que o mesmo demanda, o que, diga-se em abono da
verdade, constitui um erro dificilmente evitável84. Tem-se aqui, no entanto, aspectos que,
conquanto inegavelmente complementares, são distintos, e, como tal, inidentificáveis. De um
lado, há o concreto pôr-em-perigo, particular forma de ofensa ao bem jurídico-penal, expressa em
uma realidade objetiva e constatável. De outro, há o juízo de perigo, cuja essência consiste
exatamente no constatar dessa realidade, ou, como já dissemos, no modus operandi da
verificação dessa efetiva ameaça sofrida pelo bem jurídico, nos termos da ofensa a que diz
respeito85. Por se tratar de uma particular forma de ofensa ao bem jurídico, evidentemente que o
seu acertamento possui traços que lhe são próprios – destacadamente o juízo ex post –, e a isso
82
BINDING, Die Normen und ihre Übertretung, 1922, apud FARIA COSTA, José Francisco de. Op. cit. [n. 3], p.
630.
83
Ver supra, 3.1, onde, de maneira mais pormenorizada, afirmamos que a presença do perigo enquanto elementar
típica é apenas ponto de partida para a compreensão dos tipos de concreto pôr-em-perigo, sendo imprescindível,
outrossim, a compreensão do significado da expressa exigência de efetivo resultado de perigo.
84
Como observa Corcoy Bidasolo, todavia referindo-se ao perigo penalmente relevante, em uma perspectiva geral
(CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 53).
85
Especificamente quanto ao concreto pôr-em-perigo, no que tange ao seu conceito e adequação ao princípio da
ofensividade, vide supra, 3.3.2.
atribuímos a costumeira confusão conceitual entre ofensa e juízo, o que, reiteramos, deve ser
evitado.
Anteriormente, quando de nossa exposição acerca dos caracteres gerais do perigo,
manifestamos o nosso entendimento acerca do juízo de perigo. No entanto, nossa análise a partir
de agora cingir-se-á aos critérios de acertamento próprios dos crimes de concreto pôr-em-perigo,
o que demandará, para além de consideráveis acréscimos de conteúdo, algumas readequações
conceituais que possibilitarão um procedimento interpretativo condizente com tais ilícitos.
Assim, em um primeiro momento, falaremos do juízo ex ante de perigo, o que, embora
já tenha sido objeto de nosso estudo, possuirá agora um enfoque direcionado aos delitos de perigo
concreto. Em um segundo momento, abordaremos as teorias relativas à verificação do resultado
de perigo concreto. Por fim, traçaremos alguns comentários acerca da relação entre a conduta
prevista no tipo penal respectivo e o resultado de perigo concreto previsto pela norma penal.
3.3.1. Juízo ex ante: o que verificar, por que verificar e como verificar
Como há pouco afirmamos, não se pode confundir a realidade objetiva encetada pelo
perigo com a forma de constatá-la. O juízo de perigo consiste apenas nessa última, e dele já
tratamos anteriormente. Naquela ocasião, todavia, o fizemos com o particular intuito de
caracterizar o perigo relevante aos olhos do direito penal. Agora, diferentemente, nossa
motivação consiste em adequar o conceito às exigências próprias dos crimes de concreto pôr-emperigo. Com esse desiderato, optamos, por razões estritamente didáticas, por analisar
conjuntamente as questões relativas ao perigo enquanto realidade objetiva (o que constatar) e ao
juízo ex ante próprio (como constatar). E isso se deve ao fato de que tais noções podem ser
extraídas do conjunto de informações disponíveis na investigação, até o presente momento.
Nossa preocupação, a partir de agora, será, portanto, a de sistematizá-las, de forma a situar o
leitor dentro do âmbito dessa particular realidade dos ilícitos de concreto pôr-em-perigo.
Há que se ressaltar, inicialmente, que o juízo de adequação típica pressupõe
necessariamente uma análise do âmbito de proteção da norma penal específica, a viabilizar a
subsunção do caso concreto à razão subjacente ao tipo penal em questão. Ou seja, o tipo penal
não apenas tutela um dado bem jurídico, como, também, estabelece uma determinada forma de
fazê-lo. Essa assertiva, no entanto, possui dois desdobramentos: a) o bem jurídico é protegido de
apenas alguns riscos (enfoque dado naquela oportunidade, voltado à questão do âmbito de
proteção da norma como critério restritivo do tipo penal); e b) a cada tipo penal corresponderá
uma específica forma de ofensa. Quando dizíamos, então, que o perigo penalmente relevante
deve ser extraído com base em uma análise atenta ao âmbito de proteção da norma, nos
referíamos, também – embora não o tenhamos feito expressamente, optando por fazê-lo nessa
oportunidade86 –, ao fato de que a aferição do perigo penalmente relevante deve observar o
específico tipo penal em que aquele se encontra inserido.
Tanto equivale a dizer que, no tocante aos delitos de concreto pôr-em-perigo, em razão
de sua particular forma de ofensa – consistente em uma efetiva “comoção da certeza de ser” –,
ser-lhes-á exigida a verificação ex ante de um grau de perigo muito mais elevado do que o
necessário à caracterização de um crime de perigo abstrato. Vale dizer: o perigo penalmente
relevante, aqui, deve apresentar-se com uma intensidade consideravelmente superior à do limite
mínimo de verificação do perigo na seara do direito penal, expresso através da noção de
possibilidade não-insignificante de dano/violação.
Embora os tipos de concreto pôr-em-perigo convoquem a produção de um resultado de
perigo, consistente na intensa ameaça à continuidade existencial do bem jurídico verificada no
plano fático, o que por si só impõe a exigência de um particular e primacial momento de
verificação – juízo ex post –, o seu acertamento está condicionado, outrossim, a um juízo ex ante
que indique essa elevada probabilidade de dano ao bem jurídico 87. Esse juízo é de suma
importância, e desempenhará um papel fundamental no estabelecimento do liame objetivo entre a
conduta e o resultado de perigo inserto no tipo penal. Afinal de contas, o próprio termo
“resultado” conota uma consequência. O que resulta, resulta de algo. O resultado de perigo
provém de uma conduta cuja realização enseja a criação de uma probabilidade de dano ao bem
86
Trata-se o perigo penalmente relevante, repisamos, de um conceito que, entre outros aspectos importantes, tem
espaço a partir do âmbito de proteção da norma penal. Nesse contexto, a visualização do que ora acaba de ser
afirmado é facilitada quando desenvolvida à luz da ofensa específica, de tal sorte que, uma vez que a investigação
tenha por objeto os crimes de perigo concreto, a particular exposição afigura-se consideravelmente mais frutífera se
empreendida após a fundamentação da ofensa de concreto pôr-em-perigo. Por essa razão, naquele primeiro
momento, restringimo-nos a tratar do âmbito da norma penal apenas enquanto critério restritivo do tipo, relegando
para o presente momento o enfrentamento da questão concernente ao perigo penalmente relevante.
87
E isso fica muito claro na lição de D‟Avila, quando o mesmo afirma que “o reconhecimento do perigo concreto
passa a exigir que o bem jurídico tenha entrado efetivamente no raio de ação da conduta perigosa, o que, por sua vez,
coloca a necessidade de um duplo juízo de verificação: não só um juízo ex ante, mas também um juizo ex post”
(D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 110).
jurídico-penal não permitida pelo ordenamento. Assim, a mera superveniência de um estágio
onde se vislumbre uma “comoção da certeza de ser” do bem jurídico-penal, em um contexto
onde não se possa imputá-la a uma conduta responsável pela geração de uma significativa
probabilidade ex ante de produção de um dano/violação, carecerá de relevância ao direito penal.
Daí procede a imensurável importância do juízo ex ante – responsável pelo detectar dessa
realidade pretérita –, inclusive para fins de imputação.
Quanto aos atributos do juízo ex ante, o mesmo será lançado em um momento a
posteriori por um espectador objetivo, utilizando-se da totalidade dos conhecimentos disponíveis
no momento de sua elaboração em relação às circunstâncias atuantes no momento do fato (juízo
ex ante de base total objetiva), e será calcado nas regras de experiência determinísticas e
indeterminísticas, estas apenas quando atuantes no momento do fato.
O que deve ficar claro, e chamamos especial atenção para tal, é que, em relação aos
crimes de concreto pôr-em-perigo, esse juízo ex ante necessariamente deverá constatar uma
significativa probabilidade de dano/violação, compatibilizando-se, dessa forma, com a particular
forma de afetação ao bem jurídico-penal que pode ser surpreendida em tais ilícitos.
3.3.2. Juízo ex post
Determinada a existência de um relevante perigo ex ante para o bem jurídico, há que se
investigar se essa elevada probabilidade de dano/violação veio a lume, manifestando-se de forma
perceptível. Ou seja, deve ser verificado se o bem jurídico tutelado figurou realmente no raio de
ação do perigo, de forma tão intensa que sua tranquilidade existencial tenha restado abalada.
Tem-se, aqui, um resultado de perigo em cuja averiguação consistirá o juízo ex post.
Trata-se, calha reiterar, de um particular atributo dos crimes de concreto pôr-em-perigo.
Por essa razão, Mendoza Buergo, ao distinguir os crimes de perigo abstrato dos crimes de perigo
concreto, afirma que “en éstos últimos es característico un momento que los diferencia de los
primeros y que indica que esa posibilidad no existe sólo de manera genérica, sino que afecta a
determinado objeto que encarna el bien jurídico y representa para este, de facto, un riesgo
serio”88.
88
MENDOZA BUERGO, Blanca. Op. cit. [n. 46], p. 27.
A ocorrência de um concreto pôr-em-perigo no plano fático, via de regra, é pautada pelo
caráter da perceptibilidade. A própria natureza dessa ofensa conclama a existência de um objeto
da ação – no qual o bem jurídico se corporifica –, o que vem a facilitar a sua verificação de forma
considerável. Ainda que não vislumbremos qualquer óbice teórico em uma eventual possibilidade
de existência de um crime de perigo concreto em que dispensada a presença de um objeto
apreensível, o fato é que, nessas condições, acaba sendo bastante difícil – senão impossível –
projetar a ocorrência de uma verdadeira “comoção da certeza de ser” do bem jurídico, causada
por uma conduta, sem que esse venha corporificado em um elemento palpável e apreensível89,
que facilite a visualização de sua concretude material90.
Corcoy Bidasolo, atentando para essa realidade, chega a comparar a estrutura objetiva dos
crimes de lesão, na modalidade tentada, com os crimes de perigo concreto91. Se imaginados à luz
do mesmo bem jurídico, de fato um delito de concreto pôr-em-perigo assemelha-se a uma
tentativa acabada de lesão, evidentemente distanciando-se no que concerne ao elemento
subjetivo. Todavia, o que importa destacar é que, tal qual ocorre na tentativa, uma situação de
concreto pôr-em-perigo sói ser plenamente perceptível e identificável, ainda que ausente qualquer
resultado material. E isso já havíamos antecipado ao afirmarmos, em relação à ofensa de concreto
pôr-em-perigo, que a “crise do bem jurídico” de que nos fala Gallas, percebida como uma
89
A necessidade de um objeto da ação nos crimes de perigo concreto era já referenciada por Wolter, com base na
jurisprudência alemã (CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 156, nota 331).
90
Em verdade, a questão não é conceber o concreto pôr-em-perigo como um ilícito-típico onde necessariamente há
de existir um objeto da ação. O que de fato ocorre é que o traço característico do tipo, consistente na presença de um
bem jurídico no raio de ação do perigo, hipótese que resulta em um intenso abalo à sua tranquilidade existencial, é
bem visualizado quando imaginado na presença de um objeto da ação que o materialize. Situação completamente
diferente seria negar a possibilidade de existência de um concreto pôr-em-perigo quando ausente um objeto de ação,
o que não estamos dispostos a fazer. Pelo contrário, cremos inexistir qualquer óbice teórico para conceber o perigo
concreto sem um objeto da ação. Quaisquer objeções que possam ser levantadas quanto ao ponto, a nosso ver,
traduzir-se-ão em considerações de cunho prático-operacional, e não propriamente teóricas. Salvo melhor juízo, é
isso o que se pode surpreender na exposição de Ruivo, quando, ao abordar os caracteres do ilícito-típico de gestão
fraudulenta, afirma que o entendimento segundo o qual se trataria de um crime de perigo concreto deve ser
rechaçado, na medida em que dita técnica de tutela, ao ser aplicada a bens jurídicos “com extrema largueza e de
baixa concretude material” – como é o caso da verdade e transparência relacionadas ao patrimônio – acabaria por
“resultar insustentável no plano prático-objetivo”. Ainda segundo o autor, “o esforço demasiado requerido para a
satisfatória comprovação da ocorrência do efetivo perigo ao bem jurídico, ...no plano aplicativo, poderia resultar uma
injusta causa de impunidade pelo não cumprimento das exigências legais” (RUIVO, Marcelo. Bem jurídico e técnica
de tutela: limites materiais para a constitucionalidade do ilícito de gestão fraudulenta. Porto Alegre: PUCRS, 2008.
160 p. Dissertação – Mestrado em Ciências Criminais, Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p. 126).
91
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 147.
verdadeira “realidade social” (soziale Realität), pode ser apreendida através de uma reação do
meio ou do portador do bem jurídico, no sentido de evitação do resultado temido92.
Assim, partindo-se da exigência dos crimes de concreto pôr-em-perigo no sentido de um
acertamento ex post onde imprescindível o domínio dos conhecimentos causais necessários à
hipótese de imputação93, pressupondo-se exatamente essa elevada perceptibilidade da situação de
perigo, diversas foram as teorias que buscaram uma forma de identificar a ocorrência de um
resultado de perigo concreto, a partir do investigar das condições supervenientes que
determinaram a inocorrência do dano/violação ao bem jurídico-penal, quando tanto afigurava-se
ex ante evidente.
Ocorre que, como bem apontado por Corcoy Bidasolo, a questão relativa à evitabilidade
da lesão faz-nos deparar muito mais com um problema de imputação do resultado de perigo do
que propriamente com a essência deste mesmo resultado de perigo94. Ou seja, o averiguar da
classe das circunstâncias que diminuíram ou controlaram o risco e evitaram a lesão – se
pertencentes ou não ao âmbito de domínio do autor – conduz apenas a um juízo de imputação do
resultado (de perigo) ao injusto típico95.
O resultado de perigo necessário à perfectibilização do tipo de concreto pôr-em-perigo
será, portanto – segundo a compreensão que temos manifestado ao longo da presente
investigação –, a própria entrada do bem jurídico no raio de ação do perigo, de forma a ameaçar
sua certeza de ser. Essa realidade, precisamente o cerne de nossa exposição concernente à ofensa,
determinará a ocorrência do perigo concreto, o resultado típico, independentemente da natureza
das circunstâncias que determinaram a inocorrência do evento lesivo. É esse o cenário a ser
constatado pelo juízo ex post (o que constatar)96.
E é isso o que se extrai do exemplo já empregado. Ora, o simples fato de uma
circunstância interventora possuir explicação científico-natural não possui o condão de
descaracterizar a situação de perigo (teoria ontológica), se o bem jurídico efetivamente esteve no
92
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 107, nota 60. De forma mais detida, ver supra 3.3.2.
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 169, nota 288. Mais detalhadamente, ver infra, 3.4.2.2.
94
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 162.
95
CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 163.
96
Em sentido parecido, Corcoy Bidasolo afirma, após observar a confusão entre critérios de imputação e de
definição do resultado de perigo, que esse seria “la «amenaza» para el bien jurídico que se encuentra en el ámbito de
riesgo creado por el comportamiento” (CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit. [n. 20], p. 162). Quando nos
referimos, portanto, à ofensa de concreto pôr-em-perigo como substrato do resultado típico de perigo, estamos
apenas traduzindo o significado do termo “ameaça” a que faz referência a autora, todavia conforme nossa particular
compreensão.
93
raio de ação do perigo. Da mesma forma, o não poder confiar na produção de uma circunstância
superveniente impeditiva, ausentes (teoria normativa) ou não (teoria normativa modificada)
critérios para sua determinação, nada diz quanto à ocorrência um perigo concreto, se o bem
jurídico não houver entrado no raio de ação do perigo. Por fim, o que vem a representar a
indominabilidade do curso da colocação em perigo por parte do autor (teorias da
dominabilidade), se a situação esteve longe de atingir a tranquilidade existencial do bem jurídico,
em razão do pleno controle exercido pelas demais circunstâncias supervenientes?
Assim, muito embora sejam sedutoras tais construções, na medida em que fornecem
critérios claros e, de certa forma, seguros para a verificação do perigo no caso concreto, verificase que as mesmas acabam atendo-se à “roupagem” do perigo concreto, em detrimento de sua
essência. Dito de outra forma, os critérios utilizados pelas teorias acima expostas para defini-lo
referem-se apenas às características com que o concreto pôr-em-perigo sói se manifestar,
perdendo de vista o fato de que tal decorre de sua particular forma de afetação do bem jurídico.
Nesse horizonte compreensivo, o papel destinado ao juízo ex post consistirá na simples
constatação da contiguidade do bem jurídico em relação à situação de perigo, de forma que sua
tranquilidade existencial tenha sido frontalmente atingida97. O agregar de tarefas que estão além
da primacial função do juízo ex post, consistente na averiguação do elemento onde radicado o
cerne do concreto pôr-em-perigo – a ofensa –, acaba por representar um desvirtuamento de suas
linhas estruturais, o que por vezes poderá levar o intérprete a incorrer em erro.
3.3.3. Bases e parâmetros de análise do juízo aplicados ao objeto de verificação
Dissemos que os crimes de concreto pôr-em-perigo distinguem-se pela existência de um
segundo e particular momento de verificação que confirme a ocorrência de um resultado de
97
Nesse ponto, estamos de pleno acordo com Maurach, quando o mesmo afirma que a existência de uma situação de
perigo concreto exige duas constatações: “una consideración ex ante de las diversas posibilidades de desarollo de los
acontecimientos en la situación concreta de la acción (p. ej., el desplazamiento zigzagueante de un vehículo guiado
por un conductor bajo los efectos del alcohol, en una carretera urbana con un flujo moderado de tránsito); además de
ello, es preciso estabelecer que un bien jurídico protegido por el derecho penal se ha visto envuelto en dicha
situación de peligro (p. ej., un peatón que, en último momento, logra saltar hacia un costado y evitar el vehículo que
se acerca con un movimiento zigzagueante) (MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Parte general. Teoria del
derecho penal y estructura del hecho punible. Traducción de la 7ª edición alemana por Jorge Bofill Genzsch y
Enrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Ástrea, 1994. p. 284). Essa entrada do bem jurídico no raio de ação do
perigo consiste exatamente no objeto de verificação do juízo ex post.
perigo. Este resultado de perigo, diferentemente do resultado de perigo decorrente da ofensa de
cuidado-de-perigo98, consiste na entrada de um bem jurídico no raio de ação do perigo.
Por essa razão, fica evidenciada a imprescindibilidade do domínio dos conhecimentos
causais necessários à hipótese de imputação99. Ou seja, a perspectiva do juízo de perigo, aqui,
deverá necessariamente ser ex post, para que, a partir do observar das circunstâncias sucessivas à
conduta típica e da revelação da ocorrência ou não do resultado (lesivo), possa-se afirmar se
houve o resultado de perigo concreto, ou seja, se um concreto bem jurídico teve sua tranquilidade
existencial atingida.
Para uma melhor compreensão, basta observar os diferentes desdobramentos do exemplo
da ultrapassagem próxima à curva100. Imagine-se três situações: (1) o condutor que realiza a
ultrapassagem encontra um automóvel vindo em sentido contrário, e com ele colide, provocando
a morte do outro condutor; (2) o condutor que realiza a ultrapassagem encontra um automóvel
vindo em sentido oposto, não colidindo apenas pela arriscada manobra realizada pelo outro
condutor, que o faz sair da estrada; e (3) o condutor não encontra qualquer automóvel na pista
contrária, concluindo a ultrapassagem sem qualquer problema. Como bem observado por
D‟Avila, “em uma perspectiva ex ante, as três situações são idênticas, diferenciando-se apenas
em uma perspectiva ex post”101. Percebe-se, assim, que apenas na segunda hipótese chega-se a
um resultado de perigo concreto, porquanto um bem jurídico efetivamente esteve presente no raio
de ação de perigo – porém sem resultado danoso –, conclusão a que se pode chegar somente a
partir do total domínio cognitivo do desdobramento causal da conduta realizada.
Assim, quanto à perspectiva e à base de análise do juízo, não podemos senão endossar a
proposta de Schröder, para quem deve o perigo concreto ser compreendido como objeto de um
juízo ex post com consciência ontológica total102. Isso significa dizer que o juízo deverá levar em
consideração todos os conhecimentos disponíveis no momento do juízo, bem como a totalidade
98
Acerca da ofensa de cuidado-de-perigo, ver supra, 3.3.1, e, especificamente quanto ao autônomo desvalor de
resultado que deve ser conferido a tal ilícito-típico, ver nota 54. De forma bastante detalhada, ver D‟AVILA, Fabio
Roberto. Op. cit. [n. 2], p. 161 et seq.
99
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 10], p. 169, nota 288.
100
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 115-6.
101
D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 4], p. 116.
102
De forma bastante detalhada, ver ANGIONI, Francesco. Op. cit. [n. 20], p. 75 et seq.
das circunstâncias relevantes que atuaram no deslinde dos fatos – “cioè delle condizioni rivelatesi
ex post causali (o viceversa impeditive del risultato)”103.
O parâmetro do juízo, a exemplo do que ocorre com o juízo ex ante, é constituído pelas
leis de conhecimento – leis da natureza e regras de experiência – aplicáveis não a um
acontecimento singular, mas a uma generalidade de acontecimentos, de forma que, nesse caso, a
partir das circunstâncias sabidamente incidentes no caso concreto – ex post –, possa-se concluir
que o bem jurídico adentrou no raio de ação do perigo com significativa intensidade, tendo
atingida a sua tranquilidade existencial. As regras de experiência ganham especial importância
aqui, notadamente no que concerne à mensuração da intensidade do perigo.
Imagine-se, partindo do já mencionado exemplo, que, no decorrer da ultrapassagem, um
automóvel estivesse vindo em sentido oposto. Todavia, em que pese a grande proximidade da
curva, ambos os veículos trafegavam em baixíssima velocidade, de forma que a manobra de
desvio pôde ser realizada sem maiores riscos. Nessa hipótese, embora o bem jurídico tenha
indiscutivelmente entrado no raio de ação do perigo, a possibilidade de colisão esteve
consideravelmente afastada. A conclusão a que se chega deve-se ao emprego de regras de
experiência, que, à luz das circunstâncias concorrentes no caso concreto (baixa velocidade),
indicaram que a situação gerada, embora verificada a existência de um bem jurídico no raio de
ação do perigo, não lhe causou uma verdadeira “comoção da certeza de ser”. Diferente seria se,
por exemplo, a estrada estivesse molhada, dificultando o poder de reação e de realização das
manobras de desvio. Aqui, utilizando-se também de regras de experiência, poder-se-ia chegar à
conclusão diversa de que o bem jurídico, nessas circunstâncias (estrada molhada), teve
efetivamente atingida a sua tranquilidade existencial, na medida em que as condições em que
tiveram espaço os acontecimentos representaram uma significativa probabilidade de ocorrência
do resultado lesivo.
103
ANGIONI, Francesco. Op. cit. [n. 20], p. 85. Na exposição do autor relativa à construção de Schröder, no entanto,
impera um tom crítico. Segundo Angioni, assumindo a totalidade das circunstâncias relevantes ex post, o
acontecimento não poderia ser diverso do que se realizou. Embora a expressa ressalva feita pelo autor, cremos que a
assertiva incorre sim em um radical determinismo filosófico, “secondo cui tutto cio che accade deve necessariamente
accadere”. Embora o autor se defenda, afirmando que seu posicionamento apenas traduz uma ideia de que o ocorrido
é imodificável e retira qualquer margem para a possibilidade – noção da qual se origina o perigo –, entendemos que o
ilícito-típico do perigo concreto demanda precisamente um juízo que indique que a elevada probabilidade de
dano/violação – mesmo que imodificável o resultado em uma perspectiva a posteriori – antes esteve presente e
expressa através da incidência de um concreto bem jurídico no raio de ação do perigo, o que objetivamente vem a
representar um desvalor que ao direito penal – a partir de seu fundamento onto-antropológico calcado na relação de
cuidado-de-perigo – é dado censurar.
Em síntese, cremos que o cerne do ilícito-típico, a ofensa, deverá obrigatoriamente
constituir o centro propositivo de qualquer teorização acerca dos crimes de perigo concreto.
Quaisquer construções realizadas a partir dos traços que soem caracterizá-la serão passíveis de
equívocos por direcionarem o acertamento de tais ilícitos a aspectos não essenciais e, como tais,
excepcionáveis. O resultado de perigo concreto cingir-se-á, assim, à constatação de um bem
jurídico presente no raio de ação de perigo, situação da qual deve necessariamente decorrer uma
intensa perturbação na intencionalidade normativa do bem. Nisso consiste a resposta à indagação
“o que constatar”. O “como constatar”, ou seja, o juízo propriamente dito deverá obedecer a uma
perspectiva ex post de base total ontológica, onde levados em consideração todos os
conhecimentos disponíveis e as circunstâncias causais que deram lugar à inocorrência do
resultado lesivo, de forma que, a partir das regras de experiência, possa-se verificar a
perfectibilização dessa realidade prevista pelo tipo penal (de concreto pôr-em-perigo) no plano
fático.
3.3.4. O liame objetivo entre o perigo ex ante gerado pela conduta e o resultado de perigo
concreto constatado ex post
Para o acertamento do perigo concreto, tão importante quanto a constatação positiva
realizada pelos juízos ex ante e ex post é a existência de um liame objetivo entre o risco ex ante
gerado pela conduta e o resultado de perigo concreto posteriormente verificado. Trata-se, a bem
da verdade, de um critério derivado da já mencionada necessidade de avaliar o caso concreto à
luz do específico âmbito de proteção da norma.
Nos tipos de concreto pôr-em-perigo, em razão de sua expressa exigência de resultado, a
necessidade de estabelecimento de uma objetiva relação entre o risco gerado pela conduta e o
atingimento da tranquilidade existencial do bem jurídico torna-se ainda mais evidente. Não
obstante, por vezes a questão não é enfrentada de maneira satisfatória, optando-se por uma
interpretação eminentemente formal da norma penal em detrimento de seu conteúdo, o que,
quanto a nós, é inaceitável. Isso porque, por força da própria natureza do direito penal, atrelada à
restrição de liberdade, há necessariamente que se trabalhar com um rigoroso critério de
interpretação, de forma que se possa promover satisfatoriamente “a delimitação intencional e
extensional dos bens, valores e interesses protegidos por uma norma”104. Como já tivemos a
oportunidade de afirmar, não se trata de ampliar o alcance do tipo incriminador – o que esbarraria
na regra da legalidade –, mas de restringi-lo, de forma que sua aplicabilidade esteja em perfeita
consonância com seu telos105.
Mas, dizíamos, a interpretação conforme o âmbito de proteção da norma, no caso dos
crimes de concreto pôr-em-perigo, passa, entre outros aspectos, exatamente por essa exigência de
vinculação objetiva entre o risco ex ante e o resultado de perigo consistente na comoção da
certeza de ser do bem jurídico. E isso deve ocorrer de forma similar ao que, no âmbito da
imputação objetiva, é representado pelo critério da realização do risco no resultado 106. Aqui,
todavia, não se terá a criação de um perigo que se materializou no resultado lesivo, mas a criação
de um perigo ex ante que ex post realizou-se em uma verdadeira ameaça à existência de um
concreto bem jurídico107. Embora a assertiva pareça bastante simplória a primeira vista, um
exemplo bem demonstrará a problematicidade que confere relevância ao critério em apreço.
O art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro tipifica a conduta de “dirigir veículo
automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se
cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano”. O bem jurídico tutelado, aqui, é a
segurança viária. A norma claramente trata de evitar que o condutor sem a devida habilitação, em
104
São esses os exatos termos com que Gomes Canotilho define o significado do âmbito de proteção da norma
(GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 1203).
105
Não se deve associar a natureza não ponderável (ou, nos dizeres de Dworkin, citado por Gomes Canotilho,
“applicable in all-or-nothing fashion”) da prescrição comportamental contida na regra a uma eventual (e
equivocada) compreensão no sentido de que sua aplicação dispensaria um rigoroso processo hermenêutico. É dizer, o
fato de as regras não possuírem – diferentemente dos princípios – um mandado de otimização (ALEXY, Robert.
Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 86 et seq.) não
denota, em absoluto, que sua aplicação esteja isenta de uma sujeição a um processo interpretativo atento à ratio
essendi da norma.
106
Nesse sentido, Rudolphi já afirmava que “un ilícito de resultado causado por una conducta humana es
objetivamente imputable sólo cuando esta conducta ha creado un peligro jurídicamente reprobable de la producción
del resultado y dicho peligro se ha realizado de hecho en ele acontecimiento concreto que ha causado tal resultado”
(RUDOLPHI apud MAURACH, Reinhart. Op. cit. [n. 314], p. 323). Entre nós, D‟Avila assevera que “tanto nos
delitos dolosos como nos crimes culposos, só haverá imputação objetiva se a conduta negligente for a responsável
pela criação do perigo que se materializou no resultado lesivo” (D‟AVILA, Fabio Roberto. Op. cit. [n. 98], p. 55).
107
A propósito da necessidade de verificação desse liame objetivo, afirma Cuesta Aguado que são precisamente “las
dificultades de la prueba del nexo causal entre la conducta realizada y el resultado peligroso (o lesivo) producido, así
como ante la complejidad de la definición de las conductas lesivas o peligrosas respecto de bienes jurídicos
supraindividuales o macrosociales, e incluso de carácter individual cuando el sujeto pasivo no se encuentra
perfectamente determinado en el tipo o tiene caracter «fungible»”, acabam por determinar “el recurso a delitos de
peligro abstracto” (CUESTA AGUADO, Paz M. de la. Causalidad de los delitos contra el medio ambiente. 2. ed.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 123-4).
razão de sua inaptidão, cause perigo de dano à coletividade ou ao indivíduo108. Figure-se a
hipótese – que de fato ocorreu109 – de um condutor que, sem habilitação e diante de uma barreira
policial, não obedece às ordens da autoridade para parar, transpondo a barreira, a partir do que,
com o propósito de evadir-se, realiza diversas manobras em alta velocidade e em uma avenida
movimentada, comprovadamente expondo a perigo a incolumidade de diversos indivíduos nas
proximidades. Uma leitura desatenta, nessa hipótese, poderia levar o intérprete a reconhecer o
perigo concreto, uma vez que, além da ausência de habilitação, o condutor expôs a perigo a
incolumidade de diversos indivíduos, satisfazendo, de tal sorte, ambas as exigências típicas. No
entanto, no caso acima, falta exatamente o liame objetivo entre o perigo ex ante causado pela
condução sem habilitação e o resultado de perigo concreto. Isso porque a exposição a perigo –
consistente na entrada do bem jurídico no raio de ação do perigo – não decorreu da inaptidão do
condutor para dirigir – ratio essendi da norma –, mas sim de sua tentativa de fuga, que provocou
a realização de diversas manobras arriscadas. Desatendido esse requisito, não podemos senão
reconhecer a atipicidade da conduta, ao menos à luz do indigitado dispositivo.
Assim, de forma conclusiva, para que possamos falar em um crime de concreto pôr-emperigo, para além de um juízo ex ante que indique uma significativa probabilidade de
dano/violação e de um juízo ex post que confirme que o bem jurídico tutelado teve atingida a sua
tranquilidade existencial, necessariamente há que se estabelecer um liame objetivo entre os dois
momentos, de modo que reste atendida não apenas a descrição típica, mas, nos dizeres de Gomes
Canotilho, “a teleologia do texto”110.
108
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do novo código de trânsito.
São Paulo: Saraiva, 1998. p. 79.
109
Apelação Crime Nº 70023433733, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elba Aparecida
Nicolli Bastos, Julgado em 10/04/2008.
110
GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Op. cit. [n. 323], p. 1219.
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