UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
DIEGO FERNANDES DIAS SEVERO
EDUCAÇÃO INDÍGENA EM SÃO LEOPOLDO:
PROCESSOS EDUCATIVOS FORMAIS E NÃO-FORMAIS ENTRE OS ÍNDIOS
KAINGANG
SÃO LEOPOLDO
2011
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Diego Fernandes Dias Severo
EDUCAÇÃO INDÍGENA EM SÃO LEOPOLDO:
Processos educativos formais e não formais entre os índios Kaingang
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como requisito parcial para a obtenção do
título de Licenciado em Ciências Sociais, pelo
Curso de Ciências Sociais, da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS
Orientador: Prof. Dr. Walmir da Silva Pereira
SÃO LEOPOLDO
2011
2
Dedico esse trabalho aos indígenas da comunidade Kaingang Voga de
São Leopoldo que me acolheram e se dispuseram a me auxiliar nessa
difícil aventura, a pesquisa sobre educação indígena.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente aos meus pais pela compreensão, atenção, dedicação no
momento que decidi trocar de curso universitário. Esse momento foi essencial para que hoje
possamos celebrar este momento especial.
Aos moradores da rua conhecida como Estrada do Quilombo número 1015 em São
Leopoldo, os índios Kaingang, que em todos os momentos em que procurei foram dispostos
em colaborar para esta pesquisa, muitas vezes os via em momentos de trabalho sempre que
me aproximava paravam seu trabalho e me acolhiam em bancos de madeira para podermos
conversar, algumas vezes deixaram de almoçar nos horários de costume devido a minha
presença que buscava uma entrevista. Em especial agradeço este trabalho aos professores
Joesmi e Dorvalino que me abrigaram diversos dias em suas aulas sempre com paciência e
comprometimento. Ao cacique da aldeia Alécio que junto dos professores depositaram em
mim a confiança por permitir a realização da pesquisa e confidenciar situações de desrespeito.
Aquele que foi o verdadeiro responsável em me encaminhar para o fantástico mundo
cosmológico indígena, meu orientador, professor Walmir da Silva Pereira lhe agradeço a
confiança, disponibilidade, paciência com as minhas dúvidas nem sempre muito difíceis de
resolver, mas que sempre se disponibilizou em prontamente atende-las.
Aos meus colegas e amigos das Ciências Sociais, em especial: Karoline, Patrick,
Admilsom, Diego, Thiago, Irís, Jean, Clarananda, Ana Claudia, Soraia e muitos outros.
E aos colegas da História: Ismael (Vacão), Emanuel, Thiago Arcanjo, Belisa e etc.
Agradeço a todos pelos debates e conversas que tivemos sobre diversos assuntos que com
certeza contribuíram para o aprimoramento de minha formação humana e profissional.
Especificamente no desenvolvimento deste trabalho tive o auxilio de duas pessoas
especiais, primeiramente agradeço as colaborações do Jonas que pela formação em
Pedagogia me esclareceu alguns pontos que para mim passavam em branco, e em segundo
lugar, a minha namorada Carine que por diversas vezes me acompanhou na aldeia e que sem
sua presença a aproximação com as mulheres e alunas indígenas não seriam a mesma e
também pela paciência, compreensão e auxilio nos momentos difíceis de elaboração deste
trabalho.
Por último agradeço o entendimento da equipe diretiva da Escola Edwiges Fogaça, de
Esteio, que compreendeu os motivos das minhas faltas excessivas nestes últimos dias e
mesmo assim não dispensaram meu trabalho.
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RESUMO
Neste trabalho, tratamos de um tema recorrente à educação indígena: pegamos um grupo
especifico os Kaingang na cidade de São Leopoldo. No início, fazemos um retrospectivo
histórico do que já foi trabalhado em meados dos anos 1980 e 1990. No segundo momento,
apresentamos a aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo, seus aspectos gerais, como
população, economia, história em São Leopoldo e etc., apresentamos a escola na aldeia e sua
organização interna referente ao seu aspecto jurídico. No último capitulo, com base nos
depoimentos recolhidos dos professores e a liderança da aldeia que significado tem a
educação, e especificamente a escola, tem para os indígenas kaingang de São Leopoldo. Para
obter os depoimentos e as diversas informações sobre a organização e os processos educativos
foram realizadas observações na comunidade Voga. Concluímos, ao fim do trabalho, que a
escola na aldeia Kaingang em São Leopoldo está sendo tendo significado para os indígenas e
eles colaboram para o funcionamento desta pensando e a modificando usando seus processos
educativos não-formais dentro da escola.
Palavras chave: Educação indígena. Escola. Kaingang. Escola na aldeia.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................6
2 OS KAINGANG? E O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA..............................09
2.1 QUEM SÃO OS ÍNDIOS KAINGANG?...........................................................................10
2.2 O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA: O “FORMAL” E O “INFORMAL”.......14
3 OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO E A ESCOLA NA ALDEIA..........................29
3.1 ESCOLA NA ALDEIA KAINGANG................................................................................37
4 A ESCOLA PARA OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO.........................................52
4.1 A VISÃO DAS CRIANÇAS INDÍGENAS SOBRE A ESCOLA.....................................64
4 CONCLUSÃO......................................................................................................................70
REFERÊNCIAS......................................................................................................................73
ANEXO A................................................................................................................................76
ANEXO B.................................................................................................................................85
ANEXO C................................................................................................................................90
ANEXO D................................................................................................................................96
ANEXO E.................................................................................................................................99
ANEXO F...............................................................................................................................101
ANEXO G..............................................................................................................................106
6
1 INTRODUÇÃO
Neste trabalho, será apresentado um tema que já vem sendo bastante discutido nos
últimos 30 anos, senão mais, a educação indígena. Quando falamos em educação logo nos
vem à cabeça a escola, que na visão ocidental é a responsável por transmitir, pensando em 20
anos atrás, ou construir, o que se menciona na atualidade, responsável pelas percepções dos
alunos de como se constituir um cidadão critico e ativo na sociedade da qual faz parte,
pensando sempre que vivemos em um mundo globalizado e que tudo o que necessitamos está
inserido em um universo muito maior do que as nossas relações sociais imediatas.
Quando falamos em educação para os povos indígenas, a primeira coisa que a
modernidade os coloca é a escola, mas essa instituição que para nós ocidentais é antiga a eles
foi imposta a não muito tempo. Podemos afirmar que o inicio da escolarização dos indígenas
é através do contato com os primeiros navegadores europeus por volta de 1500. Nesse
contato, e até não muito tempo atrás, o objetivo da escolarização foi transformar e porque não
doutrinar os povos que vivem nesta terra a mais de 15000 anos a “comprarem” o nosso estilo
de vida. Um dos objetivos mais fortes que a escolarização teve por muito tempo foi à
catequização, ou seja, convencer os índios a se tornarem católicos, menosprezando a crença
que estes povos tinham e ainda preservam a muito custo na atualidade.
Antes da promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 os índios eram
considerados “naturalmente incapazes” pelas legislações existentes. Os indígenas eram
tutelados pelo Estado brasileiro e só se emancipavam caso se sentissem preparados, caso se
emancipasse não seriam vistos mais como índios e sim como cidadãos “normais” o objetivo
dessa política era bem claro criar mecanismos para que os índios se aculturassem totalmente e
deixassem de reivindicar seus direitos, o estado dessa maneira praticava um genocídio por
meio da lei.
Com a elaboração da carta constituinte em 1988, os indígenas foram reconhecidos em
sua organização social, ganhando por meio de muita luta um capítulo com suas conquistas.
Por esse reconhecimento, todo o trabalho já desenvolvido através de pesquisadores junto aos
povos indígenas que reconheciam suas diferentes formas educativas teve maior visibilidade e
obteve através de leis e decretos, autonomia para se elaborar políticas que fizessem uso das
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duas formas educativas, aquelas ocidentais, a escola, e as ancestrais indígenas, o que chamo
aqui de processos educativos não – formais ou informais.
No primeiro capitulo deste trabalho apresentaremos as principais características do
grupo pesquisado, os Kaingang, tais como: a organização social, mito de origem, história
entre outros. Em seguida abordaremos um pouco do que foi mencionado acima, buscando e
analisando na história da escolarização dos povos indígenas qual ideologia foi imposta a estes
povos, de que maneira a escolarização destruiu ou tentou acabar com os elementos
constitutivos tradicionais indígenas. Também ressaltaremos como os povos ancestrais
organizam seus processos educativos informais, o que podemos identificar na vivencia dos
povos como elementos essenciais para a formação de um adulto com as características
desejadas pelo meio em que vive.
É importante destacar a escolha deste grupo para realizar esse trabalho. Foram
escolhidos os Kaingang primeiramente pela questão geográfica, é mais próxima a
universidade, o grupo se encontra em São Leopoldo tendo uma história com a cidade já há
muito tempo estudada, mas na atualidade não se encontra trabalhos sobre a situação dos
mesmos na região. Pela aproximação do pesquisador com o grupo a mais de três anos se
escolheu dar visibilidade a situação da atual aldeia no Bairro Feitoria, Estrada do Quilombo
1015.
Com isso, no segundo capítulo apresentaremos primeiramente a recente história do
grupo Kaingang em São Leopoldo, buscando nos relatos dos indígenas e notícias como foi o
processo de chegada na cidade, desde quando estão em definitivo, porque São Leopoldo.
Apresentaremos a aldeia, levantando alguns aspectos, como: população/famílias, organização
social e política, religiosa, econômica, educacional, ambiental, a saúde, origem dos habitantes
e etc. No segundo momento, neste mesmo capítulo, abordaremos o cenário educacional dos
indígenas, apresentando a escola na aldeia, elementos como: sua estrutura, gestão,
professores, número de alunos, funcionários, situação jurídica, entre outros. Além disso,
ressaltaremos a relação existente entre os moradores da comunidade com a escola e com a
responsabilidade pela criança, que sem dúvidas difere da relação dos “ocidentais” com essa
instituição e suas responsabilidades.
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A partir do exposto tentaremos identificar o significado da escola para os indígenas,
Kaingang, de São Leopoldo através de observações e entrevistas realizadas na aldeia
mostraremos como o grupo se apropria dessa instituição ocidental, a escola, para aprimorar
seus conhecimentos e reivindicar direitos não atendidos e acima de tudo conquistar a
autonomia tão vendida por diversas vozes na atualidade e até agora pouco identificada na
observação da realidade indígena em nosso país.
No terceiro e último capítulo, analisaremos os discursos dos professores e da liderança
da comunidade, junto das observações realizadas in loco, como os Kaingang enxergam a
escola. Será abordado como essa instituição, ou melhor, como os professores indígenas e a
comunidade em geral trabalham com os dois processos educativos, o primeiro sendo o
ancestral de aprendizado com a família e a comunidade, e o segundo o da escolarização
institucionalizada. Ou será que entre os Kaingang não existe uma dualidade clara? E através
de desenhos das crianças da escola buscaremos a percepção dos alunos sobre a escola na
aldeia analisando a partir destes que significado, a escola ou a educação de maneira geral, está
sendo relevante para elas.
9
2 OS KAINGANG? E O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA
A partir da temática “Educação Indígena entre o povo Kaingang no Município de São
Leopoldo” abordaremos dois modelos de educação distintos, o primeiro descreverá os
processos de educação tradicionais do povo Kaingang seus modelos de interação comunal,
tais como: as regras de parentesco, o trabalho com o artesanato, a reprodução da linguagem
entre outros; o segundo modelo de educação será o da escolarização buscando na história os
processos que aconteceram para que houvesse a obrigatoriedade desta. As questões abordadas
são: sob quais paradigmas a escolarização formal foi imposta as populações indígenas e qual a
visão que especificamente o povo Kaingang do Rio Grande do Sul teve e têm desta imposição
do estado brasileiro.
Sobre esta diferença, de educação indígena e educação escolar indígena, Belz (2008)
contribui com a visão de educação indígena contida no documento Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação Indígena:
[...] educação indígena como „o processo pelo qual cada sociedade internaliza em
seus membros um modo próprio e particular de ser, garantindo sua sobrevivência e
sua reprodução‟. Ou seja, trata-se do „aprendizado de processos e valores de cada
grupo, bem como aos padrões de relacionamento social que são entronizados na
vivência cotidiana dos índios com suas comunidades‟ (BRASIL, 1999 apud BELZ,
2008, p.78)
A autora aborda o conceito de educação escolar indígena com um significado
diferente:
[...] a educação escolar indígena foi resultado da soma dos processos educativos de
cada etnia, que se caracterizou de diversas maneiras desde o contato entre os povos
indígenas com os não-índios do nosso país. A necessidade pela instituição escola só
aconteceu após este contato, e na atualidade se caracteriza por ser reivindicada pelos
índios com as características de ser diferenciada, bilíngue e intercultural. (BELZ,
2008, p.79)
Essas diferenças serão aprofundadas no decorrer do capítulo onde abordaremos
diversos processos educativos realizados a partir do contato, “brancos” e povos indígenas,
alguns com a intenção de “civilizar” os índios ou simplesmente a visão etnocêntrica que não
considera culturas tradicionais como formas de vida digna e usa o conhecimento para cooptar
as sociedades tradicionais ao modelo ocidental capitalista de vida, tido como “moderno”.
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Para podermos refletir e explicitar os processos educativos “não-formais” dos
Kaingang é necessário conhecermos um pouco desta etnia. Assim, no primeiro momento
faremos uma breve apresentação deste povo levantando alguns aspectos primordiais para seu
entendimento, tais como: origem do povo, organização social, linguagem, ritos de passagem,
relações de parentesco e etc. Esses aspectos serão levantados brevemente, e o relacionaremos
com o significado da educação em comunidade com as características do grupo.
2.1 QUEM SÃO OS ÍNDIOS KAINGANG?
Os grupos humanos denominados indígenas, ou comumente chamados da forma de
índios são nada mais, nada menos do que os verdadeiros colonizadores do que hoje é
chamado de América. O termo índio foi um engano de Cristovão Colombo que ao chegar a
uma ilha, da região que hoje é conhecida como Caribe, pensou estar chegando às Índias e
dessa forma chamou os habitantes dessa terra de “índios”. Esse engano gerou a
homogeneização dos diversos grupos indígenas e os denominou como únicos.
No entanto, atualmente são encontrados no Brasil mais de 250 povos indígenas. Esses
povos têm características e falam idiomas diferentes. Como exemplo, podemos citar o tronco
lingüístico Tupi-Guarani que têm como falantes os povos: Guarani Kaiowá, Tupinambá,
Guarani Mbyá e muitos outros. Outro tronco lingüístico é o Jê que têm como falantes os
seguintes povos: Kayapó, Xavante, Xokleng, Timbira, Canela, Apinayé, Kaingang e etc.
Poderíamos citar outros exemplos, de famílias lingüísticas indígenas, mas esse não é o foco
do trabalho.
Este exemplo nos mostra que nunca existiu somente uma denominação para os povos
ancestrais da América, em especial no Brasil. Porém, os povos denominados indígenas, a
partir dos anos 70, sentiram a necessidade de se organizarem em conselhos e associações,
para buscar seus direitos nas esferas governamentais. Assim os diversos povos decidiram
manter e promover essa denominação genérica índios, como identidade que articula os povos
originários desta terra, e estabeleceram as fronteiras necessárias para diferenciá-los dos
habitantes de outra procedência, como os europeus (LUCIANO, 2006).
O grupo Kaingang pertence à matriz linguística Macro Jê, família Jê, sendo o ramo
mais diferenciado dentro desta família (RODRIGUES, 1986 apud BELZ, 2008). Este grupo
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está “concentrado na Região Meridional do Brasil e em áreas continuas parecidas no planalto
de São Paulo e parte de Misiones Argentinas” (BECKER, 1995, p.33). Essas regiões são
povoadas por populações ameríndias por longo tempo segundo pesquisas arqueológicas
recentes indicam que há 2.000 anos nessa região grupos ligados ao tronco lingüístico MacroJê, a família Jê meridional (FRANSCISCO, 2006).
Na região do Rio Grande do Sul os representantes do grupo Jê, chamados Jê
meridionais, são os povos Kaingang e Xokleng. No entanto, a estrutura desses povos é muito
diferente, alguns aspectos fundamentais são explicitados por Veiga:
Diferença importante entre os dois grupos é o botoque labial, usado somente pelos
homens da tribo dos Xokléng e não pelos Kaingáng. A esse adereço devem aqueles
a denominação de Botocudos, enquanto os Kaingáng se tornaram conhecidos como
Coroados por cortarem o cabelo em forma de tonsura, costume em que, aliás, não se
distingue dos Xokléng. (SHADEN, 1977 apud VEIGA, 1994, p.25)
Esse processo do ritual de iniciação, que é constitutivo do povo Xokleng, não é
encontrado no povo Kaingang. Não é mencionado na literatura, sobre esse povo, essa espécie
de ritual de iniciação, e quando perguntamos para os indígenas contemporâneos se existe ou
se já ouviram histórias sobre algum ritual de iniciação como este, entre seu grupo, respondem
negativamente. Assim, temos outros aspectos constitutivos do grupo Kanigang que são
importantes na sua organização social e podemos entender estes como fatos significativos de
iniciação principalmente o ato de nominação da criança. Antes precisamos esclarecer como é
a organização entre os Kaingang.
Alguns aspectos fundamentais da tradição Kaingang são de se organizarem em
metades exógamas, patrilinearidade e de uxorilocalidade. Portanto o povo Kaingang detém
uma organização dualista, que é definida por Lévi-Strauss da seguinte maneira:
Este termo define um sistema no qual os membros da comunidade – tribo ou aldeiasão distribuídos em duas divisões, que mantém relações complexas, as quais vão da
hostilidade declarada à intimidade mais estreita, e a que se acham habitualmente
associadas diversas formas de rivalidade e de cooperação. Frequentemente, estas
metades são exogâmicas, isto é, os homens de uma só podem escolher esposas entre
as mulheres da outra, e reciprocamente. (LÉVI-STRAUSS, 2009, p.108)
Como essas características, os Kaingang se organizam em duas metades: Kamé e
Kairu. Estas se opõem e se complementam (VEIGA, 1994). Os Kairu são relacionados à
marca redonda (rârôr) a um homem empreendedor e a posição Leste. Os Kamé são
relacionados à marca comprida (râtéi), ligados à resistência e à posição Oeste (VEIGA, 1994).
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O surgimento dessa denominação segundo a mitologia Kaingang relatado por Nimuendaju é a
origem do grupo:
“[...] a tradição dos Kaingang conta que os primeiros desta nação saíram do chão
(...). Saíram em dois grupos, chefiados por dois irmãos por nome Kañerú e Kamé,
sendo que aquele saiu primeiro. Cada um já trouxe em número de gente de ambos os
sexos. Dizem que Kañerú e sua gente toda eram de corpo fino, peludo, pés
pequenos, ligeiros tanto nos seus movimentos como nas suas resoluções, cheios de
iniciativa, mas de pouca persistência. Kamé e os seus companheiros, ao contrário
eram de corpo grosso, pés grandes, e vagarosos nos seus movimentos e resoluções”
(NIMUENDAJU, 1913 apud VEIGA, 1994, p.59-60)
As metades são o alicerce da organização dos Kaingang, em um casamento, a mulher
Kaingang da metade Kairu deve se casar com um homem da metade oposta, ou seja, Kamé. O
mesmo acontece se invertermos esta ordem. O uso da patrilinearidade é relacionado da
seguinte forma, os filhos, de ambos os sexos pertencem à metade de seu pai (VEIGA, 1994).
A explicação deste fato foi dada na Terra Indígena de Nonoai, para Salzano da seguinte forma
“porque é o homem que faz o filho” (SALZANO, 1960 apud VEIGA, 1994, p.87). Também,
outro fato que evidencia a patrilinearidade é a nominação, nas áreas Kaingang que preservam
essa tradição tais como a de Xapecó pesquisada por Juracilda Veiga (1994), o pai procura um
dos velhos conhecedores dos nomes e pede para que ele nomine seu filho. Este conhecendo a
metade do pai dará o nome à criança. No entanto, isso não acontece no mesmo dia, pois, o
conhecedor dos nomes terá que procurar os nomes disponíveis da metade do pai da criança
(VEIGA, 1994).
A uxorilocalidade apesar da grande interferência da sociedade envolvente, quando um
rapaz se casa, ele vai morar junto do sogro ou em casa próxima. Ele só se tornará líder do
grupo familiar quando seu sogro falecer e ele se tornar sogro (VEIGA, 1994). As mulheres
são colocadas de acordo com a literatura como as detentoras das informações da aldeia, elas
funcionam como “amplificadoras” dos anseios da comunidade. Elas, as mães (Ian) segundo
Veiga (1994), têm uma grande importância para a preservação e transmissão dos valores e
padrões culturais dos Kaingang.
A relação entre as metades e o mito de origem é quase evidente. Se unirmos o relato
do mito de origem, acima transcrito de NIMUENDAJU, que fala dos Kaingang da metade
Kairu como ligeiros e cheios de iniciativa e os da metade Kamé como mais resistentes, e a
tradição da união preferencial de um Kaingang Kamé com um Kaingang Kairu, fica evidente
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que se unirmos a mitologia com a regra do casamento, a família idealizada pela tradição
Kaingang, deve ser, cheia de iniciativas, como o Kairu e resistente como o Kamé.
Outro aspecto fundamental para a reprodução sócio cultural de qualquer sociedade
seja ela indígena ou não, é a territorialidade. Todo grupo de seres humanos tem uma tradição
cultural com significados próprios altamente relevantes, mas para sua sobrevivência necessita
de espaço geográfico com significado para sua cultura. No caso das sociedades indígenas que
foram expulsas de suas terras ancestrais pela colonização portuguesa / espanhola que com
interesses expansionistas, dizimaram milhares de indígenas e fizeram que sociedades com
culturas altamente complexas e fascinantes “sumissem” do mapa. Uma das maneiras de retirar
os nativos da região visada pela expansão foi à colaboração das missões. Assim os indígenas
foram aldeados nas missões Jesuítas que buscavam sua assimilação à sociedade envolvente.
Nestas, os indígenas sofreram pressões para que deixassem de falar à língua nativa. Tanto os
colonizadores europeus, como os missionários jesuítas se “entenderam” melhor com os
Guarani, pois eles possuem uma língua muito próxima da língua conhecida pelos missionários
no litoral (língua Tupi) e pela característica do povo ser sedentário, ou seja, os Guarani são
um povo fundamentalmente agricultor (RAMOS, 2006). Diferente os Kaingang eram
essencialmente caçadores e coletores de alimentos, mas foram aldeados junto dos Guarani.
Pelas diferentes características de organização, os Kaingang, fugiam muito das missões,
principalmente após 1640.
Hoje as comunidades indígenas, em sua maioria estão em terras demarcadas pelo
Estado brasileiro, sendo responsabilidade da FUNAI esta tarefa. No entanto, estas terras são
pouquíssimas para o seu desenvolvimento. A terra, segundo Tommasino, é uma questão
crucial para a sobrevivência física e cultural (2000).
No caso, dos Kaingang não é diferente. As áreas indígenas foram pensadas como
provisórias, no entanto, as demarcações não levaram em conta o crescimento vegetativo da
população que triplicou demograficamente nos últimos 40 anos. As poucas terras disponíveis
para a agricultura estão depauperadas pelo uso e re-uso. As florestas são praticamente
inexistentes desaparecendo a fauna e a flora que pela tradição Kaingang é a responsável pela
subsistência baseada na caça e coleta (TOMMASINO, 2000). Assim o autor resume a unidade
territorial para uma sociedade Kaingang:
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[...] constitui-se de um espaço físico – composto por serras (krin), campos (rê) e
florestas (nén) – onde os grupos possam exercer suas atividades de caça, pesca,
coleta e plantio de milho, abóbora, feijão e batata-doce. Esse vasto território
constituía um espaço de contínuos deslocamentos dos grupos para desenvolverem
suas atividade de subsistência material e reprodução social” (TOMMASINO, 2000,
p.192)
Da maneira exposta por Tommasino que foram e são tratados os povos indígenas no
Brasil em especial no Rio Grande do Sul. As áreas habitadas pelos Kaingang, como exposto
acima, estão em situações precárias financeiramente e territorialmente, são localizadas a
maioria das reservas na região norte do estado divisa com Santa Catarina. Fazendo fronteira
com mega produtores de soja, milho e outros. Também fazem uso de seu território para
plantar esses alimentos.
No entanto, nem sempre foi assim, as tarefas designadas para a sobrevivência seguiam
um calendário que implicava um conhecimento da natureza, entre elas, o conhecimento da
dinâmica dos reinos vegetal e animal, da astronomia e as estações do ano. As atividades eram
desenvolvidas junto a outros rituais. Entre os procedimentos dos alimentos de subsistência
destacamos à agricultura, praticada nos terrenos altos de mato ralo, sendo de coivaras,
plantavam variedades de milho e feijão, abóbora e amendoim, essas roças serviam para a
produção e para o chamamento dos bichos. Eventualmente quando as plantações ficavam
longe das casas, construíam os wãre para se abrigarem (TOMMASINO, 2000).
2.2 O PROCESSO DE EDUCAÇÃO INDÍGENA: O “FORMAL” E O “INFORMAL”
Entendemos, como explicitado no início deste capítulo, que o processo de educação
entre as sociedades indígenas não se restringe ao modelo imposto desde a colonização do
Brasil, que se resume em impor costumes ocidentais para os povos de cultura tradicional
sendo um dos últimos instrumentos usado para a tentativa de assimilação foi à escolarização.
E com a obrigação da escolarização damos inicio a discussão sobre os diferentes processos
educativos.
A discussão sobre a obrigatoriedade da escolarização não é nova, muitos cientistas
sociais, lingüistas, pedagogos e historiadores entre outros pesquisaram e participaram
ativamente da elaboração de políticas públicas para a viabilização desta e muito questionam
as intenções do governo brasileiro.
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Quando pensamos as propostas de educação para os povos indígenas não podemos nos
deter aos processos de escolarização que relativamente são novos. Ao voltarmos até 1910,
com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
(SPILTN) posteriormente em 1918 o órgão é dividido ficando somente com a sigla SPI,
fundado em um contexto de expansão da sociedade nacional que:
[...] formalmente separado das ordens eclesiásticas, que se teria a criação do
chamado Serviço de Proteção aos Índios (SPI), primeiro aparelho de poder
governamentalizado instituído para gerir a relação entre os povos indígenas,
distintos grupos sociais e demais aparelhos de poder. Conquanto se reconheça a
preexistência de muitas das tecnologias de poder utilizadas no governo dos povos
indígenas pelo SPI, parte-se do principio de que a gestão, unificada em um centro,
de um largo número de povos indígenas diferenciados, dispersos em um amplo
espaço geográfico ainda não totalmente territorializado por aparelhos de âmbito
nacional, cria a necessidade de homogeneização de concepções quanto ao modo de
exercício dessas mesmas tecnologias, exercício esse em sua concretude,
heterogêneo. (LIMA, 1992, p. 155)
A proposta do SPI encabeçada por Cândido Mariano da Silva Rondon, popularmente
conhecido como Marechal Rondon sob um ponto de vista positivista, tinha como objetivo a
pacificação dos indígenas. A sociedade brasileira da época, segundo Darcy Ribeiro (1986)
possuía duas visões distintas sobre os povos indígenas. A população da cidade distanciada dos
povos originários os via como o “bom selvagem” inspirados pelos escritos de Rousseau. Em
contrapartida a população sertaneja que vivia ao lado dos índios os via de maneira totalmente
diferente os tinha como animais, ignorantes, atrasados que mereciam a morte e não deveriam
ser protegidos pelo Estado por estarem travando o desenvolvimento da nação. Para evitar o
genocídio e tentar a preservação dos povos indígenas as ações do SPI foram relativamente
excelentes e consequentemente eficazes, mas a forma como foram impostos valores
ocidentais da sociedade envolvente pelos agentes do SPI levaram os indígenas a morte, senão
pelo genocídio proposto por sertanejos vizinhos, mas sim por imposição de modos de vida
muito diferentes do seu que acabaram com a estrutura de vida de muitos povos tradicionais. O
SPI tinha como visão e defesa de que os indígenas não eram agressivos por natureza, mas sim
em função das muitas tentativas dos colonizadores de dizimar essas populações. Na visão do
SPI era necessário dar condições para que estes pudessem se “desenvolver” até atingir o grau
de “civilização” da sociedade nacional.
Desta forma, entendemos as ações do SPI como processos educativos “civilizatórios”
que buscava a integração das populações indígenas ao modelo de desenvolvimento em voga
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na época. Essas ações diferem essencialmente dos processos educacionais tradicionalmente
indígenas.
Ao tentarmos identificar os processos educativos tradicionais das sociedades indígenas
devemos mudar a percepção de educação que temos, o olhar sobre os processos educativos
deve ser totalmente modificado quando falamos de grupos sociais que estão mais afastados da
maneira de viver dos ditos cidadãos das sociedades complexas, ou seja, da cidade. Nas
sociedades indígenas não existe uma instituição especializada para a educação, podemos dizer
que o indivíduo não é educado, ele se educa através do convívio na comunidade (MÉLIA,
1979). Com a imposição da escola nas comunidades indígenas são colocados saberes de fora
da realidade da aldeia e da comunidade indígena. Sobre esse processo Capacla (1995, p. 52),
em resenha sobre livro de Bartolomeu Melià, afirma:
O autor aponta como tópicos importantes para o estudo sobre a educação indígena: o
nascimento; os jogos (com os quais a criança aprende a trabalhar por imitação,
brincando); as formas de correção (persuasiva, sem violência e coletiva); o amplo
conhecimento da natureza; a nomeação (a atribuição de um nome está ligado à
personalidade); os rituais de iniciação. Ele insiste, entretanto, que estes aspectos são
gerais e que, como a educação está totalmente inserida em cada cultura, ela varia
conforme cada comunidade tribal. Assim, ele faz um relato dos processos
específicos de algumas comunidades como os Xavante, os Nambikwara, os Kayová,
os Munku-Iranxe e os Bororo. Cada uma tem seus focos de elaboração educativa,
que seriam os interesses centrais em torno dos quais se dá o processo educativo –
como por exemplo o rito de iniciação, a casa dos homens, etc.
Os processos reproduzidos pelos atores envolvidos no cotidiano escolar indígena
buscam seguir a metodologia de Paulo Freire, pois este é um marco importante das diretrizes
e bases dos planos nacionais da educação. Esse processo é esquecido pela escola, quando
estamos falando de escolas fora da aldeia ou dentro delas com um caráter integracionista que
exclui os acontecimentos comuns da comunidade e deslegitima os costumes como processos
educativos, como o exemplo citado por Brandão (2007, p. 23-24):
Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o
processo de aquisição pessoal de saber-crença-e-hábito de uma cultura, que funciona
sobre educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com
algum susto) de endoculturação.
Dentro de sua cultura, em sociedade, aprender de maneira mais ou menos
intencional (alguns dirão: „mais ou menos consciente‟), a través do envolvimento
direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação
com a natureza e de trocas entre os homens, é parte do processo pessoal de
endoculturação, e é também parte da aventura humana do „tornar-se pessoa‟.
Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência
endoculturativa. Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de
ensinar-e-aprender. Intenções, por exemplo, de aos poucos „modelar‟ a criança, para
conduzi-la a ser o „modelo‟ social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo
17
mais adiante um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos sempre traduzem de
alguma maneira esta lenta transformação que a aquisição do saber deve operar.
Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar capaz, trabalhar
sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é
a matéria-prima.
Todos os tipos de sociedade têm como fim último educativo a formação de um adulto
com determinadas características visando à continuidade e a reprodução de seu modo de vida,
ou seja, da cultura, da língua, dos ritos, dos gestos e etc. Com o advento da escola, nas
comunidades indígenas, o modelo de formação do adulto muda, não totalmente, mas já não é
o mesmo que formou os adultos, que hoje são mais velhos. O que deve ser destacado é que as
escolas indígenas devem servir para o desenvolvimento da comunidade referida, sem sobrepor
os costumes do grupo com os modos de vida hegemônicos da sociedade envolvente. Um
aspecto importante quanto aos processos de educação não-formais especificamente do povo
Kaingang é o significado dos traços e características deste povo. Por exemplo, quanto aos
desenhos colocados nos cestos e nos demais artesanatos podemos perceber como é complexa
a organização social indígena, sem dúvida é um processo educativo que acontece com os
jovens kaingang e que deve ser reproduzido na escola indígena. Essa complexidade dos
trançados é destacada por Sergio Baptista da Silva (2008, p. 37):
[...] os grafismos kaingang ocorrem em uma grande variedade de suportes:
trançados, tecidos, armas, utensílios confeccionados em cabaças, troncos de
pinheiros, etc., e nos corpos dos kaingang. Os trançados expostos nas cidades, nas
feiras de domingo, na beira de estradas ou em qualquer lugar em que esteja um
kaingang, não são apenas wõgfy (trançados em geral, que podem ser kre (cestos) ou
tugfy (trançados aplicados a objetos os mais variados, como garrafas, flechas,
arcos): são marcas visíveis da diferença, uma vez que são parte de um sistema de
representações visuais (as formas tradicionais dos kre, os grafismos tradicionais
presentes), originados por um tradicional e especifico sistema cultural kaingang.
Além disso, seus trançados revelam formas e grafismos vinculados à percepção dual
kaingang do cosmos, enfatizando e sintetizando sua organização cultural baseada em
duas metades exogâmicas, patrilineares, assimétricas e complementares, designadas
Kamé e Kainru-kré.
Esses significados altamente complexos para nós “sociedade nacional” têm enorme
importância na organização social da sociedade Kaingang. É importante a investigação sobre
a educação formal e não formal para verificar se a chegada da escola na aldeia não está
destruindo culturas complexas e altamente significativas. Se voltarmos na história e
verificarmos o porquê da escolarização dos povos tradicionais Capacla (1995, p.14) coloca
que “a necessidade da escolarização surge a partir da realidade do contato das sociedades
indígenas com os colonizadores, ou com o que hoje representa a sociedade nacional”. A
sociedade envolvente ou “nacional” vê as sociedades indígenas muitas vezes como inferiores
18
e com o mesmo propósito que orientou Rondon no SPI aposta na escola como instrumento
“civilizador”. A expansão da economia capitalista depende da assimilação das populações
coloniais, e com os indígenas não é diferente a previsão era de total assimilação ou
desaparecimento (CAPACLA, 1995).
Muitos projetos de expansão econômica para os povos indígenas foram implantados
através da escola, pois como já apontamos antes a educação indígena acontece muito antes de
se pensar a instituição escolar. Podemos afirmar que quanto os membros de sociedades
tradicionais ficam dependentes da escolarização inspirada pela sociedade nacional, esse
processo sempre visa atender os interesses e objetivos da sociedade dominante (SANTOS,
1975). Com a escolarização atendendo inicialmente os interesses da sociedade nacional
reproduz aquilo que foi realizado pelos jesuítas na época das suas reduções, ou seja, com um
ensino desconectado da realidade indígena e um ensino monolíngüe, os forçando a aderirem
ao português (CAPACLA, 1995). Sobre a língua a ser trabalhada em sala de aula nas escolas
indígenas existe um esforço para que o ensino seja bilíngue, esse é um direito das populações
indígenas assegurado pelo artigo 265 1 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. A
formação dos professores e a implementação do ensino bilíngüe conforme parágrafo único do
artigo 265 deve ser implementado nas escolas a partir de formação de professores indígenas
subordinadas a solicitação das comunidades aos órgãos estaduais de educação. Esse
movimento surge como expõem D‟Angelis (2000), de um receio das comunidades indígenas
quanto ao cada vez mais os membros da comunidade falavam o português:
Quando uma comunidade indígena vê que a língua portuguesa começa a ser falada
cada vez mais pelos seus membros, que se tornam bilíngües, ela tem razão de se
preocupar e pensar numa política lingüística para defender e manter sua própria
língua. De fato, na situação de pressão que vivem os povos indígenas no Brasil, as
comunidades indígenas são obrigadas a aprender e a usar o Português e, além disso,
acabam deixando a língua portuguesa entrar mais e mais em suas áreas ou em suas
casas através de funcionários do governo (de todos os níveis), através de
documentos, jornais e revistas, através da escola e através do rádio e da televisão.
(D‟ ANGELIS, 2000, p.1)
A partir desta nova concepção de educação, os indígenas vêm se tornando
protagonistas no processo de desenvolvimento cultural interno. Com o advento da escola, e
1
Art. 265 - O Estado proporcionará às comunidades indígenas o ensino regular, ministrado de forma
intercultural e bilíngüe, na língua indígena da comunidade e em português, respeitando, valorizando e
resgatando seus métodos próprios de aprendizagem, sua língua e tradição cultural.
19
uma formação bilíngüe, estes não estão mais perdidos sobre a condição das escolas na aldeia
e, assim fortalecem sua identidade junto à sociedade envolvente negociam com o poder
público suas reivindicações, tais como: o direito a terra e à identidade. Não só negociam, mas
com a apropriação da produção de conhecimento ocidental os indígenas utilizam destes para
pressionar a sociedade nacional para que os reconheça como atores sociais importantes e
como verdadeiros descobridores do que hoje se chama América e, especificamente Brasil.
Sobre a educação bilíngüe é importante destacar, que as experiências desenvolvidas
pelo SIL (Sociedade Internacional de Linguistica) que chegou ao Brasil em 1956, segundo
Silva e Azevedo eram caracterizadas “pelo emprego de metodologias e técnicas distintas das
que se desenvolviam até então, o „novo‟ projeto não escondia, como todos os seus
predecessores, os mesmos objetivos civilizatórios finais.” (SILVA; AZEVEDO, 2000, p.151).
O trabalho das escolas mantidas pela FUNAI, em parceria com o SIL, seguia o método
exposto por Caplaca (1995, p.47-48) em resenha da dissertação desenvolvida por Nancy
Antunes Tsupal, intitulada “Educação indígena bilíngüe, particularmente entre os Karajá e
Xavante: alguns aspectos pedagógicos, considerações e sugestões”:
Existem alguns modelos de etapas a serem seguidas num processo de educação
bilíngüe, como demonstra a autora no quarto capitulo. O modelo brasileiro vinha
sendo o de alfabetização em língua materna que em seguida transita para a língua
nacional. Tsupal descreve este modelo adotado pelo SIL/FUNAI, iniciado em 1970
com a criação da Escola Normal Indígena no Posto Guarita, a qual se tornou depois
o Centro de Treinamento Clara Camarão, que preparava monitores indígenas
bilíngües. Os primeiros grupos atingidos foram os Kaingang, Guajajara, Karajá e
Xavante. Tsupal cita também a implantação do projeto bilíngüe em outros grupos, e
comenta a realização de vários cursos de atualização, encontros de monitores e
seminários desde então.
Neste modelo, indicado por Kindell & Jones, partia-se de um levantamento da
situação lingüística do grupo e da elaboração de uma ortografia, além de materiais
didáticos provisórios – uma cartilha de alfabetização e textos transcritos de histórias
e lendas do grupo. A partir deste primeiro material, iniciava-se um programa piloto
que alfabetizava pessoas da própria comunidade, as quais eram preparadas como
monitores bilíngües, participavam da elaboração de novos textos de literatura
indígena e do material didático definitivo. O programa previa também a elaboração
de um material de transição para a língua portuguesa. As aulas eram ministradas
sempre por monitores não-índios junto com monitores indígenas bilíngües, e o fato
do uso da língua materna, aliado a esta presença se um monitor da própria
comunidade. Na elaboração das cartilhas bilíngües, cujas primeiras experiências
datam da década de 50, eram utilizados dois métodos possíveis pelo SIL: um
baseado na lingüística tagmêmica – construindo-as de acordo com “núcleos” e
“periferias” das palavras e frases -, e outro psico-fonêmico, que vai introduzindo
substantivos e verbos gradualmente, de acordo com as dificuldades das letras. O
programa previa 4 semestres, em que a alfabetização no Português só era introduzida
após 3 semestres de Português oral e de alfabetização na língua indígena.
20
A forma exposta por Capacla revela algumas das meditas tomadas pelo poder público
quando o SIL chegou ao Brasil, o motivo do entusiasmo por parte da platéia universitária e o
poder público á proposta do SIL é revelado por Silva e Azevedo, “a questão não era mais
abolir grosseiramente a diferença, mas sim domesticá-la” (SILVA; AZEVEDO, 2000, p.151).
Uma problemática que surge a partir da imposição do SIL com seu método de
alfabetização bilíngue é as diversas disputas dentro das comunidades indígenas criando um
status social diferenciado para alguns indivíduos que entram em contato com os agentes do
SIL, como da FUNAI e outros órgãos, uma dessas figuras é o monitor bilíngüe, que Silva e
Azevedo que não se coloca de outra maneira do que um professor indígena domesticado e
subalterno, essa figura surgiu da necessidade dos missionários e professores alfabetizarem em
língua indígena (treinados conforme o método citado acima), mas por vezes informava e
ajudava os missionários na tarefa de tradução da Bíblia, objetivo principal da S.I.L (SILVA;
AZEVEDO, 2000). Assim o “monitor” servia de interceptor dos interesses da S.I.L com a
comunidade, desta forma, conheciam a língua da comunidade, introduziam a religião e
alfabetizavam na língua nacional, o português.
Os processos de escolarização tinham intenção de introduzir aos povos indígenas a
língua portuguesa, porém, agora são sujeitos ativos na construção de seu aprendizado, com
muitas conquistas que aos poucos vão colocando em prática, mas, a batalha não termina. É
necessário maior empenho das autoridades responsáveis pelas políticas indígenas, no que
tange a sobrevivência destes grupos. Um destaque importante é levantado por Cunha (2000),
que a previsão dos anos 80 sobre o possível desaparecimento já é coisa do passado esta “[...]
cedeu lugar à constatação de uma retomada demográfica geral. Ou seja, os índios estão no
Brasil para ficar” (CUNHA, 2000, p.131).
No entanto, existem ainda obstáculos que não são vencidos somente por conquistas
nas legislações, especificamente no caso dos Kaingang no sul do Brasil, um dos entraves para
a manutenção da língua indígena é o próprio ensino bilíngue:
[...] o próprio processo educacional bilíngüe, instaurado há duas décadas, que, como
já apontamos, direciona a criança para a valorização e emprego da língua portuguesa
em substituição à língua indígena, conformando na criança a convicção de que a
língua portuguesa é uma „língua de cultura‟, que cria oportunidades e é o caminho
de acesso ao poder ou a ganhos materiais, por menores que sejam, enquanto a língua
indígena não seria capaz de expressar conteúdos relevantes, ficando restrita às séries
iniciais da escolarização (para as crianças que chegam à escola falando apenas o
21
Kaingang), sendo, aos poucos, colocada em um „gueto‟ (a aula de língua indígena),
até desaparecer completamente do currículo.
Como fruto das outras compulsões já mencionadas, em grande parte das áreas
indígenas já é apenas minoria o número de crianças que chega à primeira série como
monolíngües Kaingang. É comum que muitos já demonstrem, nessa idade, um
„bilingüismo incipiente‟ (freqüentemente já tendo o português como língua de sua
expressão, e o Kaingang como língua que não falam, mas compreendem), e boa
parte chega à escola tendo como língua materna o Português. Com isso, os
problemas criados pelo ensino bilíngüe do SIL ficam agravados por reforçarem a
tendência já manifesta na maioria das crianças por razões extra-escolares. O
chamado „ensino bilíngüe‟ vai se tornando, pouco a pouco, mera afirmação
„publicitária‟, e o resultado mais comum é o abandono da escola pelas crianças que a
ela chegam como monolíngües Kaingang, e a chegada às séries mais elevadas (8ª
série, em muitas áreas) apenas por crianças que nunca falaram a língua indígena.
(VEIGA; D‟ANGELIS, 2000, p.323-324)
Esses fatores, trazidos por Veiga e D‟Angelis, são consequências das longas
experiências de contato entre as populações indígenas e a sociedade nacional, também a
cooptação de índios pelos órgãos do governo e das entidades religiosas cria um clima de
sobreposição cultural onde os que falam o português são mais “cultos” do que aqueles
indígenas que não o falam. Essas complicações acontecem em todos os tipos de sociedades e
culturas existentes, o fato de podermos enxergar problemas na implementação de
determinadas políticas nas comunidades é relevante, pois nos vemos nelas, quantos problemas
e contradições acontecem na sociedade nacional que está toda hora se ocidentalizando e
vivendo a sombra das grandes nações do primeiro mundo. Com os indígenas é a mesma coisa,
mas para eles os “evoluídos” não são os países de primeiro mundo, ou podem até ser, mas por
proximidade alguns vêem a sociedade envolvente como “superior”.
Com essas contribuições trazidas pelos autores podemos ver que as formas de
escolarização devem partir de iniciativas indígenas, não podemos forçar que as comunidades
se escolarizem e aprendam o português e que façam o exercício da escrita em sua língua,
conforme Silva e Azevedo:
Não queremos dizer com isso que os povos indígenas não possam ler e escrever em
suas línguas nativas e que possam aprender a fazer isso em suas escolas. [...] Mas o
que as escolas indígenas devem ou não ensinar é matéria cuja decisão depende
exclusivamente dos povos indígenas para os quais elas existem. Os objetivos dessas
escolas devem ser discutidos e definidos pelas próprias comunidades onde estas
estão localizadas. A experiência acumulada de mais de quatro séculos demonstra
como programas de educação escolar indígena podem fazer estragos, quando estão
sob controle de agências não-indígenas. São povos indígenas, através de seus
mecanismos políticos tradicionais, de suas organizações, de seus professores, etc. os
únicos detentores do legitimo direito de decidir sobre o que deve acontecer ou não
em suas escolas. (SILVA; AZEVEDO, 2000, p.153-154)
22
Como colocado acima, com a existência da instituição da escola nas comunidades
somente quem deve fazer as escolhas sobre conteúdos e a forma do trabalho docente são os
indígenas envolvidos no processo. Neste sentido cabe destacar que do ponto de vista
legislativo, as comunidades têm uma série de ganhos, claro essas leis são baseadas nos
pressupostos de que os indígenas querem se alfabetizar em sua língua e em português, caso o
contrário aconteça, ou seja, a comunidade decide não ter escola em seu território e não
legitima a escola como instituição de conhecimento indígena, realizando a escolha de ensinar
suas crianças, nos processos educativos tradicionais à relação fica espinhosa entre o poder
público e as comunidades. As autoridades “competentes” certamente acionaram todos seus
esforços para o aceite dos indígenas da escola diferenciada, podendo ocorrer à perda da
guarda da criança aos pais que não matricularem seus filhos em escolas reconhecidas pelo
Estado. Esses acontecimentos e a série de imposições que as comunidades sofrem levam a
conclusão que a instituição estatal não reconhece os processos educativos ancestrais e
impõem aos indígenas legislações homogêneas.
No que se refere às diretrizes especificas para as escolas indígenas, os estes saíram
vencedores, porém a aplicabilidade destas ainda segue comprometida e o motivo desta
dificuldade merece empenho dos envolvidos no processo, ou seja, os indígenas. Pois desde a
criação do SPI até a aprovação da Constituição Federal de 1988, as escolas mantidas nas áreas
indígenas eram de responsabilidade da FUNAI, somente a partir do texto da constituinte em
que se mudou o olhar sobre as populações tradicionais que se viabilizou meios, e a educação
escolar indígena passou a ser tema relevante no ponto de vista das legislações. No entanto,
exige a fiscalização e monitoramente da sociedade civil interessada pelas questões: atores
sociais indígenas e democracia participativa.
Quanto à responsabilidade, de fornecer meios para que a escolarização dos indígenas
aconteça com o fim de proporcionar que estes tenham seus processos culturais respeitados são
questionáveis, como afirma o Plano Nacional de Educação (2001):
Em que pese a boa vontade de setores de órgãos governamentais, o quadro geral da
educação escolar indígena no Brasil, permeado por experiências fragmentadas e
descontínuas, é regionalmente desigual e desarticulado. Há, ainda, muito a ser feito e
construído no sentido da universalização da oferta de uma educação escolar de
qualidade para os povos indígenas, que venha ao encontro de seus projetos de
futuro, de autonomia e que garanta a sua inclusão no universo dos programas
governamentais que buscam a satisfação das necessidades básicas de aprendizagem,
nos termos da Declaração Mundial sobre Educação para Todos.
23
A transferência da responsabilidade pela educação indígena da Fundação Nacional
do Índio para o Ministério da Educação não representou apenas uma mudança do
órgão federal gerenciador do processo. Representou também uma mudança em
termos de execução: se antes as escolas indígenas eram mantidas pela FUNAI (ou
por secretarias estaduais e municipais de educação, através de convênios firmados
com o órgão indigenista oficial), agora cabe aos Estados assumirem tal tarefa. A
estadualização das escolas indígenas e, em alguns casos, sua municipalização
ocorreram sem a criação de mecanismos que assegurassem uma certa uniformidade
de ações que garantissem a especificidade destas escolas. A estadualização assim
conduzida não representou um processo de instituição de parcerias entre órgãos
governamentais e entidades ou organizações da sociedade civil, compartilhando uma
mesma concepção sobre o processo educativo a ser oferecido para as comunidades
indígenas, mas sim uma simples transferência de atribuições e responsabilidades.
Com a transferência de responsabilidades da FUNAI para o MEC, e deste para as
secretarias estaduais de educação, criou-se uma situação de acefalia no processo de
gerenciamento global da assistência educacional aos povos indígenas.
Não há, hoje, uma clara distribuição de responsabilidades entre a União, os Estados
e os Municípios, o que dificulta a implementação de uma política nacional que
assegure a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngüe às
comunidades indígenas.
Há também a necessidade de regularizar juridicamente as escolas indígenas,
contemplando as experiências bem sucedidas em curso e reorientando outras para
que elaborem regimentos, calendários, currículos, materiais didático-pedagógicos e
conteúdos programáticos adaptados às particularidades étno-culturais e lingüísticas
próprias a cada povo indígena.
O Plano Nacional de Educação (2001) assume os propósitos que os órgãos federais
anteriormente tiveram com as escolas indígenas e explicita a dificuldade de regularização das
escolas nas mais diferentes regiões do Brasil. Um aspecto importante da citação exposta é que
não existe uma clara distribuição de responsabilidades entre a União e os Estados e
Municípios no que se refere às escolas em aldeias. E assume que são necessários esforços
para que se produzam materiais didáticos próprios para o uso dos indígenas. Caso isso não
ocorra, o aspecto modernizante da escola revela-se como anteriormente, as escolas serão
utilizadas para doutrinar as crianças indígenas a pensarem e agirem conforme o “branco”,
menosprezando os seus costumes tradicionais e esquecendo a história de dominação que seus
ancestrais sofreram.
A educação nos processos de mudança de qualquer sociedade é um do instrumento
utilizado para fundamentar o doutrinamento dos sujeitos envolvidos na transformação. Com
seus mecanismos de “forma+ação” tem um poder imenso na subjetividade do individuo, que a
partir de um conhecimento especifico conquista uma hegemonia. Este conhecimento que se
torna hegemonia no campo do saber é revestido de uma ideologia que esconde processos
significativos do viver. A ideologia, para Freire, tem a capacidade de amaciar a população de
uma maneira fantástica fazendo-nos crer que a globalização econômica é um fato que termina
em si mesmo, que não poderia ser evitado, que ela é um ser superior que não podemos evitar,
24
desta maneira esconde que é resultado de escolhas políticas que aliam nossa produção
econômica a determinados interesses (FREIRE, 1996).
Esta concepção está internalizada no pensamento de boa parte da sociedade brasileira,
estamos lutando contra uma estrutura ideológica que todas as correntes políticas existentes
nos dias de hoje concordam. Por mais que existam subsídios para a participação de indígenas
na vida política por meio do sistema eleitoral de representatividade. Estes não são nem citados
nas propagandas eleitorais, assim como falar de presídios, falar de índios não dá votos.
Por mais que existam alguns partidos políticos na atualidade que digam que
construirão o país seguindo os desejos da população brasileira, estão enganados, pois
governam somente para as elites. Seus pensamentos são carregados de distorções históricas
construídas em nossa memória, a maneira como as “verdades” foram sendo vendidas neste
solo faz-nos esquecer que muito antes dos espanhóis e portugueses chegarem nesta região
existiam e ainda existem grupos que não “compram” facilmente as “novas idéias”. Com isso
QUIJANO (2005) esclarece:
[...] a perspectiva eurocêntrica distorce, quando não bloqueia, a percepção de nossa
experiência histórico-social, enquanto leva, ao mesmo tempo, a admitilá como
verdadeira. Opera, pois, no mundo de hoje, e em particular na América Latina, do
mesmo modo como a „cavalaria‟ atuava na visão de Dom Quixote.
Conseqüentemente, nossos problemas também não podem ser percebidos senão
desse modo distorcido, nem confrontados e resolvidos salvo também parcial e
distorcidamente. Dessa maneira, a colonialidade do poder faz da América Latina um
cenário de dês/encontros entre nossas experiências, nosso conhecimento e nossa
memória histórica. (QUIJANO, 2005, p.15)
A distorção que ocorre na América Latina foi e é usada para menosprezar os que
vivem diferentemente dos ditos cidadãos “modernos”, é o caso dos povos indígenas que
muitas vezes optam por viver sempre junto com seus parentes, reproduzindo seus costumes
em comunidade. No caso da aldeia Kaingang em São Leopoldo, muitos vieram de outras
regiões como a de Nonoai. Fizeram a opção a fim de ter uma vida diferente, continuando sim
com seus costumes, mas, perto da cidade para poderem comercializar seus artesanatos.
Um aspecto importante a destacar, é que assim como toda a sociedade, as
comunidades indígenas mudam no decorrer do tempo. Elas se adaptam, com as diferentes
situações e criam uma determinada cultura de contato, ou seja, o contato existente entre os
indígenas e os não indígenas estabelece uma cultura que se compõem das duas tradições
25
culturais. Assim como os não indígenas não mudam totalmente sua forma de viver em função
do contato, com os indígenas ocorre o mesmo. Mas na subjetividade de cada um deles algo
fica internalizado. Contanto que índios e não índios se desafeiçoem de alguns preconceitos e
modos de viver específicos.
A partir disso, é importante lembrar que o indígena da atualidade não é aquele do
imaginário pré-colombiano, que vivia nu, com penachos na cabeça, com o arco e flecha,
caçando no meio da mata. Hoje os indígenas são estudantes de universidade federais e
particulares, usam calças jeans, escutam o sertanejo, fumam cigarro, andam de carro,
preparam os alimentos nas panelas, dormem em casas de material, freqüentam a igreja,
ganham Bolsa Família2. Sobre o termo “índio” Oliveira fala de duas concepções deste termo,
o primeiro indica um estado cultural manifestado de diferentes formas e contextos podendo
ser substituído pelo termo – silvícola, íncola aborígene, selvagem e outros. Claramente os
objetivando como moradores da mata, direta vinculação com a natureza e ausência dos
benefícios da “civilização”. O segundo indica um segmento da população do Brasil que tem
problemas de se adaptar as formas de vida da sociedade nacional, por estar ligada a tradições
pré-colombianas (OLIVEIRA, 2000).
Assim esta concepção leva a muitos suporem que nos dias de hoje, não existe uma
cultura propriamente ou legitimamente indígena. Assim DaMatta contribui com a idéia de
cultura nos diversos tipos de sociedade:
[...] sociedades sem cultura apenas acontecem no caso das <<animais sociais>>
(uma expressão, sem dúvida contraditória). No caso do homem, a cada sociedade
corresponde uma tradição cultural que se assenta no tempo e se projeta no espaço.
Daí o seguinte postulado básico: dado o fato de que a cultura pode ser reificada no
tempo e no espaço (através de sua projeção e materialização em objetos), ela pode
sobreviver à sociedade que a atualiza num conjunto de práticas concretas e visíveis.
Assim, pode haver cultura sem sociedade, embora não possa existir uma sociedade
sem cultura. (DAMATTA, 1987, p.50)
Portanto, a partir do momento em que o mundo e o homem se movimentam a cultura
se modifica. Uma comunidade indígena se adapta ao meio em que vive, pois está cercada por
todos os lados da cultura ocidental moderna, e seus comportamentos etnocêntricos. Os povos
indígenas, com muitas diferenças se adaptam, mas não mudam totalmente o seu jeito de viver
2
Programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de
pobreza e de extrema pobreza. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>.
26
para glorificar o mundo do “branco”. Sobre as mudanças ocorridas nas culturas, Tassinari
(2000), nos esclarece:
[...] a cultura não se define mais enquanto um conjunto fixo de costumes, artefatos e
crenças que podem ser armazenadas ou resguardadas em museus ou livros
independentemente das pessoas. Cada pessoa, já que ninguém é igual ao outro, tem
maneiras próprias de interpretar sua tradição, tem traços pessoais que imprime ás
formas de agir e aos objetos que produz. Cada inovação pessoal, no entanto, tem que
fazer sentido para aqueles que compartilham da mesma cultura, de modo que a
pessoa seja aceita socialmente e não seja considerada „louca‟, ou melhor, fora dos
padrões sociais de conduta „normal‟. (TASSINARI, 2000, p.449)
A partir do contato com a sociedade envolvente os indígenas dão significados para
práticas que entraram no seu cotidiano e ressignificam as tradições ancestrais. Mas como
ainda assim são índios, e por quê? Quais as diferenças que os fazem continuarem sendo
indígenas? Respondo com duas características fundamentais: o viver em e para a comunidade
com manifestações de ritos ancestrais e a língua materna falada continuamente pelos
moradores da aldeia. Especificamente sobre a cultura Kaingang na modernidade podemos
dizer que está se configura de elementos de “fora” de sua realidade com aspectos ancestrais,
mas não podemos afirmar que é uma “mistura”, ao lado do desconhecimento de alguns
aspectos ancestrias os Kaingang tratam do elemento do “mundo do branco” do qual se
apropriam e resignificam, assim esse sincretismo marca como eles estão construindo algo
novo sobre a cultura (EG JAMEN KY UM, 1997).
Com essas definições, podemos compreender que a implementação das instituições
escolares nas comunidades indígenas deve ser diferenciada e, como exposto acima, no artigo
261 da Constituição Estadual do Rio Grande do Sul, temos legislações especificas que
prevêem consultas aos povos tradicionais sobre como essa instituição funcionará, entre outros
aspectos.
O funcionamento das escolas indígenas é mencionado em diversas leis que exploram o
artigo mencionado da constituição, esses compõem também a constituição e demais os
documentos da educação do Brasil. Existe um esforço para que os professores dessas escolas
sejam moradores da aldeia e pertencentes à mesma etnia dos alunos que freqüentarão as aulas.
Neste sentido a escola indígena que é objeto de reflexão deste trabalho está avançada, pois os
dois professores que trabalham na escola são Kaingang, sendo um estudante de Licenciatura
em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o outro apenas
com a formação escolar básica, ambos moradores da comunidade da Estrada do Quilombo, no
27
bairro Feitoria, na cidade de São Leopoldo. Com esse ponto primordial para que a
escolarização seja realmente lecionada por “parentes”, que entendem da cultura e língua do
povo Kaingang, pode-se lançar a hipótese de que essa escola será uma “escola indígena” e
não uma “escola para o indígena”. A primeira denominação refere-se aos processos
educativos culturais que devem ser utilizados para o aprendizado da criança indígena para
assim de tornar um índio cidadão, ou seja, que reivindique seus direitos assegurados pela
constituição e leis complementares, e mais lute para novas conquistas para seus parentes e coirmãos indígenas. Quando me refiro a “escola para o indígena” falo dos modelos de educação
que tivemos em anos recentes e ainda temos em alguns lugares do país, ou seja, o modelo
positivista materializado pelo SPI até 1968, e a atuação realizada por missionários anos atrás
entre outros.
Quanto à maneira como a escola indígena deve desenvolver suas atividades, de
maneira intercultural, sobre este conceito Paula (1999, p.76)) nos esclarece:
Quando se fala em interculturalidade, a idéia que nos vem à mente é a de que duas
ou mais culturas estão se relacionando de alguma forma. A escola, quando se instala
numa comunidade indígena – quer a pedido desta, quer à custa de ações marcadas
por imposições colonialistas, ainda presentes em nossos dias -, traz no seu cerne essa
problemática, visto ser ela uma instituição tão caracteristicamente criada pelas
sociedades ocidentais.
Essa união da cultura propriamente indígena, neste caso a Kaingang, seus valores e
sua visão de mundo ser construída na escola, instituição como afirma Paula (1999) “uma
instituição tão caracteristicamente criada pelas sociedades ocidentais”, essa união é a
interculturalidade. O conhecimento indígena abordado em sala de aula junto com
conhecimentos ocidentais lecionados por professores da comunidade capacitados para tal e
com a perspectiva da inovação da escola indígena, não mais como aparelho reprodutor da
sociedade capitalista ocidental, mas como afirmadora de valores kaingang em união com
conhecimentos ocidentais para em conjunto lutar pela garantia de direitos ao seu povo.
No entanto, a interculturalidade na escola indígena não significa a coexistência de
representações dos “dois mundos”, o indígena e o ocidental, visto que os valores são
indígenas e a estrutura de pensamento também o elemento ocidental é a escola. Sobre isto
Paula (1999) destaca:
28
A interculturalidade, quando pensada no cotidiano de uma escola indígena, está
intrinsecamente ligada à questão dos conhecimentos. Não se propõem, por exemplo,
que para garantir o caráter intercultural deva haver necessariamente professores nãoíndios e indígenas trabalhando lado a lado na sala de aula. Ou que o prédio da escola
deva conter características arquitetônicas indígenas e ocidentais, ao mesmo tempo.
(PAULA, 1999, p.78)
As palavras de Paula são em tom de esclarecimento, para termos uma escola
intercultural não necessita a presença de professores indígenas ao lado de não-índios, essa é
uma mudança importante no pensamento sobre a educação dos povos indígenas. Como
mencionado acima se na escola indígena houver como professor um não-índio a construção
do conhecimento, junto aos alunos que falam frequentemente a língua ancestral e vivem na
comunidade, prejudica sua pratica a não ser que o objetivo desta seja o da “civilização” para
os valores ocidentais ou a “catequização”.
29
3 OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO E A ESCOLA NA ALDEIA
Os índios Kaingang não habitam a cidade de São Leopoldo por acaso. A mesma foi
território indígena antes do inicio da colonização alemã. A partir da colonização os Kaingang
foram sendo espremidos nos territórios ao norte do Rio Grande do Sul. O grupo de indígenas
que mora no Bairro Feitoria habita contemporaneamente na cidade por volta de 8 anos,
passaram por outros lugares até então serem alocados na aldeia Voga.
Anteriormente ao alocamento dos Kaingang no bairro Feitoria, eles estavam morando
em baixo de um viaduto na BR-116, próximo a rodoviária de São Leopoldo. Moraram por
volta de quatro anos neste local, onde tinham condições mínimas de vida digna, pois a
violência sempre rondava os indígenas, com barulho para os habitantes, mínimas condições
de higiene e moradias precárias. Quando chovia no local os moradores ficavam com suas
casas alagadas e seus pertences se danificavam tornando assim a vida insustentável.
De acordo com os moradores da comunidade, no ano de 2005 a prefeitura, por pressão
das lideranças indígenas e por se ver na obrigação de assistir minimamente o grupo localizado
em baixo do viaduto de sua cidade, decidiu se reunir com as lideranças e propôs que um
grupo de indígenas fosse à busca de alguns terrenos, previamente estipulados pelo município,
para futura moradia do grupo. Esse grupo formado pelos indígenas que participavam da
liderança visitados algumas áreas e terrenos no município. Entre as localidades visitadas o
primeiro terreno escolhido pelo grupo não foi viabilizado por conta de entraves jurídicos. A
opção que ficou em segundo lugar foi aquela que acabou materializando a aldeia Kaingang
Voga.
A aldeia está localizada na Estrada do Quilombo número 1015, no bairro
Feitoria/Seller na cidade de São Leopoldo. A área é de aproximadamente 2,5 hectares de terra,
onde moram 30 famílias totalizando por volta de 150 pessoas. A maioria são os mesmos que
estavam em baixo do viaduto na rodovia federal, alguns deles foram novamente para as suas
localidades de origem, como as áreas indígenas de Nonoaí, Votouro, Serrinha e etc., e outros
vieram para São Leopoldo depois da conquista do terreno em que foi construída a aldeia.
O terreno onde fica a aldeia ainda está sob propriedade da prefeitura municipal,
embora a Fundação Nacional do Índio – FUNAI já tenha conhecimento da existência da
30
comunidade. Em vista disso muitos recursos, tais como serviços como os de saúde não são
viabilizados, pois o território tem que ser obrigatoriamente área federal.
Fotografia 01 – Entrada da aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo
Fonte: Registrada por Diego Severo
Fotografia 02 – Imagem via satélite do local
Fonte: Google Maps
31
Na imagem apresentada acima onde está localizado um balão azul é à entrada da
comunidade Kaingang. O nome da rua popularmente é chamado de “Estrada do Quilombo”,
embora o nome da avenida seja Maria Emília de Paula. A confusão ocorre pelo fato de que
próximo a avenida existe uma travessa chamada Travessa do Quilombo.
O exposto na imagem disponível no Google Maps não reflete a disposição das casas
hoje existentes na aldeia, pois muitas novas moradias foram construídas neste ano em função
de uma parceria da comunidade indígena com a Caixa Econômica Federal e apoio da
Fundação Nacional do Índio – FUNAI. A partir disto é importante ressaltar que apesar da
Prefeitura Municipal de São Leopoldo ter conseguido o terreno onde hoje está a aldeia nada
fez para que os moradores da comunidade indígena tivessem as mínimas condições de vida.
O grupo kaingang foi levado para a área no bairro Feitoria e as estruturas básicas, tais
como: construção de casas, banheiros adequados, viabilização de escola e outros
equipamentos não foram viabilizados pelos órgãos legalmente responsáveis 3 pela assistência
indígena e tão pouco pelos órgãos públicos ligados à prefeitura. Quanto a este fato deve ser
destacado o desprezo com que os agentes da prefeitura agem/agiam com os indígenas da
cidade de São Leopoldo. Em uma das visitas aos indígenas, enquanto esperávamos pelo
começo das aulas na frente da escola, chegou um carro com identificação do município,
desceu um homem verificando a estrutura de um banheiro, que na época ainda estava sendo
construído, ao lado da escola. Fomos ao seu encontro e perguntamos que tipo de trabalho
estava desenvolvendo na aldeia. Apresentou-se como engenheiro responsável pela inspeção
da construção dos banheiros. Perguntamos, então, quanto tempo demoraria para finalizar a
obra. O mesmo disse que não sabia, e para completar afirmou que os indígenas eram muito
abusados em suas vontades, pois primeiramente não queriam banheiros e depois queriam os
mesmos em todas as casas, comentou, também, que a prefeitura não deveria oferecer essas
coisas para os indígenas.
Na visão do agente municipal os indígenas deveriam se adequar ao mundo do branco
trazendo representantes da sociedade envolvente para o interior da aldeia a fim de
comercializar seus artesanatos. Ademais, conforme expressou, os indígenas deveriam ser
punidos por “abusar” das crianças utilizando-as para o comercio de seus produtos. Ressaltou
3
Especificamente, Fundação Nacional do Índio – FUNAI e da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA
32
ainda que eles não poderiam reivindicar que a área em que estão localizados se mantenha
preservada, sem desmatamento ao redor, pois não estão mais em seu território original e,
também, não podem querer que em todo o lugar por onde andam se preserve um ambiente
“ideal”.
Não queremos fazer aqui nenhuma critica no plano individual aos trabalhadores da
prefeitura, e sim a esta instancia pública municipal que no momento que se propõe cumprir
uma legislação que a obriga assistir aos povos indígenas deve, minimamente, preparar o seu
quadro de funcionários com capacitação que os esclareça sobre os diferentes tipos de culturas
existentes, que recebam um pouco de conhecimento da história deste povo que não “caiu” de
pára-quedas na cidade de São Leopoldo, mas sim têm uma ligação ancestral com a terra, pois
aqui foi território kaingang que foram sendo expropriados pela força da colonização
(principalmente alemã) e obrigados a migrarem para o norte do estado.
Economicamente a comunidade se sustenta através do trabalho com o artesanato, que
não é produzido de maneira coletiva, e sim individualizado nas famílias. Cada qual é
responsável pelo seu material. Não levanto aqui a hipótese: o caso de alguma família estar
passando por necessidades financeiras, não haver uma solidariedade grupal... Esse tipo de
interação não foi o foco da pesquisa, mas, sem dúvida, a forma como gira a economia da
comunidade é um aspecto importante de ser pesquisado.
Como no começo do trabalho foram levantadas algumas características ancestrais dos
Kaingang, sabemos que esse grupo se adaptou à agricultura com a chegada dos jesuítas e
outros fatores, na aldeia pesquisada não existe espaço para a agricultura. O que existe são
“pequenas hortinhas” perto das casas de alguns moradores. Além do trabalho com o
artesanato que é à base do sustento, ou o complemento da renda da maioria da população
indígena que mora em São Leopoldo, existe outros postos de trabalho que os moradores
ocupam, alguns na própria aldeia, quadro moradores trabalham na escola dois como
professores e duas como funcionárias, todos contratados do Estado do Rio Grande do Sul.
Outros indígenas trabalham com construção civil, nos postos de saúde, entre outros. Devido à
insegurança financeira e a não “estabilidade” da venda dos artesanatos aquelas famílias que
não tem renda fixa são beneficiadas pelo programa Bolsa Família do governo federal como já
destacado anteriormente.
33
Fotografia 2 – Artesanatos Kaingang expostos na Unisinos
Fonte: Registrado por Diego Severo
Fotografia 3 – Artesanatos Kaingang expostos na Unisinos
Fonte: Registrado por Diego Severo
A produção do artesanato é familiar e esse é um processo educativo passado
diretamente pelos pais aos seus filhos.
34
Da mesma forma, a língua é transmitida diretamente pelos pais para seus filhos
geração após geração Um dos diferenciais importantes dos indígenas do sul do país é o fato de
falarem a língua nativa continuamente, apesar de os dialetos terem se modificado ao longo do
tempo e pelo próprio contato interetnico com os não-indígenas.
A respeito da questão estrutural ressaltamos que existe uma parceria da aldeia com
órgãos federais para a construção de 21 casas que atualmente estão em fase de finalização. O
leitor atento verificou que existe uma incoerência entre o numero de famílias e o numero de
casas da comunidade, isso acontece em função do reduzido espaço territorial da comunidade.
Algumas famílias dividem a casa com parentes, além das moradias, existe a pequena estrutura
da escola, um banheiro coletivo, um centro cultural4. Os indígenas estão buscando formas
para ampliar a área da aldeia, pois os mesmos têm projetos de aumentar a escola já existente,
viabilizar um posto de saúde para os moradores da comunidade entre outros.
A situação atual da comunidade de São Leopoldo sem dúvida é muito melhor do que
há cinco, seis anos, mas isso não é fator ponderável de analise, pois mesmo com a
viabilização da área pela gestão atual o município deixa os indígenas sem muitas condições de
sobrevivência, pois os serviços de assistência raramente são encontrados. A única face clara
destes “serviços” é o Bolsa Família. Cabe observar que na Constituição do Estado do Rio
Grande do Sul encontramos alguns ganhos do ponto de vista da legislação como o artigo 264 5
4
Esse foi construído pelos próprios moradores da comunidade, durante a construção das casas esse serviu de
moradia para muitas familias.
5
Dos Índios
Art. 264 - O Estado promoverá e incentivará a autopreservação das comunidades indígenas, assegurando-lhes o
direito a sua cultura e organização social.
§ 1º - O Poder Público estabelecerá projetos especiais com vista a integrar a cultura indígena ao patrimônio
cultural do Estado.
§ 2º - Cabe ao Poder Público auxiliar as comunidades indígenas na organização, para suas populações nativas e
ocorrentes, de programas de estudos e pesquisas de seu idioma, arte e cultura, a fim de transmitir seu
conhecimento às gerações futuras.
§ 3º - É vedada qualquer forma de deturpação externa da cultura indígena, violência às comunidades ou a seus
membros, bem como a utilização para fins de exploração.
§ 4º - São asseguradas às comunidades indígenas proteção e assistência social e de saúde prestadas pelo Poder
Público estadual e municipal.
Art. 265 - O Estado proporcionará às comunidades indígenas o ensino regular, ministrado de forma
intercultural e bilíngüe, na língua indígena da comunidade e em português, respeitando, valorizando e
resgatando seus métodos próprios de aprendizagem, sua língua e tradição cultural.
Parágrafo único - O ensino indígena será implementado através da formação qualificada de professores
indígenas bilíngües para o atendimento dessas comunidades, subordinando sua implantação à solicitação, por
parte de cada comunidade interessada, ao órgão estadual da educação.
35
que atribui aos municípios em conjunto com os estados e à União a responsabilidade de
garantir aos índios seus direitos fundamentais.
O grupo Kaingang pesquisado por nós sofreu angustias durante os primeiros meses no
atual local em que foi consolidada a nova aldeia, pois alguns vizinhos exteriorizaram o
estereótipo tradicional de que o índio é bêbado, baderneiro, festeiro e sem educação. Sem
dúvida, tal postura constitui-se numa forma preconceituosa de conceber os povos e
coletividades indígenas. Esta visão é construída pelos discursos de grupos dominantes e pelo
senso comum a fim de conceber como o ideal o desaparecimento dos índios.
O conjunto desses discursos modelaram políticas que foram fortemente aplicadas
durante o período de funcionamento do SPI que tinha como ideal a assimilação dos grupos
indígenas a sociedade nacional. Por sua vez, a Funai durante os seus primeiros anos de
funcionamento fortaleceu essa política integracionista e assimilacionista.
A Constituição Federal Brasileira promulgada em 1988 retira o índio de sua
“incapacidade natural” que era abonada pelo fato dele ser considerado um cidadão tutelado
pelo Estado até a alteração desta. Na constituinte temos o capítulo VIII, intitulado “Dos
Índios” em que seu primeiro artigo 231, fala o seguinte:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas,
ficandolhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o
risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
36
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação
de boa-fé.
Analisando do artigo número 231, colocado acima. Podemos tomar algumas posições
sobre a realidade prática desta legislação. A legislação exposta acima tomando como exemplo
inciso 5º, o qual afirma que os povos indígenas podem ser retirados de suas terras, entre
outros a caso de interesse do país. A passagem do inciso 5º deixa claro que o tal interesse do
país, ou melhor, dos representantes políticos, é diferente dos interesses indígenas.
Presentemente temos como exemplo claro o projeto de construção da Hidrelétrica de Belo
Monte, na cidade de Altamira no Pará. Os indígenas que vivem ao redor do rio Xingu, que
sofrerá o barramento, serão retirados compulsoriamente de suas terras, haja vista que o projeto
é considerado de interesse da soberania do país.
Assim podemos associar a questão dos Kaingang em São Leopoldo que ainda não tem
seu território reconhecido pela União, e sim apenas o reconhecimento de sua existência
enquanto grupo étnico diferenciado. Enquanto a posse da terra estiver titulada em nome do
município de São Leopoldo, teoricamente a legislação existente não protege os Kaingang de
uma possível desapropriação. Não estamos falando que existem rumores sobre esse assunto,
pois aparentemente não existem, mas devemos pensar sobre o que está vigente
especificamente em relação ao grupo indígena de São Leopoldo quanto à sua proteção
territorial.
A comunidade já está consolidada em muitos aspectos. Existem dentro da aldeia Voga
duas igrejas evangélicas, a pequena estrutura da escola, o centro cultural, e as em torno de 23
casas6. Já em termo de organização política da comunidade, está possui: o cacique, o vicecacique, o conselheiro. Os membros de tais posições são escolhidos pela comunidade em
reunião. Não tivemos infelizmente a oportunidade de participar de alguma delas. Assim o
cacique é escolhido, o vice-cacique geralmente é o cacique que por algum motivo deixou o
cargo7, e o conselheiro é uma pessoa com experiência de vida e reconhecido pela população
da aldeia como capaz de exercer tal função.
6
7
Não contando as que até o termino das observações não estavam terminadas pelas empreiteiras.
Conforme informações dadas pelos sujeitos pesquisados, geralmente a troca de liderança ocorre quando: o atual
resolve deixar o posto por cansaço; a comunidade não está satisfeita com as posições tomadas pela liderança;
briga entre grupos de interesse. Durante o tempo que pesquisamos o grupo houve a troca de cacique na
37
Permanece na aldeia a figura da liderança espiritual, o Kuijã, embora essa nos últimos
anos venha perdendo espaço na religiosidade do povo Kaingang, não só no grupo pesquisado,
mas no conjunto dos grupos e coletivos Kaingang no sul do Brasil. Por sua vez as igrejas,
principalmente as evangélicas, chegam com propostas alternativas aos modelos impostos
pelos católicos e exercem em nosso entendimento um papel muito mais de levantar o “ego”
individual dos indígenas do que simplesmente o louvar a um senhor. Claro que desta maneira
os costumes sempre são colocados como inferiores ao do “branco”, assim a procura pelo
Kuijã vem diminuindo e o interesse em se tornar um (a) líder espiritual vem diminuindo nos
kaingang. Embora as igrejas evangélicas preguem discursos muitas vezes enaltecedores dos
costumes “brancos civilizados” o grupo da aldeia Voga segue uma determinada unidade em
comum, pois todos moradores falam continuamente a língua de seu povo, e isto os faz se
diferenciar de nós não indígenas. Ademais existe um forte interesse dos moradores desta
aldeia pesquisa em manter esse costume em suas crianças e para isso apostam em modelos de
educação escolar e não escolarizadas para manter essa característica viva. Em algumas visões
de integrantes da aldeia, identificamos divergências sobre qual a forma de preservar a língua,
mas essas diferenças se complementam quanto à finalidade das propostas que é manter as
gerações falantes da língua kaingang e significar qualitativamente os valores tradicionais
Kaingang com as nuances encontradas atualmente no (des)encontro com os representantes da
sociedade envolvente como um todo.
3.1 ESCOLA NA ALDEIA KAINGANG
Como já referido neste trabalho, a instituição escolar sem dúvidas é um advento de
fora da realidade dos povos indígenas e, se os formos pensar a 500 anos atrás, o que existia
era somente os processos educativos que os integrantes de determinada etnia recebiam dos
mais velhos para desta forma se tornar adultos responsáveis e integrados no seu meio social.
Integrar a pessoa ao meio social em que vive é o papel que a escola desenvolve em
todas as sociedades, essa integração se pressupõe certa criticidade por parte dos professores,
planejamento de ensino adequado e comprometimento dos responsáveis pela criação da
criança no meio escolar.
comunidade e desta maneira conseguimos tais informações, no entanto o verdadeiro fato que desencadeou a
saída da liderança não nos foi revelada e sim esses três aspectos acima citados por diferentes grupos da aldeia.
38
No entanto, o cenário que é mais comum na sociedade moderna é o da escola do bairro
da casa do estudante. Nela o estudante estuda toda a sua escolarização, seus responsáveis só
aparecem na escola quando são chamados pela diretoria ou quando tem que pegar o boletim
de seu filho. Neste contexto não conhecem as pessoas que “educam” seus filhos, não os
acompanham nos estudos e quando perguntados pelos filhos alguma coisa de sua história,
generalizando, fazem pouco caso ou não respondem.
A escola localizada na aldeia Kaingang em São Leopoldo nos apresenta um cenário
um pouco diferente do que relatamos no parágrafo acima, pois devido ao pouco espaço
territorial da comunidade e a união em torno da identidade kaingang que os faz “iguais” a
relação dos moradores com a escola é outra. O que faz essa relação ser diferente é o que
vamos ver no decorrer do trabalho.
Fotografia 4 – Escola na aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo
Fonte: Registrada por Diego Severo
A escola da aldeia não tem uma estrutura adequada de ensino, ela se constitui de uma
pequena sala com aproximadamente 36m², onde 2m² destes são a cozinha da escola.
Compõem-se de vinte classes em boas condições de uso, vinte e uma cadeiras em condições
de uso, um quadro negro de dois metros de comprimento por um metro e dez centímetros de
39
largura, não existe mesa diferenciada para os professores, tem três estantes com muitos livros
didáticos de 1º ao 5º ano. A escola segue a estrutura de uma casa e não possui forro, sem
proteção para a fiação da energia elétrica, a porta não possui fechadura existindo para tranca lá dois buracos, um na porta e outro na parede - onde passa uma corrente e nesta é colocado
um cadeado, a chave deste se encontra com o cacique, os professores e funcionários. As
janelas da escola estão com muitos vidros quebrados, as paredes estão com a madeira
desnivelada e, desta maneira, no inverno as condições de estudos das crianças fica prejudicada
pelo frio que faz nesta região do país. A cozinha possui uma geladeira, um fogão, uma pia
com armário e outro aéreo logo acima desta.
Fotografia 5 – Estrutura interna da escola na aldeia Kaingang Voga em São Leopoldo
Fonte: Registrada por Diego Severo
As aulas funcionam em dois turnos, manha e tarde, onde são ofertadas os cinco
primeiros anos do ensino fundamental. No período da manha funciona os dois primeiros anos,
a turma é multisseriada, cabe ao professor administrar quais conteúdos abordará com cada
aluno, pela manha matriculados existem 11 crianças, sendo 3 no 1º ano e 8 no 2º ano. No
período da tarde funciona a turma que abriga o 3º, 4º e 5º ano tendo matriculados no total 20
crianças, sendo 12 no 3º ano, 5 no 4º ano e 3 no 5º ano. Após o 5º ano as crianças vão estudar
na escola mais próxima da aldeia que lhe possibilite continuar nos estudos.
40
A escola fica localizada na posição central da aldeia, logo na frente desta está o centro
cultural construído há pouco tempo que atualmente serve para abrigar algumas famílias. Então
pela posição esta acaba virando referencia para a comunidade e é onde são tomadas as
decisões políticas da comunidade. Durante as observações, principalmente no período da
manhã, enquanto estava tendo aula na escola, um grupo de mulheres se sentava em roda na
frente da escola para tomar chimarrão e conversar, sempre alguma criança via sua mãe e lhe
pedia alguma coisa, então, logo alguém aparecia e o pedido era realizado. Esse grupo de
mulheres estava em plena harmonia com o chimarrão, sem a presença de homens,
conversavam no sol quando a merendeira da escola se uniu a este grupo e a relação “mulheres
no chimarrão” e “ambiente escolar” ficou mais entrelaçada, pois a água acabou algumas vezes
e a cozinha da escola estava em pleno funcionamento para abastecê-las. Quando o professor
anunciou o horário do intervalo por volta das 10 horas algumas crianças foram para o lado de
suas mães, enquanto outras pegavam o lanche oferecido pela escola e logo se dedicavam para
as brincadeiras. Durante o período de observação muitas outras formas de interação direta
entre comunidade e escola foram constatadas, estas serão abordadas conforme a necessidade
dentro do presente trabalho. Os diários de campo elaborados durante as visitas são parte
integrante, constando nos anexos.
A escola da aldeia está vinculada legalmente a uma escola estadual localizada no
Bairro Feitoria, portanto, a estrutura escolar da aldeia é uma extensão desta escola. Os
professores e funcionários da escola que funciona na aldeia são contratados do Estado do Rio
Grande do Sul, via contrato temporário, pela 2ª Coordenadoria Regional de Educação de São
Leopoldo8 e lotados nessa escola9. Assim, toda a estrutura da escola na aldeia fica dependente
das nuances da gestão da escola a qual “pertencem” e, segundo a gestão da escola, toda a
verba destinada para a estrutura da aldeia vem “separado” do montante da escola. As compras
que os indígenas necessitam são solicitadas para a direção da escola, o caderno ponto dos
professores e funcionários é assinado na estrutura “oficial” da escola, a matricula das crianças
indígenas também é realizada na sede da escola. Segundo a gestão da escola a qual a escola da
8
9
2ª CRE
Essas informações foram concedidas por meio de entrevistas, tanto com os professores indígenas, como com a
direção da escola.
41
aldeia é vinculada, a decisão sobre a vinculação foi imposta pela 2ª CRE, quando os indígenas
foram alocados no Bairro Feitoria existiu uma articulação da prefeitura municipal com o
estado e a escola simplesmente abraçou a situação.
Assim, com a gestão da escola que “coordena” a escola da aldeia, com os professores e
lideranças indígenas foi relatado que se criou a Escola Indígena para funcionamento na
comunidade e agora se faz necessário passar por um processo de autorização de e para isso os
indígenas precisam de uma série de requisitos a ser cumpridos, tais como a apresentação de
estrutura adequada para o funcionamento das turmas, quadro de funcionários incluindo
diretor, funcionários e professores, proposta pedagógica e etc. Os indígenas estão interessados
no processo de desvinculação, pois segundo estes se torna incomodo ter de responder
legalmente a outra escola e desta maneira não exercem a autonomia que a legislação os
beneficia. Logicamente estes exercem uma educação diferenciada, tomando como princípios
os seus próprios processos educativos, falam a língua Kaingang, mas a autonomia ainda não
está completa. Até o nome da futura escola indígena já foi dado, será “Voga”, o mesmo nome
da aldeia, que segundo um dos professores é um bichinho que aparece de oito em oito anos
dentro da taquara e tem um significado especial para os moradores da comunidade.
Da parte da direção a qual pertence à escola da aldeia, estes querem os indígenas
autônomos o mais rápido possível, pois assim deixam de ter essa responsabilidade. Contudo é
notório no contato que tivemos com a equipe diretiva o aspecto com que falavam dos
indígenas como “inferiores”, inferindo a eles certa limitação intelectual não encontrada no
“branco”, não acreditando que estes teriam capacidade de administrar uma escola, fazendo
sempre referência de que os índios sabem “direitinho” os seus direitos assegurados na
constituição e leis complementares, mas quanto ao ato de cumprir horário e trabalhar
corretamente são um pouco lentos. Em conversa com a equipe diretiva nos foi relatado que os
indígenas estavam em fase de criação da escola indígena, mas para isso ainda faltava à
autorização do Conselho Estadual de Educação que só poderia autorizar a criação da escola
depois de comprovação que existe uma estrutura (salas, secretaria, refeitório e outros aspectos
que constituem uma escola) para tal. Foi mencionado que essa estrutura não existia, que
quando convidavam os professores da aldeia para participar das reuniões para apresentação
das diretrizes na maioria das vezes os índios não apareciam. Algumas vezes o professor do
turno da manhã aparecia nas reuniões, este sendo para a diretora o mais compreensivo contato
42
da escola com a aldeia. Relatou que quanto à organização dos índios com os processos
administrativos da escola eram bem desorganizados, se atrapalhavam com o número de
documentos. O mais desorganizado na opinião da equipe diretiva é o professor do turno da
tarde, segundo a mesma, recebem reclamações de alguns pais de estudantes da escola quanto
ao descompromisso do professor com os horários das aulas e com algumas faltas. No entanto,
sempre ouviu que o professor da turma da manhã cumpria seu horário devidamente, conforme
estipulado pela escola. Perguntamos como acontecia a matrícula dos alunos indígenas para
estudar na escola da aldeia, foi dito que o processo era o mesmo dos demais alunos, os pais
vinham até a escola para matricular seus filhos e quando estes não traziam algum xerox dos
documentos, a escola tirava uma cópia com preço menor. A secretária da escola mencionou
que às vezes, faltando algum documento ou a assinatura para a matrícula, os próprios
professores assinavam a matrícula dos alunos. Perguntamos se após o término da 4ª série os
alunos iriam estudar na escola, confirmaram que tinham alguns alunos indígenas e relataram
que seu comportamento é de bastante calma, timidez e respeito, que eles não sofriam qualquer
tipo de discriminação na escola, nem por colegas ou professores. Mencionaram que os
professores de 6º ano ou 5ª série comentam bastante que os alunos índios têm mais
dificuldades no aprendizado que os demais, que neste aspecto os alunos indígenas eram mais
limitados10. Quanto às percepções de limitação que a equipe diretiva da escola reconhece
estão diretamente ligadas ao seu olhar ocidental de aprendizado que concebe os
conhecimentos criados empiricamente com uma aproximação com a natureza e respeito à
tradição como não dignos de serem reconhecidos como importantes para a atualidade.
Toda a parte burocrática de viabilização de recursos para determinados reparos que
eventualmente tem de ser realizado na atual estrutura da escola deve ser solicitado para a
direção da escola estadual que é a responsável legalmente pelas aulas na aldeia, sobre as
diferenças das escolas, a escola da aldeia e a escola a qual ela pertence é evidenciada em
entrevista com a equipe diretiva:
[...] nós temos toda uma infra-estrutura maior já, porque já tem toda uma escola em
andamento eles não. Eles tem aquele material básico, e até porque eles não tem
nenhuma, não tem nem verba própria. Eles não tem. Então eles vem aqui, eles
10
Essas constatações foram retiradas dos contados com a equipe diretiva da escola a quem pertence a escola da
aldeia. Nenhum dos termos citados foram reproduzidos igualmente a fala dos informantes e a visão exposta foi
interpretação do autor deste trabalho. Quando falam de “lentos” no trabalho estão comparando a visão do branco
e a reinterpretando para julgar um indígena (vivente de outra cultura) que não pode ser comparado de maneira
equitativa, pois seus valores e costumes são outros.
43
pedem o material a gente fornece o giz, a folha de oficio, a merenda, a classe essas
coisas a gente vai dando conforme a necessidade deles. E eles é só um
pavilhãozinho, é só uma escolinha. Até o ano passado, no inverno eles vieram pedir,
mata junta que a escola tinha frestas, e tava frio e daí a gente comprou, não sei
quantos metros de mata junta, os pregos. Eles arrumaram, fogão a gente deu.
Quando eles não tem as coisas a gente providencia, sempre com um certo controle,
porque a gente também não tem tanta verba disponível. Porque a partir do momento
que a escola fosse deles, sozinhos a verba deles é muito maior. Como eles índios.
Mas como aqui nós, a gente tem, eles tem a verba que a gente ganha por aluno é
muito pouco.
Essa dependência administrativa da escola da aldeia acaba fortalecendo a centralidade
de poder da instituição legal “branca” posta sempre à frente dos interesses dos indígenas, e
quando os reparos são necessários os indígenas participam deste processo:
Eles arrumam, eles fazem. Até porque eu acho entre eles existe uma parceria, entre a
própria aldeia né. Porque lá na verdade, quem manda lá é o cacique. Até na escola, o
cacique manda. Daí eles. E eles fazem e eles são bem parceiros, porque eles
pegaram, a gente mandou a mata junta, os pregos que eles queriam e depois foi lá
eles arrumaram tudo direitinho. 11
Na fala acima podemos identificar que mesmo por parte da equipe diretiva da escola a
qual é vinculada a estrutura escolar da aldeia, se percebe que os indígenas tomam a instituição
como sua e vêem que ela deve estar apta para abrigar as crianças durante todas as estações do
ano, se disponibilizando para eventuais reformas necessárias na estrutura sem ônus financeiro.
No entanto, percebe-se que a equipe diretiva não se aproxima da realidade da escola da aldeia
conforme identificamos a seguir quando perguntamos sobre a visita da equipe à aldeia:
Muito pouco. Esporadicamente. É uma coisa que não nos dá prazer, foi uma coisa
que colocaram para gente, e nós fazemos a nossa parte e deu. A gente não faz nada
além disso. Se nó poderíamos fazer, não sei. Ninguém quer a gente não tem
disponibilidade para isso, tanto é que tu pode vê, hoje da direção eu estou sozinha
aqui. Então como é que tu ainda vai disponibilizar tempo para ir atender eles. Não
tem como, eles até gostariam que agente fosse mais lá, mais ao mesmo tempo
quando a gente vai. Eles se sentem meio constrangido, a gente já foi lá em algumas
situações e parece assim que daí eles ficam meio que, não sei te explicar eles não
recebem a gente com tanta naturalidade, que eles entram aqui na nossa escola,
porque quando eles vem para assinar o ponto, eles assinam o ponto aqui. Então eles
vem, eles entram assinam o ponto, eles conversam, se eles precisam pedir alguma
coisa eles pedem. Quando eles precisam de alguma coisa da secretaria também eles
chegam, eles entram, não é que eles são atendidos assim do lado de fora, não, como
a comunidade, eles entram eles tem acesso aqui dentro bem tranqüilo, mas eles não
nos dão esse acesso. Eu acho que assim, é próprio uma situação constrangedora,
porque aqui eles tem tipo uma casa bonita, e a deles não é, eu tenho a impressão que
eles se sentem assim, um pouco. Não sei te dizer isso é opinião minha, né. 12
11
12
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 15 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS.
Ibid.
44
O relato mostra que existe um grande déficit no preparo e não existe formação para as
escolas que eventualmente tem administrativamente vinculada escolas em aldeias, a equipe
diretiva não visita uma estrutura que juridicamente é de sua responsabilidade, exemplificando
que infelizmente as decisões são tomadas por uma minoria no poder que simplesmente quer
impor a legislação às escolas e com isso esquece que pode estar criando percepções ambíguas
nos atores que estão de ambos os lados desta relação, neste caso equipe diretiva e indígenas, o
Estado quer cumprir a legislação, mas não prepara seu quadro de funcionários para esse fato,
demonstrado desta maneira pela direção da escola:
Foi à prefeitura que colocou, eles estavam lá, e era uma zona de risco né, uma beira
de estrada. Daí a prefeitura colocou eles ali, e via CRE automaticamente eles vieram
para nós, porque antes eles estudavam no Mario Quintana, eles não tinham a escola
independente, eles estudavam todos lá na escola Mario Quintana, e a partir do
momento em que eles vieram aqui acho que um ano, ou dois eles estudavam aqui
também, aí depois que eles tiveram a escolinha deles lá. Isso foi via CRE né à gente
não.13
Identificamos no relato que a direção da escola se afasta de qualquer obrigatoriedade
com a escola da aldeia, somente estão cumprindo determinações vindas da 2ª CRE e não
demonstraram nos encontros durante a pesquisa nenhum movimento realizado pela escola de
tentar viabilizar aos indígenas condições para se estruturarem e conseguirem sua total
autonomia conforme abrange a legislação. Isso demonstra a total falta compromisso com uma
educação diferenciada para os indígenas, somente os colocam como vítimas das imposições
do Estado e nada fazem para “auxiliarem” os índios no processo de criação de escola própria
ou reivindicar formação especifica para o exercício da alteridade e uma forma diferenciada de
trabalho que necessitam os povos indígenas.
O funcionamento da escola na aldeia, no entanto, é diferenciada a organização é
basicamente indígena e os conteúdos é pensado pelos próprios professores da comunidade
como explicitaremos a seguir.
Os trabalhadores da escola da aldeia são todos indígenas da etnia, sendo dois
professores, uma merendeira e uma funcionária. Quanto ao fato dos professores serem
indígenas revela que a legislação está sendo cumprida neste ponto, mais revelador é o fato das
13
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 15 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS.
45
funcionárias serem também Kaingang, todos contratados do Estado do Rio Grande do Sul. A
estrutura do quadro de profissionais da escola afasta desta uma postura autoritária de fora da
realidade Kaingang, os trabalhadores da escola têm seus filhos estudando ali, seus sobrinhos,
parentes em geral o que os torna muito mais responsáveis pelo desenvolvimento daquele
indivíduo do que nas escolas não indígenas. A responsabilidade pelo estudante é muito maior
na escola da aldeia, pois o professor, como parente do aluno e necessariamente de seus pais,
também tem o dever de alertar e junto com os responsáveis pensar ações para uma mudança
de comportamento do estudante. Todo o contexto da escola entre a comunidade é diferente de
qualquer outro tipo de realidade, pois junto, nos finais de semana, o professor serve assessoria
nas decisões da liderança da comunidade, os alunos procuram o professor para perguntar qual
o dia da avaliação. O mesmo acontecendo com o restante dos funcionários da escola.
Os professores por serem moradores da comunidade e indígenas, Kaingang, falam a
língua ancestral. O professor responsável pelo turno da tarde, onde funciona o 1º, 2º e 3º anos,
tem formação em nível médio na modalidade de Magistério Indígena Kaingang e atualmente
estuda Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS. O professor responsável pelo turno da manha, onde funciona o 1º e 2º anos, tem
somente formação de nível médio modalidade normal, nas visitas realizadas este demonstrou
bastante interesse em continuar os estudos embora as atuais condições não possibilitassem
este aprimoramento. Quanto a este ponto podemos realizar uma associação um tanto curiosa,
que sem dúvidas é relevante para entendermos o significado da escola para os indígenas de
São Leopoldo, o professor do turno da tarde da escola da aldeia pertence à metade Kaingang
Kamé, da marca comprida. O professor do turno da manha pertence à metade oposta, portanto
Kairu da marca redonda. Como já mencionamos anteriormente as principais características
destas metades, tem por definições diferenças, tais como: a diferença nas marcas, o Kamé é
associado à posição oeste o Kairu a leste, no mito de origem Kaingang, o Kairu é
ligeiro/criativo o Kamé é pesado. Assim como fizemos a associação com o casamento na
escola é a mesma forma, pois para esta poder ter harmonia nas decisões políticas e os
estudantes poderem ter uma rotatividade quanto ao modo de lecionar dos dois professores,
assim durante a formação do estudante na escola da aldeia ele estudará com professores, um
de sua mesma marca e outro da marca oposta, o que sem dúvida acrescentará grandes
conhecimentos para sua vida.
46
Durante as visitas à comunidade e à escola, percebemos que esta está cada vez mais
próxima dos moradores da aldeia do que de qualquer outra coisa que a instituição escolar
também possa representar. Os estudantes da escola da aldeia, em sua maioria, têm o
estereótipo esperado do indígena, olhos levemente puxados, cabelos lisos e negros, e de cor
que poderíamos associar com a da cuia do chimarrão. Os alunos freqüentam as aulas para
nenhuma surpresa com roupas “ocidentais”, o fato que chama a atenção é o calçado, em
maioria não o usam, usam chinelos e sempre se esquecem deste quando algo mais interessante
os chama atenção, portanto o caminhar de pés de calços das crianças na escola e na aldeia é
algo normal do grupo. E os profissionais da escola em nada reprimem esta atitude. Os
materiais escolares utilizados pelas crianças são simples, a maioria, não usa mochila chegam à
escola somente com um estojo e com o caderno de aula14. A respeito dos materiais
necessários para os alunos na escola, o cacique da comunidade em conversa ressaltou a
importância das crianças não precisarem estudar em escolas fora da aldeia, pois se isso
acontecesse os moradores teriam dificuldades para manter os gastos necessários, tais como,
mochila, caderno, tênis, calças e camisetas da “moda” ocidental, artefatos que são
implicitamente “obrigatórios” nas escolas não indígenas, pois ali os alunos indígenas estarão
expostos como diferentes e além da dificuldade de falarem o português não querem sofrer o
preconceito que o índio sofre quanto as suas vestimentas, sua língua e seu modo de viver, eles
tentaram se aproximar o máximo possível, ou seja, se fantasiarão de “brancos” para serem
aceitos pelos colegas e/ou até professores ou simplesmente passarem despercebidos diante dos
demais alunos não índios. Este fato revelado pela liderança da comunidade dá legitimidade
para a existência da escola e mostra uma das facetas que a educação diferenciada para os
indígenas é necessária e importante para a manutenção da cultura destes povos.
Durante o período de observações foram realizadas importantes ponderações sobre o
comportamento dos alunos em sala de aula e a relação com os professores. Em ambos os
turnos, os estudantes ficam organizados conforme a posição habitual das classes do modelo
ocidental, enfileiradas uma atrás da outra com suas respectivas cadeiras, sobravam sempre
algumas classes que estavam empilhadas no canto da escola, os professores chegavam sempre
sem material em mãos, durante a exposição da matéria no quadro os alunos levantavam de
suas cadeiras e se aproximavam do quadro a todo o momento para sanar alguma dúvida em
relação à escrita do conteúdo ou para perguntar o que significava alguma palavra. Ambos os
14
Este fato se explica pela localização da escola próxima a casa dos alunos.
47
professores não demonstravam insatisfação com a inquietação dos alunos nas cadeiras, essa
inquietação não incomodava o andamento da aula, pois somente se levantavam em função de
dúvidas e não causava alvoroço nos demais alunos, não gerando desta maneira a famosa
bagunça. Além de se levantarem para sanar dúvidas, por vezes eles saiam da sala de aula, na
maioria das vezes era para logo voltar à aula, quando isso não acontecia o professor que
estava atento ao aluno que saiu dava uma espiada pela porta da escola para ver o que havia
acontecido tentando saber onde o aluno estava. Quando este voltava e era sabido que tinha se
afastado da aula para brincar com amigos o professor lhe repreendia com palavras fortes
sempre ditas em kaingang15.
Nas duas turmas são encontrados contextos um pouco diferentes, na turma da manha,
onde estudam os alunos do 1º e 2º anos estes têm idade em torno de seis a nove anos estes vão
para a escola praticamente falando somente a língua Kaingang, o professor durante as aulas
fala somente o Kaingang raramente fala em português, pois os alunos têm bastante
dificuldade no entendimento. Na turma da tarde encontramos outro cenário, os alunos já são o
que poderíamos chamar de bilíngües, falam a língua kaingang e o português, nos anos que são
ofertados eles têm as disciplinas especificas do currículo, entre estas está incluída a língua
Kaingang, tivemos a oportunidade de observar uma aula de kaingang e notamos que os alunos
são falantes da língua, na escola eles são apresentados ao mundo da escrita. Muitos não
identificavam o som que falavam com o significado dos símbolos escritos do alfabeto, são
falantes, mas a escrita e a leitura são introduzidas na escola a partir do 3º ano do ensino
fundamental na escola da aldeia. Para fixar à escrita e a leitura em Kaingang, na escola estão
colados cartazes com palavras em kaingang e o alfabeto da língua fica pendurado em uma das
paredes da escola. A aula de Kaingang foi expositiva e dialogada, no primeiro momento o
professor mencionou as vogais, depois as consoantes, após o alfabeto por completo. Fez com
que os alunos participassem da aula os pedindo para que um a um falassem uma letra do
alfabeto, os corrigindo quando necessário, após varias rodadas pelo alfabeto mencionou
alguns exemplos diretamente ligados à realidade do grupo para significar o aprendizado
letrado da língua com a fala. Exemplificou com as palavras: casa, cunhado, árvore, milho,
branco, chapéu, flecha, pedra, sol, cabo, cachorro e etc. Como exercício avaliativo no final da
15
Quando falo de repressão aos alunos que “aprontavam” em palavras em Kaingang pode se dar pela minha
presença em sala de aula, ou também pelo costume de se comunicar na língua ancestral.
48
aula o professor passou uma série de palavras em kaingang no quadro pedindo para os alunos
colocarem o significado destas em português.
Sobre o fato dos alunos indígenas serem falantes da língua kaingang e terem certa
dificuldade com a língua portuguesa nos primeiros anos do ensino escolar pode-se constatar
que é um processo educativo não formalizado da comunidade, o aprendizado da língua
kaingang acontece no contato com os pais, seus parentes, vizinhos, toda a comunicação da
comunidade acontece em kaingang é um elemento identitário relevante que constitui a criança
indígena desde sua concepção.
Portanto quando estes alunos que somente falam a língua materna chegam à escola é
necessário que os profissionais sejam falantes da língua, é o que acontece na escola da aldeia.
O professor do turno da manhã, que tem formação somente no ensino médio, fala a língua
perfeitamente e nas observações realizadas neste turno constatamos que o desgaste do
profissional é muito maior do que nas escolas não indígenas, o professor tem que atender as
duas séries em somente uma turma, explicar coisas diferentes e acompanhar os processos dos
alunos. Pode-se dizer que a formalização destes processos pela instituição “escola” faz com
que parte do que se chama de educação diferenciada esteja sendo colocada em prática na
comunidade em que se realizou a pesquisa.
Muitos aspectos podem ser levantados sobre observações realizadas na escola da
aldeia mostrando que essa instituição introduzida pelo mundo ocidental aos costumes
tradicionais indígenas que por muito tempo foi, e em determinados lugares ainda é, usada para
introduzir e posteriormente fazer com que os povos indígenas se integrassem totalmente ao
modo ocidental moderno de vida do “branco”, está sendo utilizada pelos Kaingang de São
Leopoldo da maneira que a enxergam como mais útil, desta maneira a utilizando para a
reprodução de seus costumes entre os mais jovens e buscando novos significados para a
modernidade. Um aspecto importante que mostra a apropriação do espaço escolar pela
comunidade em seu entorno é a forma como os professores da escola relacionam os processos
de aprendizagem dos alunos. Aos professores perguntei se a organização curricular das
séries/anos16 era trazida pela escola a qual pertence à escola da aldeia, me relataram que
16
Coloquei séries/anos, pois somente neste ano a escola da aldeia está começando a se adaptar a nova
nomenclatura.
49
participam esporadicamente de algumas reuniões, as que são chamados, para elaborar
algumas coisas, mas nem sempre participam, pois a proposta pedagógica que querem
introduzir a eles é o modelo do “branco” e esse modelo não serve aos interesses dos índios.
Mencionou que segue um plano curricular genérico para os povos indígenas e faz uma
mistura com a proposta pedagógica do “branco”, ficando 50% de proposta ocidental “branca”
e 50% de proposta indígena, na atualidade a escola da aldeia por ser juridicamente vinculada à
outra escola17 não tem autonomia para criar oficialmente um Plano Político Pedagógico
(PPP)e, enquanto não ser oficialmente criada a Escola Indígena, a organização dos conteúdos
será organizada da maneira exposta sem alterar a rotina da comunidade.
É importante o destaque para determinadas situações acontecidas durante a pesquisa
para o real entendimento da relação da comunidade Kaingang com alguns elementos
introduzidos pelo mundo ocidental à tradição indígena. Um elemento forte de fácil
identificação entre os Kaingang é o respeito pelos mais velhos, como geralmente é costume
entre os povos indígenas, esse respeito é alimentado na rotina escolar, um exemplo é o fato
dos professores da escola serem chamados de “tio” pelos alunos. Esse ato em qualquer escola
não indígena é reprimido nas crianças desde os primeiros anos da escolarização, na aldeia não
percebi incomodo com isso, em entrevista com o professor do turno da tarde me relatou que
os indígenas têm outra visão a este fato:
É que na verdade pra nós não existe professor, na nossa linguagem não existe, mas
esse ser inteligente é o respeitado desde parentes assim, ou desde mais velhos por
isso que nós interpretamos o mais velho então o „tio‟ ele tem um vivencia e um
conhecimento para ensinar eu mais novo, vamos dizer né, então vai ser o tio. E é
questão de organização né, a pessoa mais velha é o tio, o avô é o livro de história da
comunidade então é por aí que a gente vai acolhendo as pessoas pela questão do
respeito. Então ser tio é ser o segundo pai, que o segundo pai na escola é o professor,
e o tio vem a ser o segundo pai. Então isso pra nós é aceito, porque também pelas
marcas tribais né, muitas vezes os alunos chama a gente de irmão que tem a mesma
marca minha, e muitas vezes de cunhado né que a menina que é da minha marca
contrária ela é minha cunhada.18
Como ressaltado pelo professor entrevistado a educação para os indígenas,
especificamente os Kaingang, o adulto é visto como o detentor de uma sabedoria,
conhecimento acumulado, que pode ensinar para os mais jovens estes conhecimentos. Nesse
contexto aparece a figura da escola que por si mesma não altera essa estrutura de
17
Quanto à escola à qual “pertence” a escola na aldeia, o Projeto Político Pedagógico da escola não foi alterado
após o surgimento da demanda pela educação indígena. A equipe diretiva justifica que não foi dado suporte para
a mesma no “trato” com a diferença cultural que ali se colocava como desafio.
18
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
50
responsabilidades, o adulto que ensina na escola é sim o tio, primeiro por ser um adulto
Kaingang e por poder de fato ser tio da criança devido ao sistema de metades kaingang. Então
para o kaingang o tio é a pessoa que tem sabedoria para transmitir.
O professor do turno da manha segue no mesmo caminho colocado no trecho acima,
mas destaca o fator costume:
Eu vejo normal assim né. Porque que a nossa aldeia é pequena né e tem aquele
costume né os pais dizer que as pessoas mais velhas as crianças tem que chamar de
tio, os mais velhinhos tu tem que chamar de vô. Ali nem que tu não é parente
chegado, mas eles chamam você de tio ou é costume né. Já desde pequenos né, aí eu
acho normal as crianças me chamarem de tio, aí tem uns que me chama de professor,
mas eu acho normal né. Eu não acho tão diferente assim.
O costume evidenciado na fala do professor também pode ser ressaltado a
incorporação do costume ocidental do respeito, mas é contraditório com a visão do ocidente
quando esse fato se estende até a escola na aldeia. Porque a escola sempre foi colocada como
uma instituição de neutralidade responsável pela formação do cidadão.
Outro fato que mostra a apropriação da comunidade a alguns artefatos materiais
ocidentais é o não reconhecimento do “branco” como superior. Durante o período da
pesquisa, como já mencionado acima, estavam sendo construídas na aldeia algumas casas
para os indígenas devido a um acordo com a Caixa, os objetos deixados pelos construtores das
casas, tais como: carrinho de mão, caminhão no meio da comunidade, pá de pedreiro; todos
esses materiais eram carregados pelas crianças caso esquecidos por longo tempo. O caso do
caminhão foi clássico, este estava parado na frente da escola durante uma aula do turno da
manha, os alunos saíram para o intervalo e após o lanche se colocaram para brincar, a
primeira coisa diferente que encontraram foi o caminhão, logo subiram na caçamba deste,
levaram cadeiras para cima, pulavam, dançavam e o professor e a merendeira da escola
somente observavam para garantir que nenhuma criança se machucasse.
Além dos elementos de fora da aldeia que as crianças se apropriam como espaço de
brincadeiras e aprendizado com o diferente é visível na comunidade a colaboração das
crianças no trabalho com o artesanato, junto com seus pais e irmãos as crianças participam da
produção de cestos, casas de passarinhos, bolinhas de bambu. O trabalho das crianças não
segue a lógica de mercado ocidental capitalista, elas não são cobradas pelos seus pais, elas
junto deles fabricam algumas peças, destroem as mesmas após a fabricarem. Desde cedo ao
contrário do que é relevante nas famílias tradicionais ocidentais, as crianças indígenas,
51
enquanto fabricam os cestos, estão com facas nas mãos isso significa que o trato com objetos
vistos como “perigosos” por nós “brancos” para eles é visto como aprendizado e coloca na
criança uma responsabilidade com o instrumento.
Nas observações foi constatada a liberdade das crianças para suas brincadeiras, elas
brincam em toda parte da comunidade, e por vezes na frente desta, este elemento constitui um
elemento que parece central para os Kaingang a responsabilidade da comunidade com a
criança, pois uma vez que por proximidade ou não todos os moradores da aldeia são parentes
e logo o dever de zelar pela integridade física e moral da criança é de responsabilidade da
comunidade e não somente dos pais ou parentes ligados diretamente. Isso ressalta aquilo que
foi colocado pelo professor da escola da aldeia, que não somente por ele estar na posição que
atualmente ocupa a de “professor”, que é responsável pela criança, antes deles ser professor
ele é Kaingang morador da aldeia Voga em São Leopoldo, e por isso é responsável pelos
menores de sua comunidade.
Entre as crianças, assim como o grupo de moradores em geral da aldeia, falam a língua
Kaingang. Esse fato é evidente, os kaingang se afirmam diante de nós “brancos”, não
kaingang, através da linguagem. Quando os professores e a liderança da comunidade querem
que nós não saibamos de algum assunto, ou mesmo quando querem fazer alguma brincadeira
conosco e não querem que saibamos a fazem na língua ancestral, pois não a conhecemos. Na
pesquisa aconteceram diversas situações que entre os falantes da mesma língua poderiam ser
consideradas constrangedoras, mas principalmente após já realizados muitos contatos com os
moradores da aldeia eles nos vêem como “amigos” e se permitem realizar algumas
brincadeiras. Obviamente que após muitos contatos com a língua Kaingang sabemos
identificar o significado de algumas palavras, mas jamais no curto período da pesquisa
sairíamos com o domínio deste idioma.
52
4 A ESCOLA PARA OS KAINGANG EM SÃO LEOPOLDO
Durante todo o período de pesquisa com os Kaingang podemos tirar algumas
interpretações destes sobre o espaço escolar, e propriamente em sua visão seria educação que
sem dúvidas foge do nosso olhar interpretativo ocidental moderno. A responsabilidade pela
constituição do adulto Kaingang passa por uma totalidade que no enxergar do “branco” é uma
tarefa desnecessária.
Como ressaltado no inicio deste trabalho os povos indígenas sempre tiveram processos
educativos na sua organização social. Tais se constituem do aprendizado da língua materna,
do reconhecimento da organização tribal, do aprendizado para o trabalho com o artesanato, e
outros processos já referenciados em mais detalhes. A escola como instituição ocidental, por
muito tempo serviu para desconectar os povos ancestrais de seus costumes tradicionais,
começando pela catequização como forma de domínio que fortaleceu o extermínio da língua
original desses povos.
No entanto nos últimos anos, a partir da promulgação da Constituição Federal
Brasileira de 1988, os povos indígenas, ao contrário do que anteriormente, são reconhecidos
em sua organização social, sua língua é respeitada, seus costumes e sua maneira de viver são
protegidos em artigos da constituição. Os povos indígenas têm o direito de serem ouvidos nos
processos que envolvam a regulamentação, alteração, extração ou mesmo remoção de parte
ou totalidade de seu território.
No que diz a respeito da educação, a legislação está avançada se compararmos com
períodos anteriores. Especificamente no caso da comunidade localizada em São Leopoldo,
constatamos como evidenciado no capítulo anterior que existe uma escola na aldeia, com
professores e funcionários indígenas, no entanto a autonomia desta é inexistente, pois é
vinculada a uma escola estadual próxima da aldeia. A autonomia identificada é o descaso da
equipe diretiva e do governo do Estado do Rio Grande do Sul quanto a estrutura da sala de
aula, ao corpo de profissionais que foram incumbidos de subsidiar a instituição escolar na
aldeia.
Os professores e funcionários da aldeia são dedicados em seu trabalho, e notamos que
o restante da comunidade se envolve na escola. Quando precisam de reparos, conforme
53
informações da equipe diretiva da escola, os indígenas pedem o material necessário para a
escola à qual são vinculados e os mesmos realizam a reforma. A elaboração do calendário
escolar é feito pelos professores índios, sem imposição direta da escola à qual “pertencem”,
segundo os professores indígenas são convidados para a participação de reuniões pedagógicas
que se propõem a discutir o currículo e o calendário escolar, mas não comparecem, pois a
postura da gestão da escola é sempre de não entendimento quanto a suas diferenças e visões
sobre a educação.
É importante destacar que na aldeia foram identificados três discursos diferentes, os
entrevistados foram os dois professores e a liderança da comunidade. Os professores tiveram
respostas diferentes e o cacique foi totalmente ao oposto do caminho direcionado por ambos
educadores. Analisaremos trechos de cada um dos discursos para tentar identificar, desta
maneira, a origem e qual a perspectiva do interlocutor a partir da escola.
As entrevistas foram realizadas em dias e horários diferentes, para os professores foi
aplicada a mesma série de questões de caráter semi-estruturado, deixando assim, o
entrevistador com liberdade para realizar alguma questão que não estava prevista. Ou mesmo
eliminar alguma pergunta que por ventura já tenha a resposta contemplada pelo entrevistado.
Para a liderança da comunidade Kaingang as perguntas foram diferentes dos professores.
Realizaremos então um apanhado de respostas sobre algumas perguntas. A primeira
delas foi “o que tu acha da escola dentro da aldeia?”. Essa pergunta foi aplicada aos
professores indígenas, o professor do turno da tarde respondeu o seguinte:
[...] agora ela tá servindo a comunidade. Porque no inicio né, quando a escola veio
pra dentro da aldeia ela prejudicou né a cultura, a língua, a proposta pedagógica,
diferente né. Vindo pra uma outra proposta pedagógica diferente e organização
diferente, então nesses lado ele prejudicou um pouco, mas com o passar do tempo a
gente foi concertando, acertando, entendendo a política dessa instituição e que hoje a
gente adéqua essa realidade para a nossa realidade, então agora a gente tá
aproveitando ela. As propostas boas né! Trabalhando essas propostas, passando
essas oralidades pras escritas, registro e enfim tudo que é bom, que é ligado a uma
educação escolar estamos fazendo essa transição, mas muita coisa ainda permanece
na oralidade né, que não atingimos ainda a escrever, a registrar, muitas oralidades.
Por que assim muitas coisas de oralidade a gente não consegue traduzir e escrever
ela, porque a língua né, a língua a gente muitas vezes não consegue a tradução dele,
a linguagem desse povo que tá vinculado a instituição escolar eu acredito que nem
todos vão conseguir registrar. Mas muita coisa dá para você aproveitar sim dessa
instituição, inclusive.19
19
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
54
O professor ressalta a importância de pensar a escola diferente dentro da aldeia,
ressalta o aspecto histórico que essa instituição tem com os povos indígenas, que por muito
tempo destruiu culturas e serviu para interesses escusos aos indígenas. Ressalta o ensinamento
da escrita da língua indígena, pois anteriormente, com a proposta da escola de assimilar os
indígenas a língua era menosprezada, hoje, existe um esforço para a reprodução desta na
escola indígena, e, sobretudo, o ensino da escrita em língua indígena, o que sem dúvidas
revela o aprimoramento da escola as demandas dos povos indígenas.
O professor responsável pelo turno da manha, da escola da aldeia, para a mesma
pergunta “o que tu acha da escola dentro da aldeia?”, responde sobre um aspecto mais local:
O que eu acho? Eu acho, eu acho que sim, bom né, a gente trabalha com as mesmas
crianças né que são daqui, a gente já é acostumado a trabalhar com eles né, a gente
se entende um ao outro né, eu acho bom. Trabalhar com as crianças daqui. Esses
anos que eu to trabalhando com eles, eu, cada vez mais to gostando né.20
A localidade e proximidade é o foco de entendimento para a fala do professor, acima
citado, ele enfatiza a proximidade e o conhecimento das crianças. Isso revela que tendo uma
estrutura preparada para a demanda da aldeia o ensino escolarizado pode ter resultados
surpreendentes, pois os professores já conhecem os alunos e vice-versa o que sem dúvidas
facilita o aprendizado.
Outra pergunta que sem dúvidas é importante de analisarmos com cuidado, e para os
povos indígenas é essencial para a reprodução cultural, perguntamos, “Porque ensinar
Kaingang na escola?” aos dois professores indígenas e tivemos as seguintes respostas,
primeiramente a resposta do professor do turno da tarde:
A gente tem que fazer o currículo pra essa escola, a gente tem que fazer uma
proposta pra essa escola, trabalhar inclusive a língua né, porque a língua ela é uma
garantia de um povo, de uma etnia. A língua, a crença, a cultura então ela é
importante para essas coisas. 21
Do professor do turno da manha tivemos a seguinte resposta:
Ensinar pra gente, pra eles não perder a cultura né. E é também porque hoje em dia
os rapaz novo, esses guri que estão estudando assim para conseguir um emprego
aqui dentro da aldeia, tem que saber a escrita, sabe escrever em kaingang, saber ler
20
21
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
55
em kaingang, para poder conseguir senão o estado não contrata para trabalhar aqui
dentro da aldeia. Só se consegue fora né, mas lá fora você tem que estar concursado,
tem que está formado com a faculdade para poder contratar né. E aqui dentro da
aldeia sabendo falar, escrever em Kaingang já contrata né. 22
Ambos os professores caminham pelo mesmo caminho, o de preservar a cultura
Kaingang, o professor do turno da tarde continua pensando concomitantemente com a sua
resposta a primeira resposta a de elaborar para essa escola na aldeia uma proposta de ensino
diferenciado que ensine a língua do povo com conteúdos regulares. O professor do turno da
manha pensa no mercado de trabalho junto da preservação cultural, evidenciando que para o
indígena trabalhar dentro da aldeia deve necessariamente falar e escrever em Kaingang e
trabalho para o índio fora da aldeia coloca como mais complicado.
O mesmo caminho de reprodução cultural segue a liderança da comunidade, o cacique,
em entrevista, que infelizmente não pode ser transcrita23, relatou que além do ambiente
familiar vê como positivo na escola professores e alunos falarem e estudarem o Kaingang,
pois desta maneira, o povo indígena ganha mais legitimidade diante das autoridades para
reivindicar seus direitos.
Os professores e a liderança indígena da comunidade Kaingang Voga de São Leopoldo
foram perguntados sobre o seu processo de escolarização, de que área indígena são naturais,
se estudaram em escolas em aldeias e como foi essa experiência. O depoimento escolhido
para constar neste trabalho foi o do professor do turno da tarde que sem dúvidas mostra como
realmente houve um esforço do governo federal em deslegitimar os processos educativos
indígenas e impor métodos desconexos com sua realidade:
Eu estudei em uma escola dentro da aldeia né, que aquele tempo ele pertencia, era
as escolas eram federal né. Então quem comandava as escolas, a educação nessa
época era a FUNAI, mas eu não estudava direito né, porque naquela época que eu
iniciei os meus estudos na escola era na época do SPI, então tinha aquele dito
trabalhos coletivos, então esse grupo de índios eles comiam no panelão foi naquela
época, daquele projeto do desenvolvimento da agricultura então meus pais não
queriam trabalhar coletivo assim, come mal no panelão, que era comida mal feita né.
Então nessa época as crianças que tinham idade de ir para a roça ia para a roça me
parece que eles não estavam dando valor para a educação escolar. 24
22
23
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
A entrevista não pode ser transcrita, pois no momento da entrevista estávamos ao lado de uma betoneira que
dificultou a obtenção do áudio da gravação.
24
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
56
Os dois indígenas Kaingang entrevistados, o cacique e o professor responsável pelo
turno da manha, responderam que são naturais da terra indígena de Nonoai. O professor do
turno da tarde tem a origem na terra indígena de Votoro. No relato acima, podemos perceber
que as escolas nas aldeias eram de responsabilidade da União, como já explicitado no inicio
deste trabalho, que aplicava métodos de ensino com vistas a sua integração nacional.
O relato evidencia que as escolas não eram relevantes para os indígenas, pois não
enxergavam nela um referencial de mudança e desenvolvimento de seu povo. As escolas nas
aldeias da época não se atrelavam aos interesses dos indígenas, como explicitado, muitos pais
preferiam trabalhar na roça individualmente a se submeter às ordens dos funcionários
federais.
Na fala do professor indígena podemos tirar algumas conclusões, a má administração
federal das áreas indígenas na década de 60, 70 e 80 fez com que os indígenas criassem certa
repugnância aos trabalhos coletivos, que anteriormente eram à base de sua sustentação. É
identificado pelo professor que a comida coletiva administrada pela União era de má
qualidade e o trabalho coletivo era extremamente explorador e sem resultados. De alguma
maneira isso pode justificar, hoje, a ausência de elementos de produção coletiva em
abundância entre os indígenas.
A cultura se modifica de acordo com o significado que a damos aos elementos da vida
social, como relatado acima, a administração federal nas décadas de 1960, 1970 e 1980 fez os
indígenas criarem ojeriza aos trabalhos coletivos. Esse fato revela, por exemplo, o porquê das
igrejas católicas perderem espaço nos últimos 30 anos nas comunidades indígenas para as
igrejas pentecostais. A relação é interessante e se evidencia na diferente doutrina das igrejas a
católica se solidariza com a questão do todo, da comunidade. A pentecostal reflete também a
questão da comunidade, mas sua ênfase recai, sobretudo, ao indivíduo.
Neste contexto a escola passa a ter um papel decisivo para a manutenção e reprodução
da cultura kaingang na contemporaneidade. Com isso perguntamos aos professores indígenas
como é organizado o currículo da escola, qual a distribuição das matérias, responderam da
seguinte maneira:
57
A escola ela ainda não tem uma definição de currículo e nem de proposta
pedagógica, mas nós temos um currículo com um proposta pedagógica feito para
todas as escolas indígenas e foi feito em 1998 parece, então a gente, a gente trabalha
em cima dessa proposta, daí a gente introduz né a proposta normal, casa as duas e
desenvolve. [...] É matemática normal, matemática Kaingang, geografia normal,
geografia Kaingang, línguas (português e Kaingang), ciências assim dos livros
didáticos brancos e ciências Kaingang. E é assim que a gente trabalha, a história, a
história contada pelos brancos, a história contada pelos índios. Daí a gente vai
casando as duas propostas. E vai trabalhando. 25
Segundo o professor entrevistado o currículo da escola na aldeia, é dividido entre os
conhecimentos ocidentais e os conhecimentos tradicionais indígenas. A fim de compreender
melhor, como são a matemática e a geografia Kaingang, pedimos mais informações sobre a
diferença dos conhecimentos, e nos respondeu da seguinte maneira:
Ela diferencia, não tanto ela fica meio próximo assim né, só que a nossa matemática
ela não é escrita, ela fica muito na prática, muito na oralidade e muito assim no
próximo né. Antigamente eles contavam assim, através de objetos, para mostrar uma
quantia tipo, tipo vinte era vinte palito né, era mais ou menos isso e nós não temos
nossos números né, nossos números só vão até cinco, e por extenso. Não temos um
código que diz numero um, numero dois, e a quantia é mais ou menos próximo
assim né, por exemplo em uma turma de crianças de vinte alunos, quando veio
todos, então veio tudo, todos estão presentes. E se veio 15, a gente interpreta que
veio quase toda a turma. E quando veio pouco mais da metade, 12-13, a gente diz
que tinha bastante e quando veio 10 daí diz que veio a metade que é xxxx, e quando
veio menos da metade a gente diz xxxx que significa um, mas esse um quer dizer
que veio menos da metade, não por que veio um veio menos da metade era poucos.26
A diferença que o professor quer ressaltar no exemplo acima é a passagem tradicional
do aprendizado, que se modificou, passando da oralidade para a escrita. A matemática, assim
como os ensinamentos tradicionais Kaingang, sempre foi passada pela oralidade, como
evidenciam Salvaro e Nötzold:
[...] o ensinamento da tradição Kaingáng baseava-se na oralidade, onde se passava
de geração para geração a cultura e tradição do povo, como a língua materna, o
artesanato, os mitos e lendas, o aprendizado de ervas medicinais dentre outros que
eram aprendidos na prática através da observação e da comunicação oral.
(SALVARO; NÖTZOLD, 2007, p. 2)
Os resultados encontrados por Salvaro & Nötzold não se distanciam daquilo que foi
observado entre os Kaingang em São Leopoldo. Os indígenas kaingang, e por certo também
acontece com as demais etnias, estão se apropriando do conhecimento ocidental como já
25
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
26
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
58
destacado nesse trabalho para repassarem seus conhecimentos tradicionais, principalmente a
escrita:
A escrita agora é utilizada para que a oralidade seja registrada, sendo assim, através
de material didático e outros materiais podem repassar para as gerações futuras
aquilo que eles não tiveram conhecimento e convívio. Portanto percebemos tanto na
escola como no dia-dia que a oralidade ainda está presente, pois a centralidade da
oralidade também se dá devido ao respeito pelos mais velhos, que são considerados
os mais sábios e com maior conhecimento, além do que a oralidade tem sua função
social [...]. (SALVARO; NÖTZOLD, 2007, p. 3)
A passagem se aproxima bastante com o que observamos na comunidade Kaingang
Voga, em São Leopoldo. Na continuidade buscamos com os professores maiores informações
sobre o calendário escolar, quais datas eram “comemoradas” ou não pelos indígenas, o
professor indígena, responsável pelo turno da tarde, respondeu:
[...] como a gente tá vinculado numa instituição que já tem uma proposta pedagógica
pronta né, cronograma e calendário, aí eles querem que a gente segue aqui, mas é
assim o que é bom pra eles não é bom pra nós, muitas coisas claro que é bom né.
Mas não casa com a nossa realidade, a gente convenceu essa outra escola, essa outra
diretoria para que nos fizesse do nosso, da nossa organização né, que o nosso
calendário é diferente, então muitas datas que eles comemoram pra nós não tem
nenhum significado, muitas vezes ela é contrária a nossa realidade né. Por exemplo
a data do descobrimento do Brasil, 21 de abril, Tiradentes essas coisas ali né. Então
pra nós não tem nenhum sentido então, por exemplo sete de setembro pra nós não
existe isso, Então quem são eles para obrigar nós né! [...]O hino nacional também
né....canta o hino nacional nós temos eu tenho muita critica né. [...]então são coisas
diferentes né, então no lugar dessa proposta a gente introduz outras coisas
interessantes né, da proposta pedagógica branca é aquilo que eu disse o que é bom a
gente trabalha, o que não é bom a gente não trabalha substitui. Por que no nosso
mundo tem muitas coisas interessantes pro nosso povo que se nós der atenção para
outras proposta já não consegue trabalhar todos esses outros valores, das coisas
interessantes do povo. Então é isso que a gente tem que trabalhar para as crianças
índias entender e dentro dos valores trabalhar muito forte o que quer dizer índio, por
que ser índio, qual é a importância, qual é o interessante ser índio, é interessante ser
índio não essas coisas aí né. Então no momento que a criança descobriu seus valores
ela se dá valor enquanto isso ela não se dá valor, ela acha bonito as outras etnias as
outras crenças as outras culturas, tradições, cultura essa cultura é muito perigosa né
para qualquer etnia no momento que saí assim um calçado famoso e aí essas outras
cultura entram tudo pro nosso lado da cultura né. Eles acham uma roupa bonita, aí
acabam gostando, acabam botando e não é que é proibido né, mas eu tenho que já
saber tudo sobre a vida dele ele tem que saber o valor dele. Por que se eu colocar
uma roupa de marca um calçado de marca, nem que eu tenha aquela roupa eu não to
naquela cultura, mas eu não deixo de ser uma etnia, não deixo de ser índio né, a
identidade é uma coisa que tu não consegue mudar, muitos diz, não eu vou mudar
minha identidade, mas tu é sempre a mesma pessoa é assim quando falo de
identidade não falo desse documento mas identidade étnica e corporal também né,
porque hoje o Brasil é assim né a identidade das pessoas ela tá muito solta não tem
um, uma lei que exige tu é daquela identidade e tu tem que se identificar daquele
jeito, como tu é tu se identifica. Hoje tu identifica do jeito que tu quiser, por
exemplo, eu sou índio e eu tenho o direito de dizer não eu sou mais da parte branca
né, sou gaucho, sou isso sou aquilo, me identifico do jeito que eu quero e a lei me
permite. Mas só no Brasil isso né, nos outros países já é diferente, Tu é o que tu é. 27
27
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
59
A resposta do professor deixa claro, o que já explicitamos no capítulo anterior, apesar
da escola não ser juridicamente autônoma, os professores indígenas elaboram o currículo e
seguem um calendário independentes das formulações da escola a qual estão vinculados.
Algumas datas, por obviedade, não teriam nenhuma relação com a realidade e a história dos
povos indígenas, tal como o “descobrimento do Brasil”.
Nesse contexto, fica evidenciada a necessidade da conquista efetiva da autonomia dos
indígenas Kaingang sobre a escola localizada na aldeia em São Leopoldo. Os professores
indígenas têm determinada liberdade na elaboração de seu calendário escolar, devido ao
pouco caso que a equipe diretiva da escola, à qual a escola da aldeia é vinculada, faz dos
indígenas.
Na escolha dos conteúdos e das datas que devem ser ou não “comemoradas”, o
professor deixa claro em sua fala que sua intenção na escolha de determinado conteúdo é
ensinar as crianças kaingang os valores e sabedorias de sua cultura. Dessa forma, valorizando
e ressignificando sua prática. Enfatizando o ser Kaingang na atualidade que “não está em sua
aparência do vestir, da assimilação da língua portuguesa e sim na concepção de mundo, na
valorização de sua identidade cultural, [...]” (NÖTZOLD, 2004, p.42).
Sobre o aspecto da autodenominação da identidade, o professor critica esse fato, pode
estar relacionado ao encantamento que alguns indígenas têm pelo mundo do ocidental e
queiram se identificar como “brancos” ou “negros” escondendo sua origem indígena. Esse
fato pode acontecer pelo preconceito que muitos índios sofrem devido aos já explicitados
conceitos criados para inferiorizarem, tais como: vagabundos, baderneiros, animais e etc.
Esses preconceitos devem ser superados com a apropriação dos conhecimentos
ocidentais em consonância com os tradicionais Kaingang para serem enfrentados e
desconstruídos. A apropriação não se dá em outro lugar do que na escola da aldeia, que em
uma proposta diferenciada trabalha ambas culturas. Nesse sentido um fato que merece
destaque é a avaliação dos alunos, os professores indígenas kaingang respondem da seguinte
maneira:
[...] eu sempre gostei de trabalhos né, dá um trabalho de coisas assim que a gente
trabalho dentro de um tema geradora, dentro de um tema geradora e aí pega aquilo e
60
dizer pra criança fazer uma dissertação descritiva de tudo o que a gente trabalhou o
que ele memoriza, ou através do caderno o que que ele, qual é a importância do que
ele fez devolver o que ele aprendeu, aí o que ele não apreendeu já ajuda o professor
a retomar, eu penso assim, eu sempre gostei de fazer isso. Ó faz um texto sobre tal
coisas, umas coisa que a gente já desenvolveu né pra ver se ele entendeu ou não
entendeu essa é a questão descobrir se o aluno entendeu se aquela atividade que a
gente desenvolveu durante as aulas né, fazer tipo um texto juntando tudo essas
coisas tu sabe o que ele apreendeu e o que ele não conseguiu, porque se ele não
devolve o que apreendeu é sinal que ele não apreendeu. Então através desse trabalho
a gente descobre o que tem que retomar, o que tem que aprofundar. Eu penso assim.
Porque responder questões assim...Também é uma forma, mas em vez que o aluno
na hora mesmo se esquece já a palavra prova assusta e quando se assustou não faz
mais nada. 28
A resposta acima foi concedida pelo professor Kaingang responsável pelo turno da
tarde, que compreende o 3º, 4º e 5º ano. Vemos que a avaliação do professor presa pelo
significado dos conteúdos para os alunos, ou seja, daquilo que realmente aprenderam.
Deixando espaço para os assuntos que tiveram pouca relevância para o estudante de serem
retomados e aprofundados.
Com o professor responsável pelo turno da manha, que abrange o 1º e 2º ano fizemos a
mesma pergunta, resultando a seguinte resposta:
Eu observo eles né, pelas leituras essas coisas né pelas coisas os trabalhinhos que
eles fazem a gente já vai avaliando, a gente sabe quem é que se comporta melhor,
qual é que respeita os coleguinhas e etc. É assim que eu faço as avaliações né. É que
eu to alfabetizando né ali o aluno que já está pronto pra ser promovido, tem que
saber ler, fazer uma frasezinha e sabendo decora aquele ele já está sabendo né. Aí
ele sabendo separar a silaba, ele já está pronto né. Já está alfabetizado. E é assim que
eu faço.29
A turma que tem aula no período da manha é de menor idade. E as crianças passam
pelo primeiro processo de educação formalizada. O objetivo do professor é que em dois anos
as crianças estejam alfabetizadas em português. Elas vêm de casa falando praticamente
somente a língua Kaingang. Nas observações foi constatado o esforço que o professor faz para
poder atender todos os alunos neste turno. Pois apesar deles somente falarem kaingang vêem
no professor, no “tio”, uma referência de conhecimento, para aquilo que para eles é um
universo completamente novo.
28
Entrevista concedida a Diego Severo em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
29
Entrevista concedida a Diego Severo em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
61
Na continuação quanto ao funcionamento que os professores indígenas dão à escola na
aldeia Voga, em São Leopoldo. Perguntamos se na escola havia repetência entre os alunos. O
professor do turno da tarde respondeu:
Sim tem repetência, mas tem repetência pro aluno que não deu atenção para o que
fez, na verdade não é tanto a freqüência porque as vezes o aluno falta por
necessidade, pois ele tem boa vontade então esse aluno não pode ser prejudicado por
que no futuro ele vai te um rendimento bom. A repetência é aquele aluno que só
levou na brincadeira e não deu atenção para o que fez, não participou então esse
merece a repetência né para mostrar para ele que as coisas não é brincadeira. 30
Entendendo a fala do professor sobre a repetência fica evidente que o contexto social
do aluno é identificado e analisado pelo professor no momento da decisão de repetência ou
não. Ele analisa se o aluno é esforçado em aula e seus pais necessitam de seu auxilio na venda
de artesanatos ou qualquer outra base de sustento, o aluno é aprovado. Existe a reprovação
nos casos de alunos que levam a aula na “brincadeira”, sem compromisso com sua formação.
O professor indígena responsável pelo turno da manha respondeu:
Sim, tem uns que repetem. Tem uns aí, eu acho uns dois três alunos que eu acho que
já repetiram umas três vezes já. E o problema das crianças não sei se não é os pais
orientarem também né, porque tem aluno, mesmo nesses anos que eu to trabalhando
acho que é normal né as crianças, a gente vê pelo jeito da criança que quer apreender
né e aquele que não quer apreender nem, que nem agora ainda falei pra ela quando
eu escrevo no quadro tem uns que ainda querem prestar atenção e tem uns não né,
uns nem tão. Aí o problema é vê os pais também né, que nem eu digo pra eles não
adianta eu ficar o dia inteiro gritando pro quadro aqui e vocês não prestar atenção,
vocês tem que prestar atenção. Em meia hora, duas horas, meia hora de atenção aqui
a pessoa pega, só que ali eu acho que o que falta é um pouco dos pais, acho que os
pais tem que falar pras crianças dizer ó você tem que prestar atenção na sala, tem
que respeitar o professor ali. Eu acho que é assim né. 31
Como já ressaltado pelo professor responsável pelo turno da tarde. O professor do
turno da manha, reafirma, existe repetência em sua turma. Evidencia também a postura dos
alunos em levar as atividades na brincadeira. Com isso levanta a hipótese de que faltaria uma
postura dos pais de alguns alunos estes, na visão do professor indígena da aldeia Voga, devem
incentivar seus filhos a prestarem atenção e respeitar o professor.
O entendimento dos professores indígenas sobre a reprovação varia de um para o
outro. O primeiro, professor responsável pelo turno da tarde, busca aspectos que vão além dos
conteúdos escolares ressaltando a questão do auxilio aos pais e etc. O segundo enfatiza a
responsabilidade dos pais quanto à postura dos alunos em sala de aula.
30
31
Ibid.
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
62
A visão de ambos os professores é passível de considerações, as duas posturas são
relevantes e importantes para a efetividade de uma educação realmente diferenciada para os
povos indígenas. O papel do professor indígena, na escola da aldeia, deve ser de mediador
entre esses dois universos. Ele fará o meio de campo entre os conhecimentos escolares
ocidentais, os conhecimentos tradicionais indígenas com os desejos da comunidade indígena,
podendo auxiliar e esclarecer determinadas políticas ocidentais junto às lideranças de sua
comunidade.
Aos professores perguntamos qual, na atualidade, importância tem a educação para os
povos indígenas de maneira geral. O professor indígena, responsável pelo turno da tarde,
disse:
É pra chegar nesse ponto tem que ser muito trabalhoso e com muito cuidado, porque
uma escola diferente, proposta diferente, funcionário, até o próprio prédio em que
ser diferente com a cara do povo e em que ser muito diferente né a proposta
pedagógica o calendário, funcionário e introduzir essa proposta branca para dentro
dessa proposta Kaingang hoje é diferente, hoje a maioria das escolas que funciona
que eu conheço no Rio Grande do Sul a proposta pedagógica Kaingang ela está
sendo introduzida, ela não esta sendo tão valorizada os horários de aula Kaingang
são muito curto então isso não é recomendável, então a nossa proposta aqui da
comunidade é trabalhar o cinqüenta por cento da proposta Kaingang e cinqüenta por
cento da proposta branca, vamos dizer né, casar as duas coisas no mesmo horário
vamos dizer prevalece, os horários tem que ser igualitário assim mas é aquilo que eu
falei lá no inicio né agora a escola está sendo interessante de uns anos para cá que eu
observo né. Os pais estão dando mais valor para a educação escolar por causa para
ter vantagem na sociedade tem que ser letrado né, senão está sujeito de ficar para
traz, porque aquela coisa da boa vida já se acabou né por que antes nós tinha tudo
né, se quisesse fazer uma produção de grãos ela produzia muito bem, valia a pena
você produzir grãos, e hoje não dá prejuízo por causa dos insumos né para essa
produção, então os pais vendo isso estão dando valor para a educação escolar, estão
empurrando os filhos para os estudos e antes não era assim. Antes eles não gostavam
muito que os filhos estudassem, queriam que eles fossem pra roça ou fazer atividade
de casa né hoje parece que está revertendo, mas ainda não reverteu por completo
porque por enquanto os alunos estão assim um pouco a vontade né...frequentam se
quiser, se não quiser não é cobrado, muitas vezes o pai diz não precisa ir para a
escola por que tu tem que me ajudar a fazer isso e aquilo, então ainda tem que
esforçar mais para que todos os pais entendam que a educação escolar tem o seu
valor né. 32
O professor traz um aspecto histórico e atual da situação das escolas indígenas que
conhece no Rio Grande do Sul. Levanta questões já referenciadas neste trabalho, como, a
situação do trabalho com a proposta Kaingang em sala de aula. Destaca a relevância que,
atualmente, os indígenas estão dando ao conhecimento escolar diferente do que aconteceu no
32
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
63
passado, anteriormente comentado pelo professor, quando as escola era mantidas pelo SPI/
Funai que os indígenas não viam muito futuro.
Sobre a mesma pergunta o professor indígena, responsável pelo turno da manha, traz
elementos um pouco diferentes:
Eu não acho diferenciada, eu acho o mais diferenciado é que só pela língua e é só
isso que é diferenciado e talvez eu penso também, talvez a gente fomos demais
sobre a nossa cultura, nossa língua, nossa letra e a escrita, só que ali na hora eu
penso né o que eu me preocupo é isso né que eu quero que o aluno vai lá em outra
escola lá que não é indígena vai muito mal né. Que nem meu pia que estudou aqui
até a quinta série, mas foi lá e rodou três vezes, foi mal em português em
matemática, é porque eu acho que atrapalha um pouco, a gente trabalha demais com
as nossas culturas também. Eu acho, eu acho bom também a nossa cultura, mas acho
que deve ter um pouco de limite né porque ali que nem vai na faculdade lá, lá não
vai sair as questões sobre né para responder em Kaingang, ali eu acho mais difícil,
eu penso nisso né. Ali porque que eu vou alfabetizar mais em português e
matemática mais assim, porque já se sai daqui vai lá para outra escola já, já sai
sabendo né. Eu penso pelo meu guri que estuda aqui, esses dias eu tava olhando os
trabalhos dele e as provas lá, não achei muito bom né, matemática, português,
ciências é porque talvez é nós aqui que não trabalhamos mais em cima dele,
trabalhamos mais a nossa cultura, mas eu acho que um pouco atrapalha também né.
Por isso que eu trabalho mais aqui. Eu alfabetizo mais aqui em português e
matemática porque eu penso nisso, por isso eu deixei o Kaingang só para sexta-feira
ali aprendendo as nossas letras e as consoantes kaingang, o alfabeto kaingang,
sabendo falar umas palavrinhas já está pronto né, sabendo escrever uma palavra já
está bem. Eu acho que muito atrapalha um pouco, ai eu acho que os professore
indígenas deveriam trabalhar bastante em português, tem que ser uma média, não
muito português nem muito kaingang. Tem que ser junto né. Eu acho isso, eu penso
nisso assim. 33
O professor ressalta em sua fala a preocupação com o porvir das crianças indígenas
quanto à continuidade de seus estudos e ainda destaca que o futuro para os povos indígenas no
contexto atual não está sendo tarefa fácil, o acesso a universidade não está universalizado, os
conhecimentos exigidos para o ingresso no ensino superior não são os Kaingang e coloca
como aspecto fundamental para os estudantes o aprendizado da língua portuguesa e da
matemática.
Estabelece uma relação um pouco distante entre os conhecimentos tradicionais
indígenas e a escola. Em sua aula, conforme relatado ensina a escrita em Kaingang, mas este
conteúdo é pouco trabalhado e pouco avaliado. Em relação direta com o “mundo” Kaingang e
o “mundo” ocidental, o professor indígena atribui o fracasso de alguns alunos indígenas, da
comunidade, na escola não indígena à valorização demasiada da cultura indígena na sala de
33
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 12 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
64
aula. Assim quando os alunos se deparam com conteúdos diferentes na escola não indígena
estão despreparados.
Ambos os professores destacam a importância da escola na comunidade indígena, mas
possuem divergências sobre qual o papel que está deve desempenhar.
No outro ponto da corda está o cacique da aldeia Kaingang de São Leopoldo. Quando
perguntamos como via a escola na aldeia, como avaliava o esforço dos indígenas em se
apropriar dos conhecimentos ocidentais para reivindicar seus direitos, respondeu que
preferiria que não precisassem de todo esse estudo. Mencionou que devido à escolarização,
hoje, muitas crianças estão deixando os conhecimentos do povo Kaingang de lado. As
crianças, segundo o cacique, não se interessam mais em aprender a fazer artesanato, estudar a
história de seu povo e etc. Relatou que preferia que os Kaingang tivessem um pensamento
como o dos Guarani, que falam “mal” o português e negociam com as autoridades seus
direitos. Disse que, na verdade, os índios não precisariam estudar para reivindicar seus
direitos, pois aquele que “roubou” as terras indígenas sabe dos direitos que os índios têm e
deveriam cumprir sem a necessidade de reivindicação. No entanto, em questão já referida
neste trabalho, o cacique, vê como importante o ensino da língua e da história Kaingang na
escola para a manutenção da cultura indígena.
A visão da liderança da comunidade é aquela do indígena convencido das
desapropriações que seu povo sofreu nos últimos séculos e que enxerga na atualidade um
cerceamento cada vez maior do conhecimento ocidental, que sem limites adentra as aldeias
indígenas ora para tentar a sua assimilação, com vistas à extinção, ora vem com propostas de
autonomia das comunidades, mas que são difíceis de serem efetivamente implementadas.
4.1 A VISÃO DAS CRIANÇAS INDÍGENAS SOBRE A ESCOLA
Neste capitulo apresentaremos uma abordagem realizada com as crianças na escola da
aldeia. Com as duas turmas, manha e tarde, pedimos para desenharem o que a escola na
comunidade representava para eles. Os dias em que foi aplicada essa proposta foram
65
diferentes, os professores estavam presentes em sala de aula, auxiliando as possíveis dúvidas
dos alunos.
No período da tarde, pedimos autorização para o professor e esse se disponibilizou
para auxiliar. Então após o retorno do intervalo da aula em uma sexta-feira, pedimos para os
alunos fazerem os desenhos, distribuímos as folhas e deixamos em aberto caso as crianças
tivessem desejo de desenhar mais alguma coisa, que ficassem a vontade de pegarem mais
folhas e demorassem o tempo que achassem necessário. Sobre a apropriação quanto ao modo
de realizar o pedido do desenho, inicialmente os alunos ficaram na dúvida sobre o que
desenhar, tiraram algumas questões com o professor outros com nós. Deixamos bem aberto
para as crianças desenharem aquilo que viesse em sua cabeça a partir do tema inicial que é o
que representa a escola da aldeia para eles. Como as crianças da aldeia geralmente têm idade
superior ao esperado para a série/ano em que estão não houve dificuldades no manejo do ato
de desenhar, diferente do ocorrido com os alunos do turno da manhã que falaremos após essa
primeira abordagem dos desenhos.
Na turma da tarde foram produzidos pelas crianças 22 desenhos, alguns alunos fizeram
mais de um desenho. Nos desenhos foi reproduzida basicamente a localização da escola na
aldeia, demonstraram a escola ao lado do banheiro, da casa de uma vizinha, ao lado da lixeira
e etc. Em geral a escola quando colocada enquanto elemento da totalidade da aldeia foi
identificada como sendo representativamente maior do que as demais casas, em seu redor.
Algumas crianças colocaram o nome da escola, apareceram algumas pessoas nos desenhos,
em dois dos desenhos apareceu bonecos, que representam pessoas, com as marcas indígenas,
Kamé e Kairu, em um dos desenhos é possível identificar o casal formado a partir da regra de
parentesco Kaingang.
Dois desenhos merecem destaque especial, eles apresentaram diferentes imaginários
das crianças, um deles mostra a estrutura da escola no aspecto ocidental, tal como ela é
construída, mas as casas que a cercam são no formato de ocas e mostra alguns animais que
não podemos pensar neles como sendo cachorros ou gatos, podem ser jaguatiricas, e as
arvores que aparecem no desenho dão um fruto vermelho, que provavelmente é a maça. No
outro desenho, o menino coloca a escola com uma chaminé ao lado de uma casa, elas parecem
estar dentro da água podendo ser rio ou mar, aparecem dois peixes um pequeno e outro maior.
66
Na folha do desenho na parte superior existe uma espécie de praia com coqueiros. Esse caso é
especial, pois diretamente não existe relação com a realidade da comunidade, outro desenho
que se destacou foi um que mostrará um helicóptero.
Quando realizamos o pedido para as crianças desenharem o que era a escola para eles
na aldeia os deixamos com total liberdade para desenvolver o trabalho, alguns comentavam “é
para desenhar qualquer coisa então”, logo o professor do turno respondia “qualquer coisa não,
porque qualquer coisa é qualquer coisa, tem que desenhar o que é a escola para ti na aldeia”.
O fato da maioria dos desenhos realizados no turno da tarde terem tido a imagem da
escola como “maior” do que as outras casas da comunidade pode ser entendido por ser o local
onde muitos freqüentam, na casa das famílias geralmente é só ela que a freqüenta, e também
por ter um papel central na comunidade, é o espaço onde se resolve as decisões da aldeia, é o
espaço de ensino e aprendizagem, tendo aula nos dois turnos, muitas pessoas da comunidade e
fora dela aparecem na escola para saber determinadas informações. O espaço da escola
também é usado para fazer reuniões entre os índios e com os “brancos” 34. Então a escola no
imaginário do aluno é uma referencia tanto quanto, ao conhecimento trabalhado com as
crianças, quanto ao recebimento e a tomada de decisões importantes para a comunidade.
Algumas crianças não se sentiram a vontade para realizar um desenho com a folha
aberta. Uma aluna preferiu escrever os seus pensamentos sobre “A importância da escola” e
preferiu dissertar o seguinte:
A escola e um meio de conhecimento da vida. Por exemplo sem a escola não é
possível aprender a ler e escrever nem saber o que é certo e erado. E nem falar e nem
saberíamos ce comunicar. Sem a escola não poderíamos construir makinas ao noço
favor e não saberíamos construir casas e nem carros nem resumimos não saberíamos
de nada. 35
No texto apresentado acima podemos identificar a visão que a aluna tem da
importância da escola, essa abordagem pode-se ver a maneira ocidental que a estudante
enxerga na escolarização a única maneira de aprendizado relevante para a vida. Nesse sentido
a escola é importante ser diferenciada com professores indígenas, dentro da comunidade, com
funcionários índios e alimentação conforme os costumes tradicionais Kaingang.
34
Anos atrás quando propomos para os índios fazerem uma exposição de artesanato na Unisinos, combinamos
como seria este evento com as lideranças da comunidade e o professor responsável pelo turno da tarde no
espaço da escola.
35
Entrevista concedida a Diego Severo Dias em 19 de abril de 2011. Consta nos ANEXOS
67
Um dos desenhos além de retratar a estrutura da escola diante da totalidade da
comunidade fez comentários sobre esta, tais como: que é a escola mais esperta; é uma escola
muito boa, mas muito pobre. Vemos nos comentários do aluno que o mesmo reconhece o
trabalho desenvolvido pelos professores, mas esta atento as condições estruturais da escola
como o difícil acesso ao material, vidros quebrados, classes danificadas, cadeiras sem encosto
e etc.
Uma das meninas da escola ao invés de desenhar com a folha colocada de forma reta
preferiu realizar uma dobradura, onde na frente e atrás da dobradura ficou exposto a estrutura
da escola sem a porta.
Em geral o restante dos desenhos apresenta como já destacado a localidade da escola
dentro da aldeia, muitos ressaltam as arvores da comunidade, pássaros em tamanhos
desproporcionais, algumas crianças preferiram desenhar apenas a escola no espaço disponível
retratando dessa forma um destaque para a porta e a janela. Outras crianças resolveram
desenhar aquilo que para elas era relevante ou que teve maior significado nos últimos tempos
como o desenho da arvore de natal e alguns outros.
Alguns desenhos foram realizados a mais do que o pedido, um destes teve um
destaque especial, o aluno desenhou gato deitado no chão com as patas dianteiras no chão e o
rabo dele estava no bico de um papagaio atrás do gato, o papagaio foi expresso com uns
suores em volta da sua cabeça. Ao lado dessa representação havia um pássaro preso em uma
gaiola com uma expressão de bravura. Esse foi um desenho que não representou aquilo que
pedimos, pois os alunos o fizeram após a entrega do primeiro.
A mesma proposta desenvolvida com os alunos do turno da tarde foi lançada aos
alunos do turno da manha, no entanto, como ressaltado acima os alunos do turno por serem
mais velhos apresentam facilidades no desenvolvimento do desenho. O mesmo não acontece
com os alunos mais novos que freqüentam o turno da manha, essa dificuldade não foi
lembrada quando pensamos a atividade, por desatenção dos pesquisadores o resultado
esperado ficou comprometido, mas um pouco do imaginário das crianças pode ser
identificado em alguns desenhos. Foi elaborado pelos estudantes do turno da manha, do 1º e
2º ano, um total de 16 desenhos. Alguns desenharam nos dois lados da folha e outros fizeram
mais de um desenho em folhas separadas.
68
Devido à idade das crianças que freqüentam os anos ofertados no turno da manha, não
houve compreensão suficiente do que foi pedido na atividade, no entanto, em nenhum
momento foi excluída a sua participação no desenvolvimento dos desenhos esses inclusive
constam em anexo neste trabalho. Cinco dos desenhos produzidos pelas crianças não são
passiveis de analise, pois apresentam rabiscos, com projetos de árvores, ou o que poderíamos
identificar como caminhos, ou simplesmente algumas letras do alfabeto com o respectivo
nome do autor do desenho e sua idade.
Dos demais desenhos, houve, conforme já ocorrido com os alunos da tarde, a
representação da estrutura da escola. Expressando essa através de uma casa, alguns
desenharam a vizinhança da escola, a maioria a desenhou com uma chaminé, revelando que
estão cientes que a estrutura da escola não difere em muitos aspectos de sua moradia, mesmo
que na escola não exista chaminé. Um desses desenhos mostrou um aspecto significativo para
as crianças, ele desenhou a escola no meio de um parque de diversões, ao lado da escola têm
uma roda gigante, o barco Vinque, o carrinho choque, o aviãozinho, entre outros, segundo o
professor alguns dias antes os alunos tinham ido ao parque de diversões, por isso a associação
no desenho.
Dois desenhos tiveram um destaque, o primeiro além de mostrar, a escola da aldeia ao
lado de árvores, e algumas pessoas próximas, no desenho as árvores estão sorridentes
mostrando um sorriso com suas maças, no alto da representação estão ás nuvens com rostos e
junto com o sol e a lua, a lua assim como as nuvens abrigam algumas pessoas, e o menino,
autor do desenho está representado em um balão, olhando para baixo. O destaque é dado pelas
imagens do sol e da lua, que revela a dualidade Kaingang e as pessoas nas nuvens revela a
crença na existência de um lugar após a morte, ou a possibilidade das pessoas alcançarem o
céu mesmo em vida.
O segundo desenho, que merece um destaque especial, além de mostrar a escola,
coloca esta ao lado de uma caixa de presentes em cima de um pequeno morro, a esquerda do
desenho, um pouco abaixo da escola têm a bandeira que parece do Brasil, mas com o nome do
autor do desenho. A esquerda da bandeira e um pouco acima aparece à representação de um
diabo, com seus chifres e seu cajado. Logo acima, é desenhada uma nuvem ao lado de uma
árvore e um avião, acima deste está mais nuvens e diversas estrelas um pouco abaixo do sol,
em uma das nuvens têm um boneco representando deus, munido de sua coroa, que mirando
69
para baixo em direção ao diabo lança raios, o avião também lança um míssil na direção do
diabo. Quando esse desenho foi entregue, o autor foi perguntado sobre o que representava
cada um dos desenhos e o mesmo forneceu as informações reveladas.
O desenho descrito acima, que também está em anexo neste trabalho, revela a
influência religiosa na comunidade. Não é nova a presença nas comunidades indígenas de
igrejas, nos últimos anos as igrejas pentecostais estão tendo maior influencia entre os
indígenas. Especificamente no caso dos Kaingang esse fato é expresso em muitas áreas
indígenas, em São Leopoldo existem duas igrejas, que de um modo ou outro “disputam o
mercado” nas palavras de um professor da aldeia. Elas exercem um papel fundamental na
concepção de mundo dos indígenas, o desenho da criança revela isso, entre os Kaingang nos
últimos anos as lideranças espirituais estão perdendo espaço para as igrejas, segundo um
professor da aldeia, muito Kuijã, liderança espiritual Kaingang, não está conseguindo pessoas
para passar seus conhecimentos, pois grande parte dos indígenas não procura mais esta
responsabilidade ou já não crêem mais nela.
De maneira geral, sobre a visão das crianças sobre a escola na aldeia, podemos afirmar
que essas a enxergam como uma estrutura parecida com sua moradia, com a diferença de
abrigar mais pessoas e ser um ponto de recepção e negociação com os “brancos” e demais
autoridades ocidentais. Alguns desenhos mostram a dualidade Kaingang expressa através das
marcas, redonda e cumprida, que formam a sistema de casamento desta sociedade este fato
revela que quando pedidos para desenharem “o que é a escola na aldeia” significam esta com
as regras de seu povo.
A escola da comunidade trabalha a língua Kaingang em seu currículo, esse é um
elemento que podemos chamar de não-formal, pois a língua é a preservação da cultura na
atualidade. Através da reprodução, aprimoramento, escrita e desenvolvimento da língua dos
Kaingang, assim como já se afirmam como diferentes entre os ocidentais, ganham
legitimidade diante daqueles que querem afirmar que no Brasil não existe mais índios, fato
esse já comprovadamente descartado.
70
4 CONCLUSÃO
Tendo em vista a reflexão feita durante o trabalho, esta demonstrou que essa
instituição, a escola, imposta às comunidades indígenas a mais de 500 anos aos poucos está se
adequando as reais necessidades dos povos ancestrais. A partir dos objetivos que
vislumbramos com esse trabalho e os resultados alcançados podemos afirmar que, os
processos educativos informais entre os índios Kaingang da aldeia Voga, em São Leopoldo,
estão se reproduzindo continuamente na localidade, claro, que com a adaptação cultural
necessária para a sobrevivência na contemporaneidade. Agora com a presença da escola na
aldeia, os conteúdos regulares escolares estão sendo ofertados para os alunos indígenas da
comunidade.
A escola dentro da aldeia tem como proposta ser diferenciada com conteúdos,
horários e calendário próprio. Essa foi uma conquista dos povos indígenas e apoiadores na
elaboração da carta constituinte brasileira de 1988. A legislação prevê a capacitação de
professores indígenas das áreas que reivindicam escola na comunidade, desta maneira
possibilitando um aprendizado mais próximo dos indígenas.
No entanto, encontramos um ponto cego na legislação: as escolas nas
comunidades indígenas somente se materializarão caso as próprias as solicitem. Se as
comunidades não solicitarem a estrutura da escola na aldeia e entendem que os conhecimentos
ocidentais não servem para seu porvir certamente as autoridades competentes irão se
movimentar para culpabilizar os indígenas e coagir-los a aderirem às escolas indígenas
diferenciadas ou ás escolas “normais”. Desta maneira a legislação brasileira mostra que não
reconhece os conhecimentos tradicionais ancestrais dos povos indígenas, reconhecendo a
escola como legitima instituição capaz de nutrir possíveis alunos de conhecimento autêntico.
Esse fato merece maior reflexão das autoridades e entidades de pesquisa.
Evidenciamos neste trabalho que a escola localizada na aldeia é uma extensão
de uma escola estadual próxima da comunidade, portanto não se trata juridicamente de uma
Escola Indígena na aldeia. É uma escola com professores, funcionários e alunos, todos
indígenas, mas a administração dos recursos não. Dessa maneira a proposta pedagógica não se
faz diferente.
71
Os professores indígenas em seu dia-a-dia em sala de aula se esforçam para unir os
dois universos do conhecimento, o tradicional Kaingang com o ocidental. No entanto sabemos
que não somente de professores diferentes se faz uma escola diferenciada, é necessário
estrutura adequada, materiais didáticos, recursos próprios e a autogestão indígena.
A comunidade indígena Kaingang Voga em São Leopoldo está reivindicando junto a
Secretária Estadual de Educação do Rio Grande do Sul a criação da Escola Indígena, segundo
informações dos professores e da liderança indígena a escola já foi criada, faltando somente a
autorização para o funcionamento. Para a escola poder funcionar de fato na aldeia é
necessário construir um novo prédio com mais salas de aula e o preenchimento do quadro de
funcionários. A estrutura e o preenchimento do quadro de funcionários são condições para a
aprovação no Conselho Municipal de Educação de São Leopoldo.
No preenchimento do quadro de funcionários é necessário para o funcionamento da
escola um diretor e como a escola será subsidiada pelo Estado do Rio Grande do Sul uma das
exigências para o cargo de diretor é ser funcionário público, no cargo de professor, e como
nos últimos quatro anos não tivemos concurso para o magistério estadual, os indígenas
Kaingang de São Leopoldo para atender essa exigência terão de “convidar” alguém que
preencha os requisitos exigidos e se disponha ao cargo. Esse fato evidencia a necessidade de
se criar novos mecanismos para exercer realmente uma educação diferenciada aos povos
indígenas, essa exigência deve ser pensada a partir da realidade local e não homogeneizada.
No desenvolver do trabalho de pesquisa sentimos nos indígenas a importância da
escola na comunidade. Ela serve aos interesses dos índios e eles contribuem para a
manutenção desta sem ônus, exigem das crianças comportamento e respeito com os
professores, utilizam a escola para suas reuniões, a usam em datas comemorativas entre
outros. Os professores trabalham de diferentes maneiras para a autonomia do povo Kaingang,
já que vivemos em uma sociedade globalizada, os indígenas se apropriam do conhecimento
ocidental para aprimorar seus conhecimentos tradicionais e assim continuar lutando por seus
direitos.
Concluímos então que para os indígenas Kaingang da aldeia Voga em São Leopoldo a
escola é importante para a manutenção e reprodução de seus conhecimentos tradicionais em
conjunto com os ocidentais. Os valores e a tradição Kaingang são passados em sala de aula na
72
comunidade e os alunos aprendem a ler e escrever em kaingang. A escola desta maneira está
contribuindo para assistir aos indígenas e os apropriar do conhecimento “científico”. Falta
apenas o cumprimento da legislação existente que não está sendo cumprida em São Leopoldo.
73
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76
ANEXO A – ENTREVISTA COM DORVALINO CARDOSO, PROFESSOR
INDÍGENA DA ESCOLA NA ALDEIA KAINGANG VOGA EM SÃO LEOPOLDO
REALIZADA DIA 26/04/2011
Fotografia 6 – Professor Kaingang Dorvalino Cardoso
Fonte: Registrado por Diego Severo
Diego: A escola aqui na aldeia, o que tua acha dela? Que na verdade a escola é uma coisa do
branco né, o que tu acha da escola dentro da aldeia?
Dorvalino: Hum, agora ela tá servindo a comunidade. Porque no inicio né, quando a escola
veio pra dentro da aldeia ela prejudicou né a cultura, a língua, a proposta pedagógica,
diferente né. Vindo pra uma outra proposta pedagógica diferente e organização diferente,
então nesses lado ele prejudicou um pouco, mas com o passar do tempo a gente foi
77
concertando, acertando, entendendo a política dessa instituição e que hoje a gente adéqua essa
realidade para a nossa realidade, então agora a gente tá aproveitando ela. As propostas boas
né! Trabalhando essas propostas, passando essas oralidades pras escritas, registro e enfim
tudo que é bom, que é ligado a uma educação escolar estamos fazendo essa transição, mas
muita coisa ainda permanece na oralidade né, que não atingimos ainda a escrever, a registrar,
muitas oralidades. Por que assim muitas coisas de oralidade a gente não consegue traduzir e
escrever ela, porque a língua né, a língua a gente muitas vezes não consegue a tradução dele, a
linguagem desse povo que tá vinculado a instituição escolar eu acredito que nem todos vão
conseguir registrar. Mas muita coisa dá para você aproveitar sim dessa instituição, inclusive.
Diego: Tu acha importante ensinar Kaingang na escola?
Dorvalino: A gente tem que, fazer o currículo pra essa escola, a gente tem que fazer uma
propostas pra essa escola, trabalhar inclusive a língua né, porque a língua ela é uma garantia
de um povo, de uma etnia. A língua, a crença, a cultura então ela é importante para essas
coisas.
Diego: De que área indígena tu é natural?
Dorvalino: Eu nasci, eu nasci na colônia né, meus pais trabalhavam muito de agregado, daí eu
nasci, antes eu não tenho muita certeza essa colônia pertencia ao município de Barão de
Cotegipe, eu não tenho certeza, esses município porque antigamente também essa colônia
pertencia ao município de Erechim, aí depois veio para o município de São Valentim. Então
eu não tenho certeza, essa colônia que eu nasci não sei a que município ele pertencia em 1964.
Diego: Mas era área indígena?
Dorvalino: Não, ela fica próxima a uma área indígena, Votouro né, Votouro que agora essa
aldeia pertence ao município de Benjamim Constante, que foi desmenbrado do município de
São Valentim, isso eu me lembro bem. Que é monte alegre ali. Pela quantidade de municípios
é que eu não tenho uma certeza né que aquele tempo que eu nasci, eu não sei dizer se
pertencia para São Valentim, Barão de Cotegipe ou Erechim. Mas esse municípios pequenos
eles foram desmembrados de Erechim, então nós circulava muito por ali.
Diego: Quando criança assim tu chegou a estudar em alguma escola dentro de alguma aldeia?
Dorvalino: Eu estudei em uma escola dentro da aldeia né, que aquele tempo ele pertencia, era
as escolas eram federal né. Então quem comandava as escolas, a educação nessa época era a
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FUNAI, mas eu não estudava direito né, porque naquela época que eu iniciei os meus estudos
na escola era na época do SPI, então tinha aquele dito trabalhos coletivos, então esse grupo de
índios eles comiam no panelão foi naquela época, daquele projeto do desenvolvimento da
agricultura então meus pais não queriam trabalhar coletivo assim, come mal no panelão, que
era comida mal feita né. Então nessa época as crianças que tinham idade de ir para a roça ia
para a roça me parece que eles não estavam dando valor para a educação escolar.
Diego: Sim, até porque o jeito que estava sendo desenvolvido o trabalho, que tu comentou, da
comida coletiva e etc, mal ou bem o pessoal tinha que se vira de outro jeito e não era bom
essa escola.
Dorvalino: E isso foi um atraso para todas as crianças na época que estudaram, e também os
pais não davam tanto valor para freqüência de escola, que era coisa nova né.
Diego: Aqui na aldeia tu te lembras quando começou a funcionar a escola?
Dorvalino: Na verdade, a escola né, a escola mas é uma casa assim de como é que eu vou
dizer provisória né. E aí a gente começou a trabalhar nessa casa provisória vamo dizer, ela
nem tem estrutura de escola né. Mas como a lei garante que a educação escolar tem que estar
funcionando na comunidade, então isso foi a segurança da gente trabalhar, a educação escolar
nem que seja de baixo de uma arvore, mas tem que funcionar, na lei ela tá garantida, que a
criança ela tem que estudar né! Então de qualquer forma a gente tem que trabalhar essa
educação escolar, então até hoje nós temos trabalhando nessa escola provisória, funcionando a
educação escolar e estamos em processo de autorização de funcionamento né, ela está criada,
estamos estruturando. Estamos com um projeto de estruturação, de prédios né mas a educação
escolar ela já funciona.
Diego: Então a educação escolar aqui na aldeia, mesmo com essa pouca estrutura com ela não
ser tão adequada desde quando?
Dorvalino: Desde 2005.
Diego: Ah então ela já funcionava no outro local.
Dorvalino: Sim. Porque a comunidade tinha uma moradia também provisória né, mas a
educação escolar sempre funcionou, nem que não tenha um prédio ne, mas tinha uma casa
assim, um galpão a gente se virava né.
79
Diego: Aqui na escola da aldeia, o currículo como ele é organizado?
Dorvalino: A escola ela ainda não tem uma definição de currículo e nem de proposta
pedagógica, mas nós temos um currículo com um proposta pedagógica feito para todas as
escolas indígenas e foi feito em 1998 parece, então a gente, a gente trabalha em cima dessa
proposta, daí a gente introduz né a proposta normal, casa as duas e desenvolve.
Diego: Então assim como é que é: matemática.....?
Dorvalino: É matemática normal, matemática Kaingang, geografia normal, geografia
Kaingang, línguas (português e Kaingang), ciências assim dos livros didáticos brancos e
ciências Kaingang. E é assim que a gente trabalha, a história, a história contada pelos brancos,
a história contada pelos índios. Daí a gente vai casando as duas propostas. E vai trabalhando.
Diego: A questão da matemática e da geografia diferencia muito a matemática do branco e a
matemática do kaingang?
Dorvalino: Ela diferencia, não tanto ela fica meio próximo assim né, só que a nossa
matemática ela não é escrita, ela fica muito na prática, muito na oralidade e muito assim no
próximo né. Antigamente eles contavam assim, através de objetos, para mostrar uma quantia
tipo, tipo vinte era vinte palito né, era mais ou menos isso e nós não temos nossos números
né, nossos números só vão até cinco, e por extenso. Não temoa um código que diz numero
um, numero dois, e a quantia é mais ou menos próximo assim né, por exemplo em uma turma
de crianças de vinte alunos, quando veio todos, então veio tudo, todos estão presentes. E se
veio 15, a gente interpreta que veio quase toda a turma. E quando veio pouco mais da metade,
12-13, a gente diz que tinha bastante e quando veio 10 daí diz que veio a metade que é xxxx, e
quando veio menos da metade a gente diz xxxx que significa um, mas esse um quer dizer que
veio menos da metade, não por que veio um, veio menos da metade era poucos.
Diego: O tempo que eu observei as tuas aulas e um fato que me chamou muita atenção,
também acontece pela manha mas não tanto, é que os alunos não te chamam de professor e
não te chamam de Dorvalino eles te chamam de “tio” o que tu acha disso?
Dorvalino: É que na verdade pra nós não existe professor, na nossa linguagem não existe, mas
esse ser inteligente é o respeitado desde parentes assim, ou desde mais velhos por isso que nós
interpretamos o mais velho então o “tio” ele tem um vivencia e um conhecimento para
ensinar eu mais novo, vamos dizer né, então vai ser o tio. E é questão de organização né, a
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pessoa mais velha é o tio, o avô é o livro de história da comunidade então é por aí que a gente
vai acolhendo as pessoas pela questão do respeito. Então ser tio é ser o segundo pai, que o
segundo pai na escola é o professor, e o tio vem a ser o segundo pai. Então isso pra nós é
aceito, porque também pelas marcas tribais né, muitas vezes os alunos chama a gente de
irmão que tem a mesma marca minha, e muitas vezes de cunhado né que a menina que é da
minha marca contrária ela é minha cunhada.
Diego: É agora sim deu pra ver o significado, porque no branco assim nem pensar na escola o
professor ser chamado de tio, e esse fato me deixou interessado pela naturalidade de
ocorrências. E no começo foi muito estranho, mas refletindo tive uma compreensão próxima a
esta que me disseste.
Dorvalino: E eu tenho visto que nas escolas a professora não aceita ser tia dos alunos né, pra
ela é uma ofensa né um aluno qualquer aí chamar ela de tia, ou tio ainda mais quando o aluno
é rebelde né, aí elas não aceita mesmo. Aí elas diz, não você é isso, você é aquilo ultrapassa
dos limites então não aceito, não pode ser meu sobrinho. Mas nós aceitamos né, porque se a
criança ultrapassar a gente tem autonomia de disciplinar, eu sou tio, eu sou pai, eu posso
disciplinar.
Diego: O calendário das aulas assim como é que tu faz, por exemplo, aqui por enquanto está
vinculada ao Haydee, e tipo eles colocam alguma coisa, mando procedimentos para vocês
olha tem que funcionar assim?
Dorvalino: É eles, como a gente tá vinculado numa instituição que já tem uma proposta
pedagógica pronta né, cronograma e calendário, aí eles querem que a gente segue aqui, mas é
assim o que é bom pra eles não é bom pra nós, muitas coisas claro que é bom né. Mas não
casa com a nossa realidade, a gente convenceu essa outra escola, essa outra diretoria para que
nos fizesse do nosso, da nossa organização né, que o nosso calendário é diferente, então
muitas datas que eles comemoram pra nós não tem nenhum significado, muitas vezes ela é
contrária a nossa realidade né. Por exemplo a data do descobrimento do Brasil, 21 de abril,
Tiradentes essas coisas ali né. Então pra nós não tem nenhum sentido então, por exemplo sete
de setembro pra nós não existe isso, Então quem são eles para obrigar nós né!
Diego: Daí a escola não segue esses...
Dorvalino: O hino nacional também né....canta o hino nacional nós temos eu tenho muita
critica né.
81
Diego: Vocês não asteiam a bandeira aí no sete de setembro?
Dorvalino: Não, então são coisas diferentes né, então no lugar dessa proposta a gente introduz
outras coisas interessantes né, da proposta pedagógica branca é a quilo que eu disse o que é
bom a gente trabalha, o que não é bom a gente não trabalha substitui. Por que no nosso mundo
tem muitas coisas interessantes pro nosso povo que se nós der atenção para outras proposta já
não consegue trabalhar todos esses outros valores, das coisas interessantes do povo. Então é
isso que a gente tem que trabalhar para as crianças índias entender e dentro dos valores
trabalhar muito forte o que quer dizer índio, por que ser índio, qual é a importância, qual é o
interessante ser índio, é interessante ser índio não essas coisas aí né. Então no momento que a
criança descobriu seus valores ela se dá valor enquanto isso ela não se dá valor, ela acha
bonito as outras etnias as outras crenças as outras culturas, tradições, cultura essa cultura é
muito perigosa né para qualquer etnia no momento que saí assim um calçado famoso e aí
essas outras cultura entram tudo pro nosso lado da cultura né. Eles acham uma roupa bonita,
aí acabam gostando, acabam botando e não é que é proibido né, mas eu tenho que já saber
tudo sobre a vida dele ele tem que saber o valor dele. Por que se eu colocar uma roupa de
marca um calçado de marca, nem que eu tenha aquela roupa eu não to naquela cultura, mas eu
não deixo de ser uma etnia, não deixo de ser índio né, a identidade é uma coisa que tu não
consegue mudar, muitos diz, não eu vou mudar minha identidade, mas tu é sempre a mesma
pessoa é assim quando falo de identidade não falo desse documento mas identidade étnica e
corporal também né, porque hoje o Brasil é assim né a identidade das pessoas ela tá muito
solta não tem um, uma lei que exige tu é daquela identidade e tu tem que se identificar
daquele jeito, como tu é tu se identifica. Hoje tu identifica do jeito que tu quiser, por exemplo,
eu sou índio e eu tenho o direito de dizer não eu sou mais da parte branca né, sou gaucho, sou
isso sou aquilo, me identifico do jeito que eu quero e a lei me permite. Mas só no Brasil isso
né, nos outros países já é diferente, Tu é o que tu é.
Diego: Sim até a questão da auto identificação do censo que teve agora em 2010, se alguém
daqui quisesse se identificar como de qualquer outra etnia, poderia tranquilamente.
Dorvalino: Então, eu faço muita critica na questão de identidade. A cultura ainda até que, eu
concordo, você dançar do jeito que você quiser, dança lá a musica que tu quiser pode dançar,
tu pode vestir qualquer roupa, calçado, assim tu vai atravessando a cultura né, mas conquanto
que a tua fica garantido né. Ou a história também né, tu tem que saber a história do teu povo,
da tua etnia, a tua história pra depois estudar as outras histórias porque hoje as pessoas são
82
muito curiosas né, e muitas vezes as curiosidades das pessoas ela te bota contra a parede,
então tu tem que o teu mundo a resposta tem que estar na ponta da língua, senão tu não é, tu
não tá assumindo tua identidade. Que nem papel voar no ar, a vida da gente, eu penso assim
né.
Diego: A avaliação dos alunos como vocês fazem?
Dorvalino: A avaliação dos alunos, é eu sempre gostei de trabalhos né dá um trabalho de
coisas assim que a gente trabalho dentro de um tema geradora, dentro de um tema geradora e
aí pega aquilo e dizer pra criança fazer uma dissertação descritiva de tudo o que a gente
trabalhou o que ele memoriza, ou através do caderno o que que ele, qual é a importância do
que ele fez devolver o que ele aprendeu, aí o que ele não apreendeu já ajuda o professor a
retomar, eu penso assim, eu sempre gostei de fazer isso. Ó faz um texto sobre tal coisas, umas
coisa que a gente já desenvolveu né pra ver se ele entendeu ou não entendeu essa é a questão
descobrir se o aluno entendeu se aquela atividade que a gente desenvolveu durante as aulas
né, fazer tipo um texto juntando tudo essas coisas tu sabe o que ele apreendeu e o que ele não
conseguiu, porque se ele não devolve o que apreendeu é sinal que ele não apreendeu. Então
através desse trabalho a gente descobre o que tem que retomar, o que tem que aprofundar. Eu
penso assim. Porque responder questões assim...também é uma forma, mas em vez que o
aluno na hora mesmo se esquece já a palavra prova assusta e quando se assustou não faz mais
nada.
Diego: Na escola tem repetência?
Dorvalino: Sim tem repetência, mas tem repetência pro aluno que não deu atenção para o que
fez, na verdade não é tanto a freqüência porque as vezes o aluno falta por necessidade, pois
ele tem boa vontade então esse aluno não pode ser prejudicado por que no futuro ele vai te um
rendimento bom. A repetência é aquele aluno que só levou na brincadeira e não deu atenção
para o que fez, não participou então esse merece a repetência né para mostrar para ele que as
coisas não é brincadeira.
Diego: Sobre tua formação Dorvalino eu sei que tu faz Pedagogia na UFRGS e o que mais?
Dorvalino: Fiz o magistério indígena na UNIJUI-Oeste, é eu fui fazer esse magistério né,
magistério voltado mais para a educação indígena, magistério especifico né. Para trabalhar
mesmo com esse povo Kaingang professores que já tinham uma convivência com indígena e
deu muito bem para desenvolver esse trabalho, esse curso teve um bom rendimento, saiu
83
bastante material em Kaingang e que hoje todos esses professores estão fazendo um bom
trabalho em suas salas de aula e essa formação foi para quebrar um tabu que, os professores
brancos dominavam muito as escolas indígenas né, a Funai teve também uma formação de
monitores indígenas que funcionou para monitorar os branco né, ajuda a ensinar na língua
portuguesa leva essas mensagens num pensamento branco, então era assim que tava
funcionando antes dessa formação né, e nossa foi contraditória a essa realidade e que nas
escolas só se trabalhava as propostas pedagógicas branca né, e a gente já mudou essa
proposta, essa idéia, essa prática assim foi uma luta né, a gente enfrentou uma luta após essa
formação e que foi resistene essa luta né, tivemos muita resistência em todas as instituições
né, dentro da escola, na nossa escola onde nós trabalhava, da direotira, do município, do
estado. E que nós vimos que a alfabeização estava muito forte na língua portuguesa né, então
tu não pode alfabetizar uma criança que tem uma língua materna e alfabetizar ela em uma
outra língua que não é a própria dela, então quando falo de tabu eu to querendo chegar nesse
ponto né e aí a gente começou a trabalhar desenvolver os trabalhos, lutando né e daí eu
consegui nesse meio tempo, nessas lutas ingressar na faculdade e a luta continua né, as
instituições não estão preparados para atender uma língua, eu vejo muito forte ainda que a
educação escolar ela não ta preparada para atender línguas diferentes e nem culturas
diferentes. É uma proposta e aquela proposta prevalece nacionalmente e que essa proposta
joga todo mundo no mesmo saco e o barco anda assim mesmo.
Diego: Quantos trabalhadores tem lotados na escola da aldeia?
Dorvalino: Professores e funcionários são quatro. Dois professores, a merendeira e a
faxineira. Mas temo aí né vamo preencher o quadro agora de professores e funcionários, pra
ser autorizado emos que preencher o quadro, vai precisar mais gente. A diretoria né, todos os
professores, para todas as séries. A proposa vai ser até o 9° Ano, mas a escola vai atender só
até o quinto por enquanto, futuramente quando tiver clientela vai se alastrando né, conforme a
clientela ele vai indo...
Diego: No teu entendimento o que significa a escola para os povos indígenas?
Dorvalino: É pra chegar nesse ponto tem que ser muito trabalhoso e com muito cuidado,
porque uma escola diferente, proposta diferente, funcionário, até o próprio prédio em que ser
diferente com a cara do povo e em que ser muito diferente né a proposta pedagógica o
calendário, funcionário e introduzir essa proposta branca para dentro dessa proposta Kaingang
hoje é diferente, hoje a maioria das escolas que funciona que eu conheço no Rio Grande do
84
Sul a proposta pedagógica Kaingang ela está sendo introduzida, ela não esta sendo tão
valorizada os horários de aula Kaingang são muito curto então isso não é recomendável, então
a nossa proposta aqui da comunidade é trabalhar o cinqüenta por cento da proposta Kaingang
e cinqüenta por cento da proposta branca, vamos dizer né, casar as duas coisas no mesmo
horário vamos dizer prevalece, os horários tem que ser igualitário assim mas é aquilo que eu
falei lá no inicio né agora a escola está sendo interessante de uns anos para cá que eu observo
né. Os pais estão dando mais valor para a educação escolar por causa para ter vantagem na
sociedade tem que ser letrado né, senão está sujeito de ficar para traz, porque aquela coisa da
boa vida já se acabou né por que antes nós tinha tudo né, se quisesse fazer uma produção de
grãos ela produzia muito bem, valia a pena você produzir grãos, e hoje não dá prejuízo por
causa dos insumos né para essa produção, então os pais vendo isso estão dando valor para a
educação escolar, estão empurrando os filhos para os estudos e antes não era assim. Antes eles
não gostavam muito que os filhos estudassem, queriam que eles fossem pra roça ou fazer
atividade de casa né hoje parece que está revertendo, mas ainda não reverteu por completo
porque por enquanto os alunos estão assim um pouco a vontade né...frequentam se quiser, se
não quiser não é cobrado, muitas vezes o pai diz não precisa ir para a escola por que tu tem
que me ajudar a fazer isso e aquilo, então ainda tem que esforçar mais para que todos os pais
entendam que a educação escolar tem o seu valor NE.
85
ANEXO B - ENTREVISTA COM JOESMI, PROFESSOR INDÍGENA DA ESCOLA
NA ALDEIA KAINGANG VOGA EM SÃO LEOPOLDO
Fotografia 7 – Professor Kaingang Joesmi
Fonte: Registrado por Diego Severo
Diego: O que tu acha da escola na aldeia?
Joesmi: O que eu acho? Eu acho, eu acho que sim, bom né, a gente trabalha com as mesmas
crianças né que são daqui, a gente já é acostumado a trabalhar com eles né, a gente se entende
86
um ao outro né, eu acho bom. Trabalhar com as crianças daqui. Esses anos que eu to
trabalhando com eles, eu, cada vez mais to gostando né.
Diego: Quanto tempo tu já está trabalhando?
Joesmi: Já faz pra três anos que já trabalho aqui.
Diego: Eu não sei com os pequenos como que é, mas é o Dorvalino eu sei que, não sei se pela
manha tu chega a trabalhar o Kaingang de forma escrita?
Joesmi: Sim, ali o kaingang eu trabalho uma vez por semana com eles. Eu trabalho na sextafeira com eles então vou trabalhar amanha né. Ai eu alfabetizo né, que nem de segunda à
quarta, quinta-feira eu trabalho né em português, alfabetizar eles né, numerais que também é
matemática né. Eu trabalho só com isso com eles até quinta, sexta-feira eu já trabalho em
kaingang com eles. Aprender escrever palavras né.
Diego: E porque tu acha, porque ensinar Kaingang na escola?
Joesmi: Ensinar pra gente, pra eles não perder a cultura né. E é também porque hoje em dia os
rapaz novo, esses guri que estão estudando assim para conseguir um emprego aqui dentro da
aldeia, tem que saber a escrita, sabe escrever em kaingang, saber ler em kaingang, para poder
conseguir senão o estado não contrata para trabalhar aqui dentro da aldeia. Só se consegue
fora né, mas lá fora você tem que estar concursado, tem que está formado com a faculdade
para poder contratar né. E aqui dentro da aldeia sabendo falar, escrever em Kaingang já
contrata né.
Diego: Tu estudou em uma escola indígena? Uma escola na aldeia.
Joesmi: Já desde a primeira série estudei em escolas indígenas já. Eu estudei em Nonoai.
Diego: Daí tinha uma escola dentro da aldeia...
Joesmi: Sim tinha uma escolinha de aldeia lá e ali estudei da primeira até a quarta, quinta
série. Aquele tempo que eu estudava na aldeia em Nonoai, os alunos estudavam da primeira
até a quarta série, aí depois da quarta série eles iam para outras escolas que não eram
indígenas né. Aí desde a quinta série eu estudei fora assim né, e agora não, agora nas aldeias
grande as escolas tem até o ensino médio né. E sai de lá para fazer a faculdade né. E agora,
antigamente não tinha, mas eu estudei até a quinta série assim, assim na aldeia né. Depois da
quinta, a sexta série já estudei fora né.
87
Diego: Então quando tu estudou fora, chegou a completar o ensino médio?
Joesmi: Sim cheguei a completar o ensino médio já. Na escola pública né. Normal assim.
Diego: As disciplinas como é que tu organiza?
Joesmi: Aqui na sala, o meu trabalho com a primeira e o segundo ano só, aí os mais
adiantados já separo, como estava separando os dois aqui né. É que tem uns que são mais, eles
sabem mais por isso eu estava separando eles né. E é aí que eu faço isso né. Eu avalio eles né,
os mais avançadinhos que estão mais sabidos eu já separo eles e assim que faço, faço
trabalhos diferentes.
Diego: O que tu acha das crianças lhe chamarem de “tio”?
Joesmi: Eu vejo normal assim né. Porque que a nossa aldeia é pequena né e tem aquele
costume né os pais dizer que as pessoas mais velhas as crianças tem que chamar de tio, os
mais velhinhos tu tem que chamar de vô. Ali nem que tu não é parente chegado, mas eles
chamam você de tio ou é costume né. Já desde pequenos né, aí eu acho normal as crianças me
chamarem de tio, aí tem uns que me chama de professor, mas eu acho normal né. Eu não acho
tão diferente assim.
Diego: É que no contexto do branco, e isso até é mais ou menos cortado das crianças quando
pequenos. E aqui o contexto é totalmente diferente pela extensão territorial e etc. E a
avaliação dos alunos, como é que tu faz com eles?
Joesmi: Eu observo eles né, pelas leituras essas coisas né pelas coisas os trabalhinhos que eles
fazem a gente já vai avaliando, a gente sabe quem é que se comporta melhor, qual é que
respeita os coleguinhas e etc. É assim que eu faço as avaliações né. É que eu to alfabetizando
né ali o aluno que já está pronto pra ser promovido, tem que saber ler, fazer uma frasezinha e
sabendo decora aquele ele já está sabendo né. Aí ele sabendo separar a silaba, ele já está
pronto né. Já está alfabetizado. E é assim que eu faço.
Diego: Tem repetência na escola?
Joesmi: Sim, tem uns que repetem. Tem uns aí, eu acho uns dois três alunos que eu acho que
já repetiram umas três vezes já. E o problema das crianças não sei se não é os pais orientarem
também né, porque tem aluno, mesmo nesses anos que eu to trabalhando acho que é normal
né as crianças, a gente vê pelo jeito da criança que quer apreender né e aquele que não quer
88
apreender nem, que nem agora ainda falei pra ela quando eu escrevo no quadro tem uns que
ainda querem prestar atenção e tem uns não né, uns nem tão. Aí o problema é vê os pais
também né, que nem eu digo pra eles não adianta eu ficar o dia inteiro gritando pro quadro
aqui e vocês não prestar atenção, vocês tem que prestar atenção. Em meia hora, duas horas,
meia hora de atenção aqui a pessoa pega, só que ali eu acho que o que falta é um pouco dos
pais, acho que os pais tem que falar pras crianças dizer ó você tem que prestar atenção na sala,
tem que respeitar o professor ali. Eu acho que é assim né.
Diego: Quando os pais vão matricular as crianças, onde é que eles matriculam?
Joesmi: Eles dão os documentos pra nós né das crianças para a gente matricular. Aqui na
escola, no Haidee mesmo. É que aqui não tem diretor ainda né pra fazer matricula ainda..
Diego: É o Alécio e o Dorvalino me comentaram que estava em processo e tal...
Joesmi: Sim, sim ta andando ainda né, ele é muito demorado.
Diego: Para você o que significa a escola, diferenciada com professor indígena e etc, para os
povos indígenas?
Joesmi: Eu não acho diferenciada, eu acho o mais diferenciado é que só pela língua e é só isso
que é diferenciado e talvez eu penso também, talvez a gente fomos demais sobre a nossa
cultura, nossa língua, nossa letra e a escrita, só que ali na hora eu penso né o que eu me
preocupo é isso né que eu quero que o aluno vai lá em outra escola lá que não é indígena vai
muito mal né. Que nem meu pia que estudou aqui até a quinta série, mas foi lá e rodou três
vezes, foi mal em português em matemática, é porque eu acho que atrapalha um pouco, a
gente trabalha demais com as nossas culturas também. Eu acho, eu acho bom também a nossa
cultura, mas acho que deve ter um pouco de limite né porque ali que nem vai na faculdade lá,
lá não vai sair as questões sobre né para responder em Kaingang, ali eu acho mais difícil, eu
penso nisso né. Ali porque que eu vou alfabetizar mais em português e matemática mais
assim, porque já se sai daqui vai lá para outra escola já, já sai sabendo né. Eu penso pelo meu
guri que estuda aqui, esses dias eu tava olhando os trabalhos dele e as provas lá, não achei
muito bom né, matemática, português, ciências é porque talvez é nós aqui que não
trabalhamos mais em cima dele, trabalhamos mais a nossa cultura, mas eu acho que um pouco
atrapalha também né. Por isso que eu trabalho mais aqui. Eu alfabetizo mais aqui em
português e matemática porque eu penso nisso, por isso eu deixei o Kaingang só para sextafeira ali aprendendo as nossas letras e as consoantes kaingang, o alfabeto kaingang, sabendo
89
falar umas palavrinhas já está pronto né, sabendo escrever uma palavra já está bem. Eu acho
que muito atrapalha um pouco, ai eu acho que os professore indígenas deveriam trabalhar
bastante em português, tem que ser uma média, não muito português nem muito kaingang.
Tem que ser junto né. Eu acho isso, eu penso nisso assim.
Diego: Até porque o kaingang se fala bastante na comunidade?
Joesmi: Aqui na comunidade a grande maioria fala kaingang né. Então a gente ensinando
umas palavras, formando algumas palavras já está bom né.
90
ANEXO C – ENTREVISTA COM IVANI, VICE-DIRETORA DA ESCOLA
ESTADUAL DE ENSINO MÉDIO PROFESSORA HAYDÉE MELLO ROCHA.
REALIZADA DIA 15 DE ABRIL DE 2011
Diego: A escola na aldeia como ela está estruturada legalmente?
Ivani: Ela é como se fosse uma extensão da nossa. Eles são matriculados aqui, os professores
são lotados aqui, eles assinam ponto aqui. A verba que vem para eles vem junto com a nossa.
Então só vem separado né, vem o valor separadinho, as compras para eles é a gente que faz,
mas é uma escola independente, ela funciona independente porque é deles, mas é tudo por
aqui. Tudo vinculado para aqui.
Diego: A organização curricular da escola lá da aldeia, como é?
Ivani: Ela é assim, as reuniões eles participam, deveriam participar conosco né. É tudo igual,
se muda a nossa avaliação é igual pra eles. Então a parte pedagógica tudo eles participam
conosco.
D: Só para ver se eu entendi, a avaliação do professor ou a avaliação dos alunos?
I: A avaliação dos alunos. Ela é feita da mesma forma como os nossos são avaliados, eles
participam das nossas reuniões das orientações, são dadas pela nossa escola. Até o
preenchimento de fichas e etc., tudo é feito conforme a nossa escola. Porque eles estão lotados
na nossa escola.
Jonas: Então o caderno de chamada, provas essas coisas vocês chegam, o caderno de chamada
o professor tem que passar as notas a mesma coisa como os demais?
Ivani: sim, a mesma coisa só que nós não temos como, como é que vou te dizer nós não
olhamos as provas que eles aplicam para os alunos deles, isso não. Mas a gente tem todos os
dados aqui, eles preenchem o material assim como a gente preenche. Até porque as vezes as
gurias da secretaria orientam eles tudo, ajudam eles né. A preencher. O sistema de avaliação é
igual, tudo. Claro que os professores deles são da língua, são Kaingang, que nem eles né, mas
ah o sistema de ensino é igual. Uma vez eles tentaram vir aqui, mas não deu certo mesmo
quando eles foram direto nossos alunos, eles tinham que ter um professor da língua deles. E
91
daí de vez em quando, o dia que eles tinham essa aula a gente tirava os alunos da sala e esse
professor vinha dar aula, antes de eles terem a escola deles.
D: Então ficava só os alunos Kaingang com esse professor os outros saiam da sala de aula.
I: é. E agora que eles tem a escolhinha deles, daí funciona lá. Daí depois do 5º ano eles vêm
aqui. Daí eles são, tanto é que assim ó, não tem distinção, tu viu o que ela disse, eles não estão
separados por etnia. É tranqüilo é normal.
J: E assim, eu não sei como funciona na escola é por trimestre?
I: Trimestre.
J: E daí no trimestre, têm assim um número de provas que tem que fazer?
I: É assim ó, o professor tem a liberdade de fazer as avaliações, então tem assim ó, aham no
primeiro trimestre a nota é vinte. O segundo trimestre é trinta, e o terceiro trimestre é
cinqüenta. Então no primeiro trimestre a nota vai até 18 que é a nota que o aluno tira por
provas e trabalhos, e do 18 ao 20 que é dois isso é o ser e conviver. E dentro desses 18 é
estipulado né, o que é prova, o que é trabalho. É estipulado assim, a nota.
J: Sim e aí o professor tem.....
I: sim aí a professor tem autonomia, o professor administra. E daí ele nesse ser e conviver,
sobra esses dois pontos né, que é dai onde tu avalia o aluno que faz trabalho, o aluno assíduo.
E eles eu acho que funciona assim também, a gente não sabe se eles cobram exatamente
assim, mas é para funcionar assim.
J: E nessas turmas assim multisseriadas então a partir desta avaliação vai passando para a
próxima etapa, até chegar o quinto ano?
I: É, não o quinto ano agora é lá né? Tu sabe que mudou. Até então a gente tinha primeira,
segunda, terceira etc. E agora não, nós estamos no quinto ano, por que começou primeiro ano,
segundo ano, e já estamos no quinto, vai chegar daqui a três anos que vai ser eliminada a
oitava série, que dizer vai ser à nona série. E pra eles também é assim funciona igual.
I: Nós tínhamos até o ano passado a nota era conceito, e daí a pedido assim da maioria dos
professores e até dos alunos voltou para nota. Tu sabe que tudo se constrói né, não existe, a
gente vai fazendo experiências, não deu então tem que mudar isso, muda aquilo, e chegou-se
92
a um consenso que tinha que voltar a nota. Até quando a gente não sabe né, porque daqui a
pouco é conceito de novo, é uma construção né. O que a gente vai fazer.
J: E aí os conteúdos que eles trabalham lá, então, é para ser os mesmos conteúdos que vocês
trabalham aqui?
I: Sim, eles trabalham os mesmos, só o que eles tem de diferente é a língua deles, que eles dão
importância né, o trabalho deles próprio com a língua deles, a cultura deles isso eles fazem.
D: A matricula das crianças, tu comentou que eles vem se matricular aqui né?
I: Sim, normalmente quem faz a matricula, quem traz a documentação aqui são os
professores. Porque muitos país não querem vir, até por assim meio constrangimento, mas
agora dos que são nossos alunos, aqui quando dá alguma situação, a gente chama eles vem.
Eles são bem interessantes, são bem cultos assim. Eles são bem como é que eu vou dizer eles
tem bastante a noção da educação deles é bem, é bem importante, eles são educados, eles
cobram das crianças, é uma educação bem bonita assim. Eu não sei se ela funciona na pratica
assim como aqui a gente vê, mas eles tem uma coisa assim, eles tem um prioridade é muito
importante, pra eles a educação é bem interessante. A forma do respeito, que eles tem mais do
que os nossos alunos aqui. Entre pai e filho tu percebe, que ainda existe muito respeito, eu to
falando meu filho dá licença, então assim eles tem um respeito muito bonito. Que muito dos
nossos a gente já não vê mais aí. Não é todos né, mas tem uns aqui que a gente vê que não é
muito fácil não. Normalmente aquele aluno que não respeita muito os professores ele já tem
uma certa tendência a não respeitar os país. Esse é uma coisa que é bem claro, que a educação
vem bem de casa.
D: Então quando os país, ou os professores lá da aldeia vem matricular as crianças e trazem os
documentos elas já são automaticamente direcionadas lá para escola da aldeia?
I: Sim, sim, sim. Até o quinto ano é direto lá. Depois em diante é que eles estão aqui.
D: Sim, mas daí vamos supor uma situação vem uma família, mas daí com o endereço da
aldeia eles vão direto pra lá?
I: è aldeia fica lá.
D: A escola na aldeia quanto tempo funciona? Assim desde que tá vinculada aqui.
93
I: Olha, não é muito tempo, porque ela tava lá no Charrua, acho que vai faze o que uns quatro
anos, é mais ou menos em torno de uns quatro anos. Tu quer que eu comfirme?
D: É se houver possibilidade.
I: há três anos (desde 2008 conforme informação da secretaria da escola)
D: Isso tu também já chegaste a comentar, mas a estrutura na organização da escola na aldeia
quanto aos professores, funcionários e etc?
I: Eles têm: dois professores, tem uma funcionária uma merendeira, e uma da limpeza. Eles
tem, a escola deles é uma dependência só, é uma escola, uma sala de aula com uma cozinha
pequena. E ali tem duas turmas em um turno e três no outro. E daí eles tem a merendeira e a
funcionária da limpeza.
D: Então tu conseguiu né o numero de alunos matriculados na aldeia?
I: Lá não, opa desculpa, lá sim. Três, oito dá onze, vinte e três, vinte e oito, trinta, trinta e um.
D: Suponho que os dois primeiros anos pela manha, e os demais pela tarde?
I: Sim, de manha é o professor Joesmi,
D: Assim, mal ou bem nós já abordamos essa ultima questão, mas existe diferença no
funcionamento da escola aqui na estrutura oficial da escola e da escola que também é o
Haydee só que está localizada lá na aldeia?
I: Existe né, porque nós temos toda uma infra-estrutura maior já, poque já tem toda uma
escola em andamento eles não. Eles tem aquele material básico, e até porque eles não tem
nenhuma, não tem nem verba própria. Eles não tem. Então eles vem aqui, eles pedem o
material a gente fornece o giz, a folha de oficio, a merenda, a classe essas coisas a gente vai
dando conforme a necessidade deles. E eles é só um pavilhãozinho, é só uma escolinha. Até o
ano passado, no inverno eles vieram pedir, mata junta que a escola tinha frestas, e tava frio e
daí a gente comprou, não sei quantos metros de mata junta, os pregos. Eles arrumaram, fogão
a gente deu. Quando eles não tem as coisas a gente providencia, sempre com um certo
controle, porque a gente também não tem tanta verba disponivel. Porque a partir do momento
que a escola fosse deles, sozinhos a verba deles é muito maior. Como eles índios. Mas como
aqui nós, a gente tem, eles tem a verba que a gente ganha por aluno é muito pouco.
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J: E assim nessa no caso de arrumação normalmente eles procuram também, fazer as coisas
por eles? No caso que nem tu falou, eles vem pediram a questão do mata junta tal.
I: Eles arrumaram.
J: O que eles poder arrumar eles...
I: Eles arrumam, eles fazem. Até porque eu acho entre eles existe uma parceria, entre a
própria aldeia né. Porque lé na verdade, quem manda lá é o cacique. Até na escola, o cacique
manda. Daí eles. E eles fazem e eles são bem parceiros, porque eles pegaram, a gente mandou
a mata junta, os pregos que eles queriam e depois foi lá eles arrumaram tudo direitinho.
D: E assim é sempre eles que trazem as demandas?
I: Sim. Até por exemplo, os vidros estavam todos quebrados, daí o que a gente fez a gente
chamou o vidraceiro, ele foi lá fez as medidas e depois arrumou. A gente só depois paga aqui,
né porque.
D: Acontece de algumas vezes alguém da escola ir até aldeia?
I: Muito pouco. Esporadicamente. É uma coisa que não nos dá prazer, foi uma coisa que
colocaram para gente, e nós fazemos a nossa parte e deu. A gente não faz nada além disso. Se
nó poderíamos fazer, não sei. Ninguém quer a gente não tem disponibilidade para isso, tanto é
que tu pode vê, hoje da direção eu estou sozinha aqui. Então como é que tu ainda vai
disponibilizar tempo para ir atender eles. Não tem como, eles até gostariam que agente fosse
mais lá, mais ao mesmo tempo quando a gente vai. Eles se sentem meio constrangido, a gente
já foi lá em algumas situações e parece assim que daí eles ficam meio que, não sei te explicar
eles não recebem a gente com tanta naturalidade, que eles entram aqui na nossa escola, porque
quando eles vem para assinar o ponto, eles assinam o ponto aqui. Então eles vem, eles entram
assinam o ponto, eles conversam, se eles precisam pedir alguma coisa eles pedem. Quando
eles precisam de alguma coisa da secretaria também eles chegam, eles entram, não é que eles
são atendidos assim do lado de fora, não, como a comunidade, eles entram eles tem acesso
aqui dentro bem tranqüilo, mas eles não nos dão esse acesso. Eu acho que assim, é próprio
uma situação constrangedora, porque aqui eles tem tipo uma casa bonita, e a deles não é, eu
tenho a impressão que eles se sentem assim, um pouco. Não sei te dizer isso é opinião minha
né.
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D: Sobre o pouco acesso na escola da aldeia, eles não dão acesso a ela ou tu percebe que eles
ficam....
I: Não eu acho que é um pouco de constrangimento, não é que eles não nos dão acesso. Eles
ficam constrangidos. Eu acho que é constrangimento. Porque eles assim, são bem legal, eles
não, eles dão bem assim para conversar eles são bem receptíveis assim, até porque eles são
formados. Eles tem formação tudo.
J: E esse processo assim que se deu de instalar a escola lá na aldeia e se vinculada aqui, foi
eles que vieram atrás disso, como é que foi?
I: Foi a prefeitura que colocou, eles estavam lá, e era uma zona de risco né, uma beira de
estrada. Daí a prefeitura colocou eles ali, e via CRE automaticamente eles vieram para nós,
porque antes eles estudavam no Mario Quintana, eles não tinham a escola independente, eles
estudavam todos lá na escola Mario Quintana, e a partir do momento em que eles vieram aqui
acho que um ano, ou dois eles estudavam aqui também, aí depois que eles tiveram a escolinha
deles lá. Isso foi via CRE né a gente não.
D: Como tu enxerga a relação dos professores e funcionários lá da escola com o pessoal
daqui?
I: É, como é que eu vou te dizer como a gente não tem aquela convivência dia-dia, eles não
tem não existe uma aproximação como se agente fosse colega de trabalho, é assim aquela
pessoa que chega de vez em quando como visita e eles não tem, eles não participam como,
eles não tem uma presença ativa como nós, eles vem, eles vem de vez em quando nem sempre
quando são chamados para as reuniões eles vem. E se agente diz, não mas tem que vir, não
tem que não. A gente põem falta, mas eles não se importam eles querem é assinar o ponto,
sem vim por que eles acham que eles não precisam cumprir que nem nós.
96
ANEXO D – RELATO DA ENTREVISTA COM O CACIQUE ALÉCIO DA
COMUNIDADE KAINGANG VOGA DE SÃO LEOPOLDO
Fotografia 8 – Cacique da aldeia Kaingang Voga, Alécio
Fonte: Registrado por Diego Severo
97
A comunidade indígena está no Bairro Feitoria desde 2007n anteriormente a este
deslocamento haviam vários acampamentos dos Kaingang no viaduto da Br-116 desde o ano
de 1992. A partir de 2002 um grupo ficou acampado na região permanentemente. O cacique
chegou em São Leopoldo por volta de 2005, anteriormente a sua chegada a prefeitura tinha
lançado várias propostas para a troca de localidade, mas alguns moradores tinham certa
resistência.
Então foi tomada a decisão na comunidade que iria se reivindicar território, para isso
fecharam parte da rodovia federal, assim a prefeitura voltou a procurar o grupo a fim de
mostrar algumas áreas no município. Formaram um grupo de indígenas que com um carro da
prefeitura visitaram algumas áreas, se agradaram de um terreno próximo ao Rio dos Sinos,
mas foram alertados por moradores do local que quando o rio enchia a área ficava alagada.
Com essas ressalvas e um entrave familiar que tinha com a área desejada fez com que os
indígenas optassem pelo terreno onde atualmente estão alocados.
Na atual localidade da aldeia, moram aproximadamente 30 famílias, totalizando cerca
de 150 pessoas (entre crianças e adultos), a área do local é de 2,5 hectares de terra
pertencendo ao município. A Funaí reconhece que no local existe uma comunidade indígena,
mas a área ainda não pertence à União.
Sobre a pretensão da comunidade em aumentar a extensão territorial da aldeia, disse
que a comunidade tem intenção, mas acha difícil devido ao desconhecimento da situação dos
terrenos que existem em volta da aldeia. Os moradores da aldeia são de origens diversas,
grande parte da área de Nonoai e arredores. O cacique é natural da terra indígena de Votorro,
juntamente com seus pais. Sobre sua escolarização o cacique mencionou que estudou em uma
escola indígena em Charrua, que era mantida pela Funaí.
Quanto ao falar Kaingang, destaca que falam continuamente em casa e prefere que
falem somente em Kaingang deixando o português somente para o estritamente necessário.
Segundo o cacique a língua é o que o indígena tem de mais importante, pois é a partir dela
que o índio conquista seus direitos. Que a luta deve ser para não deixar morrer a língua entre
os Kaingang.
Sobre a escola, relembra que é uma instituição que foi trazida pelo branco, o índio não
precisava de estudo e outras coisas que hoje necessita. E a escola diferenciada é um direito do
indígena, pois muitas coisas são diferentes como o horário. Quanto a produção de artesanato
diz que o estudo está tirando o interesse dos mais jovens, vê que uma aula sobre a produção
98
de artesanato é essencial para a sobrevivência cultural, o artesanato para o indígena é uma
questão de sobrevivência. Pois quando o índio sabe fazer artesanato ele pode se sustentar em
qualquer lugar. Nunca vai passar fome.
Quanto à importância da escola para os povos indígenas disse que preferia não
precisar de tanto estudo para discutir e reivindicar seus direitos, pois aqueles que lhe tirou
seus direitos deveria saber que ele tem direito a estes e lhe devolvesse o que pertence ao índio.
Citou como exemplo os Guarani que disse ser uma etnia que preserva bastante sua cultura,
mais do que os Kaingang, e falam muito pouco o português.
99
ANEXO E – DESENHOS DOS ALUNOS INDÍGENAS DO TURNO DA MANHÃ
REPRESENTANDO A ESCOLA
100
101
ANEXO F – DESENHOS DOS ALUNOS INDÍGENAS DO TURNO DA TARDE
REPRESENTANDO A ESCOLA
102
103
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106
ANEXO G – AUTORIZAÇÕES PARA USO DE IMAGEM E ENTREVISTA
107
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