Um fantasma percorre o mundo do livro. É o fantasma do preço fixo.
Bernardo Jaramillo H.
Consultor de Indústrias Culturais, Colômbia.
“Choro pelo desaparecimento de 10% das livrarias. Mas estávamos falando de que o livro estava próximo
a desaparecer,e não só as livrarias. Nada disso aconteceu. Uma vez mais, existem mais motivos para
celebrar que para chorar”.
Com muita pressa, vemos aos agentes do setor editorial na América Latina introduzir o debate sobre a
necessidade de adotar políticas de preço fixo na venda de livros na região. Pela Argentina passou a onda
em 2001 e acaba de situar-se no México. E já começa a agitar-se no resto dos países. Obviamente, os
interesses por detrás do tema são os mesmos em cada um dos países. Estamos falando de uma indústria que se concentra de maneira crescente, internacionaliza-se e se integra verticalmente. Boa parte dos
livros que se consomem na região é produzida por grandes casas editoriais internacionais, e chegam ao
mercado, seja por via das importações ou através das operações locais dessas empresas que, em seu
passo, vieram absorvendo os pequenos selos editoriais que eufemisticamente se deram por se chamar
“independentes”.
Na Europa, onde oito países já têm leis ou acordos formais com relação a esta prática comercial, o tema não
tem sido fácil. As autoridades competentes têm se pronunciado em múltiplas ocasiões pedindo a abolição
da prática por considerá-la restritiva da livre concorrência e contrária os interesses dos consumidores.
Invoca-se, no discurso, o duplo caráter dos livros como bens culturais e bens econômicos e ali se inicia a
justificação. Seguindo esse fio, teriam que ser estabelecidas políticas de preço fixo para todos os bens e
serviços culturais. O comércio dos discos, por exemplo, padeceu similares fenômenos que o do livro (desaparecimento das pequenas lojas de música, penetração das grandes superfícies). São muitas as análises
que se fizeram ao redor da manutenção dos preços de venda a varejo e seu impacto na livre concorrência
e no consumidor .
¿As livrarias se salvarão?
Salvemos as livrarias! Esse é o argumento que esgrimem quase todos os defensores da imposição do
preço fixo aos livros. Pois bem, se esse for o tema chave, vale à pena se deter um pouco no mesmo. A
tese subjacente na mortalidade das livrarias se pode reduzir a:
- A livraria é a garante da diversidade na oferta de livros. Inobjetável.
- A rentabilidade da livraria depende de um adequado balance entre livros de rápida saída (“best sellers” e livros
de temporada, os textos escolares, por exemplo) e livros de circulação lenta. É a lógica do comércio.
- No mercado, as livrarias concorrem com outros estabelecimentos comerciais na venda dos livros de saída
rápida. Aqui aparecem as grandes superfícies.
1 Matthew Engel The Guardian, março 6 de 2001, “Bookshops are closing. Hurrah”.
2 Al respecto, puede revisarse Ao respeito, pode revisar-se o interessante texto de Pedro Schwarz “La Liberación
del Libro. Una crítica del sistema de precio fijo”. IUDEM. Documento de Trabalho 2000-2. http://www.ucm.es/
info/iudem/schw.DT00-2.pdf
- Como as grandes superfícies podem dar grandes descontos (por suas compras massivas; por suas
estratégias de marketing; por suas negociações com as editoras), então entram a concorrer “desigualmente”
com o livreiro.
- A conseqüência é que as pequenas e médias livrarias ficam sem a porção mais importante do mercado
e indefectivelmente tendem a desaparecer.
A receita mágica parece ser: que não haja descontos nos preços dos livros, que cada título se venda pelo
mesmo preço. Nessa lógica, ganham todos: editores, livreiros, distribuidores e as grandes superfícies. O
único perdedor é o leitor: pagará mais pelos escassos livros que pode comprar.
O sistema nasceu na Grã Bretanha, a finais do século XIX e foi formalizado em 1900, sob o nome de
“Net Book Agreement”, modelo que posteriormente foi translado a outros países europeus. Em 1962, as
autoridades de vigilância da concorrência examinaram o acordo e apesar de achá-lo contrário às práticas
comerciais normais, autorizaram sua continuidade diante do “risco” que supunha para o mercado do livro.
Em 1997, diante de um novo exame, a Corte determinou que o acordo era contrário ao interesse público e
ali terminou. Acabaram-se as livrarias na Grã Bretanha? Apoderam-se do mercado as grandes superfícies?
Entrou em crise a indústria editorial?
Parece que não. A evidência existente parece indicar que a indústria editorial britânica continua forte. As
livrarias incrementaram-se: em 1995 se falava de 1.894 livrarias independentes ; em 2001, a cifra que reporta
The Publishers Association é de 3.200 , apesar da fonte do primeiro dado afirmar que haviam se reduzido
a 1.699. E o que é mais interessante, as livrarias não perderam participação de mercado diante das grandes superfícies: em 2001, 63% das vendas de livros foram feitas pelas livrarias (grandes cadeias, livrarias
independentes); em 2004, essa participação era de 57,9%. As grandes superfícies participavam com 5,1%
das vendas em 2000; em 2004, essa participação se incrementou a 5,6%. Quem ganhou? Obviamente as
vendas por correio (clubes de leitores) e as vendas através as Internet.
No relatório de 2000, estas últimas apareciam dentro da categoria “Outros”, o qual representava 3% das
vendas; em 2004, seu peso relativo se incrementou a 9,1%. No mesmo período, os clubes de leitores passaram de uma participação de 9,5% a 17,7%. Um percorrido similar poderia ser feito pela maior parte dos
países europeus, nos quais existe já uma longa tradição das práticas de preço fixo dos livros.
Na França , por exemplo, as cadeias especializadas (os supermercados culturais – leia-se FNAC) e as livrarias
participavam em 39.6% das vendas de livros em 2002, enquanto que as grandes superfícies representavam
18,9% e as vendas por clubes e Internet, 22,5%. Em 2004, essas cifras variaram a 48,7%, 20,1% e 22,6%,
respectivamente. E o setor editorial continua sólido e crescendo.
Na Espanha , em 2004, as livrarias e cadeias de livrarias realizaram 49,2% das vendas e as grandes superfícies 10,2%. As vendas por correio, clubes e Internet representaram 8,3%.
O modelo imperante em alguns países da Europa (Espanha, França, Portugal, Dinamarca, Irlanda, Holanda,
Alemanha, Áustria) e no Japão, é simples:
3
Matthew Engel The Guardian, março 6 de 2001, “Bookshops are closing. Hurrah”
4 The Publishers Association “UK Industry Statistics 2000-2001 y 2004”. http://www.publishers.org.uk/paweb/
paweb.nsf/pubframe!Open
5 Centre Nationale du Livre. “Le secteur du livre 2004-2005 : Quelques chiffres clés ». http://www.centrenationaldulivre.fr/IMG/pdf/SECTEURlivre04-05-3.pdf
6 Federação de Grêmios de Editores da Espanha. “El sector editorial español en el año 2004”. http://www.federacioneditores.org/SectorEdit/Informe2004.asp
- O editor fixa o preço dos livros
- Todos os vendedores estão obrigados a vendê-lo a esse preço (com uma margem de desconto que não
pode passar dos 5%).
- Estabelecem-se algumas exceções para as vendas a bibliotecas e nas feiras do livro.
- Determinam-se prazos para que um título possa sair ao mercado com descontos.
Estes sistemas não saem todos de um mandato legislativo. Isto somente se dá no caso da Espanha, da
França, de Portugal e do Japão. Em outros países europeus, é mais um costume comercial que, no caso
da Alemanha, remonta-se há vários séculos atrás.
La gestión da indústria editorial européia foi forte para conseguir que as disposições se estabeleçam e se
mantenham, pois as mesmas não resistem nenhuma análise feita pelas autoridades que regulam as práticas
de concorrência. Na Espanha, o Tribunal de Defesa da Concorrência se pronunciou, em 1997, contra esta
prática, em um documento que analisa detalhadamente os prós e os contras da adoção do preço fixo. Não
me resisto a citar aqui as suas conclusões finais:
“Em conclusão, a regulamentação sobre o preço fixo dos livros em geral, e a proibição da prática de descontos em
particular:
a. Não protege a criação literária.
b. Não favorece a leitura e a difusão da cultura e conhecimento.
restringe as vendas de livros.
d. Não protege aos títulos de venda lenta e, portanto, não ajuda nem aos editores nem aos livreiros que especializam
em ditos títulos.
e. Não incrementa os serviços ao cliente oferecidos pelo livreiro no ponto-de-venda.
f. Não protege à pequena livraria de seu desaparecimento, assim como também não a protege da ameaça dos
grandes estabelecimentos de distribuição a varejo.
g. Restringe a modernização do tecido comercial livreiro.
h. Prejudica ao comprador habitual de livros, senão também ao comprador ocasional, limitando a difusão da cultura
entre aqueles cidadãos com menores hábitos de leitura.
i. Constitui uma medida desproporcionada para dar solução ao problema da dupla imposição de margens.
j. Favorece a estabilidade do reparto das rendas derivadas da não concorrência entre os diferentes operadores, o
que se materializa - de fato - na consolidação de uma estrutura de mercado similar a um cartel, em prejuízo dos
consumidores.
k. Diminui a renda dos cidadãos.
l. Mas, sobretudo, encarece o que poderia ser mais barato.
Todos estes efeitos nocivos da atual regulamentação supõem um custo elevado para a sociedade espanhola. De fato,
é possível quantificar um orçamento das restrições à concorrência no setor que situaria o custo da não concorrência
em preços no setor do livro no entorno dos 50.000 milhões de pesetas anuais.
Muitos países questionaram no passado o sistema de preço fixo dos livros e outros o estão questionando na
atualidade. As experiências liberalizantes desenvolvidas em uma infinidade de países corroboram o conjunto de
conclusões enunciadas anteriormente sobre os efeitos do sistema de preço fixo e a inconsistência das argumentações
contrárias à liberdade de preços.”
7 Tribunal de Defensa de la Competencia de España. “Informe sobre el precio fijo de los libros”. Septiembre de
1997. http://www.tdcompetencia.es/
Na Itália, não posso deixar de indicá-lo, onde não há uma lei, nem acordo de preço fixo, as livrarias vendem 78% da produção editorial e as grandes superfícies 15,5%. Nos Estados Unidos, onde também não
há um acordo de preço fixo, as grandes superfícies somente representavam, em 2001, 5,6% das vendas
totais, as livrarias 33,1% e os clubes e a Internet , 30,7&. Na Suécia, que abandonou o sistema em 1970,
não foram experimentadas mudanças notáveis, diferentes às tendências globais no mercado de produção
e distribuição de livros. A Finlândia também passou a um regime de preço recomendado. Na Europa, além
do mais, o processo de integração econômica teve de enfrentar o tema do preço fixo, que é contrário às
normas de concorrência da União Européia e restringi-lo somente às fronteiras nacionais. Apresentaram-se
problemas com as vendas em Internet e as vendas entre países que compartilham a fronteira. Seria muito
fácil para alguém em seu país com um preço fixo, pedir os livros a outro país com preço livre.
Trago isto a colação porque é de sumo interesse para a análise o poder entender o que é que está acontecendo no mercado de distribuição do livro e nas formas em que o público acede ao mesmo. Nesse sentido,
o argumento de que a concorrência das grandes superfícies está destruindo as livrarias pode ser bastante
parcial. Haveria que examinar outros elementos dentro da problemática das livrarias para ter cabal conhecimento das tendências existentes e a exploração de possíveis instrumentos de política que façam viáveis
sua sustentabilidade no futuro.
Nós poderíamos pensar em outros elementos a serem explorados, tais como:
- mudanças nas tendências sócio-demográficas
- mudanças nos padrões de compra por parte dos consumidores
- práticas comerciais entre editores e pequenos livreiros
- práticas comerciais entre editores e cadeias de livrarias
- práticas comerciais entre editores e grandes superfícies
- cobertura geográfica da distribuição de livros (alta concentração nas grandes cidades)
- atraso relativo do comércio de livros frente a outras atividades comerciais
geográfica, formas de atendimento e apresentação, etc.)
(comercialização, localização
- concorrência de outras formas de leitura
- concorrência de outros fornecedores de livros, diferentes das grandes superfícies (Internet, correio, jornaleiros, jornais e revistas, clubes de leitores, etc.)
Um diagnóstico ajuizado do setor comercial do livro, tem que lançar uma luz clara sobre para onde vão as
livrarias e para onde vai o comércio do livro. Acudir ao fácil expediente de promover uma lei de preço fixo,
pode levar simplesmente a copiar modelos – cujo sucesso não foi aprovado- em nossas legislações. Já
ocorreu na Argentina, onde - em Novembro de 2001, foi aprovada a Lei da Defesa da Atividade Livreira, a
qual ordena a adoção do sistema de preço fixo dos livros. Afortunadamente, acho, que não teve aplicação.
Recentemente, no México, foi aprovada a lei de fomento ao livro, dentro da qual - um dos temas mais
debatidos - foi do da implantação de uma política de preço fixo dos livros. Até a data do fechamento deste
artigo, ainda não havia sido anunciada a sanção presidencial para tal lei.
Maior oferta de livros? Incentivo à criação?
Se o preço é fixo, o livreiro promoverá todos os livros e isso fará com que se venda mais e que os preços
tenham tendência de baixar. Isto incentivará a demanda e os editores poderão incrementar sua oferta e,
nessa medida, os criadores ficarão incentivados a produzir mais e, assim sendo, seus ingressos aumentarão.
Lindo conto de fadas. Aí sim, para os que narram, pareceria que a competição perfeita pode ser induzida
pela via dos preços fixos, da abolição dos descontos.
Mas o mundo real não é assim. A oferta disponível nas livrarias, que cresce exponencialmente, encontrase altamente diferenciada e não pela boa ou pela má vontade dos livreiros. É o editor que fixa, de alguma
maneira, as tendências do mercado. Tal como ocorre em outros âmbitos comerciais e em outras indústrias
culturais, os fenômenos de venda em massa, são alimentados diretamente pelos instrumentos de distribuição e marketing das grandes empresas. As exigências de rendimentos demandam produtos fáceis para
o consumo em massa, de rápida rotatividade no mercado, para iniciar novamente o ciclo. E essa almejada
equação de um livreiro que tenha sortimento de “best sellers” e outro de livros de baixa rotatividade, os quais,
alimentados pelo preço fixo, permitam-lhe manter-se e crescer, soa como ciência ficção. Essa produção
editorial, para satisfazer ao mercado massivo, tem que ser distribuída através dos canais apropriados desse
tipo de mercado. E é nas grandes lojas, especializadas ou não, onde se efetua o ato de compra desse
produto. E, certamente, a grande superfície que compra 100.000 exemplares do livro que está na moda e
vende-os a um preço fixo, recebe um desconto bastante superior ao do livreiro de bairro que esgota seu
mercado com 50 ou 100 vizinhos. Simples translado de rendas.
A explosão na oferta editorial tem estado relacionada com maiores níveis educativos, com uma crescente
especialização em todas as disciplinas e no incremento das ferramentas tecnológicas que tornam mais fácil
a difusão do conhecimento. Além da rede, os notáveis desenvolvimentos na impressão digital e no preparo
editorial, multiplicaram a oferta de livros, impressos ou eletrônicos, para os leitores do mundo. As regras do
jogo, quanto à relação entre autores e editores, não mudaram em nada por razões da política de preço fixo.
A oferta e a demanda editorial continuaram crescendo e as livrarias mantêm sua presença numa importante
porção do mercado, sem que se possa mostrar qualquer correlação entre esses desenvolvimentos e a
imposição de políticas de preço fixo.
Uma reflexão adicional
Preço fixo na Europa e no Japão? Lá verão como se acomodam. Uma variante fundamental neste mundo
do livro não é tão grave lá como aqui: o preço vs. o ingresso disponível das pessoas. Hoje, para um latinoamericano padrão, o preço de um livro em média pode estar perto de 15% de um salário mínimo legal.
Qualquer carga adicional (neste caso, a impossibilidade de aceder a descontos) torna-se mais um obstáculo
para o acesso social de um livro. O panorama fica mais grave, se nos colocarmos em uma região do mundo
na qual, pouco mais da metade da oferta editorial, está no segmento de textos escolares. Na Espanha, a
Lei de Preço Fixo excetua os livros de texto, mas a gestão está feroz nestes dias, reclamando a eliminação
dessa exclusão. Já imaginaram o impacto sobre a qualidade da educação de uma oferta de livros de texto,
à qual não há acesso para descontos?
Os problemas das livrarias e da comercialização de livros não estão na órbita exclusiva dos costumes
comerciais. Isto vai mais a fundo e está no contexto de uma política de fomento à leitura e ao livro, onde se
começa dar passos firmes na região.Nos últimos cinqüenta anos temos visto múltiplas ações de fomento
à industria editorial, expressas nas leis nacionais do livro. Seria maravilhoso que muitas dessas políticas
se reproduzissem e ampliassem com instrumentos que consigam que mais latino-americanos possam
ler, possam comprar livros e possam ter períodos de lazer para lê-los e aproveitá-los. Nessa via, todos
ganharemos cidadãos, autores, editores, livreiros, bibliotecas, impressores, distribuidores, papeleiros e
distribuidores de “bytes”. Ganhará a cadeia do livro, que não pode ser reduzida somente aos interesses de
um setor empresarial.
E, temos que dizê-lo novamente, que estamos na zona mais prometedora do mundo para o desenvolvimento de uma grande indústria do livro: somos 400 milhões, compartimos a língua, somos jovens, e hoje
em dia, lemos muito pouco.
Bem-vindo ao debate sobre o preço fixo, mas com todas as cartas na mesa!
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