Anais
II Encontro Nacional de Estudos da Imagem
12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR
ILUMINURA MARIANA
Pamela Wanessa Godoi ([email protected])1
Angelita Marques Visalli2
Resumo: Desenvolvemos neste trabalho um estudo sobre a devoção mariana através de
uma imagem pintada como ilustração do livro “Lectionnaire de l’office de la cathêdrale de
Reims”. A obra foi feita antes de 1096 e está atualmente no mesmo local em que se
acredita ter sido produzida, na catedral de Reims, no nordeste da França. O manuscrito é
um livro litúrgico que auxiliou nas pregações feitas na catedral, contém passagens bíblicas
que deveriam ser proclamadas durante a liturgia da palavra, momento de reflexão da
missa dominical. Ele é um dos poucos que contém uma imagem de Maria feita para
decoração de obras escritas nesta região e neste período. A representação imagética
retrata a subida do corpo e da alma de Maria ao céu, tendo ao seu lado um texto sobre a
assunção da Virgem Maria. Assim como a imagem mariana, as outras imagens do Lecionário
encontram-se em iniciais do texto, foram iluminadas com tintas coloridas e feitas com
traços delicados. Esses diferenciais são caracterizados no estudo do contexto das pinturas
“iluminadas” deste período, a partir das discussões acerca da arte medieval, da pintura e
devoção marial, em particular.
Palavras-chave: Devoção mariana; Lecionário; iluminuras medievais;
Abstract: We work in a study of Marian devotion through a painted image as an illustration
of "Lectionnaire de l’office de la cathêdrale de Reims". The work was done before 1096
and is currently in the same place where is believed to have been produced in the
cathedral of Reims, in northeastern France. The manuscript is a book that helped in
liturgical preaching at the cathedral, contains Bible passages to be proclaimed during the
liturgy of the word, time of reflection of the Mass Sunday. It is one of the few that
contains an image of Mary made for decoration works written in this region and in this
period. A representative image shows the increase of body and soul into heaven of Mary,
and beside her a text on the assumption of the Virgin Mary. As a Marian image, other
images of Lecionário are into the initial letter of the text, were illuminated with colored
inks and made with delicate features. These differentials are characterized in the study of
the context of the paintings "iluminated" in this period, from discussions about medieval
art, painting and devotion marial in particular.
Keywords: Marian Devotion; Lecionário; medieval illuminations.
Ilustração e devoção: estudo sobre iluminura Mariana no Lecionário de Reims
Neste trabalho trataremos sobre a devoção mariana através do uso de documentos
imagéticos no medievo. Esse campo de reflexão, que anteriormente foi mais desenvolvido
por teólogos, tem crescido na análise historiográfica há alguns anos, o que contribuiu
1
Aluna do 3ª semestre do curso de História pela Universidade Estadual de Londrina, financiada com
Bolsa de Iniciação Cientifica do programa da UEL (IC/UEL).
2
Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina, orientadora do
projeto de pesquisa de iniciação cientifica intitulado “Iluminura Mariana”.
371
também para o entendimento da devoção à Maria no período medieval. Sendo assim, o uso
de documentação imagética tem favorecido o estudo principalmente no campo das
expressões religiosas, e possibilitado o desenvolvimento de perspectivas que ampliam e
inovam as pesquisas focadas no uso de imagem como evidências históricas.
Porém ainda percebe-se uma escassez de pesquisas voltadas para a iconografia,
devido, em muito, aos obstáculos que o estudo neste campo traz. A leitura de imagens
medievais torna-se um campo complicado para historiadores, que estando muito mais
habituados com documentos textuais encontram dificuldade em traduzir em palavras o
testemunho mudo das imagens. Contudo em um período como o medieval, onde a imagem
é parte integrante da mentalidade social e característica cultural, esse campo de pesquisa
desenvolve-se rapidamente com o auxilio de bibliografia de diversas áreas, como a história
da arte, a antropologia da arte e até mesmo a teologia.
Peter Burke nos afirma que as relações não-verbais de uma sociedade podem ser
mais bem compreendidas quando analisamos a documentação imagética existente nesta
sociedade (BURKE, 2004: 16-17). No caso medieval percebemos que esse tipo de
documentação permite uma ampliação considerável nas perspectivas de entendimento
sobre a devoção, já que si trata de uma sociedade que tem na relação imagem e escrita
um valor que transcende a explicação do mundo natural. As imagens acabam por
desempenhar um papel fundamental na criação do sagrado, e permitem ao pesquisador
uma melhor compreensão da visão do sobrenatural, assumida neste período.
Centramos nossa pesquisa em uma imagem de Maria que foi pintada em um
manuscrito feito na catedral de Reims, no nordeste da França, antes de 1096. O livro
chamado “Lectionnaire de l’office de la cathêdrale de Reims” se encontra conservado
ainda hoje no gabinete da catedral é um dos 104 manuscritos iluminados que Reims possui
atualmente, foi feito na própria igreja e está entre os manuscritos produzidos nesta região
que se destacava por uma excelente escola existente na catedral e por um mosteiro
vizinho também de grande reputação no medievo.
Os livros eram produzidos para a difusão da palavra de Deus, porém os clérigos
eram os responsáveis por transmitir aos laicos seus conteúdos, eram eles, os que
manuseavam e produziam esses objetos que no século XI já faziam parte necessária entre
os bens de uma igreja. Copiar ou fazer um manuscrito era bastante caro, por mais simples
que ele fosse, necessitava de muito tempo de trabalho e de técnicas sofisticadas para a
obtenção das tintas usadas e dos fólios – as folhas – feitos principalmente com couro de
animais. Apesar de já fazer parte da vida na igreja, não existiam em grandes quantidades,
e mesmo as cópias acabavam sendo diferentes, principalmente em relação aos detalhes
das imagens.
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O Lecionário estudado é um livro litúrgico e foi entregue juntamente com outro
manuscrito que tinha a mesma função. Foram utilizados para auxiliar nas missas realizadas
na catedral, mas especificamente na liturgia da palavra, momento em que se proclama,
escuta e reflete a palavra de Deus através da leitura de alguns trechos bíblicos,
criteriosamente escolhidos para aquela pregação.
O livro é escrito em latim, como a grande maioria desse período. Foi feito com
letras próximas ao estilo gótico do século XII, angulosas e alongadas verticalmente, e na
pintura das letras foram usados o vermelho para diferenciar o que é o título e o preto para
o restante do texto. Nele encontramos quarenta e três iluminuras, sendo todas elas letras
iniciais, algumas apenas decoradas e outras contendo representações de personagens
bíblicos em seu interior.
A iluminação é a arte que nos manuscritos alia a ilustração e a ornamentação, por
meio de pinturas com cores vivas, ouro, prata, de letras iniciais, flores, folhagens, figuras
e cenas, em combinações variadas, ocupando parte do espaço reservado ao texto e
estendendo-se pelas margens, em barras ou molduras.
A prática de iluminar os manuscritos era muito comum na reprodução de livros na
época medieval, e teve grande desenvolvimento no período carolíngio. Entre os séculos VIII
e IX a Europa passa por um período em que os francos conseguem em proporções
consideráveis unificar o poder em torno de seu rei. O bispo de Roma que até então se
voltava sempre para o Oriente, aproveita para unir-se ao novo rei em ascensão corando-o
como imperador romano do Ocidente, e rompe as principais ligações com Constantinopla
causando um distanciamento que acabara por findar no cisma de 1054, que divide a Igreja
Católica entre a Oriental Ortodoxa e a Ocidental Romana (BASCHET, 2006).
Neste período a produção escrita aumenta muito, Jérôme Baschet cita uma
estimativa de 50 mil manuscritos copiados no século IX, modificações importantes foram
executadas, como o acréscimo de pontuação ao texto e o uso de um tipo de letra menor e
mais elegante a “minúscula carolina”, que facilitavam a leitura e manuseio dos
manuscritos. Em sua grande maioria esses textos copiados são Bíblias, textos litúrgicos,
livros cristãos, mas também foram muitas as cópias de literatura antiga, que serviam para
aprender melhor as regras do bom latim, e que acabaram por chegar até nós hoje por
intermédio desses copistas (BASCHET, 2006: 69-78).
As obras, nesse período eram dadas como um presente, pois além de serem muito
caras, tinha ainda a importância que a literatura e a liturgia passaram a ter na corte
carolíngia. Nesse sentido é a partir dos luxuosos manuscritos carolíngios que percebemos o
início da prática de indicar a autoria da cópia, orgulhos mecenas e copistas com renovada
373
dignidade celebravam em poemas o doador do livro ou a ocasião que justificava a sua
produção (DUBY, 2002: 155-158).
Já a respeito das decorações, raramente eram mencionados os pintores, que
podiam ser os próprios clérigos copistas ou artistas leigos que viajavam a procura de
trabalhos diversos. Isso possivelmente se deu por essa prática ter início exatamente no
período carolíngio. Nesta época há grandes discussões teóricas a respeito de adoração de
imagens, e os “Livros carolinos” (Libri carolini) escritos pelo bispo Teodulfo a pedido de
Carlos Magno, apesar de reconhecer a função didática e estética das imagens (DUBY, 2002:
155-159), dão ênfase ao fato de que apenas pela linguagem das Escrituras a Verdade de
Deus pode ser transmitida.
Sendo assim mencionar o autor das imagens pintadas nos livros copiados não era
algo relevante aos carolíngios, e mesmo depois que os clérigos elaboraram razões e
autoridades que justificavam o uso de imagens nos cultos, como a Carta a Serenus, onde o
para Gregório da permissão para a veneração das imagens, pois essas podem além de
ensinar, relembrar e comover os corações cristãos que as contemplam, a autoria dos
iluminadores não se torna constante nos manuscritos.
A obra analisada foi produzida na região de Champagne na própria catedral de
Reims. Essa igreja tem grande relevância no período medieval e se destaca muito pela
fama que sua escola adquiriu. No ano de 250 Reims já era sede do bispado de Champagne e
seus religiosos tiveram grande influência na conversão dos pagãos germânicos. Clóvis, o
primeiro rei merovíngio a começar a unificação dos francos se converteu ao cristianismo e
foi batizado em Reims, onde nesta data de 496 ou 499 já existia uma pequena igreja,
consagrada a Nossa Senhora de Reims, em 816, em meio ao renascimento carolíngio ela foi
reconstruída para abrigar a cerimônia de coroação do rei da França.
Durante o século XIII foi lançado no local da catedral, a pedra fundamental de um
grandioso projeto para reconstrução de Reims, seguindo o estilo gótico. Apenas 300 anos
depois esse conseguiu chegar próximo do projeto inicial, devido a guerras, como a Guerra
dos Cem anos e um incêndio que arrasou a construção no ano de 1481. O projeto
arquitetônico incluiu: uma Galeria dos Reis que abriga a pia batismal de Clóvis e estátuas
de seus sucessores, no portal central, dedicado à Virgem Maria um vitral em forma de
rosácea, característica marcante da catedral e tapeçarias, sendo uma das séries mais
importantes a executada por Robert de Lenoncourt, no século XVI representando a vida de
Maria.
Muitos foram os homens de grande importância no medievo que estudaram ou foram
bispos e arcebispos em Reims, Silvestre II, Urbano II, são alguns dos exemplos que
marcaram a grande influência que essa escola tinha em toda a Europa e com o bispado de
374
Roma (WILLIANS: 1954). Ao lado da catedral existe o mosteiro de Saint - Remi, considerado
no século IX como o mais rico de toda a Europa medieval. Até o século X o arcebispo de
Reims era também o abade de Saint - Remi que assim como a catedral tem grande
importância dentro do cenário medieval. O livro estudado foi feito pela scriptoria3 da
catedral de Remis.
O homem que em 1096 assume como arcebispo de Reims é Manassès de Châtillon,
substituto de Renaud de Bellay, ocupa o cargo até a sua morte em 1106 e tem grande
relevância no contexto das cruzadas, principalmente sob a primeira cruzada em 1095. Ele
foi o primeiro clérigo a possuir o manuscrito, que apesar de ter sido feito antes dele
assumir, foi usado por ele em suas missas, e sem dúvida fez parte de seu imaginário.
A imagem sobre a qual concentramos nosso trabalho é a iluminação pintada no
verso do folio 109 do manuscrito, que representa Maria entronizada com o menino Jesus
dentro da inicial Q (Anexo 1), desenhada a partir de uma forma amendoada e que tem em
seu prolongamento um dragão, no qual Maria repousa delicadamente os pés, descalços e
ornados. Ao redor da letra estão linhas desenhadas, pintadas e que acabam em ornamentos
florais.
O texto copiado ao redor remete a um sermão sobre a assunção do corpo e da alma
da virgem Maria ao céu. Esse dogma que só foi assumido pelo papa Pio XII em 1950 já se
apresenta como parte integrante da cultura e do imaginário do século XI.
Essa e as outras iluminações do manuscrito são feitas com traços finos e delicados,
indicam certa influência da iluminura românica e da pintura bizantina. De bizâncio
notamos o estilo próximo ao que se encontrara na bíblia de Bury, produzida em 1135, sob
encomenda de Hervey, sacristão da abadia de Bury St Edmunds, a utilização de cores vivas
e drapejados de linha dupla que sublinham o corpo por debaixo das roupas são
características das figuras iluminadas tanto no manuscrito de Reims como na bíblia de Bury
(DUBY, 2002: 51-55).
Da iluminação românica notamos principalmente o uso das iniciais para
enquadrarem as cenas narradas, sobre um fundo com zonas coloridas diferentes, também o
uso de seres monstruosos, que são uma constante no manuscrito de Reims. Outra
influência notada nas figuras desse manuscrito são as características anglo-saxônicas
devido ao uso de decorações florais advindas, em muito, dessa tradição.
Dentro dos manuscritos que encontramos em Reims podemos citar bíblias ornadas, e
livros litúrgicos como o Lecionário. A grande maioria está iluminada sem o uso de materiais
preciosos, como pó de ouro ou a cor púrpura, a exceção, neste caso, está em um
3
Espécie de cômodo utilizado para a cópia e iluminação dos manuscritos.
375
evangeliário do século IX bastante luxuoso que usa os dois materiais já citados, o que o
torna sem dúvida um dos livros mais caros da catedral, apesar de conter apenas uma
moldura na página inicial do livro de João e uma outra pagina ornada em cor púrpura e
letras com pó de ouro.
Dentre as figuras encontradas nesses manuscritos produzidos em Reims ou em Saint
- Remi, percebemos que até o século XIII a uma constante apresentação das cenas no
interior de iniciais, ou molduras ao redor do texto, sendo características da produção
iluminadas desses manuscritos o uso de muitas figuras de animais, como leões e pássaros.
Após o século XIII as representações se tornam mais emancipadas em relação ao texto e a
figura que mais aparece é a de Jesus crucificado no meio da Virgem Maria e de João.
Junto com o “Lectionnaire de l’office de la cathêdrale de Reims” foi produzido um
outro manuscrito bastante semelhante e que contém o mesmo título. Também é um livro
litúrgico que contém sessenta e quatro imagens principalmente de passagens bíblicas
encontradas no novo testamento, como a figura dos evangelistas. Tem os traços e as cores
iguais, e se não atentarmos para o detalhe de páginas com a mesma numeração, porém
com textos e figuras diferentes, é possível pensar serem eles partes do mesmo livro.
Isso possivelmente se deve a função que os livros exerceriam, seriam lidos durante
a liturgia da palavra, onde um está relacionado mais com passagens do novo testamento e
outro com passagens do velho novo testamento, apesar de não estarem totalmente
separados, pois encontramos, por exemplo, no livro onde a maioria dos textos remete ao
antigo testamento a figura de Santo André, que é citado apenas no novo testamento.
Também é possível pensar que a produção de dois livros se deve as suas funções quase
cotidianas. Era necessário o uso de pelo menos um a cada missa realizada, sendo assim ter
dois manuscritos que auxiliariam seria uma praticidade.
A representação marial encontrada no Lecionário é a única dentre às quarenta e
três que o manuscrito ao qual nos debruçamos apresenta, e é também uma das poucas
encontradas neste tipo de produção, na região e período em questão. Em Reims a figura da
Virgem com o menino Jesus só aparecerá novamente em um evangeliário do século XIV e
com forma bastante distintas das que aparecem no manuscrito do século XI. Maria tem
feição mais humanizada e o menino Jesus é um pequeno bebe em seu colo.
No ano de 1150 encontramos em Amiens um Lecionário da abadia de Corbie que
tem uma imagem bastante parecida com a de Reims, a Virgem entronizada, porém sem o
menino Jesus ao colo, o texto ao seu lado assim como no Lecionário de Reims também
trata da assunção de Maria ao céu. Outra imagem semelhante é também da Virgem
entronizada mais sem o menino Jesus, que está no folio de um Homéliaire – livro litúrgico em Cambrai, o manuscrito data da primeira metade do século XII.
376
Mesmo essas duas regiões estando próxima de Reims a prática da iluminação de
imagens de Maria neste período, é percebida apenas dentro desse sermão da assunção e
com algumas poucas aparições, indicando que o manuscrito de Reims onde Maria aparece
entronizada com o menino Jesus ao colo é sem dúvida uma exceção dentro do contexto de
iluminações marianas.
As outras imagens pintadas no livro são também iniciais que apresentam adornos
florais ao redor e algumas cenas específicas, como Abraão com três anjos, Cristo
triunfante, o anúncio a Zacarias, Cristo e a igreja e o martírio de santo André. Imagens que
remetem ao antigo Testamento, e que indicam uma espiritualidade ainda muito
preponderante do Antigo Testamento (VAUCHEZ, 1995: 11-64), que vem do período
carolíngio, apesar de pouco tempo depois já notarmos uma mudança neste sentindo, com
redescobertas dos evangelhos principalmente.
Entre as letras iniciais aparecem 19 letras diferentes, sendo que apenas as letras J,
R, K, W, X, Y e Z do alfabeto latino atual não são representadas com decorações. A letra
que mais aparece decorada é a O em cinco imagens, seguidas da Q que além da imagem
mariana apresenta outras três, depois as letras A, G, H e L aparecem três vezes, as B, F, N,
S e T duas vezes e as C, D, E, I, M, U e V aparecem uma vez cada. A escolha por letras com
contornos mais arredondados é claramente explicável pela sua forma, letras como O e Q
permitem ao artista o uso de um maior espaço para a iluminação das cenas que deveram
ser pintadas naquele folio do manuscrito.
A análise sobre a imagem está inserida dentro das discussões sobre história cultural,
na medida em que esse tipo de documentação permite percebermos a expressão artística
contida na época e suas funções teológicas e culturais. Não nós esqueçamos que a imagem
tem profundo apelo religioso e foi produzida em um ambiente clerical, para permanecer
neste com funções específicas dentro da liturgia do culto. A obra pintada no manuscrito
era objeto auxiliador na difusão da mensagem cristã, e suas imagens fazem parte do
imaginário permitido e existente do período medieval. Sendo assim, são evidências que
possibilitam aos historiados uma melhor perspectiva na análise estrutural do pensamento e
da representação dessa sociedade.
As discussões acerca da imagem medieval são uma das áreas mais ricas do
pensamento dessa sociedade. O próprio uso do vocabulário “imagem” e não mais “arte”,
como feito anteriormente por historiadores da arte que associavam suas pesquisas
principalmente nos valores estéticos, permitiu uma ampliação das questões feitas por
historiadores sobre as estruturas sociais de outras épocas. Se tratando de cristandade
medieval percebemos que a palavra imagem transcende a uma simples tradução do termo
latino Imago (SCHMITT, 2007).
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Em um ambiente onde o letramento era restrito a apenas uma parte específica da
sociedade, os clérigos, a imago, ainda mais que a escrita, adquiri um significado que além
de ser representações figuradas, como vitrais ou pinturas, refere-se também a imaginação,
a alegorias da linguagem, as visões, as “imagens mentais” como cita Jean-Claude Schmitt.
Essa complexa definição da imagem medieval a torna parte integrante na construção da
cultura do medievo, uma sociedade que é o próprio exemplo de uma imagem – pois a
lógica cristã entende o homem como imagem e semelhança de Deus, como cita o texto
bíblico de Genesis 1,26 – tem em suas relações não-verbais mais do que simples práticas
estéticas, são, com efeito, práticas culturais (LE GOFF; SCHMITT, 2002: 591-605).
Neste contexto percebemos que o uso da imagem pode ser associado como
elemento estratégico na edificação do imaginário devocional do espectador. O aspecto
visual das iluminuras estudadas como evidencias históricas, auxiliam na compreensão do
ambiente devocional em que elas estão inseridas, sendo elas também caracterizadas
imago, elemento de mediação entre o visível e o invisível, onde o valor estético não é
dissociado da função religiosa e ritual que a imagem apresenta.
Ao estudar um veículo como o Lecionário, procuramos entender que a devoção a
Maria teve, antes da sua explosão junto ao laicado, no século XII, discretas aparições no
contexto das pinturas iluminadas dos manuscritos. As iluminações muito mais voltadas para
os clérigos pouco influenciaram o apelo popular que a Virgem terá nos séculos seguintes,
porém é preciso ressaltar que esse tipo de expressão, apesar ter uma relevância relativa
dentro desse universo que permitirá o aumento da autonomia laica em relação aos
clérigos, faz parte do imaginário clerical que nesse período de pouca produção laica
manteve viva a imagem de Maria, permitindo que essa fosse apropriada e transformada
segundo os interesses laicos do período seguinte.
Sendo assim a iluminura de Maria entronizada com o menino Jesus ao colo que o
Lecionário de Reims contém, apresenta-se quase que como uma exceção, as vésperas do
aumento da devoção mariana na Europa, onde os cristãos laicos se apropriarão da imagem
da Virgem principalmente como intercessora junto a seu filho (VISALLI, 2004). A figura,
contudo, permite por sua especificidade demonstrar sua relevância dentro do contexto
cristão do século XI, permitindo concluir que mesmo em um período onde o fosso entre a
cultura clerical e a leiga é enorme, existe uma relação que permitirá junto com outros
elementos a evolução da cristandade e suas modificações durante todo o período
medieval.
378
Anexo 1
379
Bibliografia
BURKE, Peter. Testemunha Ocular – história e imagem. Bauru: Edusc, 2004
BASCHET, Jerôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo:
Globo, 2006
DUBY, Georges (Org). História Artística da Europa: Idade Média. Tomo I e II. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002.
ENLUMINURES. “l'Institut de recherche et d'histoire des textes (CNRS)”. Reims, ms. 0295.
Disponível
em
<http://www.enluminures.culture.fr/documentation/enlumine/fr/rechguidee_00
.htm>. Acesso em 16 jun. 08.
LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean- Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval.
Bauru: EDUSC; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual da Idade
Média. Bauru: Edusc, 2008.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de
Janeiro: Zahar, 1995.
VISALLI, Angelita Marques. Cantando até que a morte nos salve: estudo sobre laudas
italianas dos séculos XII e XIV. Tese. São Paulo.
VOLPE, Carlo. “Os primitivos” In: VALSECCHI, Marcos (Org.). Galeria delta da pintura
universal, volume I. Rio de Janeiro: Editora Delta S.A.,1972. p 67-72.
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