EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS DO EGRÉGIO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
ref. Autos de Reclamação sob nº 2138-6
MEMORIAL
O CONSELHO NACIONAL DOS PROCURADORES-GERAIS DE
JUSTIÇA, respeitosamente, vem perante Vossas Excelência, apresentar o
presente MEMORIAL, em face da proximidade do julgamento da Reclamação
sob nº 2138-6, nos seguintes termos:
1. PRELIMINARMENTE
Alega-se basicamente, no pedido de reclamação, a subtração de
competência do Pretório Excelso em virtude de que a mesma, dada a qualidade
funcional do réu, é do Supremo Tribunal Federal, além do que não teria
aplicabilidade a Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos, que
1
somente poderiam responder por crime de responsabilidade, ficando reservada
aquela apenas aos servidores comuns.
A Reclamação é o remédio jurídico ofertado ao STF para preservar a sua
competência ou garantir a autoridade de suas decisões, com previsão
constitucional (artigo 102, I, "l") e disciplinamento nos artigos 13 e seguintes da
Lei 8.038/90 e 156 e seguintes do RISTF.
Tratando-se a Reclamação, de medida processual onde se busca,
exclusivamente, preservar a competência do STF ou resguardar a autoridade de
suas decisões, o pleito do reclamante não pode ser atendido em sua
integralidade, mais especificamente no que pertine ao pedido de reconhecimento
da não aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos.
Com efeito: não há como se apreciar tal questão em sede de reclamação,
pois refoge totalmente à questão da competência, eis que refere-se à (alegada)
não aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos em
razão de que os delitos previstos na referida lei são político-administrativos.
A questão, como se vê, não guarda nenhuma pertinência com a
competência. Trata-se, em verdade, de discusão a respeito da aplicação do
direito material, mais precisamente, à negação de vigência, para certas
autoridades, do disposto no artigo 1º da Lei nº 8.429/92, em nada tendo a ver
com subtração de competência.
2
A conclusão, logo, é de que, na presente Reclamação, somente pode ser
julgada a (alegada) competência do STF para processar e julgar o réu pela
prática de ato de improbidade em razão da extensão da regra do denominado
foro privilegiado. Inviável, no entanto, seja apreciada sobre a aplicação, ou não,
da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos, pois refere-se, essa
questão, à análise de direito material e de conflito de leis, em nada tendo a ver,
de conseqüência, com a subtração de competência.
A persistir o entendimento expresso na liminar, na parte em que conclui
pela inaplicabilidade da lei de improbidade administrativa aos agentes políticos,
estará convertida a Reclamação em ação constitucional de controle abstrato de
lei, o que desvirtua necessariamente o objeto pela qual ela foi criada.
Por isso requer, preliminarmente, que não seja objeto da apreciação a
questão de mérito atinente à aplicabilidade ou não da lei de improbidade
administrativo aos agentes políticos, por ser estranha ao objeto da reclamação.
2. DOS FATOS
2.1. INTRODUÇÃO
2.1.1 OBSTÁCULOS AO COMBATE DA CORRUPÇÃO
De alguns anos para cá o Ministério Público tem se empenhado no
combate à corrupção. Embora ainda exista muito o que fazer esta luta já
3
produziu alguns resultados positivos, os quais foram alcançados, em sua grande
maioria, pela aplicação da Lei nº 8.429/92 - Lei de Improbidade Administrativa.
Ocorre que as pessoas que se viram atingidas pelas ações do Ministério
Público neste campo, e que, até então, se julgavam distantes da aplicação da
Justiça, passaram a arquitetar uma série de medidas com a nítida intenção de
bloquear ou ao menos dificultar as medidas de combate à corrupção.
2.1.2. DA LIMINAR DO STF
A r. Decisão liminar prolatada por Vossa Excelência, e que ora se
impugna, estende o foro privilegiado nas ações de improbidade administrativa
(porque em simetria com os crimes de responsabilidade), bem como afasta a
aplicação da Lei de Improbidade Administrativa para agentes políticos.
Vossa Excelência concedeu a referida medida liminar para o fim de
suspender a eficácia da sentença da 14ª Vara Federal de Brasília, na qual o então
Ministro-Chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos fôra condenado por
improbidade administrativa.
Essa decisão abre caminho para nova interpretação da Lei de Improbidade
Administrativa, no sentido de (i) afirmar sua natureza penal; (ii) reconhecer, de
conseqüência, o foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa;
e, (iii) impedir a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa aos agentes
4
políticos, que somente poderiam ser responsabilizados por crime de
responsabilidade, ficando reservada aquela apenas aos servidos públicos.
A prevalecer o entendimento manifestado na liminar, de que a Lei de
Improbidade Administrativa não é aplicável a agentes políticos, (interpretação
frontalmente contrária ao disposto em seu artigo 1º), apenas os funcionários
públicos comuns, os que outrora eram tratados pela alcunha de barnabés, é que
poderão ser processados por improbidade administrativa, uma vez que
parlamentares, prefeitos, governadores, Ministros de Estado, Secretários
Estaduais e o Presidente da República estariam à salvo da aplicação da Lei
8.429/92.
Como tal conclusão encontra-se embasada no pressuposto de ter a Lei de
Improbidade Administrativa, como dito, natureza penal, é acerca desta terática
que passa-se a versar.
3. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS
3.1. DA NATUREZA JURÍDICA DAS SANÇÕES DA LEI DE
IMPROBIDADE
Preliminarmente, deve-se afirmar que a doutrina é unânime ao afirmar que
inexiste diferença ôntica entre as sanções penais e as demais sanções previstas
no ordenamento jurídico, cabendo ao legislador a opção, respeitados os
5
princípios constitucionais de cada ramo do direito, entre apenar determinada
conduta na área penal ou apená-la também, ou apenas, civilmente (lato sensu).
Nesse sentido, encontramos:
Como se vê, sob o prisma ôntico, não há distinção entre as sanções
cominadas nos diferentes ramos do direito, quer tenham natureza penal, civil
ou administrativa, pois, em essência, todas visam a recompor, coibir ou
prevenir um padrão de conduta violado, cuja observância apresenta-se
necessária à manutenção do elo de encadeamento das sanções sociais.
Sob o aspecto axiológico, por sua vez, as sanções apresentarão
diferentes dosimetrias conforme a natureza da norma violada e a importância
do interesse tutelado, distinguindo-se, igualmente, consoante a forma, os
critérios, as garantias e os responsáveis pela aplicação. Em suma, as sanções
variarão em conformidade com os valores que se buscou preservar.
Caberá ao órgão incumbido da produção normativa, direcionado pelos
fatores sócio-culturais da época, identificar os interesses que devem ser
tutelados e estabelecer as sanções em que incorrerão aqueles que o violarem.
Inexistindo um elenco apriorístico de sanções cuja aplicação esteja adstrita a
determinado ramo do direito, torna-se possível dizer que o poder sancionador
do Estado forma um alicerce comum, do qual se irradiam distintos efeitos, os
quais apresentarão peculiaridades próprias conforme a seara em que venham a
se manifestar. 1
1
Garcia, Emerson e Alves, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002,
p. 338.
6
Reforçando o entendimento de que cabe ao legislador decidir acerca da
natureza da sanção que deseja ver aplicada a determinado ato ilícito, afirma
Fábio Medina Osório que importa ressaltar que o Estado legislador pode,
soberana e discricionariamente, ainda que lhe seja vedada a arbitrariedade,
escolher um ou outro caminho, ou ambos, para a eficaz proteção de bens
jurídicos. 2
Assim, afirmar que a Lei de Improbidade Administrativa tem natureza
criminal, significa contrariar expressa previsão constitucional, vez que a Carta
Magna prevê expressamente, em seu artigo 37, § 4º, que as sanções por atos de
improbidade administrativa são aplicadas sem prejuízo da ação penal cabível,
bem como, em seu artigo 15, incisos III e V, tratou como coisas distintas a
condenação penal e a improbidade administrativa. Logo, evidente que os atos de
improbidade administrativa, e respectivas sanções, possuem cunho extra-penal.
Incabível se falar, portanto, que a Lei de Improbidade seria uma ação
civil de forte conteúdo penal3, ou que apresenta natureza quase penal4, eis que
as penas de suspensão de direitos políticos ou perda da função pública podem
ser aplicadas por outros ramos do direito, como o eleitoral e o administrativo,
por exemplo, sem que ninguém, até o momento, as tenha caracterizado como de
natureza penal (stricto sensu). Aliás, a Lei 8.429/92 em momento algum
sanciona os atos de improbidade com pena privativa de liberdade, esta sim típica
do direito penal. Em qualquer caso, inconstitucional se mostra todo e qualquer
posicionamento que se pretenda atribuir natureza penal ao ato de improbidade
administrativa.
2
Osório, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2000, p. 121/122.
Conforme leciona Gilmar Mendes e Arnold Wald, mencionada na decisão do Ministro Jobim.
4
Entendimento manifestado por Aristides Junquiera Alvarenga,
3
7
É necessário dizer, também, que a imposição de pena não é um privilégio
do Direito Criminal, existindo penas em outros ramos do direito, como o civil, o
administrativo, etc. Sequer a pena privativa de liberdade é exclusividade do
Direito Criminal, uma vez que este tipo de penalidade pode ser encontrada no
próprio Direito Civil, como a prisão do depositário infiel e do inadimplente de
pensão alimentícia.
Destarte, para demonstrar o desacerto do raciocínio da mencionada
decisão, pode-se registrar que a seguir tal linha de argumentação, um agente
político não poderia ser preso por inadimplemento de pensão alimentícia, uma
vez que não há no ordenamento jurídico sanção com mais conteúdo criminal que
pena privativa de liberdade.
E, encerrando a discussão, Fábio Konder Comparato leciona:
Se a própria Constituição distingue e separa a ação condenatória do
responsável por atos de improbidade administrativa às sanções por ela
expressas da ação penal cabível, é, obviamente, porque aquela demanda não
tem natureza penal. Na Lei 8.429, de 1992, de resto, distinguem-se claramente
as penas de perda da função pública, de perda dos bens ou valores ilicitamente
acrescidos ao patrimônio do responsável e de ressarcimento do dano,
coninadas no art. 12, das “sanções penais, civis e administrativas, previstas na
legislação específica”.
A ação penal ou processo-crime, como ninguém ignora, tem por objeto o
conhecimento da prática de um crime e a aplicação da pena correspondente,
8
tudo nos estritos termos de lei anteriormente promulgada. Ora, a mesma Lei
8.429, a par das disposições que têm por objeto a definição dos atos de
improbidade administrativa e a fixação das penas correspondentes, contém
uma só definição de crime: é a constante do art. 19.
Por conseguinte, pode-se, em teoria, discutir sobre se a ação de
improbidade administrativa tem natureza cível, ou se ela é sui generis, o que
parece, contudo, indisputável é que essa ação judicial não tem natureza penal.
5
José Afonso da Silva já afirmou:
... a suspensão dos direitos políticos por improbidade administrativa
pode ser aplicada independentemente de um processo criminal. É o que se exrai
da parte final, segundo a qual todas as sanções indicadas antes o são sem
prejuízo da ação penal. Vale dizer, independentemente dessa ação. Ou seja, a
suspensão dos direitos políticos, no caso, não constitui simples pena acessória.
O problema é que não pode a suspensão ser aplicada em processo
administrativo. Terá que ser em processo judicial, em que se apure a
improbidade, quer seja criminal ou não. 6
Não restam dúvidas de que a probidade e a moralidade pública são
interesses difusos. Por outro lado, o artigo 129, inciso III, confere legitimidade
ao Ministério Público para promover o inquérito civil e a ação civil pública
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos. Não há como se possa dar, de conseqüência,
5
Compararo, Fábio Konder.Competência do Juízo de 1° Grau, in, Improbidade Administrativa, 10 Anos da
Lei n. 8.429/92, José Adércio Leite Sampaio e outros (org.). Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 126/127.
6
Silva, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 572.
9
conotação unicamente de “crime de responsabilidade” aos atos de improbidade
praticados por agentes políticos se o próprio constituinte informou que aqueles
direitos difusos (a probidade e a moralidade pública) seriam defendidos em ação
civil.
Registre-se, ainda, que não há incompatibilidade alguma na coexistência
dos sistemas de sanções. Assim, podem coexistir as sanções de natureza penal
(como os da Lei 1.079/50) e as de natureza civil (da Lei 8.429/92). Nada
impede, por isso, a dupla responsabilização, cada qual por intermédio de seu
foro competente e respeitada a independência das instâncias (penal e civil).
Portanto,
por
um
mesmo
fato,
pode
ocorrer
o
desdobramento
de
responsabilidades: a criminal (crime comum ou de responsabilidade) e a cível
(improbidade administrativa).
O próprio STF reiteradamente vem decidindo acerca da autonomia das
instâncias penais e extra-penais:
EMENTA:CONSTITUCIONAL.
ADMINISTRATIVO.
SERVIDOR
PÚBLICO: POLICIAL: DEMISSÃO. ILÍCITO ADMINISTRATIVO e ILÍCITO
PENAL. INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA: AUTONOMIA. I. - Servidor policial
demitido por se valer do cargo para obter proveito pessoal: recebimento de
propina. Improbidade administrativa. O ato de demissão, após procedimento
administrativo regular, não depende da conclusão da ação penal instaurada
contra o servidor por crime contra a administração pública, tendo em vista a
autonomia das instâncias. II. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal: MS
21.294- DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence; MS 21.293-DF, Relator
10
Ministro Octavio Gallotti; MMSS 21.545-SP, 21.113-SP e 21.321-DF, Relator
Ministro Moreira Alves; MMSS 21.294-DF e 22.477-AL, Relator Ministro
Carlos Velloso. III. - Procedimento administrativo regular. Inocorrência de
cerceamento de defesa. IV. - Impossibilidade de dilação probatória no
mandado de segurança, que pressupõe fatos incontroversos, prova préconstituída. V. - Mandado de Segurança indeferido. 7
Atente-se que o fato ensejador da decisão supra, além de, em tese,
constituir crime, também pode configurar ilícito administrativo e, ainda, ato de
improbidade administrativa, em face de enriquecimento ilícito e atentado aos
princípios da administração pública.
Assim, não há que se falar na “possibilidade de incongruências entre as
decisões na esfera criminal e na ação civil”. Se esse argumento fosse
verdadeiro, para as hipóteses em que um mesmo fato possui repercussão na área
cível e criminal, não mais poderia haver ação civil; fulminar-se-ia, enfim, por
aquele argumento, toda e qualquer ação civil (e não somente as de improbidade
administrativa).
Ressalte-se, além disso, que as instâncias penal e civil, embora
independentes, possuem comunicação, e por isso mesmo o próprio sistema
jurídico possui mecanismos de integração entre as mesmas, como por exemplo,
a possibilidade de o juiz civil suspender o processo, nos termos do que lhe
faculta o artigo 110 C.P.C., quando o conhecimento da lide depender da
7
MS-23401 / DF MANDADO DE SEGURANCA Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO Publicação: DJ DATA12-04-02 PP-00055 EMENT VOL-02064-02 PP-00313 Julgamento: 18/03/2002 - Tribunal Pleno
11
verificação da existência de fato delituoso ou mesmo as causas de absolvição
criminal que possuem influência na contenda civil.
3.2. DO FORO PRIVILEGIADO
Descaracterizada a natureza penal das sanções por ato de improbidade
administrativa, incabível se falar em foro privilegiado, eis que a Constituição o
estabelece apenas em casos expressos. E, reportando à decisão liminar, tratavase de Ministro de Estado, cuja competência para ser julgado pelo Supremo
Tribunal Federal limita-se aos crimes comuns e de responsabilidade 8, ou ao
Superior Tribunal de Justiça9, quando autoridade coatora em mandados de
segurança e habeas corpus.
Assim, a Constituição estabeleceu diversos casos de foro privilegiado,
quer em matéria criminal, quer em matéria cível, para diversas autoridades como
Presidente da República, Governadores de Estados, Ministros de Estado,
Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República, dentre
outros, porém, em caso algum estendeu o privilégio nas ações civis públicas por
ato de improbidade administrativa.
Com efeito, em se tratando de exceção ao princípio constitucional da
isonomia, somente a própria Constituição pode estabelecer os casos de foro
privilegiado. Mesmo ao Judiciário é vedada a criação de novos casos de
privilégio de foro sem previsão constitucional expressa.
8
9
CF 88, art. 102, I, c.
CF 88, art. 105, I, b e c.
12
Fábio Konder Comparato ensina que se existe decorrência mais direta e
imediata do princípio da igualdade de todos perante a lei, ela se encontra, sem
sombra de dúvida, na proibição de se estabelecerem foros privilegiados ou
juízes "ad hoc". 10
E complementa com precisão:
Em suma, a criação de foros privilegiados, em razão da função ou cargo
público exercido por alguém, é sempre submetida ao princípio da reserva, de
natureza constitucional ou legal. Em nenhum país do mundo, que se pretenda
Estado de Direito, ou mais ainda, Estado Democrático de Direito, nunca se
ouviu dizer nem sequer sugerir que o Poder Executivo ou o Poder Judiciário
tenham competência para criar prerrogativas de foro; pior ainda – o que seria
inominável abuso -, ninguém jamais admitiu a contitucionalidade de sistemas
jurídicos onde houvesse prerrogativas de foro para os próprios membros do
Poder que as criava.
Ora, no regime constitucional brasileiro em vigor, seguindo a linha
diretriz de todas as nossas Constituições republicanas, mas diversamente do
que dispunha a Carta Imperial, o sistema é de reserva exclusivamente
constitucional para a criação de privilgios de foro.
(...)
Qanto ao Poder Judiciário, cujos membros não são eleitos pelo povo, ele
exorbita claramente de suas funções se, sob o pretexto de interpretar a
Constituição e as leis, decidisse criar "sponte propria" direito novo. Não é
mister grande esforço de raciocínio para perceber que, se o Poder Judiciário se
10
Op. cit., p. 122.
13
arrogasse competência para dizer como e por intermédio de que órgão iria
decidir um litígio sobre a aplicação da Constituição e das leis, os
jurisdicionados já não estariam submetidos a elas, mas sim aos próprios
tribunais. Por conseguinte, nesse aleijão de democracia, todo poder emanaria
não do povo, mas dos juízes que o povo não escolheu. 11
E o próprio Supremo Tribunal Federal, certamente esposando o mesmo
entendimento, tem reiteradamente decidido que sua competência originária, tal
qual prevista na Constituição Federal, tem interpretação restrita. In verbis:
Senador da República. Inquérito Civil. Ação Civil Pública. Medida
processual a ser eventualmente adotada contra empresas que estiveram sujeitas
ao poder de controle e gestão do parlamentar, até a sua investidura no
mandato legislativo. Alegada usurpação da competência originária do Supremo
Tribunal Federal. Ausência de plausibilidade jurídica. Medida liminar cassada.
O Supremo Tribunal Federal – mesmo tratando-se de pessoas ou
autoridades que dispõem, em razão do ofício, de prerrogativa de foro, nos
casos estritos de crimes comuns – não tem competência originária para
processar e julgar ações civis públicas que contra elas possam ser ajuizadas.
Precedentes.
A competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificarse como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente
constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida –
não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os
11
M Op. cit., p. 124/125.
14
rígidos limites fixados no art. 102, I da Constituição da República. Precedentes.
12
Mesmo que fosse possível uma ampliação da competência do Supremo
Tribunal Federal, pela via interpretativa, como quer a decisão ora comentada, os
fundamentos que a levam a ampliar a competência da Corte Suprema para julgar
originariamente certas ações de improbidade administrativa é inconsistente.
Como visto acima, as sanções previstas na lei de improbidade administrativa não
tem natureza criminal. Se fosse possível ampliar a competência do Pretório
Excelso, sob o fundamento de que as sanções previstas na Lei de Improbidade
Administrativa têm natureza quase penal, ter-se-ia que ampliar esta mesma
competência quando fosse pedida a prisão de um Ministro de Estado por
inadimplemento de pensão alimentícia ou ser depositário infiel, uma vez que,
por óbvio, a pena privativa de liberdade tem uma natureza muito mais próxima
do Direito Penal do que as sanções previstas na Lei de Improbidade
Administrativa. Este exemplo mostra o absurdo da decisão de ampliação da
competência do STF, pela via interpretativa, para julgar ações de improbidade
administrativa, fundamentado numa imaginação de que a as sanções trazidas
pela Lei nº 8.429/92 teriam uma natureza quase penal.
Reitere-se o pensamento do ex-Ministro Paulo Brossard, proferido no
âmbito do Mandado de Segurança 21.623-9-DF:
“É criminal a sanção aplicada ao funcionário quando demitido a bem do
serviço público? À evidência, não o é. No entanto, por motivos de conveniência,
prescreve a lei que, durante cinco anos, ou vitaliciamente, conforme a hipótese,
12
Ag. Reg. Em Reclamação nº 1.110-1-DF, rel. Min. Celso de Mello, J. 25.11.1999, DJU 07.12.1999, p. 58.
15
o funcionário demitido a bem do serviço público não poderá voltar aos quadros
da administração, a despeito da Constituição estatuir que o acesso aos cargos
públicos é assegurado a todos, mediante concurso e nos termos da lei. É o que
ocorre, mutatis mutandis, com o Presidente condenado pelo Senado.
Vale a pena insistir nesse ponto, o fato de a Constituição assim
prescrever, por evidentes razões de conveniência, não altera a natureza da
sanção aplicável. A própria Constituição indica a dualidade de situações. No
mesmo art. 15 diz que se suspendem os direitos políticos nos casos de
‘condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos’, e
ainda nos casos de ‘improbidade administrativa’, nos termos do art. 37, § 4°. “
Permitir, portanto, que os agentes políticos fiquem sujeitos a julgamento,
nas ações de improbidade administrativa, pelos Tribunais Superiores,
é
subverter a ordem constitucional, subtraindo o juiz natural. É criar, em verdade,
um tribunal de exceção.
3.3.
IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA
E
CRIME
DE
RESPONSABILIDADE
Segundo a decisão liminar, os agentes políticos, submetidos que estão a
um sistema de responsabilidade próprio, não podem estar sujeitos à Lei de
Improbidade Administrativa.
A
Constituição
brasileira
não
prevê
apenas
um
sistema
de
responsabilização para os agentes políticos. E dentre os sistemas de
16
responsabilização previstos na Carta Magna, encontra-se a política pela prática
de crime de responsabilidade, a criminal, pela prática de crime comum, a cível,
de ressarcimento e a de improbidade administrativa, pela prática de atos de
improbidade, fixada no § 4º do artigo 37, bem como no inciso V do artigo 15,
ambos da Constituição da República.
Essa ampla gama de responsabilização é facilmente admitida pela
doutrina mais abalizada, tendo o ex-Ministro Paulo Brossard afirmado, acerca da
responsabilidade do Presidente da República por crime de responsabilidade
(impeachment):
“Entre nós, porém, como no direito norte-americano e argentino, o
impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas,
objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política
e julgada segundo critérios políticos – julgamento que não exclui, antes supõe,
é óbvio, a adoção de critérios jurídicos. Isto ocorre mesmo quando o fato que o
motive possua iniludível colorido penal e possa, a seu tempo, sujeitar a
autoridade por ele responsável a sanções criminais, estes, porém, aplicáveis
exclusivamente pelo Poder Judiciário”. 13
Registre-se, outrossim, que a Lei de Improbidade Administrativa não é
aplicável em toda sua extensão a determinados agentes públicos, ou seja, a
imposição de todas as suas sanções para todo e qualquer agente público. Em
alguns casos existem exceções. Quando a Constituição Federal, e somente ela,
prevê forma especial de perda do cargo ou dos direitos políticos aos agentes
públicos, estas sanções não lhes podem ser aplicadas em ação de improbidade
13
Brossard, Paulo. O Impeachment. Saraiva: 1992, p. 75.
17
administrativa. Porém, isso não quer dizer que, nestas hipóteses, as outras
sanções previstas na Lei nº 8.429/92 não possam ser aplicadas. Da mesma
maneira que a propositura de ação popular contra o Presidente da República
sempre foi admitida, a ação de improbidade administrativa também é admitida,
com a particularidade de não poderem ser aplicadas as sanções de perda da
função pública e suspensão dos direitos políticos. Nos casos de exceção
constitucional, portanto, é possível a propositura da ação de improbidade,
excluídas as sanções acima, posto não ter ela natureza penal, não se confundindo
com os crimes de responsabilidade.
Ademais, também deve-se compreender que a Lei 8.429/92 tem aplicação
restrita aos casos da prática de atos administrativos e não de atos políticos,
jurisdicionais, legislativos ou típicos dos agentes do Ministério Público, exceto
quando a prática desses atos tenha sido precedida de uma situação adicional, que
vá além da independência funcional desses agentes, como, a título de exemplo,
recebimento de propina.
Como também sem qualquer razão a justificativa trazida no despacho
concessivo da medida liminar ao informar “que não se admite a destituição
indireta de autoridade sufragada pelo voto popular sem o consentimento
expresso dos representantes do povo.” Ocorre que a prática de ato de
improbidade implica em “quebra da relação de confiança ínsita a qualquer
representação” 14. Ou será que os representantes do povo, ao terem escolhido
seus mandatários, deram-lhes autorização para a prática de atos de corrupção
e/ou improbidade administrativa? Por isso, em razão da violação ao mandato
14
Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
2.002. p. 630
18
popular recebido, mostra-se crível seja o agente político afastado de suas
funções em processo judicial.
Lembre-se, ainda, que o ordenamento jurídico confere a possibilidade de
perda do cargo, função pública ou mandato eletivo pela via judicial,
possibilidade esta que vem estampada em diversos diplomas legais além da Lei
de Improbidade Administrativa, como, v.g., Código Penal (artigo 92) e DL
201/67, lei eleitoral, etc. Portanto, se vingar esse motivo (de que não pode haver
a “destituição indireta de autoridade sufragada pelo voto popular sem o
consentimento expresso dos representantes do povo”) jamais poderá a
autoridade judicial (em qualquer processo – e não somente na ação de
improbidade) aplicar a sanção de perda do mandato eletivo, entendimento este
que está em confronto, como já demonstrado, com o ordenamento jurídico, bem
como mostra-se contraditório com os próprios argumentos lançados na decisão
criticada – pois esta admite a perda do cargo por condenação criminal, o que é
evidente. Aliás, registre-se que o artigo 15, V, da Constituição Federal,
expressamente, disciplina que a improbidade administrativa, na forma do
artigo 37, § 4º, da Carta Magna, é uma das formas de perda ou suspensão
dos direitos políticos, o que põe uma pedra sobre o assunto.
Três outros aspectos importantes devem ser ressaltados a prevalecer o
entendimento manifestado na liminar, de que os agentes políticos não estão
sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa: (i) implicará em letra morta o
contido em parte no artigo 73 da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de
Responsabilidade Fiscal); (ii), inconstitucional o disposto no art. 52 da Lei
10.257/01 o chamado Estatuto da Cidade; e, (iii), vai contra o Decreto 4.410 de
19
07 de outubro de 2002, que promulga a Convenção Interamericana contra a
Corrupção.
Com efeito, a violação às disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal
implica em ato de improbidade administrativa, por força do já referido artigo 73.
Ora, sabidamente, os atos que impliquem desobediência aos dispositivos da Lei
de Responsabilidade Fiscal são de autoria, em sua grande maioria, senão
totalidade, de agentes políticos enquanto responsáveis pela gestão fiscal. Assim,
se os agentes políticos ficarem “isentos” da responsabilização por improbidade
administrativa, restará sem qualquer aplicação o disposto no artigo 73 da LRF,
na parte em que informa que a violação à dita lei implica em ato de improbidade
administrativa, perdendo-se grande parte da força coativa desta lei que sempre
foi saudada pelo governo como essencial ao processo de ajuste das contas
públicas.
E o Estatuto da Cidade, igualmente saudado como solução para os
problemas urbanísticos de nossas metrópoles, fica sem a possibilidade de impor
as sanções de improbidade aos Prefeitos – o art. 52 do Estatuto da Cidade
menciona expressamente que aos Prefeitos se aplicam as sanções de
improbidade - que praticarem os atos informados em seu art. 52.
E a recém promulgada Convenção Interamericana contra a Corrupção, que
tem como propósito promover e fortalecer o desenvolvimento, por cada um dos
Estados Partes, dos mecanismos necessários para prevenir, detectar, punir e
erradicar a corrupção
15
, define, para seus fins, "funcionário público",
"funcionário de governo" ou "servidor público" qualquer funcionário ou
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Artigo II
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empregado de um Estado ou de suas entidades, inclusive os que tenham sido
selecionados, nomeados ou eleitos para desempenhar atividades ou funções em
nome do Estado ou a serviço do Estado em qualquer de seus níveis
hierárquicos
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, fica frontalmente contrariada, uma vez que acaba por
enfraquecer um dos mais notáveis instrumentos, tanto preventivo quanto
punitivo, para o combate da corrupção, que é a Lei de Improbidade
Administrativa.
Aliás, se a Lei de Responsabilidade Fiscal dispõe que a violação à mesma
implica em ato de improbidade administrativa, e se praticamente somente os
agentes políticos podem ser responsabilizados por essa violação; se o Estatuto
da Cidade caminha no mesmo sentido; e se restou aprovada e promulgada a
Convenção Interamericana de Combate a Corrupção, é porque a vontade do
legislador sempre foi no sentido de informar que os agentes políticos estão
sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa, em perfeita consonância com o
texto constitucional, diga-se de passagem. A decisão liminar, portanto, vai em
sentido contrário à vontade do legislador.
Portanto, e lembrando que a improbidade administrativa, tal qual
estabelecida na Lei 8.429/92, integradora do art. 37, § 4º da Constituição
Federal, não tem natureza penal, somente se pode concluir que ela não se
confunde com a Lei 1.079, que estabeleceu os crimes de responsabilidade. Aliás,
o STJ, no Rec. Nº 591-SP, rel. Ministro Nilson Naves, j. Em 01.12.99, DJ
15.5.2000, assim já decidiu.
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Artigo I
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E, para concluir este tópico, a lei que define os crimes de responsabilidade
(Lei nº 1.079/50) não prevê a sanção de suspensão dos direitos políticos. Esta
sanção é mencionada pelo artigo 37, § 4º, da CF, de onde se conclui, mais uma
vez, que a Lei 1.079/50 não é substitutiva da Lei 8.429/92, para efeitos de
sancionamento às violações dos atos de improbidade administrativa. Se
consagrado o entendimento esposado na decisão liminar, restará sem aplicação o
disposto no referido preceito constitucional que informa que o ato de
improbidade administrativa traz como conseqüência, dentre outras sanções, a
suspensão dos direitos políticos.
3.4. CONCLUSÃO
É interessante observar que justo no momento em que se desenvolve o
combate a corrupção no Brasil, ainda de maneira tímida se comparada a grande
quantidade de casos de agressão ao patrimônio público, ocorram tantas reações à
aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, que se tem demonstrado o
principal instrumento de combate à corrupção.
É importante ressaltar que nestes dez anos de vigência da Lei de
Improbidade Administrativa não se vislumbrou nenhum caso de destituição,
irresponsável ou não, do Presidente da República, Ministros de Estado ou de
Ministros do Supremo Tribunal Federal – receio manifestado pelo Ministro
Nelson Jobim -, porém, a aplicação desta lei propiciou o afastamento de
inúmeros prefeitos corruptos, o seqüestro de bens desviados por um sem número
de agentes políticos, bem como a reconstituição do patrimônio público lesado
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em muitas situações (no Estado do Paraná, lembre-se os casos dos Prefeitos de
Londrina, Maringá, Carlópolis, Pérola e Jataizinho, de vereador de Curitiba,
dentre outros).
5. PEDIDO
Diante
do
exposto,
requer
o
CONSELHO
NACIONAL
DOS
PROCURADORES-GERAIS DE JUSTIÇA seja julgada improcedente a
reclamação 2138-6, mantendo-se, de conseqüência, a competência do
magistrado de primeiro grau para conhecer e julgar a Ação de Improbidade
Administrativa sob nº 1999.34.00.016727-9.
Brasília, 16 de outubro de 2002.
MARIA TEREZA UILLE GOMES
PROCURADORA-GERAL DE JUSTIÇA
MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ
VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE PROCURADORES –
GERAIS DE JUSTIÇA
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Memorial nº 2 - Combate à Corrupção