MEMORIAL - GÊNERO TEXTUAL (AUTO) BIOGRÁFICO
Mônica Maria Gadêlha de Souza Gaspar (UPE- PPGED/UFRN)
[email protected]
Maria de Fátima Araújo (NEI-CAp/UFRN)
[email protected]
Maria da Conceição Passeggi (UFRN)
[email protected]
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é parte da nossa pesquisa de doutorado, em andamento, junto ao
Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Nele, propomos uma reflexão sobre a escrita do memorial como gênero textual (auto)biográfica e
a discussão sobre as potencialidades desse tipo de escrita para o processo de formação da pessoa
que escreve sobre si, denominado de biografização - ação pela qual o narrador se apropria de um
instrumento semiótico (grafia), culturalmente herdado, sócio-historicamente situada, para se
colocar, ou colocar o outro, no centro da narrativa como protagonista de um enredo (DELORYMOMBERGER, 2008).
O memorial é considerado um gênero textual de natureza híbrida: elaborado tanto como
um dispositivo de avaliação quanto como uma prática reflexiva de formação. Como ato de
criação exige o encadeamento de fatos significativos dentro das lógicas de valorização da
formação profissional e do percurso acadêmico.
Temos como objetivos compreender como se dá o processo de escrita desse gênero
constituído na academia (como uma prática reflexiva de formação) e para a academia (como um
dispositivo de avaliação); discutir a importância do acompanhamento nesse processo de produção
e perceber a dimensão formadora potencializada pela escrita do memorial.
Na discussão do texto estabelecemos um diálogo com as contribuições de Bakthin (1992,
2010), Delory-Momberger (2008); Josso (2006a, 2006b); Passeggi (2008a, 2008b, 2011); Pineau
(2004, 2006a, 2006b), e pretendemos oferecer elementos teóricos metodológicos acerca desse
gênero textual e sua utilização no processo de formação do professor. Para este trabalho tomamos
dois memoriais de professores: um memorial de formação e um memorial produzido como
dispositivo de avaliação, sobre os quais realizamos uma análise comparativa dos elementos
constitutivos dessa escrita e das particularidades de cada um deles.
O texto está organizado de forma que, na primeira parte o leitor possa vislumbrar alguns
fundamentos da abordagem teórico metodológica por nós utilizada, a pesquisa (auto)biográfica.
Em seguida apresentamos uma discussão sobre os memoriais autobiográficos (o memorial
acadêmico e o memorial de formação). Por fim apresentamos a análise dos dois memoriais,
elementos de estudo do nosso trabalho e tecemos algumas conclusões.
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1. A PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA
Temos observado um aumento expressivo de instituições educacionais brasileira que
utilizam o método (auto)biográfico como metodologia no âmbito da pesquisa e da formação
docente, evidenciando, assim, reflexões e influências no cenário educacional no Brasil (BUENO
et al, 2006; BUENO, CATANI, SOUZA, 2003).
Os estudos que tomam a abordagem biográfica como referencial para as pesquisas
educacionais, mostram a variedade de classificações que o método biográfico adquiriu ao longo
do tempo, talvez pela complexidade de sentidos que carregam os termos que constituem a
palavra autobiografia.
O percurso histórico traçado por Pineau e Le Grand (2004) descreve os movimentos pelos
quais passou a referida abordagem. Os autores distinguem esse conjunto por diferentes entradas:
a primeira, de natureza pessoal, reúne a literatura íntima ou do eu, expressas em confissões,
diários íntimos, cartas, correspondências, livres de raison, livros de família, ensaios, canções; e, a
segunda de natureza temporal com as genealogias, memórias, lembranças, diários de viagem,
efemérides, anais, crônicas, histórias.
As variações em torno das histórias e relatos de vida, biografias e autobiografias, indicam
os vários sentidos atribuídos às tentativas de expressão da temporalidade pessoal vivida. Essas
tentativas, segundo Pineau (2006), provocam interpretações que levam a compreender que a
prática e a teorização da história de vida encontram-se nas dualidades das fronteiras individual e
social, consciente e inconsciente, do antes e do depois.
O jogo de interpretações dos termos da palavra Auto-Bio-Grafia auxilia na compreensão
do sentido da abordagem. Lembra Pineau (2006) que Gusdorf propõe a inversão desses termos
para que se compreenda o significado da palavra: Grafia, a escrita; Auto, o eu e, Bio, da vida, já
Pineau prefere “Bio – a vida pertenceria, potencial e cronologicamente a um primeiro plano; Auto
- o eu, ao segundo plano, enquanto atualidade/existencialidade; e, a Grafia – ao terceiro plano
enquanto mediação/lei.
Segundo Passeggi (2008), este jogo de interpretações torna transparente ou invisível a
densidade das grandes questões envolvidas em cada um dos termos, quando considerados
separadamente: Auto – o que é o eu?, Bio – O que é a vida? e Grafia – O que é a escrita?. Embora
o objetivo não seja responder essas questões, que podem se desmembrar em tantas outras, esse
jogo com os termos e as questões que deles surgem é para, além de observar a relação dialética
entre a vida, o eu e a escrita, chamar atenção para a narrativa que, segundo a autora (ibid, p. 46),
“coloca numa relação dialética a vida, o eu e a mediação escrita para (re)criar mundos simbólicos
na escala do indivíduo e dos grupos, inserindo-os na cultura e em seus rituais”.
Geralmente, quando se propõe a escrita (Grafia) como instrumento de reflexão e expansão
de si, ou seja com questões referentes à subjetividade (Auto) relacionando-as com a vida (Bio),
há resistência, pois bio-grafar-se não é uma tarefa fácil. Há várias barreiras em pensar: Como
escrevo a minha história? O que aprendo com a escrita de minha vida? Para que ou para quem
a escrevo? (PASSEGGI, 2008).
Segundo Pineau (2006), escrever sua história é tentar sobreviver, ganhar vida, fazê-la ou
refazê-la e compreendê-la um pouco. Essas são operações que se situam nas fronteiras do
individual, do social, do consciente e do inconsciente, do antes e do depois. Para o autor, as
histórias de vida como prática autopoiética são vistas como práticas contrabandeadas em relação
às práticas disciplinares.
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Atentamo-nos para duas situações de escrita institucional de professores ou futuros
professores. A primeira é a escrita do percurso intelectual e profissional para concursos públicos
e, a segunda, a escrita do percurso formativo de professores em formação profissional. Em ambas
as situações, os autores se debruçam para narrar suas memórias em um gênero discursivo
denominado memorial.
2. MEMORIAL AUTOBIOGRÁFICO
O termo memorial data do século XIV, origina-se do latim tardio memoriale, is e designa
“aquilo que faz lembrar”. Segundo Passeggi (2010b), ele é utilizado em várias áreas do
conhecimento: em arquitetura, refere-se a um monumento (Memorial da América Latina), em
Contabilidade, designa um livro de anotações, em Direito, um relatório, em Literatura ou em
História, um relato concernente a fatos ou indivíduos memoráveis. A acepção memorial como
escrita acadêmica é definida por Severino (2001, p. 175), como:
(...) uma autobiografia configurando-se como uma narrativa simultaneamente
histórica e reflexiva. Deve então ser composto sob a forma de um relato
histórico, analítico e crítico, que dê conta dos fatos e acontecimentos que
constituíram a trajetória acadêmico-profissional de seu autor, de tal modo que o
leitor possa ter uma informação completa e precisa do itinerário percorrido.
O memorial é um tipo de escrita de si, uma narrativa descritiva e reflexiva sobre uma
trajetória de vida e de formação. A grande riqueza da experiência do memorial é compreendida
quando o rememorar dos eventos constrói pontes com o presente, criando insights que vão dar
lugar a verdadeiras aprendizagens.
Pela escrita, os professores-formandos geralmente descobrem como se
desenvolveu sua trajetória até a sala de aula, compreensão nem sempre possível
no cotidiano do trabalho, quando muitas vezes o processo de ensino se torna
mais importante que o processo de aprendizagem (VASCONCELOS, 2006).
A escrita de memoriais quer como dispositivo de formação como trabalho de conclusão
de curso para cumprir uma exigência institucional ou para ingresso na condição de docente na
maioria das universidades brasileiras é cada vez mais crescente nas últimas décadas no Brasil.
Segundo Passeggi (2010b), nos últimos setenta anos o memorial vem se construindo e se
modificando de acordo com a própria transformação do ensino superior no Brasil. Tais
modificações, devem-se à estreita relação que se estabelece entre os gêneros discursivos e as
esferas sociais nas quais eles surgem e com elas evoluem (BAKHTIN, 1992).
Passeggi (2006) define a escrita do memorial como “uma prática social acadêmica” e
acrescenta que “enquanto narrativas de vida institucionalizadas, instauram a problemática da
reinvenção de si, num contexto de injunção institucional (...) entrelaçam uma dimensão
(auto)avaliativa e outra (auto)formativa” (p. 203- 204). O memorial tem o papel de elaborar as
relações e as ligações entre fatos e vontades, acontecimentos e sonhos. É uma forma de
“reinterpretação da vida, acrescentado-lhe novo colorido, tristezas e sucessos.” (BARBOSA;
PASSEGGI, 2006, p.91).
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Pesquisas realizadas em documentos institucionais como editais, resoluções etc, Passeggi
(2010b) encontrou várias denominações para este tipo de texto, como: memorial, memorial
descritivo, memorial reflexivo, memorial acadêmico, memorial de formação, entre outros. Para
demarcar o memorial como escrita acadêmica, a autora propõe o termo memorial autobiográfico
por permitir uma diferenciação das acepções encontradas nas diversas áreas do conhecimento e
“cobrir a flutuação terminológica relativa aos memoriais como escrita de si, que se realiza para
atender a uma demanda institucional” (PASSEGGI, 2010b, p.21). Ela considera o memorial
autobiográfico como:
(...) uma escrita institucional na qual a pessoa que escreve faz uma reflexão
crítica sobre os fatos que marcaram sua formação intelectual e/ou sua trajetória
profissional, com o objetivo de situar-se no momento atual de sua carreira e
projetar-se em devir (PASSEGGI, 2010b, p. 21).
O memorial acadêmico e o memorial de formação
O memorial acadêmico é uma narrativa reflexiva escrita por professores e/ou
pesquisadores do ensino superior sobre sua trajetória intelectual e profissional. As finalidades do
memorial acadêmico são múltiplas, podendo ser objeto de concurso público para ingresso na
carreira docente e/ou em outras funções em instituições de ensino superior, servir de instrumento
de avaliação para progressão profissional, ou ainda apresentar-se como iniciativa de constituição
da memória de um grupo, de uma instituição etc. (PASSEGGI, 2010b, p.21)
A pesquisa realizada por Passeggi (2006) constatou que no final dos anos 1970 o
memorial começa a ser exigido em universidades brasileiras e que a divulgação desse gênero
acadêmico foi marcada pela publicação, em 1991, do memorial da professora Magda Soares, cujo
título era: “Metamemória- Memórias. Travessia de uma educadora, escrito para o concurso de
professor titular na Universidade Federal de Minas Gerais” (PASSEGGI, 2006, p. 67). Foi a
partir daí que esta exigência se generalizou em concursos para professor titular ou para a
progressão funcional nas universidades federais brasileiras. Nos anos 1990, nas mesmas
universidades ela se estende ao ingresso na pós-graduação. Atualmente, tornou-se, ainda um
“requisito exigido usualmente em editais de concursos para universidades, institutos de pesquisa
e órgãos governamentais” (Idem, p. 67).
Segundo a autora, o prestígio alcançado por estas narrativas acadêmicas serviu de garantia
e de inspiração para a “proposta pioneira no Brasil, do memorial de formação como requisito
parcial para a obtenção do diploma do Curso Normal Superior, quando da criação do Instituto de
Formação de Professores (atualmente IFESP) em Natal-RN, em 1994.” (PASSEGGI, 2006, p.
67).
Discutindo “a face oculta do memorial acadêmico” Passeggi (2006) ressalta que, expor,
por escrito, as histórias que contamos sobre nós mesmos, em nosso discurso interior, não é tarefa
fácil (p.70), especialmente quando se trata de um texto/documento que é produzido por um
sujeito que está querendo ser merecedor de uma vaga numa instituição e que o submeterá a
avaliação de uma banca avaliadora. Por este motivo Pineau considera que “a atividade criadora
dependerá da finalidade a qual se destina a história. É ela quem dará forma ao disforme ou
multiforme, sentido aquele que antes não tinha” (PINEAU, 1989, p.16). Assume-se assim, os
riscos de “colocar em jogo nessa tarefa a imagem de si, a imagem que os outros fazem de si, a
imagem de si para si mesmo (PASSEGGI, 2006, p.70).
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Estudos revelam a preocupação do narrador em justificar sua posição de candidato. Esse é
o sentido do pacto biográfico (LEJEUNE, 1975). Para Passeggi (2006) a injunção institucional,
característica da face avaliativa, parece se desvanecer bob o efeito da escrita autobiográfica. Para
Gusdorf (1990, p. 122) “a escrita do eu (je) supõe a presença do mim (moi), a adesão, a aderência
do ser pessoal” ao que se conta no momento que se escreve. O exercício de rememoração e
interpretação de si mesmo é “autopoiético”, ou seja, portador da reinvenção de si (PASSEGGI,
2006, p.71)
O gênero narrativo autobiográfico - Memorial de Formação se insere como uma
metodologia de formação. Segundo Passeggi (2008), o percurso do Memorial de Formação
acompanha a trajetória da universidade brasileira, modificando-se e adaptando-se conforme as
circunstâncias sócio-históricas. Geralmente é escrito durante o processo de formação, inicial ou
continuada, ser acompanhado por um professor orientador e concebido como trabalho de
conclusão de curso (TCC ou TFC).
A escrita nessa modalidade de memorial conta com um roteiro definindo, normas de
apresentação e informações que devem enfatizar o processo de reflexão sobre as experiências
vivenciadas no decorrer da formação estabelecendo uma relação com a experiência profissional.
Essa dinâmica de trabalho é acompanhada por um professor formador que orienta a escrita
tecendo comentários para a reescrita textual. Esse processo acontece até a versão final.
Segundo Souza (2006, p. 159), escrever sobre a experiência na formação é proporcionar
ao autor (professor), através do ato de lembrar e narrar, “reconstruir experiências, refletir sobre
dispositivos formativos e criar espaço para uma compreensão da sua própria prática”. A
reconstrução dessa narrativa caminha junto à memória, ao que queremos compartilhar com o
outro. Para Halbwachs (1993) a memória coletiva está assentada naquilo que é comum ao grupo,
embora cada integrante do grupo produza suas memórias de forma individual. Já a memória
individual “não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo
não inventou e que emprestou de seu meio” (p. 54).
Dessa forma, escrever sobre a formação e a experiência permite que essa memória
individual se relacione com uma memória coletiva, à medida que essa memória individual e
singular se constitui a partir da apropriação e mediação do coletivo. Sobre essa discussão, Franco
Ferrarotti (1998) expressa que:
O homem é o universal singular. Pela sua práxis sintética, singularizada nos
seus actos a universalidade de uma estrutura social. Pela sua actividade
destotalizadora/retotalizadora, individualiza a generalidade de uma história
social colectiva. Eis-nos no âmago do paradoxo epistemológico que nos propõe
o método biográfico. [...] Se nós somos, se todo o indivíduo é a reapropriação
singular do universal social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social
a partir da especificidade irredutível de uma práxis individual (p. 26 – 27).
Podemos então entender que a escrita do memorial é submetida às variações sóciohistóricas. Por isso, o ato de biografar é estabelecido por uma questão mais coletiva que
individual.
Segundo Dellory-Momberger (2011, p. 335),
As estruturas e formas de narrativa que os indivíduos utilizam para biografar
sua vida não lhes pertencem de fato, eles não podem decidir sozinhos, são
formas coletivas que refletem e condicionam, ao mesmo tempo, as relações que
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os indivíduos mantêm com a coletividade e com eles mesmos, em determinada
época e no seio de uma cultura.
Embora os memoriais acadêmico e de formação possuam características diferentes, eles
são gêneros textuais discursivos com caráter polifônico pois estão impregnados da palavra do
outro. Bakhtin (1992, p. 353) enfatiza que [...] “o discurso é sempre polifônico, pois em cada
palavra há vozes, vozes que podem ser infinitamente longínquas, anônimas, quase
despersonalizadas [...], inapreensíveis, e vozes próximas que soam simultaneamente”.
Ao escrever o memorial, ou seja, ao biografar-se, a história de vida do professor em
formação é transformada, pelo processo de escrita, em um texto acadêmico que adquire um valor
social e afetivo para o autor. Passeggi (2010b) afirma que, tratando-se de um gênero
autobiográfico, o narrador coincide, enquanto escreve, com o autor empírico do texto.
Nesse momento, o narrador se torna personagem de sua história. Ao narrar sobre sua vida
profissional cujos personagens são os outros, o narrador no entrelace com os personagens,
coloca-se na condição de personagem em sua narração. Segundo Bakhtin (2010),
Esse outro que se apossou de mim não entra em conflito com meu eu-para-mim
uma vez que não me desligo axiologicamente do mundo dos outros, percebo a
mim mesmo numa coletividade: na família, na nação, na humanidade culta;
aqui a posição axiológica do outro em mim tem autoridade e ele pode narrar
minha vida com minha plena concordância com ele (p. 140).
O caráter polifônico dos memoriais expressa os vários papéis que o narrador tem na
escrita do texto. Segundo Prado e Soligo (2007, p. 34), escrever exige a todo instante um
deslocamento do narrador que escreve para o leitor do próprio texto. “O narrador assume o papel
de analista do já escrito é o que permite, por assim dizer, o controle de qualidade, do ponto de
vista do conteúdo da forma. Aquele que escreve tem de ser, quase ao mesmo tempo, autor, leitor
e revisor” (p.34).
A escrita de memoriais de formação tem se tornado o foco de investigação para a
pesquisadora Passeggi. Suas pesquisas têm evidenciado a importância da mediação na escrita de
memoriais de formação, visto que neste há possibilidade de um acompanhamento sistemático nos
cursos de formação de professores sejam inicial ou continuada.
Na busca de referências teóricas para a sistematização do processo da escrita do
memorial, Passeggi (2006, 2007, 2008, 2010a) apresenta a mediação biográfica como processos
envolvidos no acompanhamento de pessoas em formação que escrevem e trabalham sobre as suas
narrativas. Para elaboração desse conceito, a autora se inspirou nos trabalhos de Vygotsky e da
tríplice mimese de Paul Ricoeur (1994).
A mediação biográfica apresenta três dimensões: iniciática, maiêütica e hermenêutica
(PASSEGGI, 2006) que são articuladas com as mimeses I, II e II de Ricoeur (1994).
A iniciática é o início da narrativa. O narrador conta sua historia trabalhando a
temporalidade: passado – memória dos fatos vividos; presente – a percepção dos acontecimentos
atuais, e futuro – expectativas do porvir. “Cabe ao narrador elaborar sua história, organizando o
seu tempo e os fatos rememorados” (PASSEGGI, 2008, p. 48). A iniciática é a fase inicial e
corresponde à primeira da tríplice mimese proposta por Ricoeur: a Mímese I – prefiguração do
tempo – o da vida prefigurada: a existência do que antecede a narração, a pré-narrativa. Segundo
Ricoeur (1994),
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[...] imitar ou representar uma ação é primeiro, pré-compreender o que ocorre
com o agir humano: com sua semântica, com sua simbólica, com sua
temporalidade. É sobre essa pré-compreensão, comum ao poeta e a seu leitor,
que se ergue a tessitura da intriga e, com ela, a mimese textual e literária [...] (p.
101).
Nesta fase, início da escrita, “as lembranças emergem coloridas pela emoção. Elas tendem
a provocar um conflito existencial na evocação dos momentos, pessoas, espaços, ações
charneiras”. Fica a sensação de “um pensamento nebuloso diante de fatos completamente
desordenados e inseparáveis da vida pessoal e profissional do narrador” (PASSEGGI, 2006, p.
211).
A fase seguinte é a maiêutica. Dimensão em que o narrador se familiariza com o trabalho
biográfico à medida que avança na escrita e se conscientiza de seu processo de mudança. Nesta
fase, o narrador partilha com o formador no grupo reflexivo as sucessivas versões da história, é
quando ele ultrapassa os temores iniciais vencendo as primeiras resistências. Refere-se à mimese
II - configuração do tempo, da experiência configurada. A configuração é a operação na qual o
narrador transforma os fatos rememorados em história.
A mimese II é mediadora. Primeiro por “promover a mediação entre acontecimentos
individuais e uma história considerada como um todo”; segundo, ela “promove a composição e a
mediação de elementos heterogêneos como agentes, intenções, circunstâncias, meios”; e, terceiro,
por seus elementos temporais: a história com um conjunto de acontecimentos e a síntese
configurante que transforma esses acontecimentos em histórias (RICOUER, 1994, p. 103). O
caráter mimético da narrativa não se esgota nestes níveis – mimeses I e II -. Ricoeur defende que
a mímese deve se estender até a leitura do texto narrativo estabelecendo a relação entre texto e
leitor. Nesse caso, toma o leitor como agente que reconstrói a história no ato da leitura. Para ele,
“o texto só se torna obra na interação entre texto e receptor” (1994, p.180), nesse momento é a
mimese III que se faz presente.
Último momento da mediação biográfica, a mimese III de Ricoeur correspondente a
hermenêutica – Refiguração – defendidas por Passeggi (2008). Segundo a autora, nesta fase o
narrador pergunta: o que faço agora com o que isso me fez? É o momento de interpretação do
texto produzido, o processo de interpretação da experiência. O objetivo dessa interpretação é
encontrar o sentido despertado pela reflexão sobre a condição histórica de si, de sua existência
particular e seu lugar no grupo.
Segundo a autora (ibid, p. 213), “a última etapa é a mediação hermenêutica a que se
realiza na interação formador/formando, nessa última fase de participação conjunta na elaboração
do memorial.” Ainda segundo a autora, “o narrador vai reescrevendo sobre o seu texto anterior,
apagando e realçando as marcas que ali encontra, dando-lhe novos significados” (id).
Nesse caso, busca-se ajudar o outro a extrair o significado das experiências formadoras
que foram sendo construídas, primeiro pela evocação e, em seguida, pela reflexão sobre a
evocação durante os dois momentos iniciais da escrita. A refiguração marca a intersecção entre o
mundo do texto e o mundo do ouvinte. Para Ricoeur (1994), é nesta fase que “a narrativa tem seu
sentido pleno quando é restituída ao tempo do agir e do padecer” (p. 110).
Essas fases no processo de escrita, permitem-nos estudar a forma como as autoras das
narrativas autobiográfIcas vivenciaram e representaram o próprio mundo, a própria vida. Nas
palavras de Ricoeur (1994) significa ter a narrativa como material da ação e da intencionalidade
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do homem que intermedia a cultura e o mundo com seus desejos, crenças e esperanças que
podem “até mesmo ensinar, conservar a memória, ou alterar o passado” (p. 52).
À guisa de análise
Para compreender como os professores refletem sobre si e sobre a sua formação, a
pesquisa qualitativa assume a própria natureza da investigação. Assim, tomamos como objetos de
análise, um memorial de formação e um memorial acadêmico (como dispositivo de avaliação
para ingresso numa instituição pública de ensino. O primeiro, produzido no ano de 2009 pela
professora Anita em processo de formação profissional no curso de Pedagogia no PROGRAPE
da universidade do estado de Pernambuco – UPE, Campus Nazaré da Mata. O segundo
produzido em 2010, pela professora Teresa como exigência do concurso público para ingresso no
Núcleo de Educação da Infância- NEI-CAp-UFRN- colégio de aplicação ligado a Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Optamos por identificar os sujeitos através de nomes próprios
(fictícios) para garantir o anonimato.
Na análise dos dois memoriais, aplicamos uma análise de conteúdo (BARDIN, 1997)
destes e tentamos encontrar pistas que respondessem aos nossos objetivos, utilizados aqui
também como categorias se análise: 1- Compreender como se dá o processo de escrita desse
gênero constituído na academia (como uma prática reflexiva de formação) e para a academia
(como um dispositivo de avaliação); 2- Discutir a importância do acompanhamento nesse
processo de produção; 3- Perceber a dimensão formadora potencializada pela escrita do
memorial.
1-
Como se deu o processo de escrita do memorial
Nesta primeira categoria que elegemos para análise dos memoriais, percebemos que um
de nossos sujeitos – Anita - reconhece a importância da escrita do memorial, mas revela a
dificuldade e o sofrimento causados pela ação de abrir as portas que havia deixado para trás.
(...) voltar ao passado é algo que nem sempre foi fácil pra mim, pois esse se
encontra repleto de alegria, mas também de muitas tristezas que me nortearam
ao longo dos anos
(...) Observei que em alguns momentos esta busca ao passado foi dolorosa. (...)
relembrar os acontecimentos tristes e depois escolher o que contar do meu
percurso foi também difícil
Para além de deter-se apenas nas experiências que lhe causaram dor e sofrimento, Anita
faz desse processo de escrita uma forma de compreender e encontrar sentidos para a construção
de seus valores, concepções de trabalho...
Contudo gradativamente fui transpondo as barreiras e analisando fatos
referências de valores e indicadores de concepção de trabalho.
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Anita destaca, ainda, a necessidade de um equilíbrio psicológico e o cuidado para não
omitir fatos.
Por esta razão, redigir essa memória exige um certo equilíbrio psicológico,
mesmo assim tive o cuidado de não omitir fatos que solidificaram meu caráter
social, minha ideologia de vida e meus objetivos que propus a alcançar.
Acerca das escolhas do dizer, pode-se afirmar que na posição de aluna, Anita –
professora em formação - declara tomar cuidado para não omitir fatos de seu percurso de
formação. A escolha do que dizer em si já é um silenciamento do que poderia ser dito e não foi,
há escolhas do que dizer e de como dizer.
Teresa que teve, nos primeiros anos de vida, e no seio da família, sua iniciação musical,
relata:
Escrever este memorial me pareceu a preparação para a execução de uma
Sonata, aonde vamos coletando melodias, contrapontos, dissonâncias e
encontros harmônicos, no afã de organizar sons, gestos e movimentos, em uma
partitura que conta e canta uma história.
Teresa demonstra um sentimento de prazer na escrita de seu memorial, diferentemente
do relatado por Anita, o que pode ser justificado pelo tipo de experiências vividas por cada uma
delas em seus percursos de vida e de formação. Ao contrário do sentimento de sofrimento e dor
relatado por Anita, Teresa compara a escrita de suas memórias à execução de uma sonata
Mas, como descrever um percurso profissional- uma vida em autoformação- em
algumas folhas de papel, material inerte e frio, incapaz de memorizar as
andanças de uma Educadora, em uma história que é a própria história de sua
vida.
Teresa na escrita do memorial. Mas antes de explicar o passado é preciso explicar o
presente, este presente: por que atender a um edital que convida à inscrição a concurso de
professor titular?
Pedem-me um memorial: devo contar o que fui, o que foi; explicar o passado
(...) nesta história procuro me colocar como aquela que está a caminho, na
execução dessa Sonata, que em seus movimentos paira na reflexão dos feitos,
não feitos, na música que deveria ter executada, na canção que deveria ter
cantado. Mas também se reflete nas ações e reações de anos dedicados a
Educação, por um mundo harmonioso, humanescente.
2-
Importância do acompanhamento nesse processo de produção
O acompanhamento é uma dinâmica dialógica de co-construção de sentido -, é uma
ação com o outro. A ação de acompanhar o outro possibilita a superação de obstáculos iniciais.
Sobre essa questão, Anita revela ..
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A dificuldade inicial de escrever sobre a minha formação foi superada aos
poucos. O apoio da professora tutora e a sua paciência de compreender as
minhas dificuldades fizeram com que eu tivesse mais confiança para escrever.
Ressalto a grandiosa colaboração da querida professora tutora por todos os
momentos de disponibilidade, carinho e compreensão para a conclusão deste
memorial.
Esses fragmentos expressam a importância da professora tutora no processo de escrita
do memorial de Anita. É no momento inicial e na ação de biografar-se que se faz presente o
professor que acompanha o processo, apaziguando os conflitos e incentivando o narrador,
mostrando o fio condutor.
3-
A dimensão formadora potencializada pela escrita do memorial
Para Anita, a escrita do memorial possibilitou relembrar momentos importantes de sua
trajetória em várias dimensões, conforme relata neste fragmento de seu memorial:
(...) fez-me perceber o quanto é gratificante relembrar fatos que tiveram grande
relevância para a minha formação: psicológica, social e cultural.
Observamos nos fragmentos abaixo, os momentos de descoberta de si, através da
escrita, expressos pelas professoras, com Anita ao relatar que é “gratificante relembrar fatos que
tiveram grande relevância para a minha formação: psicológica, social e cultural” e com Teresa ao
buscar “nesses mosaicos de anos, atividades e realizações” significantes e que marcaram a sua
trajetória de vida como professora e pesquisadora.
Nesse momento que param para transformar a vida em texto, passam a descobrir fatos
significativos em seus percursos de formação.
Anita, também, aponta em sua história que é possível relacionar o que se viveu com o
que se espera viver
Escrever o memorial me obriga a voltar os olhos sobre mim, notar as mudanças,
os questionamentos do que mudou e em que isso se transformou, ou está se
transformando. É refletir e definir realmente quem sou.
(...) através da linha do tempo posso analisar cada fase do meu
desenvolvimento, comparando-o com o que fui antes e ao que sou agora (...) a
conclusão deste relato e do Curso de Pedagogia fizeram-me vislumbrar novos
horizontes, pois na escola da vida somos e seremos sempre aprendizes em
busca da forma do conhecimento e da realização profissional.
A escrita deste memorial reflete a minha trajetória como Educadora, buscando
neste mosaico de anos, atividades e realizações, descrever minha memória de
vida, de ensino e de pesquisa.
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CONSIDERAÇÕES
A partir da análise dos dois memoriais (acadêmico e o de formação) percebemos que
ambas as autoras destacaram os sentimentos despertados ao voltarem no tempo, relembrar e
ressignificar no presente, suas trajetórias de vida e de formação.
A importância da dimensão formadora da escrita do memorial está expressa em ambos
os documentos, porém o maior destaque é dado no memorial de formação em que a autora
enaltece a importância de um olhar sobre o passado para os processos de crescimento e ascensão
profissional. O aspecto da mediação se fez presente apenas no memorial de formação o que é
justificado pelo fato de o memorial acadêmico não requer um acompanhamento, é uma escrita
que poderíamos chamar de solitária de um sujeito que dialoga com si mesmo e com a instituição
que avaliará seu texto.
Concluímos que o memorial é um gênero textual que oferece potencialidades para o
processo de reflexão dos sujeitos sobre seus percursos de vida e formação permitindo uma
tomada de consciência como sujeito que tem uma história.
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