Altamira, 22 de julho de 2009
Ao Excelentíssimo Presidente da República,
Senhor Luis Inácio Lula da Silva.
Excelentíssimo Senhor Presidente,
Em nome dos movimentos sociais do Rio Xingu, representados pelas pessoas abaixo
assinadas, com relação ao Aproveitamento Hidrelétrico (AHE) Belo Monte, obra prevista
pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) a ser executado no Rio Xingu,
apresentamos o seguinte requerimento:
Questionar a viabilidade econômica, ambiental, social, técnica e cultural do
empreendimento supracitado, considerando que:
1. A Bacia do Rio Xingu é única no planeta. Mais da metade de seu território é
formada por áreas protegidas. São 27 milhões de hectares de alta prioridade
para a conservação da biodiversidade, abrigando 30 Terras Indígenas e 18
Unidades de Conservação.
2. Como demonstram estudos técnicos e antropológicos realizados na região, o
empreendimento proposto atingirá, em diferentes graus, as seguintes
populações:
• Populações indígenas de diversos povos, que apresentam enorme riqueza
sócio-cultural e vivem isoladas na Terra do Meio;
• Populações extrativistas que convivem com a floresta às margens do rio
Xingu e de seus afluentes; e
• Milhares de colonos que se estabeleceram ao longo da rodovia
Transamazônica, encorajados por políticas governamentais de ocupação
da Amazônia implementadas a partir dos anos 1970.
3. O empreendimento trará forte pressão migratória à região da Transamazônica,
estimada em aproximadamente 200 mil migrantes, atingindo o já inoperante
sistema de serviço público local, como saúde, educação, segurança pública,
além do potencial aumento do conflito agrário e desmatamento;
4. A possibilidade de implementação do AHE Belo Monte suscita para os povos
da região grandes inseguranças. O rio Xingu e seus afluentes são muito
importantes para a população, permitindo o acesso às escolas, aos centros de
saúde, os encontros entre povos, a obtenção de alimento e as trocas
comerciais;
5. O projeto do AHE de Belo Monte é tecnicamente inviável, pois a potência
instalada prevista, de 11,233 MW, só estará disponível durante três a quatro
meses por ano. A energia firme, de apenas 4.462 MW, inviabiliza
financeiramente o projeto;
6. O processo de condução de implantação do empreendimento vem
apresentando uma série de irregularidades no respeito à legislação brasileira
(indigenista, ambiental, administrativa e constitucional);
7. Alternativas ao projeto existem e são economicamente viáveis, tendo como
exemplo o leilão de concessão de exploração de energia eólica a ser realizado
em novembro pela Aneel, com capacidade instalada de 13.000 MW, maior
que a própria AHE Belo Monte;
8. A decisão de construção de uma obra desse porte, em uma Bacia como a do
Rio Xingu, com sociobiodiversidade única no planeta, não pode ser tomada de
qualquer jeito, atropelando a população, os costumes locais, a sabedoria dos
povos das florestas, atropelando o próprio processo de licenciamento previsto
em lei. Diferentemente do que foi feito no rio Madeira, os povos do Rio Xingu
não se subordinarão à decisão sobre a construção da AHE de Belo Monte.
Acompanhando esta carta vos encaminhamos, para contribuir com vossa análise, os
seguintes documentos: (1) Carta dos índios Kayapós; (2) Abaixo-assinado de agricultores
que serão afetados caso o empreendimento venha a ser construído; (3) Textos de
agricultores familiares com opiniões sobre Belo Monte; (4) Carta do encontro dos Povos
Indígenas de Altamira, realizado em maio de 2008; (5) Livro “Tenotã-mo – Alerta Sobre
conseqüências dos projetos Hidrelétricos no Rio Xingu”, organizado pelo Prof. Oswaldo
Sevá em 2005; (6) Livro “Convenção 169 da OIT sobre povos Indígenas e Tribais”,
organizado por Biviany Rojas em 2009; (7) Carta SOS Xingu, de 26 de setembro de
2001, escrita em resposta ao assassinato de Aldemir Alfeu Federicci, DEMA; (8) Moção
de Recomendação do Conselho da Criança e do Adolescente de Altamira; (9)
Planejamento Estratégico Participativo das Entidades da Transamazônica e Xingu, de
agosto de 2003; (10) Mapa do desmatamento na Bacia do Rio Xingu.
Assinam esta carta:
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Antonia Melo da Silva - Movimento Xingu Vivo para Sempre
Dom Erwin Krautler – Prelazia do Xingu
Prof. Dr. Célio Bergman – Instituto de Eletrotécnica e Energia da
Universidade de São Paulo
Dr. Felício de Araújo Pontes Júnior – Procurador da República, Ministério
Público Federal do Estado do Pará
Idalino Nunes de Assis – Representante do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais e Extrativistas de Porto de Moz
José Carlos Ferreira da Costa - Liderança indígena Arara da Volta Grande do
Xingu
Lucimar Barros da Silva – Representante dos agricultores familiares da Volta
Grande do Xingu
Ozimar Pereira Juruna – Liderança indígena Yudjá da TI Paquiçamba, na
Volta Grande do Xingu
Dr. Rodrigo Timóteo da Costa e Silva – Procurador da República, Ministério
Público Federal em Altamira
Reflexões Complementares:
O Rio Xingu é um símbolo da diversidade biológica e cultural brasileira. Ao longo de
seus 2,7 mil quilômetros, ele corta o nordeste do Mato Grosso e atravessa o Pará até
desembocar no rio Amazonas, formando uma bacia hidrográfica de 51,1 milhões de
hectares (o dobro do território do Estado de São Paulo) que abriga trechos ainda
preservados do Cerrado, da Floresta Amazônica e áreas de transição.
A Bacia do Rio Xingu é única no planeta: mais da metade de seu território é formada por
áreas protegidas. São 27 milhões de hectares de alta prioridade para a conservação da
biodiversidade, abrigando 30 Terras Indígenas e 18 Unidades de Conservação. Dos 66
municípios com alguma porção de terras dentro da Bacia, 24 têm sede na Bacia do Xingu
e, além de ter uma relação de dependência muito grande com o rio, são pontos de
referência para as diversas populações indígenas do Parque Indígena do Xingu, Terra
Indígena Kayapó, Menkranogti, Baú, Apyterewa, Trincheira Bacajá, entre outras.
Essa riqueza sócio-cultural traduz-se pela presença de 20.776 indígenas, de 24 povos,
alguns vivendo isoladamente na Terra do Meio e nas Resex dos rios Xingu e Iriri, como
demonstram estudos antropológicos realizados na região. Além dos povos indígenas,
populações tradicionais convivem com a floresta às margens do rio Xingu e de seus
afluentes há mais de um século. Chegaram na região impulsionadas pelos ciclos de
exploração da borracha, vivendo hoje principalmente da agricultura, da pesca e do
extrativismo vegetal. Somam-se a esses, os milhares de colonos oriundos principalmente
do nordeste ou do sul, que se estabeleceram ao longo da rodovia Transamazônica e de
seus travessões, encorajados por políticas e projetos governamentais de ocupação da
Amazônia implementados a partir dos anos 1970. Apesar das dificuldades estruturais que
enfrentam, desenvolvem uma agricultura familiar responsável hoje pela 2a maior
produção de cacau do país! Há também médios e grandes fazendeiros, somando
1.267.000 de habitantes.
É grande e antiga a mobilização social que caracteriza os colonos que habitam a
Transamazônica, seus travessões e vicinais na região de Integração do Xingu, em torno
do desenvolvimento da região da Transamazônica e do Xingu e de melhores condições de
vida. Esses colonos que vivem nos municípios de Placas, Uruará, Medicilândia, Brasil
Novo, Altamira, Vitoria do Xingu, Senador José Porfírio, Anapu, Pacajá, Porto de Moz, e
Gurupá, e que formam as áreas de influência direta e indireta (AID e AII) da UHE de
Belo Monte, vêm dialogando desde o final da década de 80 para a construção de um
modelo de desenvolvimento sustentável para a região, que leve em conta as dificuldades
vividas pela população, em decorrência do abandono em que se encontram por parte das
políticas públicas. Dentro deste projeto de desenvolvimento, a pavimentação da rodovia
BR 230 (Transamazônica) foi identificada como uma das prioridades para facilitar o vaie-vem, a comercialização da produção, o acesso à educação e à saúde para uma
população na qual as mulheres ainda morrem de parto. O que se busca não é cristalizar o
desenvolvimento regional, mas sim pensá-lo nos termos da Amazônia, incluindo o uso
sustentável de suas riquezas, com o respeito dos modos de vida tradicionais e das culturas
que evoluíram nesses territórios ao longo de milhares de anos.
A possibilidade de implementação da UHE Belo Monte suscita para os povos da região
grandes questionamentos e inseguranças. O rio Xingu e seus afluentes são muito
importantes para a população. A navegação no rio é a forma de transporte mais utilizada,
permitindo o acesso às escolas, aos centros de saúde, possibilitando as trocas e os
encontros. Como ficará a navegabilidade no rio Xingu? Para onde irão as cerca de 20.000
pessoas que serão deslocadas em conseqüência do enchimento dos Reservatórios do
Xingu e dos Canais? A vazão ecológica, proposta para o trecho de vazão reduzida,
possibilitará a manutenção das condições ecológicas responsáveis pelo grande número de
espécies de peixes ornamentais, cuja coleta é uma das principais atividades econômicas
da população neste trecho do rio? Os estudos e o relatório de impacto ambiental
(EIA/RIMA) identificam como de elevada magnitude a sobrecarga na gestão da
administração pública dos municípios que acolherão mais de 200.000 pessoas que
integram o fluxo migratório previsto, considerando a construção das Barragens e linhas
de transmissão. Que tipo de apoio na gestão da administração pública receberão esses
municípios? Em quanto tempo?
O projeto da UHE de Belo Monte apresenta sérios problemas nos números, que têm sido
contestados por diversos cientistas, movimentos sociais e meios de comunicação. Qual o
custo real da obra e, portanto, do kWh de energia que poderia ser gerado? O EIA
apresenta um custo médio de R$ 784/kW, considerando o valor de potência instalada de
11.233,1 MW - quando o próprio EIA revela a expectativa de uma energia firme, fruto
de uma potência média real acionada pelas águas do rio no valor de 4.462,3 MW.
Quanto custará de fato o kWh de energia gerada incluindo também as linhas de
transmissão necessárias para a interligação ao sistema? As linhas de transmissão
projetadas suportam a energia a ser gerada? Os documentos referentes aos custos da obra
ainda não estão disponíveis ao público, mas já surgem estimativas que variam de 7 a 30
bilhões e que colocam em cheque a viabilidade econômica do empreendimento e a
remuneração do capital que supostamente seria investido. Existe também um conjunto de
custos socioambientais que não foram contabilizados no empreendimento.
A complexidade da obra envolve áreas alagadas ao longo do rio acima da barragem
principal; áreas de canteiros de obras das represas e diques sobre terra firme nas quais
hoje vivem agricultores e pescadores, inclusive originários de históricas migrações de
outros cantos do País, quando a Transamazônica avançou sobre Altamira; e uma região
que sofrerá com a vazão drasticamente reduzida rio abaixo à barragem principal,
perfazendo cerca de ¾ da Volta Grande. Quando se fala do cálculo e da descrição das
conseqüências ambientais, seria mais honesto contabilizar uma área de 1.522 km2, que é
a área considerada pelo EIA como área diretamente afetada (ADA), e não apenas os cerca
de 516 km2 dos reservatórios.
Além disso, o processo de condução de implantação do empreendimento vem
apresentando uma série de irregularidades no respeito à legislação brasileira. Além da
Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas reconhecem
direitos das populações tradicionais e determinam a obrigatoriedade de consulta dos
povos indígenas acerca de qualquer medida que possa afetá-los. Mesmo assim, o Estudo
de Inventário Hidrelétrico do Rio Xingu foi aprovado pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel) sem a devida consulta aos povos indígenas. Em carta assinada por
representantes de diversas aldeias em 19 de junho, os Kayapó manifestaram seu repúdio à
obra. O governo passará por cima dessas considerações?
Os estudos de impacto ambiental foram recentemente homologados no Ibama e aceitos
oficialmente, apesar do reconhecimento dos técnicos do órgão de que estavam
incompletos. Isso foi motivo de dois processos do MPF: o primeiro em 27 de maio de
2009, pedindo a suspensão do prazo para realização de audiências públicas, tendo sido
deferido pela Justiça Federal do Pará, e o segundo em 22 de junho de 2009, por
improbidade administrativa pelo ilegal aceite do EIA/RIMA pelo Ibama. Só agora a
sociedade civil está começando a ter contato com os 36 volumes com mais de 20.000
páginas de estudos produzidos pelos empreendedores. Deve haver amplo diálogo antes de
se tomar uma importante decisão cujo impacto afetaria a vida de tantas pessoas, muitas
delas populações indígenas e extrativistas.
É importante ressaltar que existem alternativas concretas ao projeto, economicamente
viáveis, a exemplo do leilão de concessão de exploração de energia eólica a ser realizado
em novembro pela Aneel. O conjunto de empreendimentos terá capacidade instalada de
13.000 MW, maior que a própria AHE Belo Monte;
A decisão de construção de uma obra desse porte, numa Bacia como a do Rio Xingu, com
sociobiodiversidade única no planeta, não pode ser tomada de qualquer jeito, atropelando
a população, os costumes locais, a sabedoria dos povos das florestas, atropelando o
próprio processo de licenciamento previsto em Lei. Diferentemente do que foi feito no rio
Madeira, os povos do Rio Xingu não se subordinarão à decisão sobre a construção da
UHE de Belo Monte.
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Altamira, 22 de julho de 2009 Ao Excelentíssimo Presidente da