Sonia Maria Amat VIOLÊNCIA SEXUAL: PADRÕES ESPECÍFICOS DE COMPORTAMENTO NA FAMÍLIA SEXUALMENTE ABUSIVA DA CRIANÇA Orientadora: Maria da Conceição Maggioni Poppe Rio de Janeiro 2004 2 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO VEZ DO MESTRE VIOLÊNCIA SEXUAL: PADRÕES ESPECÍFICOS DE COMPORTAMENTO NA FAMÍLIA SEXUALMENTE ABUSIVA DA CRIANÇA Trabalho monográfico apresentado como requisito parcial para obtenção do Grau de Especialista em Terapia de Família 3 AGRADECIMENTOS Tentarei expressar adequadamente minha gratidão a todos que, por suas colaborações permitiram a realização deste trabalho. Pacientes e clientes – com os quais dividi o espaço da psiquiatria, da psicanálise e agora da terapia familiar, sempre me propuseram reflexões, crescimento compartilhado. Autores - que me acolheram na beleza de suas palavras, grande sabedoria, instantes significativos. Professora Maria da Conceição Maggioni Poppe – pela firmeza e sensibilidade ética; talento afetivo-teórico. Professora Fabiane Muniz da Siva – trocas construídas no apoio e incentivos. Professora Marta Relvas – receptividade, possibilitando construções. Alunos – questionamentos instigantes, entendimento nos caminhos do saber, torcida incondicional. Eliana Nazareth – minha psicanalista, sutilezas, aprendizagem no campo do existir. Iris Maria Carvalho - Bibliotecária da SPRJ – auxílio precioso na busca bibliográfica. Minha família – bailando sempre nos sabores do afeto. 4 ‘“ Pense na coisa mais baixa do mundo. Seja o que for, sou mais baixa ainda’. É este o lema da vítima de incesto.” Forward e Buck 5 RESUMO A possibilidade da transgressão da lei máxima que rege a nossa cultura é sem dúvida um fator inquietante. O incesto ou a violência sexual intrafamiliar, ao mesmo tempo que atrai à atenção da sociedade, é também um tema que causa resistência e reflexões por abarcar um desejo presente no ser humano. Segundo os estruturalistas, a interdição do incesto é um fator cultural e necessário para o desenvolvimento psico-social do indivíduo. Para a Psicanálise, a não atuação dos desejos incestuosos, favorece a estruturação do aparelho mental em id, ego e superego. O presente estudo objetiva ampliar uma compreensão sobre o referido tema. Assim, esforça-se por mostrar se na família que pratica o abuso sexual da criança existem padrões específicos de comportamento, já que o incesto abarca os conceitos família e abuso sexual onde esta interdição não ocorreu. Nas literaturas selecionadas para o estudo, verificou-se um alto grau de parentesco entre as pessoas diretamente envolvidas na relação sexual incestuosa. Nesta relação também foi percebido que existe um envolvimento , direto ou indireto, de todos os membros da família, e que a violência do incesto não pode ser traduzida apenas pela relação sexual, mas principalmente pela sua dinâmica afetiva e a não diferenciação das funções familiares, que é um dos fatores carreantes desta dinâmica complexa, tendo como principais características, a confusão e a perversão de suas funções, que se distinguem como sendo os padrões específicos de comportamento que operam como mecanismo evitador e regulador do conflito nessa família que pratica o abuso sexual da criança. 6 METODOLOGIA Na tentativa de alcançar o objetivo deste estudo, a pesquisa estruturouse da seguinte forma: Inicialmente, realizou-se uma vasta busca bibliográfica referente ao tema escolhido, visto que o universo da pesquisa se propôs através das diversas referências bibliográficas analisar se na família sexualmente abusiva da criança existiam padrões específicos de comportamento. Caso afirmativo, como processaria tal dinâmica familiar? Para melhor compreensão do abuso sexual intrafamiliar, mergulhou-se no referencial teórico de teorias biológicas, sociais e psicológicas que explicassem a finalidade da proibição do incesto. Dentre esses referenciais cabe citar a visão antropológica de Lévi-Strauss. Através de Cohen & Gobbetti, no que tange a lei científica, buscou-se o saber do Código Civil Brasileiro. Conceituações sobre abuso sexual intrafamiliar, pesquisou-se em diversas fontes incluindo em especial, a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para verificar a dimensão da problemática do abuso sexual intrafamiliar em termos quantitativos, através dos vários autores utilizou-se dados coletados de diversas fontes nacionais e estrangeiras, tais como: OMS, Centro de Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA), Children Service Division e outros. 7 A respeito dos abusos sexuais na infância, priorizou-se o referencial teórico da Psicanálise, centrada nos conceitos de Freud, e seus seguidores Ferenczi e Klein. Em continuidade a pesquisa, buscou-se entender o processo individual da criança que é abusada sexualmente por um membro de sua família, (em geral o pai e padrasto), o qual ela é ensinada a amar, respeitar e conviver. Para o estudo elegeu-se em primeira instância Furniss, Gabel, Winnicott e o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA). Objetivando melhor compreensão do autor da violência sexual intrafamiliar: o pedófilo, buscou-se através das obras de Freud e Cohen, entender a problemática psicossocial do incesto desde o período Paleolítico até ao Contemporâneo. Ainda na compreensão da dinâmica psíquica do abusador sexual buscou-se além Cohen, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos (DSM IV). Através de Gabel, que perpassou pela pesquisa de Conte, Wolf e Smith, se selecionou algumas respostas de um questionário referente a uma amostragem de vinte adultos abusivos sexuais da criança, onde os mesmos foram interrogados sobre: o critério de escolha da vítima, a forma pela qual se engajam e mantêm as crianças nas situações de abuso sexual. A apresentação dos exemplos clínicos bibliográficos, no presente trabalho, limitou-se aos dados necessários para o entendimento das questões a serem estudas, excluindo dessa forma informações desnecessárias à reflexão proposta do problema levantado. Finalizando, buscou-se compreender principalmente pela ótica de Gabel e de Furniss, o processo familiar incestuoso, onde detectou-se a existência de 8 padrões específicos de comportamento na família que pratica o abuso sexual da criança, confirmando dessa forma a verificação da hipótese apresentada. A existência dos diferentes padrões encontrados nas famílias sexualmente abusivas da criança originaram-se de respostas das famílias à revelação e subsequente tratamento. Nelas, foi identificado diferentes padrões do abuso sexual, que operam como mecanismo evitador e regulador do conflito. Nas famílias onde o abuso sexual opera como mecanismo “evitador de conflito”, observou-se um padrão específico de “família organizada”. Nas famílias onde o abuso sexual opera como mecanismo “regulador do conflito”, observou-se um padrão específico de “família desorganizada”. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 CAPÍTULO I 16 FUNDAMENTOS E CONCEITOS 16 CAPÍTULO II 27 OS ABUSOS SEXUAIS NA INFÂNCIA 27 CAPÍTULO III 36 O PROCESSO INDIVIDUAL DA CRIANÇA 36 CAPÍTULO IV 62 O AUTOR DA VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR 62 CAPÍTULO V 74 O PROCESSO FAMILIAR INCESTUOSO 74 CONCLUSÃO 95 BIBLIOGRAFIA 96 10 INTRODUÇÃO O ponto de partida desta monografia motivou-se da vivência de um trabalho de livre escolha, para um dos critérios de avaliação da disciplina de sexologia do presente curso de Terapia Familiar desta Universidade, corroborado pela experiência clínica da autora no atendimento a pessoa adulta que carrega em seu histórico de vida, a vivência de abuso sexual intrafamiliar quando criança. Atenta a certas questões em comum, relatadas nas histórias de cada cliente ou mesmo expressas em seu comportamento adulto, evidenciou-se a necessidade da autora, de um aprofundamento sobre a dinâmica das relações familiares incestuosas. Partindo das questões comuns surgiram as seguintes interrogações: O que levaria essas famílias a praticarem o abuso sexual em suas crianças? O que levaria esse pai ou padrasto à prática do abuso sexual em sua filha ou enteada? Como é o processo individual da criança que sofre abuso sexual intrafamiliar? Como se define o funcionamento deste grupo familiar? Em resposta a esses questionamentos surgiu esta monografia. A medida que se mergulhava na literatura específica pode-se perceber a inquietação que o ato incestuoso provocava e ainda provoca nos indivíduos das mais diversas culturas. Condenável na nossa cultura, entretanto não é explicitado em nossos códigos. O Código Civil Brasileiro limita o casamento entre parentes próximos até terceiro grau. Contraditório é que, no Código Penal Brasileiro, o incesto não é considerado crime, mas apenas como um agravante de pena dos crimes contra os costumes. Casar com parentes é considerado ilegal, entretanto ter 11 relações sexuais com os mesmos não é considerado ilegal. Tais limitações são insuficientes para lidar com esta problemática. Surge então a questão: o que legitima a proibição da violência sexual intrafamiliar na nossa cultura? Mais do que a proibição subjacente do ato em si, existe a proibição de se falar no assunto, tornando-se dessa forma um tabu, o que então escapa a um esclarecimento aprofundado do tema. Diante desta problemática, pensar sobre a proibição do incesto numa tentativa de compreensão torna-se uma tarefa bastante complexa, já que a sociedade, a família abusiva e a própria criança abusada tem a mesma atitude de manter o segredo. A sociedade ainda tem dificuldade em aceitar o fato de a família ser capaz de prejudicar suas próprias crianças. Assim, o segredo é mantido dentro da família da mesma forma que a sociedade tem dificuldade para “enxergá-lo” e mesmo lidar com tal problemática. O próprio significado da palavra proibição sugere um processo ativo de intervenção a algo que “pode ocorrer”. A proibição por si só pode ser percebida como antinatural. Decorre que, por detrás de tamanha proibição, só possa existir um desejo universal equivalente, onde o incesto situa-se no limiar entre a natureza e a cultura. Para que então, o incesto é proibido? Teorias biológicas, sociais e psicológicas, têm sido utilizadas para explicar a finalidade desta proibição. Por outro viés, observa-se a não existência de estudos que demonstrem que o desejo sexual seja diminuído pelo parentesco ou pela proximidade física entre as pessoas. Pelo contrário, a psicanálise traz o aumento do desejo, através da teoria do complexo de Édipo. 12 De acordo com a perspectiva estruturalista, este dano é refletido na sociedade, já que a civilização sobrevive às custas, primordialmente, da não atuação dos impulsos incestuosos. Segundo Freud, existe um antagonismo entre as exigências dos impulsos e a inserção do indivíduo na cultura. O desejo incestuoso, presente em todos os seres humanos, deve ser reprimido para a sobrevivência da civilização: “O incesto é antisocial e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele” (Freud,1930). Depreende-se, que a proibição é justamente o sinal que marca a existência do ato incestuoso, sem o qual tornaria a primeira completamente desnecessária. Para refletir sobre a ampliação do conceito sobre o incesto e a contextualização da proibição, dentro da nossa cultura, no decorrer deste estudo se encontrará algumas definições. Dentre elas, distingue-se o do National Center on Child Abuse and Neglet, citada por Cohen (1993), que define o incesto como: abuso sexual intrafamiliar e que o mesmo deve ser penalizado. É difícil estabelecer uma estimativa dos casos de incesto, devido ao estigma e ao segredo que envolvem estes casos. Ainda se está longe de quantificar a dimensão do problema, pois as atuais estatísticas refletem uma pequena parcela da realidade. Entretanto, um fator de concordância em todos os estudos é que o abuso sexual intrafamiliar é o de maior frequência dentro dos casos de abuso sexual relatados. Assim, contrariando os alertas do senso comum em relação às crianças sobre o “contato com aos estranhos” observa-se que maioria dos abusos sexuais são praticados por pessoas próximas e conhecidas das crianças, ou seja; pais e padrastos. 13 Um dado importante, é o sentimento da criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, frente seu abusador. Com muita facilidade ela encontra razões para sentir-se culpada, e o abusador faz um uso perverso dessa culpa. Entretanto o discurso da culpa vem mesclado de sentimentos contraditórios como raiva, nojo, medo intenso, e em vários momentos a não compreensão do que aconteceu. Sentindo-se física e moralmente indefesa, o medo quando atinge o seu ápice, obriga a criança a se submeter automaticamente à vontade do agressor, procurando adivinhar os possíveis sinais de seu desejo e identificando-se totalmente com ele. Através desta identificação, é que se pode compreender a dinâmica psíquica da “sindrome de adaptação da criança vítima de abuso sexual”, estudada por Summit em 1983. Por outro lado, se a criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, não pode falar o que está acontecendo com ela, ou se ela denuncia e os adultos não querem ouvi-la, ela buscará um outro meio para comunicar a sua dor. William Mostloy (s.d.), nos presenteou com este aforismo: “Quando o sofrimento não pode expressar-se pelo pranto, ele faz chorarem os outros órgãos”. O que levaria esse pai ou padrasto à prática do abuso sexual em sua filha ou enteada? Os motivos individuais que levam um pai se tornar abusador e uma mãe a assumir o papel de progenitor “não abusivo”, são os mais variados possíveis. Na realidade a pergunta não é porque e devido a que razão individual surgem padrões de comportamento na família abusiva, mas sim como funciona esses padrões. Na experiência clínica, através de uma escuta miniciosa com adultos que sofreram abuso sexual intrafamiliar enquanto crianças, percebe-se que a problemática é muito mais ampla e complexa, onde existe o envolvimento de 14 toda a família numa dinâmica inconsciente que favorece a existência dessa relação sexual incestuosa. Segundo Berenstein (1988), a família é um “sistema com uma estrutura inconsciente” e, de acordo com este, confecciona regras para manter sua estabilidade. Estas regras definem o funcionamento do grupo familiar. Na introdução do presente estudo, apresenta-se um breve relato das preocupações que culminaram com o tema desta pesquisa, que encontra-se dividida em cinco capítulos e, como consequência, a conclusão. A escolha do referencial teórico acerca violência sexual intrafamiliar, em grande parte, comporá o primeiro capítulo através de fundamentos, conceituações e teorias explicativas sobre a proibição do incesto. No segundo capítulo, pelo viés dos conceitos psicanalíticos, serão propostas abordagens sobre os abusos sexuais na infância e a interação das violências intrafamiliares. No terceiro capítulo, será discutido o processo individual da criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, por intérmedio do abuso sexual da criança como síndrome de segredo da criança, dos aspectos interacionais do segredo, do segredo internalizado, dos vínculos sexualizados, do abuso sexual como síndrome adicta, da conexão entre segredo e adicção e da fala do corpo e do comportamento. No quarto capítulo, pelo entrelaçamento de uma visão psicossexual, do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM III e DSM IV) e pela entrevista com abusadores sexuais, pretender-se-á identificar o perfil do autor da violência sexual intrafamiliar. 15 No quinto capítulo, através do processo familiar incestuoso, haverá um esforço para refletir sobre as questões que vem a ser o objetivo desta pesquisa. Pretende-se analisar, se na família que pratica o abuso sexual da criança, existem padrões específicos de comportamento. Caso existam, como se processa esse sistema familiar? A análise dos discursos que compõem este trabalho, finalmente concluiu que na família sexualmente abusiva existem de fato padrões específicos de comportamento, que operam como um sintoma. A família possui uma “dinâmica incestuosa” da qual fazem parte todos os membros, sendo diferente apenas a forma de atuação. Por fim, conhecer a dinâmica da família incestuosa, analisar os diferentes padrões específicos de comportamento na família que pratica o abuso sexual da criança, acredita-se ser essencial na complexidade das intervenções nas famílias com abuso sexual da criança. 16 CAPÍTULO I 1. FUNDAMENTOS E CONCEITOS Falar sobre a família sexualmente abusiva da criança, sempre foi e ainda é tabu, assunto proibido, protegido pelo silêncio e pelo “familismo”. Entretanto, há décadas os maus tratos e abuso sexual contra as crianças e adolescentes intrafamiliar e extrafamiliar vem chamando a atenção. Notícias envolvendo casos de abuso sexual chegam através das mais diversas formas dos meios de comunicação. Porém, somente nesta década, este assunto começa a ser visto, falado e discutido. Timidamente as barreiras começam a ser derrubadas, e agora esta temática, vem sendo objeto de pesquisas cujas contribuições principais são o rompimento da “cortina de silêncio”, que historicamente tem ocultado o fenômeno, o redimensionamento estatístico das ocorrências e a proposição de procedimentos preventivos e de programas assistenciais às vítimas. Sharader & Sagot (1998, p.192), afirmam que a Organização Mundial de Saúde (OMS), estima em 40 milhões o número de crianças de menos de quinze anos, que são vítimas de violência no mundo. As consequências destes traumatismos manifestam-se de diversas formas, em função da gravidade dos atos e da vivência da criança. A amplitude do problema a nível mundial é de tal forma importante que este ano, o Dia Mundial de Saúde Mental através da Federação Mundial de Saúde Mental promoverá uma jornada no dia 10 de outubro, dedicado ao seguinte tema “as consequências de acontecimentos traumatizantes e da violência em crianças e adolescentes” 17 Entretanto considera-se qualquer forma de violência, inclusive, o abuso sexual intramamiliar ou extrafamiliar, que o mesmo não pode ser qualificado por ato concreto e nem a sua gravidade ser avaliada pelas marcas físicas, mas sim pela vivência emocional de cada indivíduo a tais situações. Em 1997, a Organização Mundial de Saúde, fez da violência de crianças e adolescentes” um problema de saúde pública e da sua prevenção uma prioridade mundial. Ela exorta os países a respeitarem os direitos humanos das crianças e adolescentes e a fazerem da luta contra a violência uma prioridade com vistas à sua redução ou erradicação deste flagelo e das consequências traumáticas dela resultantes ( Sharader & Sagot, p.196). Etimologicamente, o abuso sexual indica a separação e o afastamento do uso normal. O abuso sexual, é ao mesmo tempo, um uso errado e um uso excessivo e, portanto, uma transgressão. No que tange ao abuso sexual da criança, a Organização Mundial de Saúde a define como: “a exploração sexual de uma criança implica que esta seja vítima de um adulto ou de uma pessoa sensivelmente mais idosa do que ela com a finalidade de satisfação sexual desta. O crime pode assumir diversas formas: ligações telefônicas obscenas, ofensa ao pudor e voyeurismo, imagens pornográficas, relações ou tentativa de relações sexuais, incesto ou prostituição de menores”. Gabel (1997, p.11), afirma que o abuso sexual deve ser claramente situado no quadro dos maus tratos infligidos à infância. E complementa: “maus tratos abrange tudo o que uma pessoa faz e concorre para o sofrimento e alienação da outra”. Cohen & Gobbetti (1998, p. 235), trazem a contribuição, de que o incesto manifesta-se através do relacionamento sexual entre as pessoas que são 18 membros de uma mesma família, exceto os cônjuges, sendo que a “família” não é definida apenas pela consanguinidade ou mesmo afinidade, mas principalmente, pela “função social de parentesco” exercida pelas pessoas dentro do grupo. Os autores alegam ainda que “o abuso sexual intrafamiliar é um ato intimamente associado ao “proibido” e que a proibição do incesto, presente em quase todas as suas definições, parece estender-se à proibição de se falar no assunto, tornando-se mesmo um tabu, escapando um esclarecimento mais profundo do tema”. Para Lévi-Strauss (1969), a proibição do casamento entre parentes próximos pode ter um campo de aplicação variável, de acordo com a definição de parentesco, mas a proibição ou a limitação das relações sexuais está presente em qualquer grupo. Desta forma, a proibição do incesto situa-se no limiar entre a natureza e a cultura. Entende-se que, por detrás da necessidade de tamanha proibição, só possa existir um desejo universal equivalente. Para que, então, o incesto é proibido? Freud coloca a proibição do incesto como um estruturador mental, pois é através da repressão dos desejos incestuosos que se estrutura o aparelho mental em suas três instâncias: id, ego e superego. O superego é a instância formada pela internalização da lei, sendo o ego responsável pela intermediação entre as leis internas e as leis externas (Freud,1923). Condenável em nossa cultura, “O Novo Código Civil Brasileiro”, em vigor a partir de 11 de Janeiro de 2003, limita o casamento entre parentes próximos até o terceiro grau inclusive. O Código Penal Brasileiro não penaliza o incesto, ele o considera apenas como um agravante de pena dos crimes contra os costumes, em seu artigo 226: “ A pena é aumentada de quarta parte”;parágrafo II: “Se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, 19 preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela. (Cohen p.141). Observa-se que os legisladores aprenderam o conceito de função paterna, entretanto não o utilizaram de uma forma coerente não legislando para penalizar o incesto, pois é na proibição deste tipo de relação que a função paterna se torna primordial. Vasconcelos (2001, p.10), conceitua violência sexual, como sendo, uma situação em que a criança ou o adolescente é usado para satisfazer sexualmente um adulto pelo uso da força, poder ou confiança. Tocar partes íntimas, se esfregar ou forçar a criança a praticar atos pornográficos também é considerado abuso sexual. Quando se fala da violência no que tange a infância, logo se associa aos fenômenos dos maus tratos e da violência sexual. De fato, estas duas formas são, de certo modo, as mais visíveis. Esta violência que acontece no interior da família, no mais das vezes assinalada por um “pacto de silêncio”, se apresenta como uma das maiores responsáveis pela vitimização da infância, em termos microcriminais. Ter uma idéia exata da amplitude e do que seja esta realidade, é realmente muito complexa, devido ao grande silêncio que cerca esta questão. Existe a reticência e o medo das crianças em falar, aliada a surdez e medo dos adultos em escutá-las. Entretanto, um fator de concordância em todos os estudos é que, contrariando os alertas de senso comum em relação às crianças sobre o “contato com estranhos”, geralmente o abuso sexual é praticado por pessoas próximas e conhecidas, principalmente pessoas da família. Pesquisas indicam que a maioria dos pais “abusivos” tem na sua própria história de vida experiências de abuso ou negligência na infância. Além da 20 percepção do ciclo “vítima-agressor”, nota-se uma dinâmica específica nestas famílias onde se incluem todos os membros, tornando inadequada a estigmatização nestes termos. Embora os bloqueios e tabus relativos ao abuso sexual tenham diminuído, a Associação para o Tratamento de Abusos Sexuais – Estados Unidos, (1987), estima que: • 80% dos casos de abuso sexual em crianças e adolescentes ocorrem na entidade familiar; • 90% dos abusos sexuais são praticados por pessoas conhecidas, sendo os agressores: 98% - homens, e 2% - mulheres; • 20% das mulheres e 10% dos homens são abusados sexualmente antes dos 18 anos, tendo como principais agressores: pais, padrastos e tios. Entre as vítimas estão: bebês, crianças que mal falam ou andam, pré-adolescentes e adolescentes, que sofrem calados, muitas vezes ao nosso lado ou em nossa própria casa. Resultados ainda nos Estados Unidos do Children Service Division (1989), fornece percentagem da ordem de 90% em relação às pessoas conhecidas ou aparentadas. Em seu estudo, à referida Instituição enumera: • 60%, trata-se de alguém da família; • 30%, é um conhecido; • 68%, o pai está implicado. Na França, pesquisa realizada em 1989, junto à subdireção Família, Infância e Vida Social do Ministério da Solidariedade, da Saúde e da Proteção Social, 1 511 pessoas entrevistadas declaram ter sido vítimas de um ou vários abusos sexuais antes dos dezoito anos (Gabel p.14). 21 Para saber quem eram os autores do abuso, pesquisas junto às 1511 pessoas, constataram ser maioria, o incesto pai-filha; e o mais difícil de ser revelado; e também o que tem consequências mais graves sobre o equilíbrio psíquico, do presente e futuro, da criança e do adolescente. Em prosseguimento, tal pesquisa mostra que os pais incestuosos é o que têm menor participação nos cuidados da filha. O semanário New of the World – Inglaterra -, diz que calcula existir 110 mil pessoas envolvidas em casos de abuso sexual de menores e que cada habitante tem um pedófilo a 1,5km de sua casa. O Centro de Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), da Universidade de São Paulo (USP), desde1993, vem trabalhando com questões do incesto, através de estudos e pesquisas sobre o tema, além do atendimento em saúde mental a famílias em que houve a denúncia de um abuso sexual praticado entre membros, abordando o fenômeno através do referencial psicanalítico. Dos casos atendidos pelo CEARAS (2000), pode-se observar: • 32,73%, a predominância da relação pai e filha; • 18,18%, da relação padrasto-enteada; • 38,53% das relações incestuosas observou-se o pai biológico envolvido. Face aos dados explícitos, a relação incestuosa entre padrasto e enteado, parece não ser explicada pela falta de laços consanguíneos, mas sim pelo fato que padrasto cumpre a função social de pai. Num percentual de 53,14%, o CEARAS (2000) verificou, que a maioria dos relacionamentos incestuosos ocorreu entre parentes próximos e consanguíneos, ou seja, entre pais e filhos e entre irmãos. Dados estes que 22 divergem da crença popular que considera “famílias em risco” para relações abusivas, as famílias recompostas, ou seja, aquelas formadas por novas uniões, onde a relação entre as pessoas não é confirmada pela consanguinidade. O CEARAS (2000), questiona a definição da relação sexual abusiva, principalmente aquelas caracterizadas por toques e carícias. Pelo fato das mesmas não oferecerem provas objetivas da ocorrência, não necessariamente a gravidade das consequências emocionais diminui a seus participantes. Cita como exemplo, determinados “cuidados maternos” que se estendem aos filhos a um período maior que o necessário. Mães que amamentam filhos de três anos de idade ou que dão banho em filhos adolescentes. Tal acesso da mãe ao corpo do filho talvez ajude a mascarar uma relação abusiva, o que pode sugerir uma explicação ao fato de mulheres aparecerem em um índice muito baixo como “abusadoras” em vários estudos, incluindo a amostra do CEARAS (2,73%). De acordo com as estatísticas da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA), fundada em 1988, no Rio de Janeiro, cerca de 600 mil crianças e adolescentes são vítimas de várias formas de violência doméstica. Ou seja; 68 crianças por hora ou uma (1) criança a cada minuto são vítimas de tal violência. A ABRAPIA que coordena e operacionaliza o Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, no que tange a violência sexual intrafamiliar informa que a mesma atinge: • 49% das crianças de 2 a 5 anos de idade; • 33% em relação às crianças de 6 a 10 anos de idade; • 80% são crianças do sexo feminino; • 90% dos agressores são do sexo masculino 23 Segundo a ABRAPIA, a relação incestuosa é a que representa a maioria dos casos de abuso sexual, onde seus principais responsáveis são: • o pai: 37%; • o padrasto: 26%; • a mãe: 10%; • o tio: 7%; • avô: 4%. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei n 8.069 de 13/07/1990 e lei n 9.455 de 07/07/1997, que dispõe sobre a proteção integral à criança até 12 anos incompletos), e ao adolescente (entre 12 e 18 anos) no seu artigo 5ªdo Livro I, Título I das Disposições Gerais assegura que: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. No seu artigo 4°, o Estatuto da Criança e do Adolescente também afirma: é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária”. O ECA, prevê no artigo 13, que todos os casos de suspeita ou confirmação de violência contra a criança e o adolescente devem ser notificados ao Conselho Tutelar da localidade ou a Vara da Infância e Juventude, e a delegacia mais próxima, e que as mesmas são passíveis de punição. 24 É pois, fundamental que os pais, os educadores, médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, outros profissionais e a sociedade em geral, estejam atentos para perceber os sinais de violência, e principalmente acreditem no que as crianças falam, e que qualquer suspeita deve ser investigada. Face as fundamentações e conceituações acima, é importante ressaltar que objetiva-se trabalhar a violência sexual intrafamiliar, e poder neste estudo verificar se, na família sexualmente abusiva da criança existem padrões específicos de comportamento. E, caso afirmativo, quais serão esses padrões identificados. 1.1- Teorias explicativas da proibição do incesto Diversas teorias têm sido utilizadas para explicar a finalidade da proibição do incesto. Estas podem ser divididas em biológicas, sociais e psicológicas. 1.1.1- Teorias biológicas As teorias biológicas concebem um “horror ao incesto inato” que seria a proteção natural contra os malefícios resultantes do cruzamento endogâmico. Sabe-se que o cruzamento realmente causa uma diminuição da variabilidade dos genes, e portanto, oferece uma maior chance de expressão de recessividade. Mas esta pode ser manifestada tanto em doenças hereditárias quanto em traços benéficos. Além disto, semelhanças genéticas podem estender-se para além da família, como em um grupo de certa localização geográfica. Outro aspecto que reforça a não importância da consanguinidade é a não proibição do casamento entre parentes por afinidade. 25 Ora, se a possibilidade de ocorrência de relações incestuosas fosse biologicamente negada, estas não precisariam ser proibidas por leis sociais, mostrando que a questão não passa pelos aspectos biológicos e sim pelos aspectos sócio-culturais. 1.1.2 -Teorias sociais As teorias sociais priorizam a importância da exogamia, pois ela amplia a família e possibilita um sistema mais cooperativo e democrático. 1.1.3 -Teorias psicológicas Segundo as teorias psicológicas, a não interdição do incesto permite a diferenciação e a simbolização de funções dentro da família (pai, mãe, irmãos), possibilitando assim o desenvolvimento do indivíduo na família. Nesta perspectiva, a proibição do incesto é um fator organizador, demarcando limites (Cohen, 1993). Como já referido, para Freud, a proibição do incesto, funciona como um estruturador mental. O “não” à atuação dos desejos edípicos delimita as fronteiras entre o desejo e a realidade. Segundo Freud, existe um antagonismo entre as exigências dos impulsos e a inserção do indivíduo na cultura e, o indivíduo sempre deverá lidar com esse conflito. O desejo incestuoso, presente em todos os seres humanos, deve ser reprimido para a sobrevivência da civilização: “O incesto é antisocial e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele” (Freud, 1930). Vemos portanto, que a dificuldade de explicitar o termo incesto encontrase no fato de envolver dois conceitos sociais, que podem variar segundo a 26 época e a cultura: o abuso sexual e a família. O fato é que somente nesta última década, os maus tratos e o abuso sexual contra crianças e adolescentes começa a tomar proporções significativas. Consultando Gabel (1997), vimos que em 1860, Tardieu, professor de medicina legal na França, já publicava trabalhos sobre 339 casos de incesto com crianças de menos de 11 anos, nos quais ele se preocupava com a força de uma negação que continua a se exercer: negação que se refere, certamente, à sexualidade, mas também ao abuso de poder em relação aos mais fracos. Percebe-se daí, em dez anos, uma passagem da negação para a emoção generalizada que demonstra com clareza os riscos, difíceis de controlar, que poderiam novamente como reação, devolver ao silêncio. Com isto também se percebe a sexualidade humana como um assunto complexo. 27 CAPÍTULO II 2. OS ABUSOS SEXUAIS NA INFÂNCIA 2.1 – Conceitos Psicanalíticos Este capítulo aborda de forma breve e simplificada, alguns conceitos psicanalíticos necessários à compreensão do psiquismo infantil, visto ser a sexualidade infantil uma descoberta da psicanálise. Freud em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, a definiu “tudo que concerne às atividades da primeira infância em busca de gozos localizados que este ou aquele órgão possa proporcionar” (Freud,1905). Essa definição ultrapassa a genitalidade. Os comportamentos descritos por Freud, são considerados os precursores da sexualidade adulta. Ao estabelecer comparações entre as práticas tidas como perversas dos pacientes adultos e os comportamentos da criança, Freud qualificou a criança de “perversa polimorfa”. 2.1.1 - Curiosidade sexual e as teorias infantis A terceira etapa do desenvolvimento psicossexual que sucede as fases oral e anal, é denominada fase fálica e modernamente edípica. A expressão “fálica” origina-se do conceito original de Freud, que até certa idade as crianças de ambos os sexos supõem a existência de genitais masculinos em todas as pessoas. Durante esta fase, em que a ênfase é dada aos órgãos genitais, existe a natural curiosidade das crianças, que se manifesta pelos constantes “por quês?” A maioria desses questionamentos se refere às origens das diferenças 28 entre pares opostos, como masculino-feminino; seio-pênis; grande-pequeno, etc. A constatação progressiva dessas diferenças provoca um acréscimo de angústia, que encontra alívio numa explicação adequada por parte do educador; caso contrário, obrigará a criança a construir as mais estapafúrdias teorias em torno da diferença anatômica dos sexos; do enigma do nascimento, e tudo que cerca as fantasias de concepção, teorias da “sedução”, da “cena primária”, do “incesto” e do “complexo de castração”, que a seguir serão apresentadas. O papel que os órgãos genitais desempenham é fruto de um conhecimento, e o valor que lhe é atribuído depende muito da influência do meio que favorece ou proíbe; ele se modifica por fantasmatização infantil precoce (Ajuriaguerra,1974,p.417). 2.1.2 – A teoria da sedução As cenas de sedução são definidas como “cenas reais ou fantasística que geralmente uma criança sofre passivamente da parte do outro ( a maioria das vezes um adulto) assédios ou manobras sexuais” (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 469). Freud elaborou a teoria da sedução entre 1895 e 1897, e posteriormente a abandonou. Tal teoria atribui à lembrança de cenas reais de sedução o papel determinante na etiologia das neuroses. Embora Freud tenha abandonado a teoria da sedução como peça central das neuroses, entretanto, nunca deixou de “sustentar a existência, a frequência e a realidade das cenas de sedução vividas pelas crianças” (Laplanche e Pontalis,2001, p. 470). Em 1933, Ferenczi retoma a teoria, quando afirma “a importância do trauma e em particular do trauma sexual como fator patogênico”. 29 Tanto por intuição como estímulos externos (barulhos noturnos, insinuações dos pais ou cenas televisivas), a criança imagina o que se passa no quarto fechado dos pais, fica muito excitada e usa o recurso das repressões, que por vezes estas não sendo suficientes, a criança aumenta o seu mundo de imaginação, que fica girando em torno das anteriores fantasias pré-edípicas ( coito sádico; fusão parasidíacas; amputações; coito e parto anal; etc). A criança então imagina de forma alternada, o lugar dos protagonistas da cena, com as diversas fantasias correlatas, inerentes ao “complexo de Édipo”. Quando os pais permitem, ou até induzem a uma participação concreta dela na cena primária, estarão provavelmente produzindo um futuro perverso. As fantasias que a criança elabora são compromissos entre os fantasmas inconscientes e os elementos da realidade. A criança pode preferir as lendas à realidade para não se confrontar com suas tendências agressivas em relação ao casal parental, dentro de uma concepção sadomasiquista da sexualidade (Mélaine Klein, 1967). Furniss afirma, que o esteriótipo da “criança sedutora” que seduz o pai e aprecia o abuso tem pouco a ver com a realidade do abuso sexual da criança. “Tem sua origem principalmente nas projeções dos adultos de seu próprio pensamento sexual nas crianças” (2002,p.21). Enfatiza Furniss, que mesmo que as crianças fossem abertamente sedutoras e tentassem iniciar o abuso sexual, como por exemplo entrando no quarto do pai de modo sexualmente convidativo, seria sempre responsabilidade do pai, em seu papel de progenitor, traçar as fronteiras adequadas. 30 2.1.3 - Complexo de Édipo, o complexo de castração e o tabu do incesto O complexo de Édipo diz respeito à relação triangular pai-mãe-filho. Esta expressão designa o conjunto de desejos amorosos e hostis que a criança experimenta com relação a seus pais, ainda durante a fase fálica. Em sua forma positiva, genericamente consiste num desejo sexual pelo genitor do sexo oposto, bem como um desejo de morte pelo genitor do mesmo sexo. Na sua forma negativa, genericamente há um desejo amoroso pelo genitor do mesmo sexo e um ciúme ou desejo de desaparecimento do outro. Seu declínio marca o início da fase da latência, que se caracteriza por uma sublimação das pulsões sexuais nas atividades intelectuais. Esta fase se apresenta de formas distintas na menina e no menino: • No menino, é a ameaça de castração pelo pai que determina a renúncia ao objeto incestuoso; • Na menina, é o complexo de castração que dá acesso a Édipo: a renúncia ao pênis só ocorre depois de uma tentativa de compensação: o desejo de ter, como presente, um filho do pai. O complexo de castração está centrado no fantasma da castração. A menina ressentirá com a ausência do pênis que a princípio sua mãe lhe negou, e procura compensar. O menino teme a castração como a realização de uma ameaça paterna, em resposta às suas atividades sexuais. O tabu do incesto é um dos efeitos do complexo de Édipo, além da instauração da moral. Desse modo, transmite-se uma lei fundamental destinada a regular as relações sociais. 31 2.1. 4 - A culpa Falar da culpa é referir-se a uma instância moral que legifera sobre o que é bem ou mal. Esta instância é primeiramente externa ao indivíduo: são os valores morais dos pais e da sociedade. Porém, gradativamente, a criança vai construindo internamente, uma instância crítica e punitiva – o “superego”. Freud definiu-o como uma instância da personalidade que tem o papel de censor, de juíz em relação ao ego do indivíduo; a consciência moral aparece como uma das funções do superego , que encarna a lei e proíbe sua transgressão. Na teoria psicanalítica a consciência moral pode operar igualmente de maneira inconsciente. Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do complexo de Édipo, porém Melaine Klein e seguidores levantaram a hipótese de um superego incipiente, desde a fase oral do bebê, onde o mesmo seria particularmente cruel em razão da intensidade do sadismo infantil nesse período. A atividade do superego manifesta-se no conflito com o ego, sob todas as formas de emoção que dizem respeito a consciência moral, principalmente a culpa. Se tomarmos o exemplo da masturbação, culpa ligada à masturbação não é pura e simplesmente obra do meio e da ação dos pais ou de proibição desajeitada. A culpa neurótica é interior ao próprio sujeito e relacionada a sua história pessoal. A culpa em si, pode ter consequências mais graves que a atividade sexual. 32 A riqueza da vida fantasmática da criança e a importância da sua realidade psíquica, somada a identificação com o agressor, a levará facilmente a encontrar razões para se sentir culpada. Assim o adulto não terá nenhuma dificuldade em reativar a culpa da criança. Em seu artigo sobre a confusão de línguas, no quadro das seduções incestuosas, Ferenczi descreve: As seduções incestuosas produzem-se habitualmente desta maneira: um adulto e uma criança se amam; a criança tem fantasmas lúdicos, como o de desempenhar um papel maternal em relação ao adulto. Esse jogo pode ganhar um contorno erótico, mas não obstante, permanece sempre no nível da ternura. O mesmo não acontece com ao adultos que têm predisposições psicopatológicas. Confundem a brincadeira da criança com os desejos de uma pessoa já sexualmente madura e deixam-se envolver em atos sexuais sem pensar nas consequências. (Ferenczi, 1933). Ferenczi define assim esse mecanismo: Por identificação, digamos por introjeção do agressor, este desaparece enquanto realidade exterior e torna-se intrapsíquico. Mas a mudança significativa, provocada no espírito da criança pela identificação ansiosa com o parceiro adulto, é a introjeção do sentimento de culpa do adulto: o jogo até então anódino aparece agora como um ato que merece punição. Se a criança se recupera de tal agressão, ela vive uma enorme confusão; na verdade, ela já está dividida, é ao mesmo tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está abalada. (Ferenczi, 1933, p. 130). 33 O mecanismo de identificação com o agressor descrito por Ferenczi, permite compreender melhor a dinâmica psíquica da “síndrome de adaptação da criança vítima de abuso sexual”, estudada por Summit em 1983. Segundo Furniss (2002,p.17), a culpa contém um duplo conceito, com um componente legal e um componente psicológico. A distinção entre os aspectos legal e psicológico, significa que apenas o progenitor pode ser considerado culpado. Mas a pessoa que cometeu abuso e a criança, podem sentir-se igualmente culpados, como uma expressão dos eventos psicológicos que se derivam da experiência na interação abusiva. 2.2 - Abordagem interativa das violências intrafamiliares 2.2.1 – O lugar da sexualidade na relação pais-bebê Desde o nascimento, as forças pulsionais estão presentes na criança atuando como fonte de tensões e excitações que ela só controla parcialmente. A mãe irá exercer um papel continente, de “anteparo de excitação” para que a criança só receba os estímulos externos que seja capaz de integrar. Em um “banho de afeto” (Lebovici e Soulé, 1970), as diferentes zonas do corpo do bebê serão investidas enquanto “zonas erógenas”, ou seja, como zonas-fontes de prazer, na intimidade das relações mãe-bebê, durante as atividades que pontuam a vida cotidiana do bebê (alimentação, troca de roupa, banho, brincadeiras etc.). Freud, sobre as manifestações da sexualidade infantil, escreve: 34 “Por sua posição anatômica, pelas secreções em que estão banhadas, pela lavagem e fricção advindas dos cuidados com o corpo e por certas excitações acidentais (migrações de vermes intestinais nas meninas), é inevitável que a sensação prazerosa que essas partes do corpo são capazes de produzir se faça notar à criança já na fase de amamentação, despertando uma necessidade de repeti-la” (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905). Spitz (1964), estudou o jogo genital nos primeiros meses de vida (jogo genital definido como atividade exploratória de suas partes genitais, pela criança ainda pequena), em função da qualidade da relação mãe-bebê. Ele ressalta o jogo genital como um indicador válido da qualidade da relação mãebebê: se a mãe e a criança têm boa relação, a criança brinca com seus órgãos genitais ao final do primeiro ano de vida; na ausência da relação mãe-bebê, os jogos genitais não ocorrem (Spitz,1964). Sobre as manifestações da sexualidade infantil, no que diz respeito ao conteúdo intestinal, escreve Freud: “É obviamente tratado tratado como parte de seu próprio corpo, representando o primeiro “presente”: ao desfazer-se dele, a criaturinha pode exprimir sua docilidade perante o meio que a cerca, e ao recusá-lo, sua obstinação.” (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905). Dessa forma progressivamente, a criança vai descobrir seu corpo e despertar para a sensualidade nas relações com os adultos, que falarão com ela a “linguagem da ternura, não da paixão”, ajustando-se constantemente a nível de desenvolvimento. Caso contrário, a criança se sentirá perturbada. De fato, desde o nascimento, a criança deve enfrentar as excitações libidinais dos adultos e sua intensidade pode, 35 sobretudo em certos momentos e em certas condições, surtir o efeito de um traumatismo: toda excitação exterior que não corresponda ao grau de evolução interior do indivíduo e de sua possibilidades de integração física e afetiva é perturbadora. (Lebovici e Soulé, 1970,p.459). Vemos portanto, que é da interação entre a vida psíquica dos pais e a do bebê (interações fantasmáticas) que orienta as interações comportamentais e lhes dá sentido. Do ponto de vista dos pais, quando o abuso sexual se inscrevem em uma repetição intrafamiliar, a criança torna presente, sucessivamente, o pai ou a mãe que lhe impingiu abuso, ou a criança vítima de abusos sexuais que também foram o pai e a mãe. Os pais têm poucas chances de separar a criança, em sua realidade, de suas próprias projeções. É como se isso fizesse parte dela, como se ela fosse um do outro “eu” dos pais. Estes pais repetem, assim, a forma de relação que conheceram e que lhes permite, a seu modo, construir uma relação afetiva. Se nos situarmos do ponto de vista da criança, um ser em transformação, sua vida fantasmática, seus desejos edipianos irão encontrar parentais. E esse encontro pode suscitar uma excitação mútua, eventualmente excessiva na criança. Mas ela também aprendeu um modo relacional e uma lei onde o adulto é todo-poderoso; ela sabe ajustar-se às necessidades do adulto. A criança e o adulto podem então ficar prisioneiros de um sistema relacional fechado que se auto-alimenta. Um risco ainda maior, é que a criança solicite que outros adultos, com os quais terá uma relação privilegiada, funcionem nesse modo relacional. 36 CAPÍTULO III 3. O PROCESSO INDIVIDUAL DA CRIANÇA 3.1 – O Abuso sexual como síndrome de segredo da criança Segundo Furniss (2002, p.29), existem fatores que atuam como síndrome de segredo na criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, que são: 3.1.1 – Prova Forense e a evidência médica A prova Forense e a evidência médica, úteis não só ao processo legal e proteção à criança, mas também de grande valor terapêutico, infelizmente estão disponíveis apenas em uma minoria dos casos. A esperança é que o presente índice de casos comprovados com evidências físicas cresça com a prática (Hobbs e Wynne,1987). Entretanto, necessita-se conviver com o fato de que muitos casos poderão não ter evidência médica conclusiva de abuso sexual. Como exemplo, um grave abuso oral prolongado pode não ser medicamente detectável. Ainda deve-se considerar, que uma clara evidência médica de abuso sexual muitas vezes não constitui prova forense no que se refere à pessoa que cometeu abuso. 3.1. 2 – Acusações verbais A falta de evidência médica e da prova Forense requer acusação verbal por parte da criança ou de alguma outra pessoa como representante da criança, e também da admissão do pessoa abusadora. Como as atuais abordagens são ainda primariamente punitivas contra os perpetradores, muitos deles negam 37 que cometeram abuso sexual. Por sua vez, a criança vítima do abuso sexual intrafamiliar, temendo por si própria, por sua família ou pela pessoa abusiva, pode negar mesmo quando inquirida abertamente. Tal atitude da criança a conduz ao sofrimento prolongado do abuso sexual. Dentro do contexto familiar, ainda considera-se que, quando não é a mãe que levantou a suspeita de abuso sexual, ela atua como aliada natural da criança que sofreu abuso, principalmente se ela for abordada separadamente e antes da pessoa que cometeu o abuso. Frente a postura materna, o resultado é certamente, a negação do abuso sexual. 3.1.3 – O descrédito na comunicação da criança Em nosso estudo, observou-se a confirmação unânime quanto ao descrédito dos adultos, tanto dentro como fora da família, quando a criança tenta comunicar que ela está sendo vitimada de abuso sexual. Algumas, além de nomeadas como mentirosas, são castigadas pela revelação e, como resultado, forçadas a viver com a pessoa que cometeu o abuso e continuando a ser abusadas sexualmente. Uma adolescente de quatorze anos de idade, cujo padrasto a abusava sexualmente desde seus 7 anos de idade. O abuso começara quando sua mãe engravidara novamente. A menina tentou contar à mãe, esta, em vez de acreditar na filha e confrontar o marido, procurou o clínico geral para pedir conselhos. O médico disse que a criança estava com ciúmes da gravidez da mãe. Ela por sua vez, contou ao marido da revelação da filha, associando ao diagnóstico de ciúme feito pelo clínico geral (Koshina, apostila p.15). Obter um depoimento e validar um testemunho mostra que ainda são problemas difíceis de se resolver. 38 A recusa da mãe de confrontar o marido e sua conivência com a negação do abuso sexual por parte do médico permitiram que o padrasto usasse a menina como bode expiatório e a chamasse de mentirosa. Além dela ser severamente castigada pela revelação, ainda continuou a sofrer abuso sob crescentes ameaças de violência, até ela atingir a adolescência, quando então tentou cometer o suicídio. 3.1.4 – A mentira sob ameaça A realidade aterrorizante para a criança vítima de abusos sexuais devese ao fato, que o mesmo só acontece quando a criança está sozinha com o adulto e que jamais deve ser partilhado com quem quer que seja (Gabel, 1997, p.55). Esse terrível segredo tem de ser preservado pela ameaça, por exemplo, “não diga nada a sua mãe, senão ela vai me odiar” ou “se sua mãe souber vai matar você” ou “se sua mãe souber vai mandá-la para o colégio interno”. Assim, as ameaças para as crianças, tornam os efeitos da revelação ainda mais perigosos que o próprio ato. Também, muito frequentemente, a criança vítima de abusos sexuais, é obrigada a não revelar para ninguém não só dentro da família como fora dela. Especialmente, para às crianças pequenas, pode ser dito que aquilo que acontece durante o abuso é um segredo entre a criança e o abusador. Segredo este que geralmente é reforçado pela violência ou castigo, ou ainda uma mistura de ameaça e suborno com o ganho secundário de um tratamento especial. Como resultado das ameaças de violência e de desgraça na família, a criança mente negando ter ocorrido abuso sexual. Os profissionais encarregados de proteger à criança, precisam enfrentar esse fato crucial do abuso como síndrome de segredo. 39 3.1.5 – Ansiedades como consequência da revelação As ameaças à vida e a integridade da criança que sofre abuso, estão implicitamente, e claramente explícito, ligadas à atribuição de culpa e total responsabilidade por esses eventos à criança. “Se você contar a alguém, será culpa sua se o papai for para a prisão e se a mamãe for embora” ou “Não adianta você contar, que ninguém vai acreditar. Vão lhe chamar de mentirosa”. Esta ampla gama de ameaças, até a ameaça de morte, constitui para Furniss ( p.31), um forte fator para que a criança nada revele. Contrariamente à crença popular, a maioria das crianças que sofreram abuso sexual intrafamiliar, não quer perder seus pais pela prisão ou divórcio. Elas querem muito um pai, mas um pai não abusivo. Uma conduta punitiva em relação à família abusiva sexual, é portanto um forte fator para que as crianças mantenham segredo. Uma menina que foi violentada pelo pai, dos cinco aos onze anos de idade conta no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA): “Cada vez que o tempo passava, ficava mais difícil contar, minha mãe não prestava atenção em mim, eu dava pistas, tentava falar, ela é muito rígida. Tinha muito medo dela perguntar porque eu não contei antes, mas eu só queria proteger eles, manter minha família unida. Mas não adiantou nada, eu não presto e quero morrer”. 40 3.2 – Aspectos interacionais do segredo 3.2.1 – Mentira e negação As crianças mentem sobre o abuso sexual porque estão com medo de serem castigadas, não creditadas e não protegidas. Elas temem a punição ou a incapacidade dos adultos de protegê-la da violência de seu agressor. Se não conseguem falar é porque não tem mais confiança no adulto. Sua palavra está desvalorizada. Psicologicamente, em termos de relacionamentos familiares, o abuso sexual da criança geralmente permanece um segredo de família, até mesmo depois de uma clara revelação, e inclusive quando as ameaças legais e estatutárias há muito tempo foram removidas. Os eventos psicológicos da mentira consciente e da negação consciente, são muitas vezes confundidos. A mentira relaciona-se com o conceito legal de prova, a negação pertence ao conceito psicológico de crença e assunção da autoria (Furniss, p.31). 3.2.2 – Anulação do abuso na própria interação abusiva A natureza e a experiência do abuso sexual é negada e anulada das formas que se seguem: 3.2.2.1 – O contexto do abuso A característica central da interação sexual entre o abusador e a criança abusada, é a tentativa por parte do abusador na elaboração de um contexto que 41 anule a realidade externa do abuso sexual, durante o próprio ato abusivo. Isto porque, as crianças frequentemente descrevem como o abuso ocorria em silêncio ou sem qualquer contato visual, ou em total escuridão com as cortinas fechadas, mesmo que ninguém pudesse ver do lado de fora. As sensações físicas do abuso e o contexto interacional criado pela pessoa abusiva conduzem a uma experiência dupla, totalmente conflitante e contraditória em termos fisiológicos, perceptuais e emocionais. O intenso contato de pele e a estimulação do corpo durante o ato sexual criam um estado de extrema estimulação física e fisiológica na criança, seja no intercurso vaginal, anal ou oral ou na masturbação. A estimulação física pode provocar extremas sensações corporais de dor e excitação. Os altos níveis de ansiedade podem ser ainda mais aumentados pelo desamparo e incapacidade da criança de deixar a cena. O intenso contato de pele e a estimulação corporal constituem a aspecto sexual do abuso sexual. A experiência sensória do ato sexual acontece em um contexto em que a pessoa que abusa tenta negar totalmente a ocorrência do abuso sexual. Isso é conseguido através do silêncio, escuridão, contato físico ritualizado, evitação do contato visual e outros aspectos ritualizados da interação. A anulação através de tais dissociações, além de ser acompanhada e aumentada por formas rígidas e ritualizadas de interação, também são mantidas por breves ordens e ameaças verbais. 3.2.2.2 – Transformação do abusador em “outra pessoa” Outra anulação, é a transformação da pessoa que abusa de figura paterna na “outra pessoa”, como pseudoparceiro. 42 O abusador, quando em estado de excitação sexual, frequentemente age de modo muito diferente de seu habitual. Isso pode ser muito assustador quando os pais se transformam na “outra pessoa”, com gestos diferentes, padrão incomum de linguagem, tom de voz alterado e comportamento físico estranho. Quase todas as crianças descrevem vividamente mudanças nas expressões faciais. A anulação através da dissociação da realidade externa do abuso sexual durante o ato sexual, não permite à criança perceber a realidade como tal, assim como de nomear a experiência de abuso. É como se a pessoa abusiva estivesse falando ao rosto da criança “ O que você quer dizer, é que nada está acontecendo, não é?” enquanto a penetra sexualmente mais abaixo. As pessoas abusivas, geralmente tentam negar qualquer aspecto real de relacionamento entre elas e a criança durante o abuso sexual. Tentam evitar qualquer reconhecimento claro daquilo que está acontecendo. Durante o contato mais intensamente físico e corporal humanamente possível, elas tentam desconectar-se totalmente da criança em termos psicológicos (Furniss, p.32). 3.2.2.3 – Rituais de entrada e saída Os rituais de entrada e saída formam uma parte central do aspecto interacional do abuso sexual da criança como síndrome de segredo. O ritual de entrada serve para transformar uma interação comum paicriança em interação “outra pessoa” criança, sem nomear essa transição. No ritual de saída ocorre o processo contrário igualmente não-nomeado da transição dessa “outra pessoa” abusiva, no pai e adulto confiável, principalmente que, ensina-se a criança a desconfiar de estranhos, entretanto 43 simultaneamente, a ser obediente e afetuosa com todos os adultos que cuidam dela. Os rituais de entrada e saída não apenas reforçam ainda mais a anulação e negação do abuso sexual como processo, mas também a poderosa dissociação das mensagens sensoriais fisiológicas contraditórias durante o abuso (Furniss, p.33). Os rituais de entrada e saída ampliam a experiência incongruente do princípio da realidade na dimensão temporal. Criam a sucessiva divisão temporal naquele que comete o abuso. Essa pessoa pode ser um pai carinhoso, antes e depois do abuso, que se transforma em “outra pessoa “ durante o abuso. Assim, o mesmo ser humano pode ser uma pessoa-pai carinhosa, em dado momento, e alguém assustador, amendrontador durante o abuso. O espaço de tempo que delimita o exato início do ritual de entrada e de saída marca o período de tempo do abuso sexual. Depois do abuso, o abusador e o abusado, cortam fora de sua realidade mutuamente reconhecida, esse período de tempo e experiência, como se aquilo nunca tivesse existido. Eles se tornam as unidades de quinze minutos perdidas e dissociadas na vida da criança. Os rituais de entrada e saída sempre criam um espaço físico e um espaço de tempo entre o abusivo e o abusado, em que a transformação de “pai” em “pessoa que abusa” ocorre no ritual de entrada, dando-se o contrário no ritual de saída. Tal separação é vital para se poder manter a dissociação e a anulação. Jamais se soube de um pai que tomasse sua filha pela mão, e a olhasse para ela e dissesse; “vamos para a cama fazer sexo?” (Furniss, p. 34). A seguir, Furniss (2002), relata como exemplo o seguinte caso clínico: 44 E. sofreu abuso sexual de seu pai, durante oito anos. O abuso acontecia durante o dia, quando sua mãe estava trabalhando. Ela ouvia o pai no andar de cima da casa chamar: “E., vem arrumar o seu quarto”. Ela sabia que esse chamado, não correspondia ao conteúdo verbal explícito, visto que seu quarto estava em ordem, entretanto, silenciosamente, subia para o andar de cima. A frase, “E., vem arrumar o seu quarto”, era o início exato do ritual de entrada do abuso sexual, assim como uma parte integral desse abuso. E. sabia que quando chegasse ao andar de cima entraria em seu quarto escurecido com as cortinas cerradas, onde seu pai estaria de costas para a porta entreaberta e de frente para a cama. Ele não a olhava, e sem dizer uma palavra fechava a porta com o pé. As calças estariam abertas e então o abuso sexual começaria. Não havia nenhum contato visual, apenas ordens esteriotipadas durante o intercurso anal e vaginal. No final, a interação sexual terminaria com um ritual de saída. O pai puxava a calça para cima. Ao sair do quarto dizia para à filha arrumar a cama. Depois ia ao banheiro e de lá para o andar de baixo. No ritual de saída, como no ritual de entrada, o pai criava um espaço físico e um espaço de tempo entre ele e a filha, no qual ocorria a transformação de pai na pessoa que abusava e novamente no pai. E. permanecia em seu quarto até que o pai a chamasse: “E., você deve ter ficado com fome na escola”. Então ela descia e comia alguma coisa, como se nada tivesse acontecido. Esta frase, era o final do ritual de saída e a conclusão do abuso sexual. O pai se tornava pai novamente, E. e ele continuavam vivendo como se jamais tivesse acontecido abuso sexual nesse intervalo (Furniss, p. 35). 45 3.3 – Segredo internalizado Gabel (1997), citando Summit, em “Child sexual abuse accommodation syndrome”, descreve como as crianças que sofreram abuso sexual em segredo, desamparo e engano, começam psicologicamente a adaptar-se. A interação abusiva, que continuamente ameaça a vida, a integridade física e psicológica da criança, se torna no processo de adaptação, um evento aparentemente normal. Estruturas psicológicas básicas que permitem a sobrevivência psíquica se desenvolvem ao custo de uma percepção gravemente distorcida da realidade externa e emocional. Os mesmos mecanismos que permitem à criança a sobrevivência psíquica tornam-se obstáculos a uma efetiva integração psicológica quando adulto. Se a criança não é capaz de criar uma economia psíquica para resignar-se ao contínuo ultraje, a intolerância ao desamparo e o crescente sentimento de raiva buscarão uma expressão ativa. (Gabel, 1997, p.54, citando Summit). A adaptação ao abuso e a criação da pseudoanormalidade são o resultado da impossível tarefa psicológica de integrar a experiência. O segredo, o desamparo e a ameaça à vida são constantemente reforçados em renomadas invasões à autonomia e à integridade física e mental da criança. A criança é forçada a viver uma vida aparentemente normal em que não parece existir nenhum abuso. A síndrome de adaptação acontece através da internalização da experiência inerente incongruente da interação abusiva. Existem maneiras extremas que algumas crianças adotam para sobreviverem. Tentam anular o abuso no próprio processo, ao dissociar-se da experiência, criando assim, um estado pseudonormal que lhes permita 46 sobreviver ao abuso. Algumas fingem que não são elas que estão sofrendo, e tentam ver o abuso à distância. Outras buscam entrar em estados alterados de consciência, como se estivessem dormindo. Outra maneira de normalizar é fingir, durante o intercurso, que a parte de baixo do corpo não existe. Ao tentarem anular a experiência em processo, elas criam uma disposição complementar ao desejo da pessoa que abusa de negar o abuso em processo como uma interação ilegal. (Gabel, 1997, p.54, citando Summit). A tradução da violação estrutural da integridade da criança numa simulação de normalidade parece, em consequências a longo prazo, semelhante aos processos descritos na síndrome do campo de concentração (Furniss 2002, p.35, citando Bastiaans). O mecanismo normalizador extremo que os sobreviventes do campo de concentração desenvolveram nesses campos, frequentemente acabavam conduzindo a um estado psicológico em que a experiência do campo de concentração parecia ter sido completamente apagada. Ela somente voltava a emergir quando os mecanismos de manejo e as defesas eram abalados mais tarde na vida por novos eventos estressantes. No entanto, quando a experiência voltava a emergir, ameaçava, em flashbacks, inundar e dominar completamente os mecanismos de manejo e as defesas do sobrevivente. Winnicott define trauma em 1969 como: “É aquilo contra o qual o indivíduo não possui defesa organizada, de maneira que um estado de confusão sobrevém, seguido talvez de uma reorganização das defesas, estas, um tipo mais primitivo”. 47 O abuso sexual da criança como as síndromes de segredo e do campo de concentração podem criar problemas de personalidade, de culpa e autoestima. O aspecto comum de culpa se relaciona à experiência forçada de viver junto, o perpetrador e a vítima, durante um longo tempo, e ao complexo padrão psicológico desenvolvedor de interdependência e apego entre o abusador ou o carcereiro e a vítima. Problemas de culpa e auto-estima também se relacionam à incongruência da experiência de segredo sob ameaça, em que a realidade jamais deve ser mencionada. Se a criança não procurou imediatamente ajuda e não foi protegida, sua única opção possível foi aceitar a situação e sobreviver, ao preço de uma inversão dos valores morais e alterações psíquicas prejudiciciais à sua personalidade... Ela sobreviverá, seja por meio de uma clivagem – funcionando como se tivesse várias personalidades -, seja pela conversão da experiência no seu oposto: o que era ruim será firmado como bom; seja pelo mecanismo de identificação com o agressor. (Gabel, 1997, p.54, citando Summit). 3.4 – Vínculos sexualizados A excitação fisiológica, a gratificação secundária e o vínculo sexualizado contêm elementos de experiência positiva no abuso sexual da criança. Eles contribuem para o comportamento extremamente leal de algumas crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual. 48 “A excitação fisiológica da pele e especialmente da área genital no abuso sexual pode ser extremamente dolorosa e assustadora, e isso é bastante aceito” (Furniss, p.36). Os aspectos sexuais fisiológicos do abuso sexual nas crianças está no fato de que a excitação sexual genuína é extremamente formadora de hábito. A formação de hábito da excitação sexual e alívio da tensão através da estimulação sexual pode conduzir à forte sexualização. Por sua vez, o aspecto fisiológico da excitação no alívio de tensão no abuso sexual e o forte elemento formador de hábito podem conduzir à aditividade no comportamento de atuação sexual que pode ser extremamente complexo na implementação terapêutica. A gratificação secundária através de subornos e recompensas pode ter efeitos corruptores. Isso inclui recompensas materiais que a criança abusada sabe não serem recebidas pelas crianças que não sofrem abuso. Também inclui convencer as crianças que elas são melhores, mais encantadoras e mais especiais do que as outras pessoas significativas nas suas vidas, assim como suas mães, irmãos e outras crianças. Um senso deturpado de ser especial pode resultar em um senso de ego inflado e falso, e não se relaciona à apreciação das verdadeiras necessidades da criança e dos cuidados em relação ao seu verdadeiro eu. “O abuso sexual pode levar a criança a um papel de pseudoparceria que ela pode querer manter, mesmo a custo de confusão e perturbação emocional” ( Renshaw 1984, p.102). O forte apego das vítimas em relação ao abusador é, em alguns casos um reflexo do fato de que a atenção abusiva que a criança obtém, é a atenção e o cuidado parental mais importante, ou inclusive o único, que recebe. A força desse apego pode ser vista de modo especial em famílias com um único progenitor, em que o pai, enquanto único progenitor, é também o abusador. 49 3.5 – O Abuso sexual como síndrome de adicção O abuso sexual da criança como síndrome de adicção para a pessoa que abusa, é complementar ao abuso sexual como síndrome de segredo para a criança, para o abusador e para a família. Embora haja diferenças específicas em relação as outras formas de adicção, as semelhanças existentes são impressionantes (Furniss, p.37). É sob a ótica de Furniss que a seguir veremos tais semelhanças. 1) As pessoas que abusam sexualmente de crianças sabem que o abuso é errado e constitui crime. 2) A pessoa abusiva sexual sabe que o abuso é prejudicial à criança. Apesar disso o abuso acontece 3) O abuso sexual, como outras adicções, primariamente não cria uma experiência prazerosa, mas serve para o alívio de tensão. 4) O processo é conduzido pela compulsão à repetição. 5) Os sentimentos de culpa e o conhecimento de estar prejudicando a criança podem levar a tentativas de parar o abuso. 6) O aspecto sexual egossintônico do abuso sexual dá a pessoa que abusa a “excitação” que constitui o elemento aditivo central. 7) A gratificação sexual do ato sexual ajuda a evitação da realidade e apóia uma baixa tolerância à frustração, mecanismos frágeis de manejo e funções de ego frágeis. 8) Os aspectos egossintônicos e sexualmente excitantes do abuso sexual da criança e o subsequente alívio de tensão criam dependência psicológica. 9) O abusador tende a negar a dependência, para ela própria e para o mundo externo, independente de ameaças legais. 10) A tentativa de parar o abuso pode levar a sintomas de abstinência tais como ansiedade, irritabilidade, agitação e outros sintomas. 50 Furniss, também faz uma abordagem sobre a função da criança no abuso sexual pela ótica da pessoa abusadora, onde a criança funciona como um instrumento de excitação, e não como pessoa. Face a esta distorção, conclui-se: • a pessoa (criança) não é vista; • as necessidades da criança não são vistas; • o dano não é visto e, • não existe nenhuma empatia. Gabel (1997), cita o caso de um pai que abusou da filha durante 4 anos. Ele descreveu que sentia uma tensão física crescendo em seu corpo quando estava sob estresse, o que fazia com que ele se sentisse como se estivesse queimando. Ficava tenso, compelido, sentindo como se existisse uma nuvem de neblina à sua volta. Face a isto, ele sabia que iria abusar sexualmente da filha e assim propiciava as circunstâncias e abusava da filha. Depois do abuso, ele se sentia culpado, entretanto não enfrentava a responsabilidade de sua atitude, e o fazia evitando literalmente por um determinado tempo, olhar para a sua filha. Certa vez quis parar o abuso, e pediu para a filha não se aproximar dele, quando os dois estivessem sozinhos em casa. Entretanto quando tal fato se repetia, ele criava situações como sair nú do banheiro, e então procurava a filha e a abusava sexualmente e depois a culpava por isso. O abuso sexual ainda pode ser negado psicologicamente como expressão da evitação da realidade na síndrome do segredo e adicção, mesmo nos casos em que a pessoa confessou o abuso abertamente no tribunal (Furniss, p. 39). Assumir completamente a autoria de abuso sexual como realidade psicológica pode ser extremamente ameaçador e assustador para as pessoas que abusam sexualmente. A própria fragilidade do ego que conduziu ao abuso sexual como forma de evitar a realidade, faz com que seja muito difícil para essa pessoa enfrentar sua responsabilidade pelo abuso cometido. 51 Um pai que admitira legalmente o abuso e que estivera na prisão por dois anos, ele mantinha um estado psicológico de negação, dizendo que havia ido para a prisão de modo a proteger sua filha, evitando que ela tivesse que testemunhar no tribunal (Furniss, p.39). Observa-se portanto, que esse pai não havia enfrentado psicologicamente o abuso. Para ele, o abuso não se tornara uma realidade e fato psicológico, apesar das ações legais. O abuso sexual da criança como síndrome de adicção, também significa que as pessoas abusivas sexual não ficam “curadas” mesmo depois de um tratamento bem sucedido. Em circunstâncias de estresse e em situações que lhes apresentam oportunidades, essas pessoas abusadoras sexual correm o risco de voltar a abusar novamente. Aspectos de adicção também ocorrem nas vítimas do abuso. O mecanismo que conduz à adicção, nas vítimas, parece ser uma combinação de dois elementos principais. Crianças que sofreram abuso sexual prolongado, frequentemente, desenvolvem mecanismos de manejo desadaptativos para alívio da tensão do estresse. A experiência do abuso sexual ensinou-as a lidar com o estresse e a ansiedade através do alívio direto de tensão no comportamento aditivo. “A adição tem a mesma função do comportamento sexualizado e da masturbação compulsiva das vítimas de abuso sexual” (Furniss, p. 40). Outro elemento no comportamento aditivo são os crescentes níveis de ansiedade, como uma consequência da experiência total de abuso sexual e seu contexto. Mecanismos de manejo inadequados associam-se à crescente ansiedade decorrente do abuso. A adicção cria um alívio de tensão e uma evitação da realidade que ajudam a vítima a evitar a enfrentar a realidade da experiência abusiva. 52 3.6 – A conexão entre segredo e adicção As síndromes de segredo e adicção são síndromes interligadas. “O abuso sexual da criança é uma interação ilegal, aditiva para a pessoa abusiva, em que a “droga” é uma criança estruturalmente dependente” (Furniss, p.40). A adição a uma “droga” que é uma criança estruturalmente dependente se torna extremamente difícil e, ao mesmo tempo da máxima importância. Os aspectos do segredo e da adicção constituem o mecanismo de evitação da realidade para o abusador, sendo que a criança é forçada a associar-se à síndrome do segredo. O grande desafio de se parar o abuso sexual da criança, de romper o segredo, de criar e manter a realidade e lidar com os apegos mútuos, frequentemente fortes e destrutivos, entre a pessoa que abusa e a criança, são os efeitos específicos do abuso sexual da criança como síndrome conectadora de segredo e adição. 3.7 – A fala do corpo e do comportamento “Eu tentei contar várias vezes, eu tentava mas ninguém me ouvia. Todo mundo me olhava desconfiado e dava risada. Eu sofri muito” (sic). Essa frase foi dita no primeiro atendimento de uma menina de onze anos, que vinha sendo abusada sexualmente pelo pai desde os seis anos de idade e que quando contou à sua irmã mais velha, felizmente ela acreditou. Quando não se pode comunicar por via verbal, ou quando não se consegue que ninguém nos ouça, nosso corpo e nossas atitudes falam por nós. No caso da criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, essa fala se traduz em sintomas que atingem todas as esferas da atividade. Eles são simbolicamente a concretização, ao nível do corpo e do comportamento, daquilo que a criança sofreu e do que fantasmou. 53 A maioria das literaturas reconhece que a criança vítima da abuso sexual corre o risco de uma psicopatologia grave, que perturba sua evolução psicológica, afetiva e sexual (Gabel, p.62). 3.7.1 – Fontes de informação Através da ótica de Gabel, coletou-se algumas fontes de informação que veremos a seguir: Um estudo canadense de Ontário, envolvendo 125 crianças com menos de seis anos de idade, hospitalizadas por abuso sexual, sendo a proporção de meninas 3,3% para cada menino. Do universo de 125 crianças, 60% sofreram violências sexuais intrafamiliar. Dois terços das crianças examinadas por profissionais especializados manifestavam reações psicossomáticas e desordens no comportamento: pesadelos, medos. Dezoito por cento (18%), apresentavam distúrbios do comportamento sexual: masturbação excessiva, objetos introduzidos na vagina e no ânus, comportamento de sedução, pedido de estimulação sexual, conhecimento da sexualidade adulta precoce e inadaptado para a sua idade. Na França, V. Courtecuisse e sua equipe, de uma série de trinta e cinco crianças e pré-adolescentes vítimas de incesto, 22 tentaram uma vez o suicídio. Foram constatados estados depressivos, dificuldades acentuadas no desenvolvimento escolar, fugas, anorexia, distúrbios sem substrato orgânico que causavam sérios problemas físicos, toxicomania. Deltaglia, psicóloga especializada junto aos tribunais, analisou noventa perícias de adultos “autores de abusos” e de crianças vítimas de abuso sexual no âmbito familiar. Segundo Gabel, na concepção da autora, mais do que o ato 54 sexual imposto à criança, é a violência da situação de dominação que provoca as desordens de comportamento constatadas. Sobre as consequências que as crianças vítimas de abusos sexuais intrafamiliar enfrentarão na idade adulta, não é o que objetiva nosso estudo. Entretanto convém acrescentar o que afirma Gabel, Só os testemunhos cada vez mais frequentes de adultos que sofreram abuso sexual intrafamiliar na infância, permite-nos dizer que as reações podem sewr tardias e se manifestam em distúrbios da sexualidade e da parentalidade. (Gabel, 1997, p.63). 3.7.2 – Alguns fatores implicativos As consequências dos abusos sexuais intrafamiliar dependem de inúmeros fatores que se intricam. Não se pode discorrer de trauma infligido à criança sem pensar no contexto no qual ele ocorre, isto é, a situação da criança em sua família e o impacto que o abuso terá após a revelação, as reações do círculo dos conhecidos, as decisões sociais, médicas e judiciárias que intervirão no caso. A idade e a maturidade fisiológica e psicológica da criança abusada, determinam consequências variáveis, segundo Gijseghem, professor da Universidade de Montreal, citado por Renshaw: “quanto mais cedo ocorreu o incesto, maior o risco de que as feridas sejam irreversíveis, particularmente ao nível de identidade”. ( Renshaw, p. 92). 55 As sequelas que a criança pré-púbere apresenta dificultam sua evolução psicoafetiva e sexual, afetam as identificações que ela poderia construir e impedem que a adolescência seja um período de requestionamneto construtivo. Gabel (p.64), citando Bigras, descreveu adolescentes psicóticos que haviam sofridos relações incestuosas desde seus primeiros anos de vida. O elo que une a criança e aquele que dela abusou, é também um fator determinante, sendo que na maioria dos casos, a violência sexual intrafamiliar é a que tem consequências mais graves, em virtude de provocar na criança uma confusão em relação às imagens parentais: O pai deixa de desempenhar um papel de protetor e representante da lei e a omissão materna torna-se uma evidência. A natureza do ato imposto à criança é variável: pode tratar-se de contatos físicos, de masturbação recíproca; de voyerismo, de exibicionismo, de penetração oral, vaginal ou anal; esses e outros atos vêm sempre associados ou surgem progressivamente. Por sua vez, também é difícil estabelecer uma diferença entre um ato isolado e uma relação que dura anos. Certos atos únicos que permanecem velados e ressurgem na adolescência são particularmente devastadores. Entretanto, os abusos sexuais fora da família são denunciados com mais facilidade pela criança. O conhecimento do contexto onde a criança cresce é essencial: sabe-se que o incesto é sintoma da disfunção familiar, onde existe uma confusão de papéis e de gerações. Há de se considerar que, quando o abuso sexual é revelado, a maneira como a criança está cercada determinará a sua reação; além disso, se ela não 56 estiver preparada, as investigações da equipe multidisciplinar e judiciais às quais ela deve se submeter poderão produzir-lhe um novo trauma. Por fim, as medidas judiciais que são tomadas em relação ao adulto incestuoso provocam literalmente quase sempre um rompimento da família, do qual a criança se sentindo responsável, agrava a sua culpa. 3.7.3 – Corpo e comportamento: comunicação As reações imediatas da criança, são ao mesmo tempo, sinais clínicos que podem permitir evocar a existência de uma agressão sexual quando ela não confiou a alguém. É o caso das agressões cometidas por um adulto em quem a criança confiava até então; nesse caso, a criança é subitamente confrontada com um comportamento diverso: É como se ele tivesse ficado louco, virado um monstro...”, disse uma menina de 8 anos, soluçando, em um jornal televisivo, denunciando seu pai. Para Ferenczi (1933), é a “linguagem da paixão que amedronta e perturba a criança” (mais que o ato sexual). A criança pode reagir com um estado de estresse que se revela pela agitação ou pelo choque e recuo, uma anestesia afetiva seguida de terror, regressões, manifestações psicossomáticas. A intensidade dos sintomas, sem que tenha havido antecedentes, em geral alerta os familiares; mas a criança em estado de choque, às vezes acompanhado de mutismo, só consegue contar o que lhe aconteceu depois de sentir confiança: “Esperei duas horas, segurandoa em meus braços, antes dela começar a chorar e a falar comigo”, conta uma professora, referindo-se a uma criança de sete anos, que havia sido estuprada por seu pai. Em certos casos, a agressão vem acompanhada de lesões genitais agravadas por danos físicos tais como tentativas de estrangulamento e 57 ferimentos. Como essas situações dramáticas exigem hospitalização, a intervenção é imediata e o diagnóstico não apresenta dúvidas. Em grande parte dos casos, depara-se com crianças que há anos vivem uma relação incestuosa, estabelecida progressivamente desde a tenra idade. A criança é envolvida em uma relação muito próxima e erotizada, que termina e culmina em contatos genitais. Às primeiras tentativas de sedução do adulto somam-se ameaças para forçar a criança a submeter-se. O que ela pode aceitar aos quatro ou cinco anos como uma brincadeira secreta, conforme lhe dizia o adulto, torna-se uma relação imposta da qual, pouco a pouco, toma consciência. Produzem-se, então, rupturas traumáticas sucessivas, manifestadas em sintomas que são, ao mesmo tempo, sinais de alerta. L. foi examinada aos cinco anos de idade, por apresentar incontinência fecal noturna. Aos dez anos, por distúrbio do sono e baixo rendimento escolar. Aos quinze, com o aparecimento de rituais de lavagem, com obesidade e interrupção da menstruação. L. revela que à noite, seu padrasto vem à sua cama e a obriga a atos orais-genitais. Aos cinco anos, ela já havia feito perguntas sobre o sexo do padrasto e aos dez anos falara à professora sobre as carícias que o padrasto lhe fazia (Gabel, p. 66). Interessante consignar ao alto grau de intuição de William Motsloy (s.d.), quando afirmou: “Quando o sofrimento não pode expressar-se pelo pranto, ele faz chorarem os outros órgãos”. No caso explicitado por Gabel (1997), observa-se que L. vem vivendo já alguns anos uma experiência de violação de seu corpo, cuja porta de saída que ela encontrou foi a sintomática. Seu corpo fora profanado. Existiu a perda de integridade física; sensações novas foram despertadas mas não integradas. L., exprime a angústia de algo se quebrou no interior do seu corpo. Suas formas 58 anteriores de comunicação com a mãe e a professora houvera falhado. Ninguém lhe dera crédito. As queixas somáticas habituais da criança vítima de abuso sexual intrafamiliar são: mal-estar difuso, impressão de alteração física, persistências das sensações que lhe foram impingidas. A enurese e a encoprese são frequentes, sobretudo nas crianças menores e nas que sofreram penetração anal. As dores abdominais agudas sem substrato orgânico ocorrem em todas as idades. Crises de dispnéia, desmaios, problemas relacionados à alimentação como náuseas, vômitos, anorexia ou bulimia – que assumirão, em seguida, outro significado, a saber, a recusa da feminilidade e a destruição do corpo. Nesse estado, a anorexia e a bulimia podem ser fenômenos de rejeição e de compensação transitórios. A interrupção da menstruação dá-se mesmo quando não houve penetração vaginal. A repugnância de si mesma podemos acrescentar os rituais de “se lavar”, as dermatoses provocadas por lesões consequentes do ato de se coçar, que vão até o sangramento, sendo essa uma maneira de se reapropriar do corpo pela excitação, pelo prazer e pelo sofrimento. As perturbações do sono são constantes e traduzem a angústia de baixar a guarda e ser agredido sem defesa. Observa-se a recusa das crianças menores em ir deitar-se, agarrando-se ao adulto não implicado. Do mesmo modo, observam-se rituais de averiguação, de prevenção ao colocar em torno da cama objetos que possam fazer barulho caso alguém se aproxime; certas crianças dormem completamente vestidas. O despertar angustiado durante a noite também é muito frequente e se manifesta sob a forma de pesadelos, e às vezes persistem até a vida adulta. Temporariamente, ocorre o prejuízo das 59 funções intelectuais e criadoras. A criança deixa de brincar, desinteressa-se pelos estudos, fecha-se em si mesma, torna-se morosa ou inquieta. As perturbações nas crianças de cinco a dez anos de idade podem expressar-se por meio de desenhos esteriotipados e precisos que demonstram conhecimentos sexuais inadequados para a sua idade; neles aparecem sem nenhuma simbolização, atributos sexuais e cenas de coito, que são bem diferentes daqueles que os pré-adolescentes desenham entre si. Se o diagnóstico de abuso sexual não foi feito, e se os adultos não acreditaram na criança, os distúrbios são mais discretos. Summit (1983), descreveu a síndrome de acomodação da criança vítima de abusos sexuais; a criança deve aprender a aceitar a situação e sobreviver a ela, sob o risco de que as consequências só se manifestem mais tarde na forma de graves problemas de personalidade (Gabel, p.68). Quando uma criança tem oportunidade de revelar o que lhe aconteceu, recebendo crédito e ajuda, as manifestações mais notórias desaparecem; ela reencontra o interesse pelos outros e pela brincadeira, mas a angústia pode tomar forma de neurose com diversas fobias: medo do escuro, da solidão, agorafobia, afastamento das pessoas do mesmo sexo do agressor, com um componente histérico às vezes exagerado; esses são alguns dos exemplos possíveis. Pesquisas americanas indicam que as perturbações da sexualidade são sintomas evocadores dos abusos sexuais. Na criança pequena, a excitação sexual manifesta-se por comportamentos inadaptados de voyeurismo e exibicionismo, bem como pela exploração ou agressão sexual em relação a 60 outras crianças. Punir sem tentar compreender o que está subtendido, é desconhecer o mal-estar de uma criança que tenta passar de uma posição passiva à ativa, elaborando o trauma que sofreu. Tal posição é comparável à descrita por Freud: a respeito do jogo do carretel e do comportamento das crianças que viveram experiências terríveis durante tratamentos médicos: ao mesmo tempo em que passa da experiência à atividade lúdica, a criança inflige a um colega de jogo o desprazer que ela própria viveu e se vinga, assim, na pessoa desse substituto (Freud,1920). Essas atividades da criança que repete a cena traumática identificandose com o agressor nem sempre têm caráter lúdico; às vezes constituem uma passagem ao ato, com violência sexual. P., um menino de cinco anos, foi rapidamente confiado a uma família adotiva, com apoio do Estado, depois que foi sodomizado por seu pai; a mãe adotiva não mais quis acolhê-lo, depois que o surpreendeu com seu filho de três anos, reproduzindo com um objeto o que ele havia sofrido (Nadelson, 1982, p.106). Entre adolescentes, que sofreram violência sexual intrafamiliar quando crianças, especialmente no caso de meninos, detectou-se a agressão sexual sobre outras crianças. Entre adolescentes meninas, observou-se sobretudo à repetição do que sofreram, através de um comportamento de sedução. Em outros casos, a sexualidade é exercida por uma vertente mais perversa: a ninfomania e a prostituição, por exemplo, que são formas de desprezar o parceiro, mas também inconscientemente, uma maneira de se desprezar e de se destruir; pode-se associar a isso a toxicomania e a delinquência. 61 Também, às vezes na adolescência um rapaz vem à consulta com medo de se tornar homossexual, ou uma moça vem se consultar, dizendo-se frígida. Maioria das vezes, ambos adolescentes trazem histórias de uma infância sofrida de abuso sexual intrafamiliar. Paradoxalmente, é no momento da revelação que se produzem graves descompensações: tentativas de suicídio, fugas, prostituição, toxicomania ou manifestações psicóticas. A criança parecia adaptar-se à situação, a coesão do “Eu”, era mantida pela dominação do parceiro; no momento da revelação, a criança pode encontra-se só, sem pontos de referência, exposta assim à confusão. 62 CAPÍTULO IV 4. AUTOR DA VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR 4.1- INCESTO: UMA VISÃO PSICOSSOCIAL Uma das formas que o frágil ser humano encontrou para se defender, crescer e poder evoluir, foi a de viver em sociedade e, para isso, foi necessário estruturar uma linguagem, constituir a família e reprimir o ato incestuoso. Para entendermos a família exogâmica, ou seja, a família que proíbe o incesto, devemos perceber o salto qualitativo que a espécie deu, no momento em pode discernir o instinto sexual, que é um comportamento hereditário próprio de todos os seres vivos, da pulsão sexual, que é exclusiva dos seres humanos. Podemos então compreender a sexualidade humana como a somatória do instinto sexual e da pulsão sexual. Entretanto, não se pode falar em sexualidade sem antes também falar em cultura, pois a sexualidade também é um processo cultural. As duas características principais do desenvolvimento da cultura são as qualidades humanas e as consciências dessas qualidades. Mas o fato do homem ter consciência de sua cultura e de possuir instrumentos que possa interferir e modificar essa mesma cultura, a evolução cultural tornou-se mais rápida que a evolução orgânica. Como exemplo, temos as mutações bacterianas em decorrência do uso de antibióticos, os transplantes de órgãos ou mesmo os implantes de embriões. 63 Pode-se considerar que a cultura é a somatória do conhecimento que o ser humano tem de si mesmo e do mundo que o cerca, com as ansiedades decorrentes daquilo que ainda é desconhecido e que se deseja conhecer. Portanto a cultura é algo vivo e dinâmico. Até o período Paleolítico, tinha-se a idéia de que a mulher era autosuficiente na geração dos filhos. Também foi necessário um longo tempo para que se estabelecesse uma correlação entre fertilidade e sensualidade e que ela fosse captada pela consciência humana. Somente no período Neolítico é que o homem surge como o elo necessário entre a procriação e a relação sexual. Também nesse período, o ser humano passa a produzir os seus alimentos, mostrando assim, provavelmente, uma de suas primeiras interferências na natureza. O conhecimento da paternidade é um dado que se funda na observação, pois a descoberta da relação entre sexo e procriação não é um dado imediato da consciência. Em nível psicológico, só ocorre quando a criança manifesta interesse pela figura do pai, o que só pode ser vivenciado por ela após sua própria descoberta da paternidade, podendo então discriminar o “ser” do “ter” (Aberasturi, 1994, p.28). No campo social essa descoberta revolucionária permitiu a representação simbólica do conceito de casal e é provável que seja neste período que se instaura o tabu do incesto. Pode-se imaginar que foi nessa época que o instinto sexual, como preservados da espécie, evoluiu para a pulsão sexual, observável através da variação dos diferentes fins sexuais, pois os seres humanos já não se acasalavam como os outros animais, com a única 64 finalidade de preservar a espécie, mas o faziam por motivos afetivos e de conveniência. (Cohen, 1993, p. 125). Fernandez de Castro (1990), afirma que o “casal” ou o “casamento” é uma imposição forçada da cultura. Sua afirmação se baseia na observação de que em todas as sociedades podemos encontrar, nos seus livros sagrados, este tipo de imposição, seja através de suas legislações míticas, seja em seu folclore de origem ancestral, seja nos totens lendários. Estas obras relatam a história de casais quase divinos que deram origem à humanidade, e que tem como função educar a sociedade, mostrando sempre a necessidade de reafirmar que existem estruturas sociais diferentes, e divindades que impõem a lei. Por esse motivo, a proibição do incesto, que se tornou inerente ao ser humano, é algo que deve ser alcançado pelo indivíduo para que ele possa ingressar na cultura. Portanto, esta proibição, que não é natural, deve ser ensinada a cada ser humano que nasce. A história da humanidade é revivida por todo o ser humano, pois a psicanálise demonstra que esse é o caminho do desenvolvimento psicossexual pelo qual todos devem passar. Como afirmou Freud, a criança nasce como um ser perverso-polimorfo e, como foi a sua passagem pelo complexo de Édipo, que lhe permite alcançar uma sexualidade adulta. No período Neolítico, o ser humano descobriu ao mesmo tempo a procriação e a agricultura. Vê-se que levou milhares de anos para que ele relacionasse o ato sexual com a procriação e a semente com o fruto. Aliás até hoje, muitas pessoas ensinam às crianças sobre fecundação utilizando-se da metáfora da semente. 65 Da agricultura veio o trabalho e da procriação o casal, ocorrendo a primeira revolução sexual, e ambas promoveram a revolução social. Para manter a ordem social e sexual o ser humano foi obrigado a elaborar as leis morais e científicas. Na China o Deus-Rei Fohi, na Índia, Manu, no Egito, Menes, no Oriente Médio, Deus, passaram a ser os primeiros legisladores morais. Para mostrar a importância da descoberta da paternidade, podemos observar como a humanidade passou a admirar o falos. Investigações arqueológicas descobriram falos que foram entalhados nos últimos tempos do Neolítico, indicando que nesse período começou o culto ao macho, e ao mesmo tempo que decai o antigo culto à mulher. Aparecem os deuses itífalos ( ithis ereto; phallós pênis); na Índia, foram encontrados selos gravados em barro e pequenas figuras que representam um deus em forma de falo; no Egito, o pênis do deus Ra foi reproduzido em milhares de adornos; na ilha grega de Delos encontram-se imponentes monumentos fálicos dedicados as Dionísio; em Pompéia foram encontrados vários pênis decorativos da época Romana (Fernandez de Castro, p. 102). Para Morris (1975), um dos fatores que favoreceram a nossa evolução foi a mudança no comportamento sexual do macaco nu, proporcionada pelo coito cara a cara, que permite observar o estado emocional do parceiro. Pode-se conjecturar que esta nova postura sexual permitiu que a relação deixasse de ser apenas uma relação instintual, passando a ser também libidinal. “Interessante observar que esta postura, “cara a cara” na relação sexual é definida popularmente como “papai e mamãe” e quem sabe desta forma fica vinculado o estado emocional deste tipo de relação com a estruturação da família” (Cohen p. 127). 66 Segundo Cohen (1993), o incesto é caracterizado pela inexistência de vínculo familiar e a existência de abuso sexual. Para esse autor, é necessário esclarecer o conceito de perversão sexual, visto que ela está sempre referendada pela não aceitação de uma norma social. No caso do incesto, a perversão seria a relação sexual com algum membro da família que foi considerado tabu. Entendemos que a perversão sexual é a atuação da pulsão sexual com determinado objeto e fim que foram socialmente proibidos. O que deve ser modificado no ser humano é o destino desta pulsão, pois somente dessa maneira poderemos considerar que um indivíduo alcançou a sexualidade adulta. A atuação das perversões pode ser observada nas pessoas que não atingiram essa etapa do desenvolvimento. Em alguns casos a pressão, a fonte, o fim e o objeto sexual são confundidos, e, em outros casos, as gratificações sexuais são obtidas através de satisfações preliminares das pulsões, que podem ser identificadas com os atos preparatórios para um fim sexual, transformando-se no próprio ato sexual (Cohen, p.128). O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, à partir da terceira edição (DSM III), objetivando retirar o estigma que a palavra perversão sexual colocou na sexualidade humana, retirou o termo “perversão sexual”, e o substituiu por “parafilia” (para desvio; filia aquilo para que a pessoa é atraída), mostrando desta maneira que as fantasias parafílicas ou os estímulos equivalentes podem ser necessários à excitação erótica e estão incluídos na atividade sexual. 67 Pelo DSM IV, as características essenciais de uma parafilia consistem de fantasias, anseios, sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente excitantes, em geral envolvendo: • objetos não humanos; • sofrimento ou humilhação, próprios ou do parceiro, ou • crianças ou outras pessoas sem o seu consentimento, tudo isso ocorrendo durante um período mínimo de seis meses. Face ao exposto no DSM IV, o autor de um ato incestuoso portanto, deve ser considerado pelo menos um portador de distúrbio sexual do tipo parafílico, visto pelo viés de um profissional não médico. Pela ótica social, a parafilia não se encontra nas fantasias parafílicas ou nos estímulos que podem ser necessários para a exitação erótica e que estão presentes na atividade sexual humana. Mas sim, ocorre quando a atividade sexual está associada ao não consentimento do parceiro ou quando ela transgride alguma significação social ou alguma lei (Cohen, p.128). O DSM IV, classifica o incesto ou abuso sexual intrafamiliar, tipo pedofilia (302.2), de uma relação considerada patológica somente se a vítima for uma criança. Forward & Buck (1989), definem incesto diferenciando entre uma visão legal e uma visão psicológica, mostrando dessa forma os dois níveis de articulação sobre a problemática do tabu do incesto. Assim eles definem: • Legal: relação sexual proibida por lei (religiosa ou civil) entre indivíduos com um grau de parentesco; • 68 Psicológico: qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que tenham um grau de parentesco (consanguíneo ou por afinidade), ou que acreditam tê-lo. Kadish (1983), faz uma síntese desses dois aspectos, definindo o incesto: “O matrimônio, a coabitação ou a relação sexual entre as pessoas com um certo grau de consanguinidade ou afinidade, motivo pelo qual o matrimônio não é permitido”. (Ferracuti, v.8, p.47). Entretanto, o National Center on Child Abuse and Neglet, é quem coloca a terceira variável fundamental sobre a questão do incesto, quando define o incesto como “abuso sexual intrafamiliar” e que o mesmo deve ser penalizado (Cohen, p.131). Essa definição inclui não somente a relação sexual genital mas também qualquer ato que tenha por finalidade estimular uma criança sexualmente, ou usá-la para a estimulação sexual do perpetrador ou de qualquer outra pessoa. O incesto é o abuso sexual intrafamiliar, com ou sem violência explícita, caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de um dos membros do grupo e que possui um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o matrimônio (Conhen, p.132). Em 86,97% dos casos em que os agressores foram identificados, agressor e vítima moram na mesma casa. Além disso, possivelmente, todo o núcleo familiar sabe de fato, de forma consciente ou inconsciente, fazendo uma pacto de silêncio, seja visando obter algum benefício secundário, seja por estar muito assustado. Desses 86,97%, os maiores percentuais de grau de parentesco do agressor com a vítima foi: • Pai: 99 casos (41,60%) e 69 • Padrasto: 49 casos (20,59%). (Cohen; Matsuda, 1990,p.135). Observa-se que 62,19% dos agressores foram o pai ou o padrasto. Afirma Cohen, que na maioria das vezes, este tipo de violência sexual intrafamiliar ou é consumado pelo pai que chega em casa alcoolizado e violenta sexualmente sua filha, que está a seu alcance, pois a mãe geralmente é fraca e submissa, ou é aquele no qual a filha mais velha toma o lugar da mãe, que morreu ou que está muito doente ou ausente. Quando ocorre este tipo de relação incestuosa devemos considerar que as funções familiares são alteradas: o pai passa a ser “marido”, a mulher aceita perder a função de esposa e de mãe e a filha passa a exercer tais funções. Importante ressaltar que esses agressores além de não exercerem a função de pai e de mãe, também não permitiram que às suas vítimas tivessem o direito de saberem o que é ser filho. A psicanálise aceita a hipótese de que o tabu do incesto deriva do conceito de “poder impessoal”, ou seja, a aceitação de um poder superior ao poder pessoal, que é o poder da cultura. Esse poder impessoal deve ser ensinado a todas as crianças, sendo esta a função de Pai, ou seja, ele é o suporte da Lei simbólica e permite estabelecer o triângulo familiar ao proibir o incesto. 4.2 - O ABUSADOR SEXUAL DA CRIANÇA Diversos estudos americanos publicados recentemente analisam o discurso dos agressores que perpetraram abusos sexuais em crianças. A pesquisa de Conte, Wolf e Smith (1989), é representativa dessa corrente. Esses 70 autores estudaram uma amostragem de vinte adultos, que abusaram sexualmente de crianças e os entrevistaram com 69 questões, sobre o critério de escolha da vítima, a forma pelo qual se engajam e mantêm essas crianças nas situações de abuso sexual. Esses indivíduos que abusaram sexualmente das crianças, eles estão em tratamento em um centro de terapia especializada em abusos sexuais, e já reconhecem que seduzir e tocar uma criança é um abuso sexual. Nesta amostragem, os abusos sexuais incestuosos, não foram diferenciados dos outros tipos de abusos. Gabel (1997), referindo-se a pesquisa de Conte, Wolf e Smith, selecionou algumas das respostas considerada por ele como sendo das mais importantes, e que abaixo serão apresentadas: • De quantas vítimas você “abusou” e qual era a sua idade? Resposta: a média é de 7,3,sendo que a vítima mais jovem tinha dezoito meses, com a predominância de meninas em relação a meninos. A maior parte dos agressores interessa-se por crianças da família e crianças ligadas à família. • O que seduz na aparência da criança? Certas características físicas tais como: pele suave, cabelos longos, o fato de ser bonita, uma criança aberta, amigável com eles e que tenha confiança no adulto. • Dentre várias crianças possíveis, como você faz a sua escolha? As respostas denotam a capacidade de escolher crianças vulneráveis, por exemplo: a mais nova, para que ela não fale; aquela 71 da qual as pessoas zombam; a que parece mais carente; a criança muito amigável com o adulto. • O que seduz no comportamento da criança? Obteve-se as mesmas respostas da questão precedente, acrescida de: alguém que já foi vítima e que é mais submisso. • Quando você fez a sua escolha, pensava na possibilidade de ser apanhado? A maior parte dos agressores pensa nisso e tem medo. Isso irá influenciar a sua estratégia em relação à criança: preferirão crianças que não os denunciem; um deles por exemplo, revela que por essa razão escolhe crianças menores de sete anos de idade. • Como você faz para começar os contatos sexuais com a criança? A maioria descreve um processo de implementar relacionamento antes de chegar aos contatos sexuais. Por exemplo: conversar com ela, passar um tempo em sua companhia, tocá-la com frequência, fazer-lhe carinhos. Um deles conta que depois de Ter brincado com a criança e ganhar a sua confiança, começa a utilizar diferentes modos de contato: primeiro toca as costas da criança, depois a cabeça etc., com o objetivo de testar os limites da vítima. Outro afirma que isola a criança das demais pessoas e faz carícias, de uma maneira lúdica, aproximando-se cada vez mais dos órgãos sexuais. • O que você diz para começar a ter contatos sexuais com a criança? Pode-se discernir duas estratégias: de um lado, falar de sexo e/ ou contar piadas de conteúdo sexual; de outro lado, discutir o assunto com a criança, com o objetivo de estabelecer uma relação. 72 • Como você controla a vítima? Os agressores utilizam, em geral, a autoridade do adulto sobre a criança e a isolam das outras pessoas. • Você ameaça suas vítimas? A maior parte deles responde “não”. De fato, eles mostram que se aproveitam do fato de serem maiores, de sua autoridade de adultos. O agressor pode, assim, sugerir à criança que a revelação do abuso poderia feri-lo, ferir aos dois e às outras pessoas que vivem em torno deles. • Se você tivesse que escrever um livro: “como abusar sexualmente de uma criança, qual seria o conteúdo? As respostas revelam várias estratégias: tornar-se amigo de uma criança carente de afeto e de cuidados; dessensibilizar progressivamente a criança em relação aos comportamentos sexuais; assustá-la e intimidá-la. Face as respostas acima, o estudo demonstra o seguinte perfil de um adulto abusivo sexual da criança, ou seja; o pedófilo 1) Que os agressores sentem-se capazes de identificar as crianças vulneráveis e aproveitar dessa vulnerabilidade para abusar sexualmente delas. Certas formas de vulnerabilidade são da própria natureza da infância: ser pequeno, não falar e, portanto, não saber revelar o abuso; 2) Que a coerção é inerente ao abuso sexual. O adulto é, de longe o mais avantajado no combate entre a criança e o abusador, daí a complexidade da prevenção dos abusos sexuais: não basta ensinar 73 as crianças a dizer não ou a fugir. É preciso, também, ensiná-las a identificar os comportamentos manipuladores e coercitivos dos adultos e mostrar como podem escapar e/ou buscar ajuda; 3) Que os abusadores empenham-se em dessensibilizar as crianças aos contatos sexuais. Essa estratégia parece bastante sofisticada, com uma progressão do contato das regiões não-sexuais (pernas, costas) em direção aos órgãos genitais; tudo isso se dá no quadro de uma relação que progrida de tal modo, e tão bem, que a crinça pode sentir que deu seu consentimento (não protestou quando o adulto massageou-lhe as costas) ao abuso. Outras características, algumas semelhantes a já citadas, pode-se acrescentar no perfil do abusador sexual, tais como: Geralmente ele procura uma profissão que esteja próxima das crianças. Como estratégia de aproximação, normalmente usa como arma de sedução o suborno material ou afetivo, pois ele tem uma sensibilidade grande em perceber o ponto fraco da sua vítima, explorando a curiosidade infantil e o interesse por atividades lúdicas. Também usa a ameaça para impedir que seja denunciado por suas vítimas. Outra característica é a procura da obtenção da confiança da mãe, como também busca casar ou se unir com mulher que tenha filhos pequenos. Ensina-se às crianças a desconfiarem de estranhos, mas, simultaneamente, a serem obedientes e afetuosas com todos os adultos que cuidam delas. A criança não provoca, não seduz o adulto. “Os adultos que procuram crianças pequenas como parceiros sexuais descobrem rapidamente que as crianças não têm defesas, não se queixam e nem resistem” (Gabel, 1997, p.68, citando Summit). 74 CAPÍTULO V 5. O PROCESSO FAMILIAR INCESTUOSO Os indivíduos que mantém relações sexuais dentro da própria família, excetuando a relação entre os cônjuges, não configuram apenas como abusivos sexuais, mas também como uma quebra do pacto social do qual depende a família, havendo a troca ou ausência de determinadas funções. Assim, este tipo de relacionamento sexual aparece como sinalizador de uma ausência de estruturação dentro deste grupo de pessoas. É importante ressaltar que o conceito de família utilizado no presente estudo, leva-se em conta a “função de parentesco social” entre as pessoas, não importando se existe entre elas um laço de consaguinidade ou afinidade, mas sim, se há existência de um laço emocional que justifique uma relação da qual se esperam funções psico-afetivas relativas a membros de uma família. Destes conceitos, depreende-se que a relação sexual incestuosa é totalmente subjetiva pelos aspectos que a caracterizam: tanto o vínculo familiar, quanto o abuso sexual. Assim, uma melhor compreensão da dinâmica que envolve estes grupos de pessoas pode auxiliar na abordagem desta complexa questão. 5.1- Confusão nos diferentes níveis de dependência Nas famílias que ocorre abuso sexual da criança, as fronteiras entre gerações foram rompidas em certas áreas do funcionamento familiar embora permanecendo intatas em outras. A inversão da hierarquia familiar entre pais e 75 filhos em algumas áreas conduzem à incongruência entre os diferentes níveis de funcionamento familiar, o que é desorientador e perturbador para a criança. No nível do cuidado prático, não parece haver diferença nos padrões das famílias com abuso sexual. Entretanto, no nível sexual, a dependência estrutural da filha ou filho, opõe-se ao seu papel de parceiros pseudo-iguais no inadequado relacionamento sexual intergeracional com o abusador. Em termos de dependência emocional, o pai está em nível de imaturidade semelhante ao da criança. Numa ampla gama de diferentes fatores individuais etiológicos e precipitantes que levam ao abuso sexual, o processo subjacente central está nos conflitos emocionais e sexuais entre os pais, que se encontram presos nessa desigual parceria. Quando uma criança vem em busca de cuidado emocional e recebe uma resposta sexual, mais tarde, essas crianças que sofreram abuso sexual, em sua confusão entre o cuidado emocional e experiência sexual podem apresentar comportamento sexualizado, quando na verdade o que elas querem é o cuidado emocional. Num extremo, os meninos podem crescer e se tornar também pessoas que abusam sexualmente, e as meninas podem repetir a confusão emociossexual tornando-se promíscuas e prostitutas. Importante destacar é o grande número de pesquisas que exploram a questão de indivíduos que foram vítimas de abuso sexual, tornaram-se na adolescência ou vida adulta, perpetradores deste tipo de abuso. Pesquisas indicam que a maioria dos pais “abusivos sexuais” tem na sua própria história experiências de abuso ou negligência na infância. Estudos de caso indicam que pais que foram vítimas de incesto tem inibições em relação a 76 carinho e ternura, além da tendência a repetir a experiência incestuosa da infância com as crianças da sua família (Goodwin,1989). Além da percepção do ciclo “vítima-agressor”, nota-se uma dinâmica específica nestas famílias onde se incluem todos os membros, tornando inadequada a estigmatização nestes termos. Ao levar em consideração a dinâmica familiar, tira-se do foco o problema individual. A família é um “sistema com uma estrutura inconsciente” e, de acordo com este, confecciona regras para manter sua estabilidade. Estas regras definem o funcionamento do grupo familiar ( Berenstein, 1989). No casamento ou união, o conflito sexual é ignorado e não manejado. A incapacidade dos pais de lidar com seus problemas sexuais e emocionais e a introdução de um tabu contra o reconhecimento dessas tensões e conflitos na família, estabelece o cenário que pode manter o abuso sexual da criança por longo tempo na família uma vez que o mesmo já tenha começado. Em um processo secundário da manutenção do abuso, a criança se mantém aprisionada no abuso sexual com o pai, com base nas ameaças paternas, sejam físicas ou emocionais, ou ambas. Sentimentos mútuos de culpa e medo da punição impedem a revelação por parte de qualquer um deles. Por outro lado, o desenvolvimento da confiança e proximidade emocional entre mãe e filha fica bloqueado por sentimentos de rejeição ou culpa, apesar de uma possível pseudo proximidade entre ambas. Tal atitude impede o claro reconhecimento do abuso sexual e faz com que a criança não receba ajuda dessa mãe. O segredo se une a toda uma confusão de hierarquias nos diferentes níveis de cuidado prático, cuidado emocional e parceria sexual entre os pais, e entre cada progenitor e a criança. É o caos! 77 A confusão sistêmica de hierarquias nos diferentes níveis funcionais em um sistema de segredo, une os membros da família em um sistema conivente, em que o abuso sexual pode perdurar por muitos anos. 5.2 - O padrão familiar Quando na revelação do abuso e subsequente tratamento, foram detectados diferentes padrões de relacionamento nas famílias com abuso sexual da criança. Nela foi identificado diferentes funções do abuso sexual, que opera como mecanismo evitador ou regulador do conflito nessas famílias (Furniss, 2002, p.51). Obviamente, é sabido que fatores psiquiátricos e psicológicos individuais influenciam os relacionamentos interpessoais dentro da cada família. Uma ampla gama de fatores de personalidade e diferentes experiências de vida dos pais, e a grande variedade de circunstâncias em que as unidades familiares se estabelecem, agem como fatores etiológicos e precipitantes na formação do padrão de relacionamento de abuso sexual da criança na família. A razão individual para os pais se tornarem pessoas que abusam, ou para as mães serem incapazes de proteger, podem ser muito variadas. Ambos podem ter sofrido abuso sexual quando crianças. A experiência individual de vida dos pais faz com que muitas vezes seja compreensível porque eles reagem de tal modo e porque escolheram um ao outro como parceiros, frequentemente recriando o padrão familiar de suas próprias famílias de origem. A descrição do padrão familiar com a respectiva função do abuso sexual da criança como mecanismo “evitador de conflito” ou “regulador de conflito” é essencial para que os terapeutas entendam o processo familiar na intervenção (Furniss,p.52) 78 A pergunta não é por que e qual a razão individual surgiu o presente padrão de relacionamento, mas sim, como é que esse padrão funciona. Ou seja, como é que funciona esse padrão mantenedor, que sustenta o abuso sexual prolongado da criança naquela família ( Furniss, 52). Na complexidade da organização familiar, nenhuma tipologia jamais faria justiça à singularidade das famílias reais. No entanto, a distinção entre evitação do conflito e regulação do conflito na família organizada e desorganizada tem importantes implicações práticas, que ajudaram os terapeutas a se orientar nas complexidades da intervenção nas famílias com abuso sexual da criança. 5.2.1- A família organizada 5.2.1.1- Dependência emocional e imaturidade do pai A experiência clínica, revela que o comportamento de um pai agressivo e autoritário em relação a uma mãe aparentemente fraca e silenciosa não reflete, de modo algum, a estrutura familiar de governo e de dependência emocional (Furniss,p.52). O trabalho no padrão subjacente de dependência emocional, pode revelar uma constelação inversa, com um pai emocionalmente frágil e uma mãe bem mais fortalecida e independente em termos emocionais. O esteriótipo do pai independente e forte, o “gorila que toma para o sexo não apenas a sua esposa mas também sua filha”, não se sustenta. Homens verdadeiramente independentes e autônomos não se voltam para as crianças em busca de gratificação sexual. Os pais, nas famílias em que o abuso sexual se prolonga por muitos anos, frequentemente parecem ser emocionalmente imaturos e profundamente dependentes de suas esposas para cuidado emocional. Juntamente com 79 imaturidade emocional, os pais geralmente fazem exigências sexuais normais ou excessivamente adultas, ou pelo menos as parceiras percebem como se fosse assim. 5.2.1.2 - O papel da mãe como progenitor não abusivo Nas famílias em que acontece abuso sexual da criança, mães geralmente têm o papel de “não abusivo”. Nesse papel, a função protetora é crucial no abuso sexual prolongado. Apesar da aparente dominância paterna, as mães podem determinar a cultura familiar em termos da qualidade dos relacionamentos emocionais na família. Isso inclui a maneira como os assuntos sexuais e emocionais são falados na família. Em famílias rígidas e moralistas, as mães geralmente compensam uma atitude de moralista ou punitiva em relação à sexualidade com um cuidado compulsivo. Em um nível prático, essas mães geralmente cuidam perfeitamente de seus filhos e parecem ser muito próximas e carinhosas. Em muitas áreas, elas são na verdade mães competentes e cuidadosas. A distância na relação mãe-criança emerge quando se trata das questões de proteção contra o abuso sexual. Quando as crianças tentam indicar abertamente que está acontecendo abuso sexual, as mães ou desconsideram essas declarações ou não levam a sério suas filhas e filhos, embora possam tomar medidas para desmentir tais alegações. Em dois casos, como afirma (Koshina, apostila p.16), as filhas haviam contado às mães sobre o abuso sexual cometido por seus pais durante muitos anos. As mães em vez de tentarem verificar a situação com seus maridos, levaram as meninas ao médico da família. Em um dos casos, o médico rotulou a menina de “ciumenta”, no outro, ele declarou que as alegações eram “fantasias”. Em nenhum dos casos a mãe confrontou o pai. As visitas do médico serviram, em ambos os casos, para evitar o esclarecimento da suspeita de 80 abuso sexual dentro da família, buscando um aliado profissional fora da família para confirmar a negação. O abuso sexual da criança também acontece em famílias com um relacionamento mãe-filha próximo e protetor. Contudo, nesses casos, o abuso sexual não continuará através dos anos. Essas mães geralmente revelam, elas mesmas, o abuso. Elas captam os sinais de abuso sexual por parte das crianças, que falam a respeito e são acreditadas. Ou elas reconhecem mudanças no processo familiar, quando os maridos e filhos começam a se comportar de modo estranho. Quando detectam indicadores de abuso sexual ou descobrem, em flagrante, elas levam a sério o que viram ou ouviram e agem de acordo com isso. Elas geralmente tomam medidas para proteger a criança e induzem uma revelação. 5.2.1.3 - A posição da criança Nas famílias em que ocorre o abuso sexual prolongado, as crianças não se sentem emocionalmente compreendidas nem adequadamente cuidadas por qualquer um dos pais. Depois das ameaças paternas, algumas vezes de morte, as crianças se submetem às exigências sexuais inadequadas dos pais, porque estão com medo de serem castigadas por ambos os pais caso tentem revelar. Elas percebem suas mães emocionalmente rígidas e distantes, ou sentem que elas não iriam acreditar, e nem protegê-las do abuso paterno. Crianças muitas vezes tentaram revelar e muitas apelaram constantemente em vão, pela proteção do progenitor não-abusivo. Algumas das crianças, jamais haviam se sentido próximas às mães, e haviam se voltado para o pai em busca de cuidado emocional, sendo que o pai traiu sua confiança ao abusar sexualmente delas (Furniss,p.54). 81 Crianças que sofreram abuso sexual, os sentimentos de ser especial, de rivalidade e triunfo podem chegar muito perto de uma extrema culpa, sentimentos de total desvalia e sentimentos de ser suja e não amada. A atuação e punição autodestrutiva, ao repetir o padrão abusivo em outros relacionamentos, é frequentemente uma expressão do apego continuado, forte e destrutivo, em relação à pessoa que abusa. Relacionamentos extremamente danosos podem ser relacionamentos muito fortes e importantes. O apego à pessoa que abusa pode, apesar do extremo abuso sexual, ser o vínculo mais importante na vida da criança. “Por que eu era tão má que meu pai tinha que me bater e abusar sexualmente de mim quando criança? “ Eu odeio meu pai, mas pelo menos uma vez eu quis ser vista e apreciada por ele”. Disse uma mulher com quase cinquenta anos (Gabel,1977, p. 127). O tabu familiar contra falar sobre abuso sexual evita que as crianças possam encontrar ajuda dentro ou fora da família. “Todas as crianças em terapia, em certo estágio da terapia, ficam com raiva da pessoa que a abusou, assim como todas culpam suas mães, por não tê-las protegido do abuso e pela posição de desamparo e desespero que tiveram de suportar na família, sem poderem falar com ninguém sobre a sua experiência de abuso sexual...” (Furniss, p.54). 5.2.1.4 - Exemplos clínicos Pela ótica de Furniss (2002,p.25), selecionou-se os exemplos clínicos abaixo, objetivando dessa forma, melhor compreensão sobre a dinâmica da família sexualmente abusiva da criança. 82 • A família M. P. M., 33 anos de idade, engenheiro naval, desde tenra infância até a morte da mãe, há cinco anos atrás, havia tentado ser um filho amoroso e agradar à sua mãe imensamente gorda. Entretanto, o que quer que fizesse estava sempre errado aos olhos dela, que o castigava conforme lhe dava vontade, primeiro ficando em silêncio e ignorando-o, e depois explodindo subitamente em tapas e gritarias ferozes. Embora parecesse que P.M. jamais agradasse a mãe, ela não permitia que ele a deixasse para brincar com outras crianças. Ela o mantinha frequentemente em casa, sob seu olhar eternamente assustador. Não obstante, ele continuava em vão tentar agradá-la e obter seu reconhecimento, sendo-lhe útil e dando-lhe com freqüência presentes caros. Mas o simples fato de sua ausência ou presença, poderia levá-la a um súbito ataque furioso. P. M. vivia em um permanente estado de medo e insegurança, como também constantemente se sentia culpado em relação à mãe. O pai de P.M. era um homem bom, mas muito fraco. “Ele era um verdadeiro escravo de minha mãe e tinha que fazer tudo o que ela queria. Ela o obrigava a nos acordar (filhos), durante a noite, para nos castigar por aquilo que tínhamos feito a ela durante o dia.” Aos 11 anos de idade, P.M. fugiu de casa pela primeira vez. Aos 16, ele se tornou marinheiro e escapou da família. Afirma P.M., “em casa, jamais recebi nem por uma vez na vida, um lampejo de amor e afeição real por parte de minha mãe.” Como marinheiro, ele “cometeu as loucuras da mocidade” nos portos do mundo, mas sempre acabava voltando desapontadoras. para a mãe, embora essas férias fosse sempre 83 Aos 22 anos, P.M. conheceu sua esposa, A., que na época tinha um filho de três anos de idade e uma menina ainda bebê. A., hoje com 32 anos de idade, vinha de uma família grande, muito religiosa, de uma vila rural no sul. Sua família era pobre, e A. estava acostumada a trabalhar duro desde criança. Se pai era alcoolista e desde aos nove anos de idade, A. tivera que assumir tarefas adultas na família. Embora se pai fosse rude, ela ficava ao lado dele, mas supercompensava seu ódio por seu violento alcoolismo adotando idéias morais rígidas. Aos 17 anos, ela ficou noiva de um rapaz da vila, engravidou, dando à luz a um menino. O noivo rompeu o compromisso e foi embora, retornando dois anos mais tarde prometendo casamento, e, A. engravidou novamente. O relacionamento não durou e depois do nascimento da segunda criança, A. mudou-se com seus filhos para uma cidade grande e foi trabalhar como ajudante de cozinha. Lá conheceu P.M. e casou com ele. Depois do casamento, P.M. voltou para o mar por três anos e então estabeleceu-se em terra firme. Nasceram dois meninos desse casamento, e a trabalhadora A. controlava a casa de modo muito matriarcal, cuidando bem dos filhos e do marido. Eles eram considerados, na vizinhança, pessoas trabalhadoras, corretas e bons pais para seus filhos bem-vestidos e bem-educados. P.M. relatou: “Desde que encontrei A., tive uma família de verdade e me senti seguro”. Como o pai de P.M., era “um escravo da mulher”, P.M. também havia sido um escravo de sua mãe. Quando conheceu A., descobriu nela, como esposa, uma figura de mãe moralmente rígida, mas carinhosa, que cuidava dele e dos filhos com a mesma compulsão maternal. A. sempre cuidara das pessoas, especialmente de seu pai, e P.M. procurara alguém que cuidasse dele. Eles estabeleceram um relacionamento complementar pseudomãe-filho bastante estável. No nível sexual, eles também tinham necessidades diferentes. Durante a terapia, A. revelou que P.M. sempre fora, em sua opinião, “supersexuado”. 84 O abuso sexual entre P.M. e sua enteada, E., desenvolveu-se lentamente. Começou quando A. mandara P.M. e as crianças, incluindo E., com 8 anos de idade, tomar banho juntos. O “pai” e a enteada ensaboaram e lavaram um ao outro, e essas ações tornaram-se progressivamente mais sexualizadas pelo “pai”. E., quando estava com 9 anos de idade, já havia sido submetida a um completo intercurso sexual. P.M. fez várias tentativas de parar, mas ao mesmo tempo criava situações que levavam à continuação do abuso. Ao tomar banho, ele deixava a porta do banheiro aberta, e era incapaz de resistir quando E. entrava nua no banheiro, enquanto ele estava no banho. Conforme E. se aproximava da puberdade, P.M. tornava-se cada vez mais obcecado e sexualmente envolvido com ela, e usava de força em várias ocasiões. O relacionamento tornou-se mais tenso quando E. começou a sair com rapazes da idade dela. O abuso terminou quando ela estava com quase 14 anos de idade, e contou sobre o abuso a uma pessoa que trabalhava no clube de jovens. A revelação do abuso ameaçou a sobrevivência da família e do casamento. A., a mãe, ficou extremamente perturbada e afirmou que não sabia nada sobre o abuso. • Círculos viciosos interligados na família M. A confusão de hierarquia intergeracionais e o padrão de relacionamento na família M. conduziram o seguinte processo que manteve o abuso sexual acontecendo: Quanto mais P.M. se envolvia no abuso sexual com E., mais culpado ele se sentia e mais se submetia à esposa. A Sra. A.M. por sua vez, assumia uma atitude moralista em relação ao marido e cuidava dele de modo compulsivo, o que permitia que ela rejeitasse 85 suas exigências sexuais. P.M, por sua vez, passou a se envolver mais com a “filha”. O segundo círculo vicioso estava interligado com o primeiro: Quanto mais E. queria ser compreendida pela mãe, mais se sentia rejeitada. Ela então aproximou-se do pai em busca de cuidado emocional e o pai usou a confiança e desejo emocional da filha para abusar dela e satisfazer seus desejos sexuais. No processo, o P.M se tornou mais estreitamente ligado à filha em um sistema de segredo de pseudoparceria que afastou ainda mais a filha da mãe. Isso fez com que E. se sentisse mais culpada em relação à mãe, mas desejando estar mais perto dela, tentou distanciar-se do pai, e não foi compreendida pela mãe. 5.2.2 - A família desorganizada O padrão familiar básico mantenedor do abuso sexual na família desorganizada é semelhante ao da família organizada, mas existem algumas diferenças importantes. O abuso sexual da criança, na família organizada, é a expressão de um problema focalizado muito específico, em uma família que de outra forma demonstra um funcionamento familiar global satisfatório ou bom. A família desorganizada tem um funcionamento familiar global bem pior, e os pais e filhos parecem estar em nível emocional pseudo-igual. Muitas vezes, uma das crianças assume o papel de organizador da família e cuidador emocional dos pais e irmãos. Como consequência da mútua dependência e privação emocional de ambos os pais, essas famílias não possuem fronteiras 86 emocionais intergeracionais adequadas. O pai é mais abertamente controlador e muitas vezes fisicamente violento. Enfermidade, má formação física ou deficiência física podem tornar o pai também mais dependente externamente de sua esposa como figura parental, para cuidados práticos. De modo típico, a mãe é mais permissiva e menos moralista em sua atitude. O abuso pode ser mais ou menos conhecido por outros membros da família. O tabu para comunicar o abuso assume a forma de um conluio de toda a família contra o mundo externo. A família muitas vezes é conhecida, por outras razões, nos serviços educacionais, sociais ou na polícia, e muitos outros profissionais já podem estar envolvidos. A família é muito mais uma família multiproblema com claro conflito conjugal, e mais de uma criança geralmente está envolvida no abuso. Meninos e meninas podem sofrer abuso sexual simultâneamente. Pode inclusive haver um elemento de competição pela atenção entre as diferentes crianças que sofrem abuso. O pai muitas vezes começa a abusar das crianças menores quando uma criança mais velha deixou a casa. Isso é o contrário do que acontece na família organizada, onde encontramos um relacionamento muito especial e emocionalmente carregado entre o pai e a criança que sofre abuso, com uma forte reação de perda quando essa criança deixa a casa. • A família S Quando R., de 27 anos de idade, trouxe seu filho de 7, D., para o hospital, emergiu uma longa história de enfermidades menores desde o nascimento. R. veio acompanhada de sua mãe, que falava por todos e falava como se ela fosse a mãe de D. A mãe e a avó competiam uma com a outra pela última palavra e logo ambas estavam falando sobre como o pai de R. abusara sexualmente dela durante quartoze anos. 87 O abuso sexual começara quando R. tinha quatro anos de idade. Seu pai era cego, desempregado, e estava confinado em casa. Ele era um homem amargo, impaciente e violento. Havia constantes brigas e problemas em casa, e R. acostumou-se a severos castigos físicos. Depois de uma descoberta inicial do abuso, pela mãe, quando R. estava com 5 anos, a mãe passou a levar todas as três filhas com ela quando precisava sair de casa. Isso durou apenas certo tempo, e logo R. foi novamente deixada sozinha em casa com o pai. Mais tarde, na terapia, R. disse: “Minha mãe sabia, mas não queria enxergar. Eu nunca pude falar com ela sobre isso.” R. queixou-se de que sua mãe jamais quis ouvir seus problemas. Quando R. estava com oito anos, comprou presentes para a mãe com o seu próprio dinheiro, porque sentia que a mãe precisava de sua ajuda: “Eu sou como minha mãe, sempre pronta a cuidar dos outros, mas jamais de mim.” O abuso sexual acontecia de noite. O pai de R. entrava em seu quarto quando ela estava dormindo e a forçava ao intercurso. Muitas vezes ela a amordaçava para que ela não pudesse gritar. Quando R. ficou mais velha, fugia para ficar com seu avô materno, a quem era muito apegada. Ela revelou o abuso sexual, mas o avô não acreditou nela e sempre a trazia de volta para casa. Quando ela não conseguiu também que seu irmão a ajudasse, foi à polícia, que a trouxe para casa, aceitando a negação fraudulenta da alegações de R. por parte do pai. Quando R. estava com nove anos, fugiu de casa várias vezes. Desta vez a polícia acreditou nela e seu pai foi mandado para a prisão sob a acusação de agressão sexual. Depois que foi libertado, a mãe de R. o levou imediatamente de volta para casa. Durante a entrevista, a mãe de R. explicou: “Eu quis me divorciar durante anos. Mas não podia fazer isso. Ele era cego, não é? Eu casei com ele por compaixão e ele precisava de mim.” 88 Mais tarde, o pai teve intercurso com as duas irmãs mais jovens de R. Ela relatou, amargamente, que a caçula era a favorita do pai e que apreciava o abuso. Havia um sentimento de rivalidade e R. nem mesmo tinha quaisquer ganhos secundários com o relacionamento abusivo do pai. Aos 18 anos, R. fez uma séria tentativa de suicídio e passou alguns dias no hospital. Somente então, depois de um longo período de quatorze anos de relacionamento incestuoso, foi que o pai acabou sentenciado a uma pena mais longa de prisão, onde morreu pouco tempo depois. Enquanto ainda estava no hospital, R. conheceu um homem da idade do pai. Ela casou com ele em poucas semanas, para não precisar voltar para casa e morar lá novamente. O casal vivia na mesma rua que a mãe de R. morava, e sua vida familiar acabou sendo completamente dominada por ela. Logo depois de ter dado à luz a um menino e quando estava grávida novamente, R. divorciou-se do marido. Ela teve vários relacionamentos caóticos com homens, mas seu ex-marido continuou uma permanente figura-pai-marido ao fundo. Depois do divórcio, R. e seus dois filhos foram morar com a avó materna. O padrão familiar de total individuação e a completa confusão de fronteiras intergeracionais eram ilustrados pelas crianças, que chamavam tanto a mãe quanto a avó de “mamãe”. 5.3 - Função familiar do abuso sexual da criança 5.3.1- Abuso sexual da criança como evitação do conflito Nas famílias que evitam conflitos, encontra-se uma enorme discrepância entre a auto-imagem familiar e a realidade da qualidade dos verdadeiros relacionamentos familiares (Furniss, p.58). 89 As famílias que evitam conflitos apresentam-se ao mundo externo como funcionando bem, e são governadas por regras morais familiares rígidas. O abuso sexual da criança serve como uma maneira de negar qualquer tensão e desequilíbrio emocional e sexual entre os parceiros conjugais. Para o mundo externo, todos os membros da família parecem aceitar e submeter-se ao rígido código moral, o que pode estar refletido em um ativo envolvimento nas atividades da igreja. A família frequentemente é muito respeitada na vizinhança e bem-sucedida em outras áreas da vida. Todos os membros da família entram em uma conspiração contra qualquer reconhecimento aberto do abuso, que, como clara realidade familiar, seria totalmente inaceitável para qualquer membro da família. A atitude punitiva e moralista em relação ao sexo e a conversar sobre assuntos sexuais, e a simultânea dependência emocional e rejeição sexual entre os parceiros conjugais, alimentam o processo conectador de evitação do conflito. O relacionamento sexualmente abusivo serve para conservar a divisão entre os aspectos emocional e sexual do relacionamento conjugal e entre os aspectos de cuidados emocionais e práticos do relacionamento entre a mãe e a criança. O abuso sexual encobre o desequilíbrio da dependência emocional na casamento e remove a pressão do precário relacionamento sexual entre os pais. Os pais são incapazes de suportar um claro conflito conjugal e sexual. Os relacionamentos conjugal e familiar são idealizados, o que impede a adequada solução dos problemas. Os problemas do casal precisam ser negados para ser mantida a aparência de harmonia conjugal perfeita. A evitação do problema de qualquer conflito sexual conjugal claro conduz à triangulação da criança. A delegação do relacionamento sexual coloca a criança em uma aliança sexual de pseudo-adulta com o pai e que lhe dá o status de 90 pseudoparceria no nível sexual, do qual a mãe é excluída pelo segredo. Ao mesmo tempo, a filha mantém um status de criança conjuntamente aceito, no nível do cuidado prático. O papel secreto de pseudo-parceria sexual da criança resulta em uma perturbadora vitimizacão. Ao mesmo tempo, lhe dá uma posição central na família , sobre a qual a família, com sua imensa e rígida moralidade, jamais comunica. 5.3.2 - Abuso sexual da criança como um regulador do conflito Nas famílias que regulam o conflito, o conflito conjugal e familiar é claramente visível e reconhecido, e não há muita discrepância entre a autoimagem das famílias e a realidade da qualidade de seus relacionamentos familiares (Furniss,p.60). Nessas famílias, existe um conflito familiar claro e agressivo. O relacionamento sexualmente abusivo ajuda a diminuir o conflito conjugal que poderia levar à ruptura familiar. A criança submete-se ao pai com conhecimento relativamente mais claro. Isso não significa que o abuso seja comentado claramente na família. Toda a família conspira para manter o segredo em relação aos de fora. Além da imediata função sexual, o abuso oferece uma saída para a agressão do pai decorrente de seus problemas pessoais. Na família que regula o conflito, o abuso sexual não constitui a maior ameaça à família. Embora o abuso nunca possa ser discutido abertamente, ambos os pais podem secretamente aceitar o papel da criança ou crianças que são submetidas a abuso sexual. O conluio entre os pais aumenta a dependência do pai em relação à esposa e ela, por sua vez, tolera o abuso ou pode até mesmo facilitá-lo. Isso serve, apesar de todos os claros e violentos conflitos, para manter o pai emocionalmente dependente e firmemente ligado à família. Na família que regula o conflito, o abuso sexual serve para estabilizar os picos do violento conflito conjugal que ameaça a coesão da família. 91 5.3.3 - Diferentes reações à revelação e ao tratamento A revelação pública do abuso sexual da criança na família organizada e que evita o conflito provoca um imediato desastre familiar. A discrepância geralmente imensa e evidente entre a proclamada auto-imagem familiar de elevados padrões morais dos relacionamentos familiares e a realidade dos verdadeiros relacionamentos cria uma crise máxima no momento da revelação, que ameaça provocar uma imediata desintegração familiar. As mães geralmente vêem como seu dever pedir o divórcio e o pai pode ameaçar suicídio. Nas famílias organizadas que evitam o conflito, ações drásticas de violência, auto-agressão, fuga, ou o desenvolvimento de seus sintomas psicossomáticos por parte do pai na revelação inicial são uma atuação para evitar enfrentar os problemas reais, assim como são os pedidos imediatos de divórcio. Os problemas conjugais realmente precisam ser tratados e o divórcio pode, no final, ser a solução adequada. No entanto, pedidos imediatos de divórcio no momento da revelação são sempre reações ao golpe contra a autoimagem da família depois da revelação. Ações legais imediatas por parte das mães têm a função de aliviar seu agudo sentimento de culpa e choque. Depois de algumas semanas ou meses, todavia, nós muitas vezes encontramos mães, que haviam iniciado imediatos procedimentos de divórcio, unindo-se em segredo com seus maridos novamente. Tendo em vista a crise familiar inicial máxima, o momento da revelação não é o momento de falar a respeito de divórcio. Isso deve acontecer mais tarde no tratamento. Depois da crise inicial, as famílias organizadas e evitadoras de conflito muitas vezes são capazes de enfrentar o problema familiar fundamental, na terapia, e de mudar os relacionamentos familiares. 92 Nas famílias desorganizadas e reguladoras de conflito, a revelação de abuso sexual da criança para o mundo externo não conduz a uma crise de magnitude comparável aquela família organizada e evitadora de conflito. Não há uma grande lacuna entre a auto-imagem da família e a realidade dos verdadeiros relacionamentos e nem o mesmo grau de segredo dentro da família. Não é a revelação do abuso sexual e sim a mudança nos relacionamentos familiares e a introdução de fronteiras emocionais e sexuais e intergeracionais durante o tratamento subsequente que induz a crise familiar e ameaça as fundações sobre as quais a família está construída. Serviços sociais e outras agências muitas vezes já estiveram envolvidos nos problemas familiares e o novo profissional pode se associar a uma grande rede profissional já existente. As famílias desorganizadas e reguladoras de conflito frequentemente integram novos profissonais como “tios” e “tias”, numa rede familiar mais extensa. Esses profissionais são jogados uns contra os outros e se encontram em discussões de caso surpreendentes grandes, muitas vezes assistidas por 10-20 profissionais bem qualificados e altamente experientes. Essas discussões de caso geralmente espelham o processo familiar da família desorganizada e reguladora de conflito, em que ninguém tem permissão para ser eficiente e tampouco tem permissão para partir. Enormes quantidades de café são consumidas, normalmente às expensas dos serviços sociais, mas nada muda na família por meses ou anos. Essas famílias são muitas vezes campeãs mundiais em conseguir que grandes redes profissionais sejam acionadas sem lhes permitir obter qualquer efeito nos relacionamentos familiares e no funcionamento familiar. A maior crise nas famílias desorganizadas e reguladoras de conflito é desencadeada quando as redes profissionais deixam de se comportar como “tias” ou “tios” em uma família ampliada, e quando elas cessam de espelhar o processo familiar. Quando a rede profissional consegue estabelecer fronteiras apropriadas dentro da rede e permite que alguns colegas se retirem e que 93 outros assumam clara responsabilidade e se tornem efetivos, as famílias desorganizadas e reguladoras de conflito reagem com máxima crise. Elas tentam, muitas vezes com sucesso, parar a terapia, de modo a evitar mudanças a qualquer custo. A família M, foi um exemplo de família organizada e evitadora de conflito. A família S, sendo uma família desorganizada e reguladora de conflito, não era tão moralista, rígida e cheia de segredos como a família M. Ao contrário, eram mais abertos e o pai era mais superficialmente explorador: quando R. não estava mais disponível para abuso sexual, uma irmã logo teve que tomar seu lugar. Em termos de prognóstico a longo prazo para terapia e mudança nos relacionamentos familiares, a família organizada e evitadora de conflito teria um prognóstico muito melhor para a reabilitação do que a família desorganizada e reguladora de conflito (Furniss,p.62). 5.4- Abuso sexual intrafamiliar enquanto sintoma Através dos diversos casos pesquisados de abuso sexual intrafamiliar, também pode-se perceber um outro padrão de comportamento na família abusiva sexual da criança. O fato observado, é que a relação sexual incestuosa denunciada, em muitas vezes perdia a importância para outros fatores, que eram considerados como problema para a família. Assim, o que se observou durante as pesquisas, é que a família não parece desestruturar-se pela ocorrência de um abuso sexual entre os seus membros, nesse caso a criança, mas pelo contrário, o abuso sexual emerge num contexto familiar desestruturado entre vários outros relacionamentos não saudáveis. De alguma forma, a relação sexual parece denunciar um problema, que nem sempre é representado por ela mesma. Minuchin e Cohen enriquecem esta questão quando afirmam: 94 Abuso da criança, abuso sexual, violência familiar, mulheres espancadas, o abandono dos idosos – esses são os sintomas dos relacionamentos que se perderam. (Minuchin,1995). O incesto ocorre em famílias nas quais existe uma colaboração consciente ou inconsciente, dos outros membros da família. O incesto pode ser considerado, assim, o sintoma de uma crise da estrutura familiar. (Cohen, 1993). 95 CONCLUSÃO Em nosso estudo procurou-se verificar se na família sexualmente abusiva da criança existem padrões específicos de comportamento. Face aos resultados obtidos através de inúmeras pesquisas bibliográficas conclui-se: Efetivamente, existem padrões específicos de comportamento na família que pratica o abuso sexual da criança. Estes por sua vez operam como mecanismo “evitador de conflito” ou “regulador de conflito” nessas famílias. Nas famílias onde o abuso sexual da criança opera como mecanismo “evitador de conflito”, observou-se um padrão específico de “família organizada” que se distingue por: um funcionamento familiar global satisfatório ou bom; enorme discrepância entre a auto-imagem familiar e a realidade dos relacionamentos; casamento mantido idealizado; relacionamento incestuoso altamente secreto; tabu quanto a reconhecer o abuso sexual ou qualquer problema sexual; pais contra uma criança; apenas uma criança, num relacionamento altamente especial e apenas um gênero envolvido. Nas famílias onde o abuso sexual da criança opera como mecanismo “regulador de conflito”, observou-se um padrão específico de “família desorganizada” que se distingue por: um funcionamento familiar global prejudicado; pequena discrepância entre a auto-imagem familiar e a realidade dos relacionamentos familiares; claro conflito conjugal, o pai é mantido na família através do abuso sexual; segredo é relativamente conhecido. Algumas vezes o incesto é reconhecido, entretanto desconsiderado e não se fala a respeito; tabu quanto ao revelar o abuso sexual publicamente; toda a família contra a criança e o mundo externo; competição entre irmãos no relacionamento abusivo e meninos e meninas muitas vezes envolvidas. 96 BIBLIOGRAFIA ABERASTURY, A. La paternidad. Buenos Aires, Kargieman, 1984. ABRAPIA – Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e a Adolescência, Rio de Janeiro, 2000. BERENSTEIN, I. Psicoanálisis de la estrutura familiar. Buenos Aires, Paidos, 1989. 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O pé da árvore de natal 102 ATIVIDADES CULTURAIS