Sonia Maria Amat
VIOLÊNCIA SEXUAL:
PADRÕES ESPECÍFICOS DE COMPORTAMENTO NA FAMÍLIA
SEXUALMENTE ABUSIVA DA CRIANÇA
Orientadora:
Maria da Conceição Maggioni Poppe
Rio de Janeiro
2004
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
PROJETO VEZ DO MESTRE
VIOLÊNCIA SEXUAL:
PADRÕES ESPECÍFICOS DE COMPORTAMENTO NA FAMÍLIA
SEXUALMENTE ABUSIVA DA CRIANÇA
Trabalho monográfico apresentado como
requisito parcial para obtenção do Grau
de Especialista em Terapia de Família
3
AGRADECIMENTOS
Tentarei expressar adequadamente minha gratidão a todos que, por suas
colaborações permitiram a realização deste trabalho.
Pacientes e clientes – com os quais dividi o espaço da psiquiatria, da
psicanálise e agora da terapia familiar, sempre me propuseram reflexões,
crescimento compartilhado.
Autores - que me acolheram na beleza de suas palavras, grande
sabedoria, instantes significativos.
Professora Maria da Conceição Maggioni Poppe – pela firmeza e
sensibilidade ética; talento afetivo-teórico.
Professora Fabiane Muniz da Siva – trocas construídas no apoio e
incentivos.
Professora Marta Relvas – receptividade, possibilitando construções.
Alunos – questionamentos instigantes, entendimento nos caminhos do
saber, torcida incondicional.
Eliana Nazareth – minha psicanalista, sutilezas, aprendizagem no campo
do existir.
Iris Maria Carvalho - Bibliotecária da SPRJ – auxílio precioso na busca
bibliográfica.
Minha família – bailando sempre nos sabores do afeto.
4
‘“ Pense na coisa mais baixa do mundo.
Seja o que for, sou mais baixa ainda’.
É este o lema da vítima de incesto.”
Forward e Buck
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RESUMO
A possibilidade da transgressão da lei máxima que rege a nossa cultura é sem
dúvida um fator inquietante. O incesto ou a violência sexual intrafamiliar, ao
mesmo tempo que atrai à atenção da sociedade, é também um tema que causa
resistência e reflexões por abarcar um desejo presente no ser humano.
Segundo os estruturalistas, a interdição do incesto é um fator cultural e
necessário para o desenvolvimento psico-social do indivíduo. Para a
Psicanálise, a não atuação dos desejos incestuosos, favorece a estruturação do
aparelho mental em id, ego e superego. O presente estudo objetiva ampliar
uma compreensão sobre o referido tema. Assim, esforça-se por mostrar se na
família que pratica o abuso sexual da criança existem padrões específicos de
comportamento, já que o incesto abarca os conceitos família e abuso sexual
onde esta interdição não ocorreu. Nas literaturas selecionadas para o estudo,
verificou-se um alto grau de parentesco entre as pessoas diretamente
envolvidas na relação sexual incestuosa. Nesta relação também foi percebido
que existe um envolvimento , direto ou indireto, de todos os membros da
família, e que a violência do incesto não pode ser traduzida apenas pela relação
sexual, mas principalmente pela sua dinâmica afetiva e a não diferenciação das
funções familiares, que é um dos fatores carreantes desta dinâmica complexa,
tendo como principais características, a confusão e a perversão de suas
funções, que se distinguem como sendo os padrões específicos de
comportamento que operam como mecanismo evitador e regulador do conflito
nessa família que pratica o abuso sexual da criança.
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METODOLOGIA
Na tentativa de alcançar o objetivo deste estudo, a pesquisa estruturouse da seguinte forma:
Inicialmente, realizou-se uma vasta busca bibliográfica referente ao tema
escolhido, visto que o universo da pesquisa se propôs através das diversas
referências bibliográficas analisar se na família sexualmente abusiva da criança
existiam padrões específicos de comportamento. Caso afirmativo, como
processaria tal dinâmica familiar?
Para melhor compreensão do abuso sexual intrafamiliar, mergulhou-se
no referencial teórico de teorias biológicas, sociais e psicológicas que
explicassem a finalidade da proibição do incesto. Dentre esses referenciais
cabe citar a visão antropológica de Lévi-Strauss.
Através de Cohen & Gobbetti, no que tange a lei científica, buscou-se o
saber do Código Civil Brasileiro. Conceituações sobre abuso sexual
intrafamiliar, pesquisou-se em diversas fontes incluindo em especial, a
Organização Mundial de Saúde (OMS), o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA).
Para verificar a dimensão da problemática do abuso sexual intrafamiliar
em termos quantitativos, através dos vários autores utilizou-se dados coletados
de diversas fontes nacionais e estrangeiras, tais como: OMS, Centro de
Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), Associação
Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA),
Children Service Division e outros.
7
A respeito dos abusos sexuais na infância, priorizou-se o referencial
teórico da Psicanálise, centrada nos conceitos de Freud, e seus seguidores
Ferenczi e Klein.
Em continuidade a pesquisa, buscou-se entender o processo individual
da criança que é abusada sexualmente por um membro de sua família, (em
geral o pai e padrasto), o qual ela é ensinada a amar, respeitar e conviver. Para
o estudo elegeu-se em primeira instância Furniss, Gabel, Winnicott e o Centro
de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA).
Objetivando melhor
compreensão do autor da violência sexual
intrafamiliar: o pedófilo, buscou-se através das obras de Freud e Cohen,
entender a problemática psicossocial do incesto desde o período Paleolítico até
ao Contemporâneo.
Ainda na compreensão da dinâmica psíquica do abusador sexual
buscou-se além Cohen, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
(DSM IV). Através de Gabel, que perpassou pela pesquisa de Conte, Wolf e
Smith, se selecionou algumas respostas de um questionário referente a uma
amostragem de vinte adultos abusivos sexuais da criança, onde os mesmos
foram interrogados sobre: o critério de escolha da vítima, a forma pela qual se
engajam e mantêm as crianças nas situações de abuso sexual.
A apresentação dos exemplos clínicos bibliográficos, no presente
trabalho, limitou-se aos dados necessários para o entendimento das questões a
serem estudas, excluindo dessa forma informações desnecessárias à reflexão
proposta do problema levantado.
Finalizando, buscou-se compreender principalmente pela ótica de Gabel
e de Furniss, o processo familiar incestuoso, onde detectou-se a existência de
8
padrões específicos de comportamento na família que pratica o abuso sexual
da criança, confirmando dessa forma a verificação da hipótese apresentada.
A
existência
dos
diferentes
padrões
encontrados
nas
famílias
sexualmente abusivas da criança originaram-se de respostas das famílias à
revelação e subsequente tratamento. Nelas, foi identificado diferentes padrões
do abuso sexual, que operam como mecanismo evitador e regulador do conflito.
Nas famílias onde o abuso sexual opera como mecanismo “evitador de
conflito”, observou-se um padrão específico de “família organizada”. Nas
famílias onde o abuso sexual opera como mecanismo “regulador do conflito”,
observou-se um padrão específico de “família desorganizada”.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
10
CAPÍTULO I
16
FUNDAMENTOS E CONCEITOS
16
CAPÍTULO II
27
OS ABUSOS SEXUAIS NA INFÂNCIA
27
CAPÍTULO III
36
O PROCESSO INDIVIDUAL DA CRIANÇA
36
CAPÍTULO IV
62
O AUTOR DA VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR
62
CAPÍTULO V
74
O PROCESSO FAMILIAR INCESTUOSO
74
CONCLUSÃO
95
BIBLIOGRAFIA
96
10
INTRODUÇÃO
O ponto de partida desta monografia motivou-se da vivência de um
trabalho de livre escolha, para um dos critérios de avaliação da disciplina de
sexologia do presente curso de Terapia Familiar desta Universidade,
corroborado pela experiência clínica da autora no atendimento a pessoa adulta
que carrega em seu histórico de vida, a vivência de abuso sexual intrafamiliar
quando criança.
Atenta a certas questões em comum, relatadas nas histórias de cada
cliente ou mesmo expressas em seu comportamento adulto, evidenciou-se a
necessidade da autora, de um aprofundamento sobre a dinâmica das relações
familiares incestuosas.
Partindo das questões comuns surgiram as seguintes interrogações: O
que levaria essas famílias a praticarem o abuso sexual em suas crianças? O
que levaria esse pai ou padrasto à prática do abuso sexual em sua filha ou
enteada? Como é o processo individual da criança que sofre abuso sexual
intrafamiliar? Como se define o funcionamento deste grupo familiar? Em
resposta a esses questionamentos surgiu esta monografia.
A medida que se mergulhava na literatura específica pode-se perceber a
inquietação que o ato incestuoso provocava e ainda provoca nos indivíduos das
mais diversas culturas.
Condenável na nossa cultura, entretanto não é explicitado em nossos
códigos. O Código Civil Brasileiro limita o casamento entre parentes próximos
até terceiro grau. Contraditório é que, no Código Penal Brasileiro, o incesto não
é considerado crime, mas apenas como um agravante de pena dos crimes
contra os costumes. Casar com parentes é considerado ilegal, entretanto ter
11
relações sexuais com os mesmos não é considerado ilegal. Tais limitações são
insuficientes para lidar com esta problemática.
Surge então a questão: o que legitima a proibição da violência sexual
intrafamiliar na nossa cultura? Mais do que a proibição subjacente do ato em si,
existe a proibição de se falar no assunto, tornando-se dessa forma um tabu, o
que então escapa a um esclarecimento aprofundado do tema.
Diante desta problemática, pensar sobre a proibição do incesto numa
tentativa de compreensão torna-se uma tarefa bastante complexa, já que a
sociedade, a família abusiva e a própria criança abusada tem a mesma atitude
de manter o segredo.
A sociedade ainda tem dificuldade em aceitar o fato de a família ser
capaz de prejudicar suas próprias crianças. Assim, o segredo é mantido dentro
da família da mesma forma que a sociedade tem dificuldade para “enxergá-lo” e
mesmo lidar com tal problemática.
O próprio significado da palavra proibição sugere um processo ativo de
intervenção a algo que “pode ocorrer”. A proibição por si só pode ser percebida
como antinatural. Decorre que, por detrás de tamanha proibição, só possa
existir um desejo universal equivalente, onde o incesto situa-se no limiar entre a
natureza e a cultura. Para que então, o incesto é proibido?
Teorias biológicas, sociais e psicológicas, têm sido utilizadas para
explicar a finalidade desta proibição. Por outro viés, observa-se a não existência
de estudos que demonstrem que o desejo sexual seja diminuído pelo
parentesco ou pela proximidade física entre as pessoas. Pelo contrário, a
psicanálise traz o aumento do desejo, através da teoria do complexo de Édipo.
12
De acordo com a perspectiva estruturalista, este dano é refletido na
sociedade, já que a civilização sobrevive às custas, primordialmente, da não
atuação dos impulsos incestuosos.
Segundo Freud, existe um antagonismo entre as exigências dos
impulsos e a inserção do indivíduo na cultura. O desejo incestuoso, presente
em todos os seres humanos, deve ser reprimido para a sobrevivência da
civilização: “O incesto é antisocial e a civilização consiste numa progressiva
renúncia a ele” (Freud,1930).
Depreende-se, que a proibição é justamente o sinal que marca a
existência do ato incestuoso, sem o qual tornaria a primeira completamente
desnecessária.
Para refletir sobre a ampliação do conceito sobre o incesto e a
contextualização da proibição, dentro da nossa cultura, no decorrer deste
estudo se encontrará algumas definições. Dentre elas, distingue-se o do
National Center on Child Abuse and Neglet, citada por Cohen (1993), que
define o incesto como: abuso sexual intrafamiliar e que o mesmo deve ser
penalizado.
É difícil estabelecer uma estimativa dos casos de incesto, devido ao
estigma e ao segredo que envolvem estes casos. Ainda se está longe de
quantificar a dimensão do problema, pois as atuais estatísticas refletem uma
pequena parcela da realidade. Entretanto, um fator de concordância em todos
os estudos é que o abuso sexual intrafamiliar é o de maior frequência dentro
dos casos de abuso sexual relatados. Assim, contrariando os alertas do senso
comum em relação às crianças sobre o “contato com aos estranhos” observa-se
que maioria dos abusos sexuais são praticados por pessoas próximas e
conhecidas das crianças, ou seja; pais e padrastos.
13
Um dado importante, é o sentimento da criança vítima de abuso sexual
intrafamiliar, frente seu abusador. Com muita facilidade ela encontra razões
para sentir-se culpada, e o abusador faz um uso perverso dessa culpa.
Entretanto o discurso da culpa vem mesclado de sentimentos contraditórios
como raiva, nojo, medo intenso, e em vários momentos a não compreensão do
que aconteceu. Sentindo-se física e moralmente indefesa, o medo quando
atinge o seu ápice, obriga a criança a se submeter automaticamente à vontade
do agressor, procurando adivinhar os possíveis sinais de seu desejo e
identificando-se totalmente com ele. Através desta identificação, é que se pode
compreender a dinâmica psíquica da “sindrome de adaptação da criança vítima
de abuso sexual”, estudada por Summit em 1983.
Por outro lado, se a criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, não
pode falar o que está acontecendo com ela, ou se ela denuncia e os adultos
não querem ouvi-la, ela buscará um outro meio para comunicar a sua dor.
William Mostloy (s.d.), nos presenteou com este aforismo: “Quando o sofrimento
não pode expressar-se pelo pranto, ele faz chorarem os outros órgãos”.
O que levaria esse pai ou padrasto à prática do abuso sexual em sua
filha ou enteada? Os motivos individuais que levam um pai se tornar abusador e
uma mãe a assumir o papel de progenitor “não abusivo”, são os mais variados
possíveis.
Na realidade a pergunta não é porque e devido a que razão individual
surgem padrões de comportamento na família abusiva, mas sim como funciona
esses padrões.
Na experiência clínica, através de uma escuta miniciosa com adultos que
sofreram abuso sexual intrafamiliar enquanto crianças, percebe-se que a
problemática é muito mais ampla e complexa, onde existe o envolvimento de
14
toda a família numa dinâmica inconsciente que favorece a existência dessa
relação sexual incestuosa.
Segundo Berenstein (1988), a família é um “sistema com uma estrutura
inconsciente” e, de acordo com este, confecciona regras para manter sua
estabilidade. Estas regras definem o funcionamento do grupo familiar.
Na introdução do presente estudo, apresenta-se um breve relato das
preocupações que culminaram com o tema desta pesquisa, que encontra-se
dividida em cinco capítulos e, como consequência, a conclusão.
A escolha do referencial teórico acerca violência sexual intrafamiliar, em
grande
parte, comporá o primeiro capítulo através de fundamentos,
conceituações e teorias explicativas sobre a proibição do incesto.
No segundo capítulo, pelo viés dos conceitos psicanalíticos, serão
propostas abordagens sobre os abusos sexuais na infância e a interação das
violências intrafamiliares.
No terceiro capítulo, será discutido o processo individual da criança
vítima de abuso sexual intrafamiliar, por intérmedio do abuso sexual da criança
como síndrome de segredo da criança, dos aspectos interacionais do segredo,
do segredo internalizado, dos vínculos sexualizados, do abuso sexual como
síndrome adicta, da conexão entre segredo e adicção e da fala do corpo e do
comportamento.
No quarto capítulo, pelo entrelaçamento de uma visão psicossexual, do
Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM III e DSM IV)
e pela entrevista com abusadores sexuais, pretender-se-á identificar o perfil do
autor da violência sexual intrafamiliar.
15
No quinto capítulo, através do processo familiar incestuoso, haverá um
esforço para refletir sobre as questões que vem a ser o objetivo desta pesquisa.
Pretende-se analisar, se na família que pratica o abuso sexual da criança,
existem padrões específicos de comportamento. Caso existam, como se
processa esse sistema familiar?
A análise dos discursos que compõem este trabalho, finalmente concluiu
que na família sexualmente abusiva existem de fato padrões específicos de
comportamento, que operam como um sintoma. A família possui uma “dinâmica
incestuosa” da qual fazem parte todos os membros, sendo diferente apenas a
forma de atuação.
Por fim, conhecer a dinâmica da família incestuosa, analisar os diferentes
padrões específicos de comportamento na família que pratica o abuso sexual
da criança, acredita-se ser essencial na complexidade das intervenções nas
famílias com abuso sexual da criança.
16
CAPÍTULO I
1. FUNDAMENTOS E CONCEITOS
Falar sobre a família sexualmente abusiva da criança, sempre foi e ainda
é tabu, assunto proibido, protegido pelo silêncio e pelo “familismo”. Entretanto,
há décadas os maus tratos e abuso sexual contra as crianças e adolescentes
intrafamiliar e extrafamiliar vem chamando a atenção.
Notícias envolvendo casos de abuso sexual chegam através das mais
diversas formas dos meios de comunicação. Porém, somente nesta década,
este assunto começa a ser visto, falado e discutido. Timidamente as barreiras
começam a ser derrubadas, e agora
esta temática, vem sendo objeto de
pesquisas cujas contribuições principais são o rompimento da “cortina de
silêncio”, que historicamente tem ocultado o fenômeno, o redimensionamento
estatístico das ocorrências e a proposição de procedimentos preventivos e de
programas assistenciais às vítimas.
Sharader & Sagot (1998, p.192), afirmam que a Organização Mundial de
Saúde (OMS), estima em 40 milhões o número de crianças de menos de quinze
anos, que são vítimas de violência no mundo. As consequências destes
traumatismos manifestam-se de diversas formas, em função da gravidade dos
atos e da vivência da criança.
A amplitude do problema a nível mundial é de tal forma importante que
este ano, o Dia Mundial de Saúde Mental através da Federação Mundial de
Saúde Mental promoverá uma jornada no dia 10 de outubro, dedicado ao
seguinte tema “as consequências de acontecimentos traumatizantes e da
violência em crianças e adolescentes”
17
Entretanto considera-se qualquer forma de violência, inclusive, o abuso
sexual intramamiliar ou extrafamiliar, que o mesmo não pode ser qualificado
por ato concreto e nem a sua gravidade ser avaliada pelas marcas físicas, mas
sim pela vivência emocional de cada indivíduo a tais situações.
Em 1997, a Organização Mundial de Saúde, fez da violência de crianças
e adolescentes” um problema de saúde pública e da sua prevenção uma
prioridade mundial. Ela exorta os países a respeitarem os direitos humanos das
crianças e adolescentes e a fazerem da luta contra a violência uma prioridade
com vistas à sua redução ou erradicação deste flagelo e das consequências
traumáticas dela resultantes ( Sharader & Sagot, p.196).
Etimologicamente, o abuso sexual indica a separação e o afastamento
do uso normal. O abuso sexual, é ao mesmo tempo, um uso errado e um uso
excessivo e, portanto, uma transgressão.
No que tange ao abuso sexual da criança, a Organização Mundial de
Saúde a define como: “a exploração sexual de uma criança implica que esta
seja vítima de um adulto ou de uma pessoa sensivelmente mais idosa do que
ela com a finalidade de satisfação sexual desta. O crime pode assumir diversas
formas: ligações telefônicas obscenas, ofensa ao pudor e voyeurismo, imagens
pornográficas, relações ou tentativa de relações sexuais, incesto ou prostituição
de menores”.
Gabel (1997, p.11), afirma que o abuso sexual deve ser claramente
situado no quadro dos maus tratos infligidos à infância. E complementa: “maus
tratos abrange tudo o que uma pessoa faz e concorre para o sofrimento e
alienação da outra”.
Cohen & Gobbetti (1998, p. 235), trazem a contribuição, de que o incesto
manifesta-se através do relacionamento sexual entre as pessoas que são
18
membros de uma mesma família, exceto os cônjuges, sendo que a “família” não
é
definida
apenas
pela
consanguinidade
ou
mesmo
afinidade,
mas
principalmente, pela “função social de parentesco” exercida pelas pessoas
dentro do grupo. Os autores alegam ainda que “o abuso sexual intrafamiliar é
um ato intimamente associado ao “proibido” e que a proibição do incesto,
presente em quase todas as suas definições, parece estender-se à proibição de
se
falar
no
assunto,
tornando-se
mesmo
um
tabu,
escapando
um
esclarecimento mais profundo do tema”.
Para Lévi-Strauss (1969), a proibição do casamento entre parentes
próximos pode ter um campo de aplicação variável, de acordo com a definição
de parentesco, mas a proibição ou a limitação das relações sexuais está
presente em qualquer grupo. Desta forma, a proibição do incesto situa-se no
limiar entre a natureza e a cultura. Entende-se que, por detrás da necessidade
de tamanha proibição, só possa existir um desejo universal equivalente.
Para que, então, o incesto é proibido?
Freud coloca a proibição do incesto como um estruturador mental, pois é
através da repressão dos desejos incestuosos que se estrutura o aparelho
mental em suas três instâncias: id, ego e superego. O superego é a instância
formada pela internalização da lei, sendo o ego responsável pela intermediação
entre as leis internas e as leis externas (Freud,1923).
Condenável em nossa cultura, “O Novo Código Civil Brasileiro”, em vigor
a partir de 11 de Janeiro de 2003, limita o casamento entre parentes próximos
até o terceiro grau inclusive. O Código Penal Brasileiro não penaliza o incesto,
ele o considera apenas como um agravante de pena dos crimes contra os
costumes, em seu artigo 226: “ A pena é aumentada de quarta parte”;parágrafo
II: “Se o agente é ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador,
19
preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade
sobre ela. (Cohen p.141).
Observa-se que os legisladores aprenderam o conceito de função
paterna, entretanto não o utilizaram de uma forma coerente não legislando para
penalizar o incesto, pois é na proibição deste tipo de relação que a função
paterna se torna primordial.
Vasconcelos (2001, p.10), conceitua violência sexual, como sendo, uma
situação em que a criança ou o adolescente é usado para satisfazer
sexualmente um adulto pelo uso da força, poder ou confiança. Tocar partes
íntimas, se esfregar ou forçar a criança a praticar atos pornográficos também é
considerado abuso sexual.
Quando se fala da violência no que tange a infância, logo se associa aos
fenômenos dos maus tratos e da violência sexual. De fato, estas duas formas
são, de certo modo, as mais visíveis. Esta violência que acontece no interior da
família, no mais das vezes assinalada por um “pacto de silêncio”, se apresenta
como uma das maiores responsáveis pela vitimização da infância, em termos
microcriminais.
Ter uma idéia exata da amplitude e do que seja esta realidade, é
realmente muito complexa, devido ao grande silêncio que cerca esta questão.
Existe a reticência e o medo das crianças em falar, aliada a surdez e medo dos
adultos em escutá-las. Entretanto, um fator de concordância em todos os
estudos é que, contrariando os alertas de senso comum em relação às crianças
sobre o “contato com estranhos”, geralmente o abuso sexual é praticado por
pessoas próximas e conhecidas, principalmente pessoas da família.
Pesquisas indicam que a maioria dos pais “abusivos” tem na sua própria
história de vida experiências de abuso ou negligência na infância. Além da
20
percepção do ciclo “vítima-agressor”, nota-se uma dinâmica específica nestas
famílias onde se incluem todos os membros, tornando inadequada a
estigmatização nestes termos.
Embora os bloqueios e tabus relativos ao abuso sexual tenham
diminuído, a Associação para o Tratamento de Abusos Sexuais – Estados
Unidos, (1987), estima que:
•
80% dos casos de abuso sexual em crianças e adolescentes ocorrem
na entidade familiar;
•
90% dos abusos sexuais são praticados por pessoas conhecidas,
sendo os agressores: 98% - homens, e 2% - mulheres;
•
20% das mulheres e 10% dos homens são abusados sexualmente
antes dos 18 anos, tendo como principais agressores: pais, padrastos
e tios. Entre as vítimas estão: bebês, crianças que mal falam ou
andam, pré-adolescentes e adolescentes, que sofrem calados, muitas
vezes ao nosso lado ou em nossa própria casa.
Resultados ainda nos Estados Unidos do Children Service Division
(1989), fornece percentagem da ordem de 90% em relação às pessoas
conhecidas ou aparentadas. Em seu estudo, à referida Instituição enumera:
•
60%, trata-se de alguém da família;
•
30%, é um conhecido;
•
68%, o pai está implicado.
Na França, pesquisa realizada em 1989, junto à subdireção Família,
Infância e Vida Social do Ministério da Solidariedade, da Saúde e da Proteção
Social, 1 511 pessoas entrevistadas declaram ter sido vítimas de um ou vários
abusos sexuais antes dos dezoito anos (Gabel p.14).
21
Para saber quem eram os autores do abuso, pesquisas junto às 1511
pessoas, constataram ser maioria, o incesto pai-filha; e o mais difícil de ser
revelado; e também o que tem consequências mais graves sobre o equilíbrio
psíquico,
do
presente
e
futuro,
da
criança
e
do
adolescente.
Em
prosseguimento, tal pesquisa mostra que os pais incestuosos é o que têm
menor participação nos cuidados da filha.
O semanário New of the World – Inglaterra -, diz que calcula existir 110
mil pessoas envolvidas em casos de abuso sexual de menores e que cada
habitante tem um pedófilo a 1,5km de sua casa.
O Centro de Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual
(CEARAS), da Universidade de São Paulo (USP), desde1993, vem trabalhando
com questões do incesto, através de estudos e pesquisas sobre o tema, além
do atendimento em saúde mental a famílias em que houve a denúncia de um
abuso sexual praticado entre membros, abordando o fenômeno através do
referencial psicanalítico.
Dos casos atendidos pelo CEARAS (2000), pode-se observar:
•
32,73%, a predominância da relação pai e filha;
•
18,18%, da relação padrasto-enteada;
•
38,53% das relações incestuosas observou-se o pai biológico
envolvido.
Face aos dados explícitos, a relação incestuosa entre padrasto e
enteado, parece não ser explicada pela falta de laços consanguíneos, mas sim
pelo fato que padrasto cumpre a função social de pai.
Num percentual de 53,14%, o CEARAS (2000) verificou, que a maioria
dos
relacionamentos
incestuosos
ocorreu
entre
parentes
próximos
e
consanguíneos, ou seja, entre pais e filhos e entre irmãos. Dados estes que
22
divergem da crença popular que considera “famílias em risco” para relações
abusivas, as famílias recompostas, ou seja, aquelas formadas por novas
uniões,
onde
a
relação
entre
as
pessoas
não
é
confirmada
pela
consanguinidade.
O CEARAS (2000), questiona a definição da relação sexual abusiva,
principalmente aquelas caracterizadas por toques e carícias. Pelo fato das
mesmas não oferecerem provas objetivas da ocorrência, não
necessariamente
a
gravidade
das
consequências
emocionais
diminui
a
seus
participantes. Cita como exemplo, determinados “cuidados maternos” que se
estendem aos filhos a um período maior que o necessário. Mães que
amamentam filhos de três anos de idade ou que dão banho em filhos
adolescentes. Tal acesso da mãe ao corpo do filho talvez ajude a mascarar
uma relação abusiva, o que pode sugerir uma explicação ao fato de mulheres
aparecerem em um índice muito baixo como “abusadoras” em vários estudos,
incluindo a amostra do CEARAS (2,73%).
De acordo com as estatísticas da Associação Brasileira Multiprofissional
de Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA), fundada em 1988, no Rio de
Janeiro, cerca de 600 mil crianças e adolescentes são vítimas de várias formas
de violência doméstica. Ou seja; 68 crianças por hora ou uma (1) criança a
cada minuto são vítimas de tal violência.
A ABRAPIA que coordena e operacionaliza o Sistema Nacional de
Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, no que tange a violência sexual
intrafamiliar informa que a mesma atinge:
•
49% das crianças de 2 a 5 anos de idade;
•
33% em relação às crianças de 6 a 10 anos de idade;
•
80% são crianças do sexo feminino;
•
90% dos agressores são do sexo masculino
23
Segundo a ABRAPIA, a relação incestuosa é a que representa a maioria
dos casos de abuso sexual, onde seus principais responsáveis são:
•
o pai: 37%;
•
o padrasto: 26%;
•
a mãe: 10%;
•
o tio: 7%;
•
avô: 4%.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei n 8.069 de 13/07/1990
e lei n 9.455 de 07/07/1997, que dispõe sobre a proteção integral à criança até
12 anos incompletos), e ao adolescente (entre 12 e 18 anos) no seu artigo 5ªdo Livro I, Título I das Disposições Gerais assegura que:
“Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido
na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos
fundamentais”.
No seu artigo 4°, o Estatuto da Criança e do Adolescente também afirma:
é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e
comunitária”.
O ECA, prevê no artigo 13, que todos os casos de suspeita ou
confirmação
de violência contra a criança e o adolescente devem ser
notificados ao Conselho Tutelar da localidade ou a Vara da Infância e
Juventude, e a delegacia mais próxima, e que as mesmas são passíveis de
punição.
24
É pois, fundamental que os pais, os educadores, médicos, enfermeiros,
psicólogos, assistentes sociais, outros profissionais e a sociedade em geral,
estejam atentos para perceber os sinais de violência, e principalmente
acreditem no que as crianças falam, e que qualquer suspeita deve ser
investigada.
Face as fundamentações e conceituações acima, é importante ressaltar que
objetiva-se trabalhar a violência sexual intrafamiliar, e poder neste estudo
verificar se, na família sexualmente abusiva da criança existem padrões
específicos de comportamento. E, caso afirmativo, quais serão esses padrões
identificados.
1.1-
Teorias explicativas da proibição do incesto
Diversas teorias têm sido utilizadas para explicar a finalidade da
proibição do incesto. Estas podem ser divididas em biológicas, sociais e
psicológicas.
1.1.1- Teorias biológicas
As teorias biológicas concebem um “horror ao incesto inato” que seria a
proteção natural contra os malefícios resultantes do cruzamento endogâmico.
Sabe-se que o cruzamento realmente causa uma diminuição da variabilidade
dos genes, e portanto, oferece uma maior chance de expressão de
recessividade. Mas esta pode ser manifestada tanto em doenças hereditárias
quanto em traços benéficos. Além disto, semelhanças genéticas podem
estender-se para além da família, como em um grupo de certa localização
geográfica. Outro aspecto que reforça a não importância da consanguinidade é
a não proibição do casamento entre parentes por afinidade.
25
Ora, se a possibilidade de ocorrência de relações incestuosas fosse
biologicamente negada, estas não precisariam ser proibidas por leis sociais,
mostrando que a questão não passa pelos aspectos biológicos e sim pelos
aspectos sócio-culturais.
1.1.2 -Teorias sociais
As teorias sociais priorizam a importância da exogamia, pois ela amplia a
família e possibilita um sistema mais cooperativo e democrático.
1.1.3 -Teorias psicológicas
Segundo as teorias psicológicas, a não interdição do incesto permite a
diferenciação e a simbolização de funções dentro da família (pai, mãe, irmãos),
possibilitando assim o desenvolvimento do indivíduo na família. Nesta
perspectiva, a proibição do incesto é um fator organizador, demarcando limites
(Cohen, 1993).
Como já referido, para Freud, a proibição do incesto, funciona como um
estruturador mental. O “não” à atuação dos desejos edípicos delimita as
fronteiras entre o desejo e a realidade.
Segundo Freud, existe um antagonismo entre as exigências dos
impulsos e a inserção do indivíduo na cultura e, o indivíduo sempre deverá lidar
com esse conflito. O desejo incestuoso, presente em todos os seres humanos,
deve ser reprimido para a sobrevivência da civilização: “O incesto é antisocial e
a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele” (Freud, 1930).
Vemos portanto, que a dificuldade de explicitar o termo incesto encontrase no fato de envolver dois conceitos sociais, que podem variar segundo a
26
época e a cultura: o abuso sexual e a família. O fato é que somente nesta
última década, os maus tratos e o abuso sexual contra crianças e adolescentes
começa a tomar proporções significativas.
Consultando Gabel (1997), vimos que em 1860, Tardieu, professor de
medicina legal na França, já publicava trabalhos sobre 339 casos de incesto
com crianças de menos de 11 anos, nos quais ele se preocupava com a força
de uma negação que continua a se exercer: negação que se refere, certamente,
à sexualidade, mas também ao abuso de poder em relação aos mais fracos.
Percebe-se daí, em dez anos, uma passagem da negação para a
emoção generalizada que demonstra com clareza os riscos, difíceis de
controlar, que poderiam novamente como reação, devolver ao silêncio. Com
isto também se percebe a sexualidade humana como um assunto complexo.
27
CAPÍTULO II
2. OS ABUSOS SEXUAIS NA INFÂNCIA
2.1 – Conceitos Psicanalíticos
Este capítulo aborda de forma breve e simplificada, alguns conceitos
psicanalíticos necessários à compreensão do psiquismo infantil, visto ser a
sexualidade infantil uma descoberta da psicanálise. Freud em “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, a definiu “tudo que concerne às atividades da
primeira infância em busca de gozos localizados que este ou aquele órgão
possa proporcionar” (Freud,1905). Essa definição ultrapassa a genitalidade. Os
comportamentos descritos por Freud, são considerados os precursores da
sexualidade adulta.
Ao estabelecer comparações entre as práticas tidas como perversas dos
pacientes adultos e os comportamentos da criança, Freud qualificou a criança
de “perversa polimorfa”.
2.1.1 - Curiosidade sexual e as teorias infantis
A terceira etapa do desenvolvimento psicossexual que sucede as fases
oral e anal, é denominada fase fálica e modernamente edípica. A expressão
“fálica” origina-se do conceito original de Freud, que até certa idade as crianças
de ambos os sexos supõem a existência de genitais masculinos em todas as
pessoas.
Durante esta fase, em que a ênfase é dada aos órgãos genitais, existe a
natural curiosidade das crianças, que se manifesta pelos constantes
“por
quês?” A maioria desses questionamentos se refere às origens das diferenças
28
entre pares opostos, como masculino-feminino; seio-pênis; grande-pequeno,
etc. A constatação progressiva dessas diferenças provoca um acréscimo de
angústia, que encontra alívio numa explicação adequada por parte do
educador; caso contrário, obrigará a criança a construir as mais estapafúrdias
teorias em torno da diferença anatômica dos sexos; do enigma do nascimento,
e tudo que cerca as fantasias de concepção, teorias da “sedução”, da “cena
primária”, do “incesto” e do “complexo de castração”, que a seguir serão
apresentadas.
O papel que os órgãos genitais desempenham é fruto de um
conhecimento, e o valor que lhe é atribuído depende muito da influência do
meio que favorece ou proíbe; ele se modifica por fantasmatização infantil
precoce (Ajuriaguerra,1974,p.417).
2.1.2 – A teoria da sedução
As cenas de sedução são definidas como “cenas reais ou fantasística
que geralmente uma criança sofre passivamente da parte do outro ( a maioria
das vezes um adulto) assédios ou manobras sexuais” (Laplanche e Pontalis,
2001, p. 469).
Freud elaborou a teoria da sedução entre 1895 e 1897, e posteriormente
a abandonou. Tal teoria atribui à lembrança de cenas reais de sedução o papel
determinante na etiologia das neuroses.
Embora Freud tenha abandonado a teoria da sedução como peça central
das neuroses, entretanto, nunca deixou de “sustentar a existência, a frequência
e a realidade das cenas de sedução vividas pelas crianças” (Laplanche e
Pontalis,2001, p. 470). Em 1933, Ferenczi retoma a teoria, quando afirma “a
importância do trauma e em particular do trauma sexual como fator patogênico”.
29
Tanto por intuição como estímulos externos (barulhos noturnos,
insinuações dos pais ou cenas televisivas), a criança imagina o que se passa
no quarto fechado dos pais, fica muito excitada e usa o recurso das repressões,
que por vezes estas não sendo suficientes, a criança aumenta o seu mundo de
imaginação, que fica girando em torno das anteriores fantasias pré-edípicas (
coito sádico; fusão parasidíacas; amputações; coito e parto anal; etc).
A criança então imagina de forma alternada, o lugar dos protagonistas da
cena, com as diversas fantasias correlatas, inerentes ao “complexo de Édipo”.
Quando os pais permitem, ou até induzem a uma participação concreta dela na
cena primária, estarão provavelmente produzindo um futuro perverso.
As fantasias que a criança elabora são compromissos entre os
fantasmas inconscientes e os elementos da realidade. A criança pode preferir
as lendas à realidade para não se confrontar com suas tendências agressivas
em relação ao casal parental, dentro de uma concepção sadomasiquista da
sexualidade (Mélaine Klein, 1967).
Furniss afirma, que o esteriótipo da “criança sedutora” que seduz o pai e
aprecia o abuso tem pouco a ver com a realidade do abuso sexual da criança.
“Tem sua origem principalmente nas projeções dos adultos de seu próprio
pensamento sexual nas crianças” (2002,p.21).
Enfatiza Furniss, que mesmo que as crianças
fossem abertamente
sedutoras e tentassem iniciar o abuso sexual, como por exemplo entrando no
quarto do pai de modo sexualmente convidativo, seria sempre responsabilidade
do pai, em seu papel de progenitor, traçar as fronteiras adequadas.
30
2.1.3 - Complexo de Édipo, o complexo de castração e o tabu
do incesto
O complexo de Édipo diz respeito à relação triangular pai-mãe-filho. Esta
expressão designa o conjunto de desejos amorosos e hostis que a criança
experimenta com relação a seus pais, ainda durante a fase fálica. Em sua forma
positiva, genericamente consiste
num desejo sexual pelo genitor do sexo
oposto, bem como um desejo de morte pelo genitor do mesmo sexo. Na sua
forma negativa, genericamente há um desejo amoroso pelo genitor do mesmo
sexo e um ciúme ou desejo de desaparecimento do outro. Seu declínio marca
o início da fase da latência, que se caracteriza por uma sublimação das pulsões
sexuais nas atividades intelectuais. Esta fase se apresenta de formas distintas
na menina e no menino:
•
No menino, é a ameaça de castração pelo pai que determina a
renúncia ao objeto incestuoso;
•
Na menina, é o complexo de castração que dá acesso a Édipo: a
renúncia ao pênis só ocorre depois de uma tentativa de
compensação: o desejo de ter, como presente, um filho do pai.
O complexo de castração está centrado no fantasma da castração. A
menina ressentirá com a ausência do pênis que a princípio sua mãe lhe negou,
e procura compensar. O menino teme a castração como a realização de uma
ameaça paterna, em resposta às suas atividades sexuais.
O tabu do incesto é um dos efeitos do complexo de Édipo, além da
instauração da moral. Desse modo, transmite-se uma lei fundamental destinada
a regular as relações sociais.
31
2.1. 4 - A culpa
Falar da culpa é referir-se a uma instância moral que legifera sobre o que
é bem ou mal. Esta instância é primeiramente externa ao indivíduo: são os
valores morais dos pais e da sociedade. Porém, gradativamente, a criança vai
construindo internamente, uma instância crítica e punitiva – o “superego”. Freud
definiu-o como uma instância da personalidade que tem o papel de censor, de
juíz em relação ao ego do indivíduo; a consciência moral aparece como uma
das funções do superego , que encarna a lei e proíbe sua transgressão.
Na teoria psicanalítica a consciência moral pode operar igualmente de
maneira inconsciente.
Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do complexo de
Édipo, porém Melaine Klein e seguidores levantaram a hipótese de um
superego incipiente, desde a fase oral do bebê, onde o mesmo seria
particularmente cruel em razão da intensidade do sadismo infantil nesse
período.
A atividade do superego manifesta-se no conflito com o ego, sob todas
as formas de emoção que dizem respeito a consciência moral, principalmente a
culpa.
Se tomarmos o exemplo da masturbação, culpa ligada à masturbação
não é pura e simplesmente obra do meio e da ação dos pais ou de proibição
desajeitada. A culpa neurótica é interior ao próprio sujeito e relacionada a sua
história pessoal. A culpa em si, pode ter consequências mais graves que a
atividade sexual.
32
A riqueza da vida fantasmática da criança e a importância da sua
realidade psíquica, somada a identificação com o agressor, a levará facilmente
a encontrar razões para se sentir culpada. Assim o adulto não terá nenhuma
dificuldade em reativar a culpa da criança.
Em seu artigo sobre a confusão de línguas, no quadro das seduções
incestuosas, Ferenczi descreve:
As seduções incestuosas produzem-se habitualmente desta
maneira: um adulto e uma criança se amam; a criança tem
fantasmas lúdicos, como o de desempenhar um papel maternal
em relação ao adulto. Esse jogo pode ganhar um contorno
erótico, mas não obstante, permanece sempre no nível da
ternura. O mesmo não acontece com ao adultos que têm
predisposições psicopatológicas. Confundem a brincadeira da
criança com os desejos de uma pessoa já sexualmente madura
e deixam-se envolver em atos sexuais sem pensar nas
consequências.
(Ferenczi, 1933).
Ferenczi define assim esse mecanismo:
Por identificação, digamos por introjeção do agressor, este
desaparece
enquanto
realidade
exterior
e
torna-se
intrapsíquico. Mas a mudança significativa, provocada no
espírito da criança pela identificação ansiosa com o parceiro
adulto, é a introjeção do sentimento de culpa do adulto: o jogo
até então anódino aparece agora como um ato que merece
punição. Se a criança se recupera de tal agressão, ela vive uma
enorme confusão; na verdade, ela já está dividida, é ao mesmo
tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de
seus próprios sentidos está abalada.
(Ferenczi, 1933, p. 130).
33
O mecanismo de identificação com o agressor descrito por Ferenczi,
permite compreender melhor a dinâmica psíquica da “síndrome de adaptação
da criança vítima de abuso sexual”, estudada por Summit em 1983.
Segundo Furniss (2002,p.17), a culpa contém um duplo conceito, com
um componente legal e um componente psicológico. A distinção entre os
aspectos legal e psicológico, significa
que apenas o progenitor pode ser
considerado culpado. Mas a pessoa que cometeu abuso e a criança, podem
sentir-se igualmente culpados, como uma expressão dos eventos psicológicos
que se derivam da experiência na interação abusiva.
2.2 - Abordagem interativa das violências intrafamiliares
2.2.1 – O lugar da sexualidade na relação pais-bebê
Desde o nascimento, as forças pulsionais estão presentes na criança
atuando como fonte de tensões e excitações que ela só controla parcialmente.
A mãe irá exercer um papel continente, de “anteparo de excitação” para que a
criança só receba os estímulos externos que seja capaz de integrar. Em um
“banho de afeto” (Lebovici e Soulé, 1970), as diferentes zonas do corpo do
bebê serão investidas enquanto “zonas erógenas”, ou seja, como zonas-fontes
de prazer, na intimidade das relações mãe-bebê, durante as atividades que
pontuam a vida cotidiana do bebê (alimentação, troca de roupa, banho,
brincadeiras etc.).
Freud, sobre as manifestações da sexualidade infantil, escreve:
34
“Por sua posição anatômica, pelas secreções em que estão
banhadas, pela lavagem e fricção advindas dos cuidados com o
corpo e por certas excitações acidentais (migrações de vermes
intestinais nas meninas), é inevitável que a sensação prazerosa
que essas partes do corpo são capazes de produzir se faça
notar à criança já na fase de amamentação, despertando uma
necessidade de repeti-la” (Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, 1905).
Spitz (1964), estudou o jogo genital nos primeiros meses de vida (jogo
genital definido como atividade exploratória de suas partes genitais, pela
criança ainda pequena), em função da qualidade da relação mãe-bebê. Ele
ressalta o jogo genital como um indicador válido da qualidade da relação mãebebê: se a mãe e a criança têm boa relação, a criança brinca com seus órgãos
genitais ao final do primeiro ano de vida; na ausência da relação mãe-bebê, os
jogos genitais não ocorrem (Spitz,1964).
Sobre as manifestações da sexualidade infantil, no que diz respeito ao
conteúdo intestinal, escreve Freud:
“É obviamente tratado tratado como parte de seu próprio corpo,
representando o primeiro “presente”: ao desfazer-se dele, a
criaturinha pode exprimir sua docilidade perante o meio que a
cerca, e ao recusá-lo, sua obstinação.” (Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, 1905).
Dessa forma progressivamente, a criança vai descobrir seu corpo e
despertar para a sensualidade nas relações com os adultos, que falarão com
ela a “linguagem da ternura, não da paixão”, ajustando-se constantemente a
nível de desenvolvimento. Caso contrário, a criança se sentirá perturbada.
De fato, desde o nascimento, a criança deve enfrentar as
excitações libidinais dos adultos e sua intensidade pode,
35
sobretudo em certos momentos e em certas condições, surtir o
efeito de um traumatismo: toda excitação exterior que não
corresponda ao grau de evolução interior do indivíduo e de sua
possibilidades de integração física e afetiva é perturbadora.
(Lebovici e Soulé, 1970,p.459).
Vemos portanto, que é da interação entre a vida psíquica dos pais e a do
bebê (interações fantasmáticas) que orienta as interações comportamentais e
lhes dá sentido.
Do ponto de vista dos pais, quando o abuso sexual se inscrevem em
uma repetição intrafamiliar, a criança torna presente, sucessivamente, o pai ou
a mãe que lhe impingiu abuso, ou a criança vítima de abusos sexuais que
também foram o pai e a mãe.
Os pais têm poucas chances de separar a
criança, em sua realidade, de suas próprias projeções. É como se isso fizesse
parte dela, como se ela fosse um do outro “eu” dos pais. Estes pais repetem,
assim, a forma de relação que conheceram e que lhes permite, a seu modo,
construir uma relação afetiva.
Se nos situarmos do ponto de vista da criança, um ser em
transformação, sua vida fantasmática, seus desejos edipianos irão encontrar
parentais. E esse encontro pode suscitar uma excitação mútua, eventualmente
excessiva na criança. Mas ela também aprendeu um modo relacional e uma lei
onde o adulto é todo-poderoso; ela sabe ajustar-se às necessidades do adulto.
A criança e o adulto podem então ficar prisioneiros de um sistema relacional
fechado que se auto-alimenta. Um risco ainda maior, é que a criança solicite
que outros adultos, com os quais terá uma relação privilegiada, funcionem
nesse modo relacional.
36
CAPÍTULO III
3. O PROCESSO INDIVIDUAL DA CRIANÇA
3.1 – O Abuso sexual como síndrome de segredo da criança
Segundo Furniss (2002, p.29), existem fatores que atuam como
síndrome de segredo na criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, que são:
3.1.1 – Prova Forense e a evidência médica
A prova Forense e a evidência médica, úteis não só ao processo legal e
proteção à criança, mas também de grande valor terapêutico, infelizmente estão
disponíveis apenas em uma minoria dos casos. A esperança é que o presente
índice de casos comprovados com evidências físicas cresça com a prática
(Hobbs e Wynne,1987). Entretanto, necessita-se conviver com o fato de que
muitos casos poderão não ter evidência médica conclusiva de abuso sexual.
Como exemplo, um grave abuso oral prolongado pode não ser medicamente
detectável. Ainda deve-se considerar, que uma clara evidência médica de
abuso sexual muitas vezes não constitui prova forense no que se refere à
pessoa que cometeu abuso.
3.1. 2 – Acusações verbais
A falta de evidência médica e da prova Forense requer acusação verbal
por parte da criança ou de alguma outra pessoa como representante da criança,
e também da admissão do pessoa abusadora. Como as atuais abordagens são
ainda primariamente punitivas contra os perpetradores, muitos deles negam
37
que cometeram abuso sexual. Por sua vez, a criança vítima do abuso sexual
intrafamiliar, temendo por si própria, por sua família ou pela pessoa abusiva,
pode negar mesmo quando inquirida abertamente. Tal atitude da criança a
conduz ao sofrimento prolongado do abuso sexual.
Dentro do contexto familiar, ainda considera-se que, quando não é a mãe
que levantou a suspeita de abuso sexual, ela atua como aliada natural da
criança que sofreu abuso, principalmente se ela for abordada separadamente e
antes da pessoa que cometeu o abuso. Frente a postura materna, o resultado é
certamente, a negação do abuso sexual.
3.1.3 – O descrédito na comunicação da criança
Em nosso estudo, observou-se a confirmação unânime quanto ao
descrédito dos adultos, tanto dentro como fora da família, quando a criança
tenta comunicar que ela está sendo vitimada de abuso sexual. Algumas, além
de nomeadas como mentirosas, são castigadas pela revelação e, como
resultado, forçadas a viver com a pessoa que cometeu o abuso e continuando a
ser abusadas sexualmente.
Uma adolescente de quatorze anos de idade, cujo padrasto a abusava
sexualmente desde seus 7 anos de idade. O abuso começara quando sua mãe
engravidara novamente. A menina tentou contar à mãe, esta, em vez de
acreditar na filha e confrontar o marido, procurou o clínico geral para pedir
conselhos. O médico disse que a criança estava com ciúmes da gravidez da
mãe. Ela por sua vez, contou ao marido da revelação da filha, associando ao
diagnóstico de ciúme feito pelo clínico geral (Koshina, apostila p.15). Obter um
depoimento e validar um testemunho mostra que ainda são problemas difíceis
de se resolver.
38
A recusa da mãe de confrontar o marido e sua conivência com a
negação
do abuso sexual por parte do médico permitiram que o padrasto
usasse a menina como bode expiatório e a chamasse de mentirosa. Além dela
ser severamente castigada pela revelação, ainda continuou a sofrer abuso sob
crescentes ameaças de violência, até ela atingir a adolescência, quando então
tentou cometer o suicídio.
3.1.4 – A mentira sob ameaça
A realidade aterrorizante para a criança vítima de abusos sexuais devese ao fato, que o mesmo só acontece quando a criança está sozinha com o
adulto e que jamais deve ser partilhado com quem quer que seja (Gabel, 1997,
p.55). Esse terrível segredo tem de ser preservado pela ameaça, por exemplo,
“não diga nada a sua mãe, senão ela vai me odiar” ou “se sua mãe souber vai
matar você” ou “se sua mãe souber vai mandá-la para o colégio interno”. Assim,
as ameaças para as crianças, tornam os efeitos da revelação ainda mais
perigosos que o próprio ato.
Também, muito frequentemente, a criança vítima de abusos sexuais, é
obrigada a não revelar para ninguém não só dentro da família como fora dela.
Especialmente, para às crianças pequenas, pode ser dito que aquilo que
acontece durante o abuso é um segredo entre a criança e o abusador. Segredo
este que geralmente é reforçado pela violência ou castigo, ou ainda uma
mistura de ameaça e suborno com o ganho secundário de um tratamento
especial.
Como resultado das ameaças de violência e de desgraça na família, a
criança
mente
negando
ter
ocorrido
abuso
sexual.
Os
profissionais
encarregados de proteger à criança, precisam enfrentar esse fato crucial do
abuso como síndrome de segredo.
39
3.1.5 – Ansiedades como consequência da revelação
As ameaças à vida e a integridade da criança que sofre abuso, estão
implicitamente, e claramente explícito, ligadas à atribuição de culpa e total
responsabilidade por esses eventos à criança. “Se você contar a alguém, será
culpa sua se o papai for para a prisão e se a mamãe for embora” ou “Não
adianta você contar, que ninguém vai acreditar. Vão lhe chamar de mentirosa”.
Esta ampla gama de ameaças, até a ameaça de morte, constitui para Furniss
( p.31), um forte fator para que a criança nada revele.
Contrariamente à crença popular, a maioria das crianças que sofreram
abuso sexual intrafamiliar, não quer perder seus pais pela prisão ou divórcio.
Elas querem muito um pai, mas um pai não abusivo. Uma conduta punitiva em
relação à família abusiva sexual, é portanto um forte fator para que as crianças
mantenham segredo.
Uma menina que foi violentada pelo pai, dos cinco aos onze anos de
idade conta no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA):
“Cada vez que o tempo passava, ficava mais difícil
contar, minha mãe não prestava atenção em mim, eu
dava pistas, tentava falar, ela é muito rígida. Tinha
muito medo dela perguntar porque eu não contei antes,
mas eu só queria proteger eles, manter minha família
unida. Mas não adiantou nada, eu não presto e quero
morrer”.
40
3.2 – Aspectos interacionais do segredo
3.2.1 – Mentira e negação
As crianças mentem sobre o abuso sexual porque estão com medo de
serem castigadas, não creditadas e não protegidas. Elas temem a punição ou a
incapacidade dos adultos de protegê-la da violência de seu agressor. Se não
conseguem falar é porque não tem mais confiança no adulto. Sua palavra está
desvalorizada.
Psicologicamente, em termos de relacionamentos familiares, o abuso
sexual da criança geralmente permanece um segredo de família, até mesmo
depois de uma clara revelação, e inclusive quando as ameaças legais e
estatutárias há muito tempo foram removidas.
Os eventos psicológicos da mentira consciente e da negação consciente,
são muitas vezes confundidos. A mentira relaciona-se com o conceito legal de
prova, a negação pertence ao conceito psicológico de crença e assunção da
autoria (Furniss, p.31).
3.2.2 – Anulação do abuso na própria interação abusiva
A natureza e a experiência do abuso sexual é negada e anulada das
formas que se seguem:
3.2.2.1 – O contexto do abuso
A característica central da interação sexual entre o abusador e a criança
abusada, é a tentativa por parte do abusador na elaboração de um contexto que
41
anule a realidade externa do abuso sexual, durante o próprio ato abusivo. Isto
porque, as crianças frequentemente descrevem como o abuso ocorria em
silêncio ou sem qualquer contato visual, ou em total escuridão com as cortinas
fechadas, mesmo que ninguém pudesse ver do lado de fora.
As sensações físicas do abuso e o contexto interacional criado pela
pessoa abusiva conduzem a uma experiência dupla, totalmente conflitante e
contraditória em termos fisiológicos, perceptuais e emocionais. O intenso
contato de pele e a estimulação do corpo durante o ato sexual criam um estado
de extrema estimulação física e fisiológica na criança, seja no intercurso
vaginal, anal ou oral ou na masturbação. A estimulação física pode provocar
extremas sensações corporais de dor e excitação. Os altos níveis de ansiedade
podem ser ainda mais aumentados pelo desamparo e incapacidade da criança
de deixar a cena.
O intenso contato de pele e a estimulação corporal constituem a aspecto
sexual do abuso sexual. A experiência sensória do ato sexual acontece em um
contexto em que a pessoa que abusa tenta negar totalmente a ocorrência do
abuso sexual. Isso é conseguido através do silêncio, escuridão, contato físico
ritualizado, evitação do contato visual e outros aspectos ritualizados da
interação. A anulação através de tais dissociações, além de ser acompanhada
e aumentada por formas rígidas e ritualizadas de interação, também são
mantidas por breves ordens e ameaças verbais.
3.2.2.2 – Transformação do abusador em “outra pessoa”
Outra anulação, é a transformação da pessoa que abusa de figura
paterna na “outra pessoa”, como pseudoparceiro.
42
O abusador, quando em estado de excitação sexual, frequentemente age
de modo muito diferente de seu habitual. Isso pode ser muito assustador
quando os pais se transformam na “outra pessoa”, com gestos diferentes,
padrão incomum de linguagem, tom de voz alterado e comportamento físico
estranho. Quase todas as crianças descrevem vividamente mudanças nas
expressões faciais.
A anulação através da dissociação da realidade externa do abuso sexual
durante o ato sexual, não permite à criança perceber a realidade como tal,
assim como de nomear a experiência de abuso. É como se a pessoa abusiva
estivesse falando ao rosto da criança “ O que você quer dizer, é que nada está
acontecendo, não é?” enquanto a penetra sexualmente mais abaixo.
As pessoas abusivas, geralmente tentam negar qualquer aspecto real de
relacionamento entre elas e a criança durante o abuso sexual. Tentam evitar
qualquer reconhecimento claro daquilo que está acontecendo. Durante o
contato mais intensamente físico e corporal humanamente possível, elas tentam
desconectar-se totalmente da criança em termos psicológicos (Furniss, p.32).
3.2.2.3 – Rituais de entrada e saída
Os rituais de entrada e saída formam uma parte central do aspecto
interacional do abuso sexual da criança como síndrome de segredo.
O ritual de entrada serve para transformar uma interação comum paicriança em interação “outra pessoa” criança, sem nomear essa transição. No
ritual de saída ocorre o processo contrário igualmente não-nomeado da
transição
dessa
“outra
pessoa”
abusiva,
no
pai
e
adulto
confiável,
principalmente que, ensina-se a criança a desconfiar de estranhos, entretanto
43
simultaneamente, a ser obediente e afetuosa com todos os adultos que cuidam
dela.
Os rituais de entrada e saída não apenas reforçam ainda mais a
anulação e negação do abuso sexual como processo, mas também a poderosa
dissociação das mensagens sensoriais fisiológicas contraditórias durante o
abuso (Furniss, p.33).
Os rituais de entrada e saída ampliam a experiência incongruente do
princípio da realidade na dimensão temporal. Criam a sucessiva divisão
temporal naquele que comete o abuso. Essa pessoa pode ser um pai
carinhoso, antes e depois do abuso, que se transforma em “outra pessoa “
durante o abuso. Assim, o mesmo ser humano pode ser uma pessoa-pai
carinhosa, em dado momento, e alguém assustador, amendrontador durante o
abuso.
O espaço de tempo que delimita o exato início do ritual de entrada e de
saída marca o período de tempo do abuso sexual. Depois do abuso, o abusador
e o abusado, cortam fora de sua realidade mutuamente reconhecida, esse
período de tempo e experiência, como se aquilo nunca tivesse existido. Eles se
tornam as unidades de quinze minutos perdidas e dissociadas na vida da
criança.
Os rituais de entrada e saída sempre criam um espaço físico e um
espaço de tempo entre o abusivo e o abusado, em que a transformação de “pai”
em “pessoa que abusa” ocorre no ritual de entrada, dando-se o contrário no
ritual de saída. Tal separação é vital para se poder manter a dissociação e a
anulação. Jamais se soube de um pai que tomasse sua filha pela mão, e a
olhasse para ela e dissesse; “vamos para a cama fazer sexo?” (Furniss, p. 34).
A seguir, Furniss (2002), relata como exemplo o seguinte caso clínico:
44
E. sofreu abuso sexual de seu pai, durante oito anos. O abuso acontecia
durante o dia, quando sua mãe estava trabalhando. Ela ouvia o pai no andar de
cima da casa chamar: “E., vem arrumar o seu quarto”. Ela sabia que esse
chamado, não correspondia ao conteúdo verbal explícito, visto que seu quarto
estava em ordem, entretanto, silenciosamente, subia para o andar de cima. A
frase, “E., vem arrumar o seu quarto”, era o início exato do ritual de entrada do
abuso sexual, assim como uma parte integral desse abuso.
E. sabia que quando chegasse ao andar de cima entraria em seu quarto
escurecido com as cortinas cerradas, onde seu pai estaria de costas para a
porta entreaberta e de frente para a cama. Ele não a olhava, e sem dizer uma
palavra fechava a porta com o pé. As calças estariam abertas e então o abuso
sexual começaria. Não havia nenhum contato visual, apenas ordens
esteriotipadas durante o intercurso anal e vaginal.
No final, a interação sexual terminaria com um ritual de saída. O pai
puxava a calça para cima. Ao sair do quarto dizia para à filha arrumar a cama.
Depois ia ao banheiro e de lá para o andar de baixo. No ritual de saída, como
no ritual de entrada, o pai criava um espaço físico e um espaço de tempo entre
ele e a filha, no qual ocorria a transformação de pai na pessoa que abusava e
novamente no pai. E. permanecia em seu quarto até que o pai a chamasse: “E.,
você deve ter ficado com fome na escola”. Então ela descia e comia alguma
coisa, como se nada tivesse acontecido. Esta frase, era o final do ritual de saída
e a conclusão do abuso sexual. O pai se tornava pai novamente, E. e ele
continuavam vivendo como se jamais tivesse acontecido abuso sexual nesse
intervalo (Furniss, p. 35).
45
3.3 – Segredo internalizado
Gabel (1997), citando Summit, em “Child sexual abuse accommodation
syndrome”, descreve como as crianças que sofreram abuso sexual em segredo,
desamparo e engano, começam psicologicamente a adaptar-se. A interação
abusiva, que continuamente ameaça a vida, a integridade física e psicológica
da criança, se torna no processo de adaptação, um evento aparentemente
normal. Estruturas psicológicas básicas que permitem a sobrevivência psíquica
se desenvolvem ao custo de uma percepção gravemente distorcida da
realidade externa e emocional.
Os mesmos mecanismos que permitem à criança a
sobrevivência psíquica tornam-se obstáculos a uma
efetiva integração psicológica quando adulto. Se a
criança não é capaz de criar uma economia psíquica
para resignar-se ao contínuo ultraje, a intolerância ao
desamparo e o crescente sentimento de raiva buscarão
uma expressão ativa.
(Gabel, 1997, p.54, citando Summit).
A adaptação ao abuso e a criação da pseudoanormalidade são o
resultado da impossível tarefa psicológica de integrar a experiência. O segredo,
o desamparo e a ameaça à vida são constantemente reforçados em renomadas
invasões à autonomia e à integridade física e mental da criança. A criança é
forçada a viver uma vida aparentemente normal em que não parece existir
nenhum abuso. A síndrome de adaptação acontece através da internalização
da experiência inerente incongruente da interação abusiva.
Existem maneiras extremas que algumas crianças adotam para
sobreviverem. Tentam anular o abuso no próprio processo, ao dissociar-se da
experiência, criando assim, um estado pseudonormal que lhes permita
46
sobreviver ao abuso. Algumas fingem que não são elas que estão sofrendo, e
tentam ver o abuso à distância. Outras buscam entrar em estados alterados de
consciência, como se estivessem dormindo. Outra maneira de normalizar é
fingir, durante o intercurso, que a parte de baixo do corpo não existe.
Ao tentarem anular a experiência em processo, elas
criam uma disposição complementar ao desejo da
pessoa que abusa de negar o abuso em processo como
uma interação ilegal.
(Gabel, 1997, p.54, citando Summit).
A tradução da violação estrutural da integridade da criança numa
simulação de normalidade parece, em consequências a longo prazo,
semelhante aos processos descritos na síndrome do campo de concentração
(Furniss 2002, p.35, citando Bastiaans). O mecanismo normalizador extremo
que os sobreviventes do campo de concentração desenvolveram nesses
campos, frequentemente acabavam conduzindo a um estado psicológico em
que a experiência do campo de concentração parecia ter sido completamente
apagada. Ela somente voltava a emergir quando os mecanismos de manejo e
as defesas eram abalados mais tarde na vida por novos eventos estressantes.
No entanto, quando a experiência voltava a emergir, ameaçava, em flashbacks,
inundar e dominar completamente os mecanismos de manejo e as defesas do
sobrevivente.
Winnicott define trauma em 1969 como: “É aquilo contra o qual o
indivíduo não possui defesa organizada, de maneira que um estado de
confusão sobrevém, seguido talvez de uma reorganização das defesas, estas,
um tipo mais primitivo”.
47
O abuso sexual da criança como as síndromes de segredo e do campo
de concentração podem criar problemas de personalidade, de culpa e autoestima.
O aspecto comum de culpa se relaciona à experiência forçada de viver
junto, o perpetrador e a vítima, durante um longo tempo, e ao complexo padrão
psicológico desenvolvedor de interdependência e apego entre o abusador ou o
carcereiro e a vítima. Problemas de culpa e auto-estima também se relacionam
à incongruência da experiência de segredo sob ameaça, em que a realidade
jamais deve ser mencionada.
Se a criança não procurou imediatamente ajuda e não
foi protegida, sua única opção possível foi aceitar a
situação e sobreviver, ao preço de uma inversão dos
valores morais e alterações psíquicas prejudiciciais à
sua personalidade... Ela sobreviverá, seja por meio de
uma clivagem – funcionando como se tivesse várias
personalidades -, seja pela conversão da experiência no
seu oposto: o que era ruim será firmado como bom; seja
pelo mecanismo de identificação com o agressor.
(Gabel, 1997, p.54, citando Summit).
3.4 – Vínculos sexualizados
A excitação fisiológica, a gratificação secundária e o vínculo sexualizado
contêm elementos de experiência positiva no abuso sexual da criança. Eles
contribuem para o comportamento extremamente leal de algumas crianças e
adolescentes que sofreram abuso sexual.
48
“A excitação fisiológica da pele e especialmente da área genital no abuso
sexual pode ser extremamente dolorosa e assustadora, e isso é bastante
aceito” (Furniss, p.36).
Os aspectos sexuais fisiológicos do abuso sexual nas crianças está no
fato de que a excitação sexual genuína é extremamente formadora de hábito. A
formação de hábito da excitação sexual e alívio da tensão através da
estimulação sexual pode conduzir à forte sexualização. Por sua vez, o aspecto
fisiológico da excitação no alívio de tensão no abuso sexual e o forte elemento
formador de hábito podem conduzir à aditividade no comportamento de atuação
sexual que pode ser extremamente complexo na implementação terapêutica.
A gratificação secundária através de subornos e recompensas pode ter
efeitos corruptores. Isso inclui recompensas materiais que a criança abusada
sabe não serem recebidas pelas crianças que não sofrem abuso. Também
inclui convencer as crianças que elas são melhores, mais encantadoras e mais
especiais do que as outras pessoas significativas nas suas vidas, assim como
suas mães, irmãos e outras crianças. Um senso deturpado de ser especial pode
resultar em um senso de ego inflado e falso, e não se relaciona à apreciação
das verdadeiras necessidades da criança e dos cuidados em relação ao seu
verdadeiro eu.
“O abuso sexual pode levar a criança a um papel de pseudoparceria que
ela pode querer manter, mesmo a custo de confusão e perturbação emocional”
( Renshaw 1984, p.102). O forte apego das vítimas em relação ao abusador é,
em alguns casos um reflexo do fato de que a atenção abusiva que a criança
obtém, é a atenção e o cuidado parental mais importante, ou inclusive o único,
que recebe. A força desse apego pode ser vista de modo especial em famílias
com um único progenitor, em que o pai, enquanto único progenitor, é também o
abusador.
49
3.5 – O Abuso sexual como síndrome de adicção
O abuso sexual da criança como síndrome de adicção para a pessoa que
abusa, é complementar ao abuso sexual como síndrome de segredo para a
criança, para o abusador e para a família. Embora haja diferenças específicas
em relação as outras formas de adicção, as semelhanças existentes são
impressionantes (Furniss, p.37). É sob a ótica de Furniss que a seguir veremos
tais semelhanças.
1) As pessoas que abusam sexualmente de crianças sabem que o
abuso é errado e constitui crime.
2) A pessoa abusiva sexual sabe que o abuso é prejudicial à criança.
Apesar disso o abuso acontece
3) O abuso sexual, como outras adicções, primariamente não cria uma
experiência prazerosa, mas serve para o alívio de tensão.
4) O processo é conduzido pela compulsão à repetição.
5) Os sentimentos de culpa e o conhecimento de estar prejudicando a
criança podem levar a tentativas de parar o abuso.
6) O aspecto sexual egossintônico do abuso sexual dá a pessoa que
abusa a “excitação” que constitui o elemento aditivo central.
7) A gratificação sexual do ato sexual ajuda a evitação da realidade e
apóia uma baixa tolerância à frustração, mecanismos frágeis de
manejo e funções de ego frágeis.
8) Os aspectos egossintônicos e sexualmente excitantes do abuso
sexual da criança
e o subsequente alívio de tensão criam
dependência psicológica.
9) O abusador tende a negar a dependência, para ela própria e para o
mundo externo, independente de ameaças legais.
10) A tentativa de parar o abuso pode levar a sintomas de abstinência
tais como ansiedade, irritabilidade, agitação e outros sintomas.
50
Furniss, também faz uma abordagem sobre a função da criança no
abuso sexual pela ótica da pessoa abusadora, onde a criança funciona como
um instrumento de excitação, e não como pessoa. Face a esta distorção,
conclui-se:
•
a pessoa (criança) não é vista;
•
as necessidades da criança não são vistas;
•
o dano não é visto e,
•
não existe nenhuma empatia.
Gabel (1997), cita o caso de um pai que abusou da filha durante 4 anos.
Ele descreveu que sentia uma tensão física crescendo em seu corpo quando
estava sob estresse, o que fazia com que ele se sentisse como se estivesse
queimando. Ficava tenso, compelido, sentindo como se existisse uma nuvem
de neblina à sua volta. Face a isto, ele sabia que iria abusar sexualmente da
filha e assim propiciava as circunstâncias e abusava da filha. Depois do abuso,
ele se sentia culpado, entretanto não enfrentava a responsabilidade de sua
atitude, e o fazia evitando literalmente por um determinado tempo, olhar para a
sua filha. Certa vez quis parar o abuso, e pediu para a filha não se aproximar
dele, quando os dois estivessem sozinhos em casa. Entretanto quando tal fato
se repetia, ele criava situações como sair nú do banheiro, e então procurava a
filha e a abusava sexualmente e depois a culpava por isso.
O abuso sexual ainda pode ser negado psicologicamente como
expressão da evitação da realidade na síndrome do segredo e adicção, mesmo
nos casos em que a pessoa confessou o abuso abertamente no tribunal
(Furniss, p. 39). Assumir completamente a autoria de abuso sexual
como
realidade psicológica pode ser extremamente ameaçador e assustador para as
pessoas que abusam sexualmente. A própria fragilidade do ego que conduziu
ao abuso sexual como forma de evitar a realidade, faz com que seja muito difícil
para essa pessoa enfrentar sua responsabilidade pelo abuso cometido.
51
Um pai que admitira legalmente o abuso e que estivera na prisão por
dois anos, ele mantinha um estado psicológico de negação, dizendo que havia
ido para a prisão de modo a proteger sua filha, evitando que ela tivesse que
testemunhar no tribunal (Furniss, p.39).
Observa-se
portanto,
que
esse
pai
não
havia
enfrentado
psicologicamente o abuso. Para ele, o abuso não se tornara uma realidade e
fato psicológico, apesar das ações legais. O abuso sexual da criança como
síndrome de adicção, também significa que as pessoas abusivas sexual não
ficam “curadas” mesmo depois de um tratamento bem sucedido. Em
circunstâncias de estresse e em situações que lhes apresentam oportunidades,
essas pessoas abusadoras sexual correm o risco de voltar a abusar
novamente.
Aspectos de adicção também ocorrem nas vítimas do abuso. O
mecanismo que conduz à adicção, nas vítimas, parece ser uma combinação de
dois elementos principais.
Crianças que sofreram abuso sexual prolongado, frequentemente,
desenvolvem mecanismos de manejo desadaptativos para alívio da tensão do
estresse. A experiência do abuso sexual ensinou-as a lidar com o estresse e a
ansiedade através do alívio direto de tensão no comportamento aditivo. “A
adição tem a mesma função do comportamento sexualizado e da masturbação
compulsiva das vítimas de abuso sexual” (Furniss, p. 40).
Outro elemento no comportamento aditivo são os crescentes níveis de
ansiedade, como uma consequência da experiência total de abuso sexual e seu
contexto. Mecanismos de manejo inadequados associam-se à crescente
ansiedade decorrente do abuso. A adicção cria um alívio de tensão e uma
evitação da realidade que ajudam a vítima a evitar a enfrentar a realidade da
experiência abusiva.
52
3.6 – A conexão entre segredo e adicção
As síndromes de segredo e adicção são síndromes interligadas. “O
abuso sexual da criança é uma interação ilegal, aditiva para a pessoa abusiva,
em que a “droga” é uma criança estruturalmente dependente” (Furniss, p.40). A
adição a uma “droga” que é uma criança estruturalmente dependente se torna
extremamente difícil e, ao mesmo tempo da máxima importância.
Os aspectos do segredo e da adicção constituem o mecanismo de
evitação da realidade para o abusador, sendo que a criança é forçada a
associar-se à síndrome do segredo. O grande desafio de se parar o abuso
sexual da criança, de romper o segredo, de criar e manter a realidade e lidar
com os apegos mútuos, frequentemente fortes e destrutivos, entre a pessoa
que abusa e a criança, são os efeitos específicos do abuso sexual da criança
como síndrome conectadora de segredo e adição.
3.7 – A fala do corpo e do comportamento
“Eu tentei contar várias vezes, eu tentava mas ninguém me ouvia. Todo
mundo me olhava desconfiado e dava risada. Eu sofri muito” (sic). Essa frase
foi dita no primeiro atendimento de uma menina de onze anos, que vinha sendo
abusada sexualmente pelo pai desde os seis anos de idade e que quando
contou à sua irmã mais velha, felizmente ela acreditou.
Quando não se pode comunicar por via verbal, ou quando não se
consegue que ninguém nos ouça, nosso corpo e nossas atitudes falam por nós.
No caso da criança vítima de abuso sexual intrafamiliar, essa fala se traduz em
sintomas que atingem todas as esferas da atividade. Eles são simbolicamente a
concretização, ao nível do corpo e do comportamento, daquilo que a criança
sofreu e do que fantasmou.
53
A maioria das literaturas reconhece que a criança vítima da abuso sexual
corre o risco de uma psicopatologia grave, que perturba sua evolução
psicológica, afetiva e sexual (Gabel, p.62).
3.7.1 – Fontes de informação
Através da ótica de Gabel, coletou-se algumas fontes de informação que
veremos a seguir:
Um estudo canadense de Ontário, envolvendo 125 crianças com menos
de seis anos de idade, hospitalizadas por abuso sexual, sendo a proporção de
meninas 3,3% para cada menino. Do universo de 125 crianças, 60% sofreram
violências sexuais intrafamiliar. Dois terços das crianças examinadas por
profissionais
especializados
manifestavam
reações
psicossomáticas
e
desordens no comportamento: pesadelos, medos. Dezoito por cento (18%),
apresentavam distúrbios do comportamento sexual: masturbação excessiva,
objetos introduzidos na vagina e no ânus, comportamento de sedução, pedido
de estimulação sexual, conhecimento da sexualidade adulta precoce e
inadaptado para a sua idade.
Na França, V. Courtecuisse e sua equipe, de uma série de trinta e cinco
crianças e pré-adolescentes vítimas de incesto, 22 tentaram uma vez o suicídio.
Foram
constatados
estados
depressivos,
dificuldades
acentuadas
no
desenvolvimento escolar, fugas, anorexia, distúrbios sem substrato orgânico
que causavam sérios problemas físicos, toxicomania.
Deltaglia, psicóloga especializada junto aos tribunais, analisou noventa
perícias de adultos “autores de abusos” e de crianças vítimas de abuso sexual
no âmbito familiar. Segundo Gabel, na concepção da autora, mais do que o ato
54
sexual imposto à criança, é a violência da situação de dominação que provoca
as desordens de comportamento constatadas.
Sobre as consequências que as crianças vítimas de abusos sexuais
intrafamiliar enfrentarão na idade adulta, não é o que objetiva nosso estudo.
Entretanto convém acrescentar o que afirma Gabel,
Só os testemunhos cada vez mais frequentes de
adultos que sofreram abuso sexual intrafamiliar na
infância, permite-nos dizer que as reações podem sewr
tardias e se manifestam em distúrbios da sexualidade e
da parentalidade.
(Gabel, 1997, p.63).
3.7.2 – Alguns fatores implicativos
As consequências dos abusos sexuais intrafamiliar dependem de
inúmeros fatores que se intricam. Não se pode discorrer de trauma infligido à
criança sem pensar no contexto no qual ele ocorre, isto é, a situação da criança
em sua família e o impacto que o abuso terá após a revelação, as reações do
círculo dos conhecidos, as decisões sociais, médicas e judiciárias que intervirão
no caso.
A idade e a maturidade fisiológica e psicológica da criança abusada,
determinam consequências variáveis, segundo Gijseghem, professor da
Universidade de Montreal, citado por Renshaw: “quanto mais cedo ocorreu o
incesto, maior o risco de que as feridas sejam irreversíveis, particularmente ao
nível de identidade”. ( Renshaw, p. 92).
55
As sequelas que a criança pré-púbere apresenta dificultam sua evolução
psicoafetiva e sexual, afetam as identificações que ela poderia construir e
impedem que a adolescência seja um período de requestionamneto construtivo.
Gabel (p.64), citando Bigras, descreveu adolescentes psicóticos que
haviam sofridos relações incestuosas desde seus primeiros anos de vida.
O elo que une a criança e aquele que dela abusou, é também um fator
determinante, sendo que na maioria dos casos, a violência sexual intrafamiliar é
a que tem consequências mais graves, em virtude de provocar na criança uma
confusão em relação às imagens parentais: O pai deixa de desempenhar um
papel de protetor e representante da lei e a omissão materna torna-se uma
evidência.
A natureza do ato imposto à criança é variável: pode tratar-se de
contatos físicos, de masturbação recíproca; de voyerismo, de exibicionismo, de
penetração oral, vaginal ou anal; esses e outros atos vêm sempre associados
ou surgem progressivamente.
Por sua vez, também é difícil estabelecer uma diferença entre um ato
isolado e uma relação que dura anos. Certos atos únicos que permanecem
velados e ressurgem na adolescência são particularmente devastadores.
Entretanto, os abusos sexuais fora da família são denunciados com mais
facilidade pela criança.
O conhecimento do contexto onde a criança cresce é essencial: sabe-se
que o incesto é sintoma da disfunção familiar, onde existe uma confusão de
papéis e de gerações.
Há de se considerar que, quando o abuso sexual é revelado, a maneira
como a criança está cercada determinará a sua reação; além disso, se ela não
56
estiver preparada, as investigações da equipe multidisciplinar e judiciais às
quais ela deve se submeter poderão produzir-lhe um novo trauma.
Por fim, as medidas judiciais que são tomadas em relação ao adulto
incestuoso provocam literalmente quase sempre um rompimento da família, do
qual a criança se sentindo responsável, agrava a sua culpa.
3.7.3 – Corpo e comportamento: comunicação
As reações imediatas da criança, são ao mesmo tempo, sinais clínicos
que podem permitir evocar a existência de uma agressão sexual quando ela
não confiou a alguém. É o caso das agressões cometidas por um adulto em
quem a criança confiava até então; nesse caso, a criança é subitamente
confrontada com um comportamento diverso: É como se ele tivesse ficado
louco, virado um monstro...”, disse uma menina de 8 anos, soluçando, em um
jornal televisivo, denunciando seu pai. Para Ferenczi (1933), é a “linguagem da
paixão que amedronta e perturba a criança” (mais que o ato sexual).
A criança pode reagir com um estado de estresse que se revela pela
agitação ou pelo choque e recuo, uma anestesia afetiva seguida de terror,
regressões, manifestações psicossomáticas. A intensidade dos sintomas, sem
que tenha havido antecedentes, em geral alerta os familiares; mas a criança em
estado de choque, às vezes acompanhado de mutismo, só consegue contar o
que lhe aconteceu depois de sentir confiança: “Esperei duas horas, segurandoa em meus braços, antes dela começar a chorar e a falar comigo”, conta uma
professora, referindo-se a uma criança de sete anos, que havia sido estuprada
por seu pai.
Em certos casos, a agressão vem acompanhada de lesões genitais
agravadas por danos físicos tais como tentativas de estrangulamento e
57
ferimentos. Como essas situações dramáticas exigem hospitalização, a
intervenção é imediata e o diagnóstico não apresenta dúvidas.
Em grande parte dos casos, depara-se com crianças que há anos vivem
uma relação incestuosa, estabelecida progressivamente desde a tenra idade. A
criança é envolvida em uma relação muito próxima e erotizada, que termina e
culmina em contatos genitais. Às primeiras tentativas de sedução do adulto
somam-se ameaças para forçar a criança a submeter-se. O que ela pode
aceitar aos quatro ou cinco anos como uma brincadeira secreta, conforme lhe
dizia o adulto, torna-se uma relação imposta da qual, pouco a pouco, toma
consciência.
Produzem-se,
então,
rupturas
traumáticas
sucessivas,
manifestadas em sintomas que são, ao mesmo tempo, sinais de alerta.
L. foi examinada aos cinco anos de idade, por apresentar incontinência
fecal noturna. Aos dez anos, por distúrbio do sono e baixo rendimento escolar.
Aos quinze, com o aparecimento de rituais de lavagem, com obesidade e
interrupção da menstruação. L. revela que à noite, seu padrasto vem à sua
cama e a obriga a atos orais-genitais. Aos cinco anos, ela já havia feito
perguntas sobre o sexo do padrasto e aos dez anos falara à professora sobre
as carícias que o padrasto lhe fazia (Gabel, p. 66).
Interessante consignar ao alto grau de intuição de William Motsloy (s.d.),
quando afirmou: “Quando o sofrimento não pode expressar-se pelo pranto, ele
faz chorarem os outros órgãos”.
No caso explicitado por Gabel (1997), observa-se que L. vem vivendo já
alguns anos uma experiência de violação de seu corpo, cuja porta de saída que
ela encontrou foi a sintomática. Seu corpo fora profanado. Existiu a perda de
integridade física; sensações novas foram despertadas mas não integradas. L.,
exprime a angústia de algo se quebrou no interior do seu corpo. Suas formas
58
anteriores de comunicação com a mãe e a professora houvera falhado.
Ninguém lhe dera crédito.
As queixas somáticas habituais da criança vítima de abuso sexual
intrafamiliar são: mal-estar difuso, impressão de alteração física, persistências
das sensações que lhe foram impingidas.
A enurese e a encoprese são frequentes, sobretudo nas crianças
menores e nas que sofreram penetração anal.
As dores abdominais agudas sem substrato orgânico ocorrem em todas
as idades. Crises de dispnéia, desmaios, problemas relacionados à alimentação
como náuseas, vômitos, anorexia ou bulimia – que assumirão, em seguida,
outro significado, a saber, a recusa da feminilidade e a destruição do corpo.
Nesse estado, a anorexia e a bulimia podem ser fenômenos de rejeição e de
compensação transitórios.
A interrupção da menstruação dá-se mesmo quando não houve
penetração vaginal. A repugnância de si mesma podemos acrescentar os rituais
de “se lavar”, as dermatoses provocadas por lesões consequentes do ato de se
coçar, que vão até o sangramento, sendo essa uma maneira de se reapropriar
do corpo pela excitação, pelo prazer e pelo sofrimento.
As perturbações do sono são constantes e traduzem a angústia de baixar
a guarda e ser agredido sem defesa. Observa-se a recusa das crianças
menores em ir deitar-se, agarrando-se ao adulto não implicado. Do mesmo
modo, observam-se rituais de averiguação, de prevenção ao colocar em torno
da cama objetos que possam fazer barulho caso alguém se aproxime; certas
crianças dormem completamente vestidas. O despertar angustiado durante a
noite também é muito frequente e se manifesta sob a forma de pesadelos, e às
vezes persistem até a vida adulta. Temporariamente, ocorre o prejuízo das
59
funções intelectuais e criadoras. A criança deixa de brincar, desinteressa-se
pelos estudos, fecha-se em si mesma, torna-se morosa ou inquieta.
As perturbações nas crianças de cinco a dez anos de idade podem
expressar-se por meio de desenhos esteriotipados e precisos que demonstram
conhecimentos sexuais inadequados para a sua idade; neles aparecem sem
nenhuma simbolização, atributos sexuais e cenas de coito, que são bem
diferentes daqueles que os pré-adolescentes desenham entre si.
Se o diagnóstico de abuso sexual não foi feito, e se os adultos não
acreditaram na criança, os distúrbios são mais discretos.
Summit (1983), descreveu a síndrome de acomodação
da criança vítima de abusos sexuais; a criança deve
aprender a aceitar a situação e sobreviver a ela, sob o
risco de que as consequências só se manifestem mais
tarde na forma de graves problemas de personalidade
(Gabel, p.68).
Quando uma criança tem oportunidade de revelar o que lhe aconteceu,
recebendo crédito e ajuda, as manifestações mais notórias desaparecem; ela
reencontra o interesse pelos outros e pela brincadeira, mas a angústia pode
tomar forma de neurose com diversas fobias: medo do escuro, da solidão,
agorafobia, afastamento das pessoas do mesmo sexo do agressor, com um
componente histérico às vezes exagerado; esses são alguns dos exemplos
possíveis.
Pesquisas americanas indicam que as perturbações da sexualidade são
sintomas evocadores dos abusos sexuais. Na criança pequena, a excitação
sexual manifesta-se por comportamentos inadaptados de voyeurismo e
exibicionismo, bem como pela exploração ou agressão sexual em relação a
60
outras crianças. Punir sem tentar compreender o que está subtendido, é
desconhecer o mal-estar de uma criança que tenta passar de uma posição
passiva à ativa, elaborando o trauma que sofreu. Tal posição é comparável à
descrita por Freud:
a respeito do jogo do carretel e do comportamento das
crianças que viveram experiências terríveis durante
tratamentos médicos: ao mesmo tempo em que passa
da experiência à atividade lúdica, a criança inflige a um
colega de jogo o desprazer que ela própria viveu e se
vinga, assim, na pessoa desse substituto
(Freud,1920).
Essas atividades da criança que repete a cena traumática identificandose com o agressor nem sempre têm caráter lúdico; às vezes constituem uma
passagem ao ato, com violência sexual.
P., um menino de cinco anos, foi rapidamente confiado a uma família
adotiva, com apoio do Estado, depois que foi sodomizado por seu pai; a mãe
adotiva não mais quis acolhê-lo, depois que o surpreendeu com seu filho de
três anos, reproduzindo com um objeto o que ele havia sofrido (Nadelson, 1982,
p.106).
Entre adolescentes, que sofreram violência sexual intrafamiliar quando
crianças, especialmente no caso de meninos, detectou-se a agressão sexual
sobre outras crianças. Entre adolescentes meninas, observou-se sobretudo à
repetição do que sofreram, através de um comportamento de sedução. Em
outros casos, a sexualidade é exercida por uma vertente mais perversa: a
ninfomania e a prostituição, por exemplo, que são formas de desprezar o
parceiro, mas também inconscientemente, uma maneira de se desprezar e de
se destruir; pode-se associar a isso a toxicomania e a delinquência.
61
Também, às vezes na adolescência um rapaz vem à consulta com medo
de se tornar homossexual, ou uma moça vem se consultar, dizendo-se frígida.
Maioria das vezes, ambos adolescentes trazem histórias de uma infância
sofrida de abuso sexual intrafamiliar.
Paradoxalmente, é no momento da revelação que se produzem graves
descompensações: tentativas de suicídio, fugas, prostituição, toxicomania ou
manifestações psicóticas. A criança parecia adaptar-se à situação, a coesão do
“Eu”, era mantida pela dominação do parceiro; no momento da revelação, a
criança pode encontra-se só, sem pontos de referência, exposta assim à
confusão.
62
CAPÍTULO IV
4. AUTOR DA VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR
4.1- INCESTO: UMA VISÃO PSICOSSOCIAL
Uma das formas que o frágil ser humano encontrou para se defender,
crescer e poder evoluir, foi a de viver em sociedade e, para isso, foi necessário
estruturar uma linguagem, constituir a família e reprimir o ato incestuoso.
Para entendermos a família exogâmica, ou seja, a família que proíbe o
incesto, devemos perceber o salto qualitativo que a espécie deu, no momento
em pode discernir o instinto sexual, que é um comportamento hereditário
próprio de todos os seres vivos, da pulsão sexual, que é exclusiva dos seres
humanos. Podemos então compreender a sexualidade humana como a
somatória do instinto sexual e da pulsão sexual.
Entretanto, não se pode falar em sexualidade sem antes também falar
em cultura, pois a sexualidade também é um processo cultural. As duas
características principais do desenvolvimento da cultura são as qualidades
humanas e as consciências dessas qualidades.
Mas o fato do homem ter consciência de sua cultura e de possuir
instrumentos que possa interferir e modificar essa mesma cultura, a evolução
cultural tornou-se mais rápida que a evolução orgânica. Como exemplo, temos
as mutações bacterianas em decorrência do uso de antibióticos, os transplantes
de órgãos ou mesmo os implantes de embriões.
63
Pode-se considerar que a cultura é a somatória do conhecimento que o
ser humano tem de si mesmo e do mundo que o cerca, com as ansiedades
decorrentes daquilo que ainda é desconhecido e que se deseja conhecer.
Portanto a cultura é algo vivo e dinâmico.
Até o período Paleolítico, tinha-se a idéia de que a mulher era autosuficiente na geração dos filhos. Também foi necessário um longo tempo para
que se estabelecesse uma correlação entre fertilidade e sensualidade e que ela
fosse captada pela consciência humana.
Somente no período Neolítico é que o homem surge como o elo
necessário entre a procriação e a relação sexual. Também nesse período, o ser
humano passa a produzir os seus alimentos, mostrando assim, provavelmente,
uma de suas primeiras interferências na natureza.
O conhecimento da paternidade é um dado que se funda na observação,
pois a descoberta da relação entre sexo e procriação não é um dado imediato
da consciência. Em nível psicológico, só ocorre quando a criança manifesta
interesse pela figura do pai, o que só pode ser vivenciado por ela após sua
própria descoberta da paternidade, podendo então discriminar o “ser” do “ter”
(Aberasturi, 1994, p.28).
No
campo
social
essa
descoberta
revolucionária
permitiu
a
representação simbólica do conceito de casal e é provável que seja neste
período que se instaura o tabu do incesto.
Pode-se imaginar que foi nessa época que o instinto
sexual, como preservados da espécie, evoluiu para a
pulsão sexual, observável através da variação dos
diferentes fins sexuais, pois os seres humanos já não se
acasalavam como os outros animais, com a única
64
finalidade de preservar a espécie, mas o faziam por
motivos afetivos e de conveniência.
(Cohen, 1993, p. 125).
Fernandez de Castro (1990), afirma que o “casal” ou o “casamento” é
uma imposição forçada da cultura. Sua afirmação se baseia na observação de
que em todas as sociedades podemos encontrar, nos seus livros sagrados, este
tipo de imposição, seja através de suas legislações míticas, seja em seu folclore
de origem ancestral, seja nos totens lendários. Estas obras relatam a história de
casais quase divinos que deram origem à humanidade, e que tem como função
educar a sociedade, mostrando sempre a necessidade de reafirmar que
existem estruturas sociais diferentes, e divindades que impõem a lei.
Por esse motivo, a proibição do incesto, que se tornou inerente ao ser
humano, é algo que deve ser alcançado pelo indivíduo para que ele possa
ingressar na cultura. Portanto, esta proibição, que não é natural, deve ser
ensinada a cada ser humano que nasce.
A história da humanidade é revivida por todo o ser humano, pois a
psicanálise demonstra que esse é o caminho do desenvolvimento psicossexual
pelo qual todos devem passar. Como afirmou Freud, a criança nasce como um
ser perverso-polimorfo e, como foi a sua passagem pelo complexo de Édipo,
que lhe permite alcançar uma sexualidade adulta.
No período Neolítico, o ser humano descobriu ao mesmo tempo a
procriação e a agricultura. Vê-se que levou milhares de anos para que ele
relacionasse o ato sexual com a procriação e a semente com o fruto. Aliás até
hoje, muitas pessoas ensinam às crianças sobre fecundação utilizando-se da
metáfora da semente.
65
Da agricultura veio o trabalho e da procriação o casal, ocorrendo a
primeira revolução sexual, e ambas promoveram a revolução social. Para
manter a ordem social e sexual o ser humano foi obrigado a elaborar as leis
morais e científicas. Na China o Deus-Rei Fohi, na Índia, Manu, no Egito,
Menes, no Oriente Médio, Deus, passaram a ser os primeiros legisladores
morais.
Para mostrar a importância da descoberta da paternidade, podemos
observar como a humanidade passou a admirar o falos. Investigações
arqueológicas descobriram falos que foram entalhados nos últimos tempos do
Neolítico, indicando que nesse período começou o culto ao macho, e ao mesmo
tempo que decai o antigo culto à mulher.
Aparecem os deuses itífalos ( ithis ereto; phallós pênis); na Índia, foram
encontrados selos gravados em barro e pequenas figuras que representam um
deus em forma de falo; no Egito, o pênis do deus Ra foi reproduzido em
milhares de adornos; na ilha grega de Delos encontram-se imponentes
monumentos fálicos dedicados as Dionísio; em Pompéia foram encontrados
vários pênis decorativos da época Romana (Fernandez de Castro, p. 102).
Para Morris (1975), um dos fatores que favoreceram a nossa evolução foi
a mudança no comportamento sexual do macaco nu, proporcionada pelo coito
cara a cara, que permite observar o estado emocional do parceiro. Pode-se
conjecturar que esta nova postura sexual permitiu que a relação deixasse de
ser apenas uma relação instintual, passando a ser também libidinal.
“Interessante observar que esta postura, “cara a cara” na relação sexual é
definida popularmente como “papai e mamãe” e quem sabe desta forma fica
vinculado o estado emocional deste tipo de relação com a estruturação da
família” (Cohen p. 127).
66
Segundo Cohen (1993), o incesto é caracterizado pela inexistência de
vínculo familiar e a existência de abuso sexual. Para esse autor, é necessário
esclarecer o conceito de perversão sexual, visto que ela está sempre
referendada pela não aceitação de uma norma social. No caso do incesto, a
perversão seria a relação sexual com algum membro da família que foi
considerado tabu.
Entendemos que a perversão sexual é a atuação da
pulsão sexual com determinado objeto e fim que foram
socialmente proibidos. O que deve ser modificado no
ser humano é o destino desta pulsão, pois somente
dessa maneira poderemos considerar que um indivíduo
alcançou
a
sexualidade
adulta.
A
atuação
das
perversões pode ser observada nas pessoas que não
atingiram essa etapa do desenvolvimento. Em alguns
casos a pressão, a fonte, o fim e o objeto sexual são
confundidos, e, em outros casos, as gratificações
sexuais são obtidas através de satisfações preliminares
das pulsões, que podem ser identificadas com os atos
preparatórios para um fim sexual, transformando-se no
próprio ato sexual
(Cohen, p.128).
O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, à partir
da terceira edição (DSM III), objetivando retirar o estigma que a palavra
perversão sexual colocou na sexualidade humana, retirou o termo “perversão
sexual”, e o substituiu por “parafilia” (para desvio; filia aquilo para que a pessoa
é atraída), mostrando desta maneira que as fantasias parafílicas ou os
estímulos equivalentes podem ser necessários à excitação erótica e estão
incluídos na atividade sexual.
67
Pelo DSM IV, as características essenciais de uma parafilia consistem
de fantasias, anseios, sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e
sexualmente excitantes, em geral envolvendo:
•
objetos não humanos;
•
sofrimento ou humilhação, próprios ou do parceiro, ou
•
crianças ou outras pessoas sem o seu consentimento, tudo isso
ocorrendo durante um período mínimo de seis meses.
Face ao exposto no DSM IV, o autor de um ato incestuoso portanto, deve
ser considerado pelo menos um portador de distúrbio sexual do tipo parafílico,
visto pelo viés de um profissional não médico.
Pela ótica social, a parafilia não se encontra nas fantasias parafílicas ou
nos estímulos que podem ser necessários para a exitação erótica e que estão
presentes na atividade sexual humana. Mas sim, ocorre quando a atividade
sexual está associada ao não consentimento do parceiro ou quando ela
transgride alguma significação social ou alguma lei (Cohen, p.128).
O DSM IV, classifica o incesto ou abuso sexual intrafamiliar,
tipo
pedofilia (302.2), de uma relação considerada patológica somente se a vítima
for uma criança.
Forward & Buck (1989), definem incesto diferenciando entre uma visão
legal e uma visão psicológica, mostrando dessa forma os dois níveis de
articulação sobre a problemática do tabu do incesto. Assim eles definem:
•
Legal: relação sexual proibida por lei (religiosa ou civil) entre
indivíduos com um grau de parentesco;
•
68
Psicológico: qualquer contato abertamente sexual entre pessoas que
tenham um grau de parentesco (consanguíneo ou por afinidade), ou
que acreditam tê-lo.
Kadish (1983), faz uma síntese desses dois aspectos, definindo o
incesto: “O matrimônio, a coabitação ou a relação sexual entre as pessoas com
um certo grau de consanguinidade ou afinidade, motivo pelo qual o matrimônio
não é permitido”. (Ferracuti, v.8, p.47).
Entretanto, o National Center on Child Abuse and Neglet, é quem coloca
a terceira variável fundamental sobre a questão do incesto, quando define o
incesto como “abuso sexual intrafamiliar” e que o mesmo deve ser penalizado
(Cohen, p.131).
Essa definição inclui não somente a relação sexual genital mas também
qualquer ato que tenha por finalidade estimular uma criança sexualmente, ou
usá-la para a estimulação sexual do perpetrador ou de qualquer outra pessoa.
O incesto é o abuso sexual intrafamiliar, com ou sem violência explícita,
caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de um dos
membros do grupo e que possui um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o
matrimônio (Conhen, p.132).
Em 86,97% dos casos em que os agressores foram identificados,
agressor e vítima moram na mesma casa. Além disso, possivelmente, todo o
núcleo familiar sabe de fato, de forma consciente ou inconsciente, fazendo uma
pacto de silêncio, seja visando obter algum benefício secundário, seja por estar
muito assustado. Desses 86,97%, os maiores percentuais de grau de
parentesco do agressor com a vítima foi:
•
Pai: 99 casos (41,60%) e
69
•
Padrasto: 49 casos (20,59%). (Cohen; Matsuda, 1990,p.135).
Observa-se que 62,19% dos agressores foram o pai ou o padrasto.
Afirma Cohen, que na maioria das vezes, este tipo de violência sexual
intrafamiliar ou é consumado pelo pai que chega em casa alcoolizado e violenta
sexualmente sua filha, que está a seu alcance, pois a mãe geralmente é fraca e
submissa, ou é aquele no qual a filha mais velha toma o lugar da mãe, que
morreu ou que está muito doente ou ausente.
Quando ocorre este tipo de relação incestuosa devemos considerar que
as funções familiares são alteradas: o pai passa a ser “marido”, a mulher aceita
perder a função de esposa e de mãe e a filha passa a exercer tais funções.
Importante ressaltar que esses agressores além de não exercerem a
função de pai e de mãe, também não permitiram que às suas vítimas tivessem
o direito de saberem o que é ser filho.
A psicanálise aceita a hipótese de que o tabu do incesto deriva do
conceito de “poder impessoal”, ou seja, a aceitação de um poder superior ao
poder pessoal, que é o poder da cultura. Esse poder impessoal deve ser
ensinado a todas as crianças, sendo esta a função de Pai, ou seja, ele é o
suporte da Lei simbólica e permite estabelecer o triângulo familiar ao proibir o
incesto.
4.2 - O ABUSADOR SEXUAL DA CRIANÇA
Diversos estudos americanos publicados recentemente analisam o
discurso dos agressores que perpetraram abusos sexuais em crianças. A
pesquisa de Conte, Wolf e Smith (1989), é representativa dessa corrente. Esses
70
autores estudaram uma amostragem de vinte adultos, que abusaram
sexualmente de crianças e os entrevistaram com 69 questões, sobre o critério
de escolha da vítima, a forma pelo qual se engajam e mantêm essas crianças
nas situações de abuso sexual.
Esses indivíduos que abusaram sexualmente das crianças, eles estão
em tratamento em um centro de terapia especializada em abusos sexuais, e já
reconhecem que seduzir e tocar uma criança é um abuso sexual. Nesta
amostragem, os abusos sexuais incestuosos, não foram diferenciados dos
outros tipos de abusos.
Gabel (1997), referindo-se a pesquisa de Conte, Wolf e Smith,
selecionou algumas das respostas considerada por ele como sendo das mais
importantes, e que abaixo serão apresentadas:
•
De quantas vítimas você “abusou” e qual era a sua idade?
Resposta: a média é de 7,3,sendo que a vítima mais jovem tinha
dezoito meses, com a predominância de meninas em relação a
meninos. A maior parte dos agressores interessa-se por crianças da
família e crianças ligadas à família.
•
O que seduz na aparência da criança?
Certas características físicas tais como: pele suave, cabelos longos, o
fato de ser bonita, uma criança aberta, amigável com eles e que
tenha confiança no adulto.
•
Dentre várias crianças possíveis, como você faz a sua escolha?
As
respostas
denotam
a
capacidade
de
escolher
crianças
vulneráveis, por exemplo: a mais nova, para que ela não fale; aquela
71
da qual as pessoas zombam; a que parece mais carente; a criança
muito amigável com o adulto.
•
O que seduz no comportamento da criança?
Obteve-se as mesmas respostas da questão precedente, acrescida
de: alguém que já foi vítima e que é mais submisso.
•
Quando você fez a sua escolha, pensava na possibilidade de ser
apanhado?
A maior parte dos agressores pensa nisso e tem medo. Isso irá
influenciar a sua estratégia em relação à criança: preferirão crianças
que não os denunciem; um deles por exemplo, revela que por essa
razão escolhe crianças menores de sete anos de idade.
•
Como você faz para começar os contatos sexuais com a criança?
A maioria descreve um processo de implementar relacionamento
antes de chegar aos contatos sexuais. Por exemplo: conversar com
ela, passar um tempo em sua companhia, tocá-la com frequência,
fazer-lhe carinhos. Um deles conta que depois de Ter brincado com a
criança e ganhar a sua confiança, começa a utilizar diferentes modos
de contato: primeiro toca as costas da criança, depois a cabeça etc.,
com o objetivo de testar os limites da vítima. Outro afirma que isola a
criança das demais pessoas e faz carícias, de uma maneira lúdica,
aproximando-se cada vez mais dos órgãos sexuais.
•
O que você diz para começar a ter contatos sexuais com a criança?
Pode-se discernir duas estratégias: de um lado, falar de sexo e/ ou
contar piadas de conteúdo sexual; de outro lado, discutir o assunto
com a criança, com o objetivo de estabelecer uma relação.
72
•
Como você controla a vítima?
Os agressores utilizam, em geral, a autoridade do adulto sobre a
criança e a isolam das outras pessoas.
•
Você ameaça suas vítimas?
A maior parte deles responde “não”. De fato, eles mostram que se
aproveitam do fato de serem maiores, de sua autoridade de adultos.
O agressor pode, assim, sugerir à criança que a revelação do abuso
poderia feri-lo, ferir aos dois e às outras pessoas que vivem em torno
deles.
•
Se você tivesse que escrever um livro: “como abusar sexualmente
de uma criança, qual seria o conteúdo?
As respostas revelam várias estratégias: tornar-se amigo de uma
criança
carente
de
afeto
e
de
cuidados;
dessensibilizar
progressivamente a criança em relação aos comportamentos
sexuais; assustá-la e intimidá-la.
Face as respostas acima, o estudo demonstra o seguinte perfil de um
adulto abusivo sexual da criança, ou seja; o pedófilo
1) Que os agressores sentem-se capazes de identificar as crianças
vulneráveis
e
aproveitar
dessa
vulnerabilidade
para
abusar
sexualmente delas. Certas formas de vulnerabilidade são da própria
natureza da infância: ser pequeno, não falar e, portanto, não saber
revelar o abuso;
2) Que a coerção é inerente ao abuso sexual. O adulto é, de longe o
mais avantajado no combate entre a criança e o abusador, daí a
complexidade da prevenção dos abusos sexuais: não basta ensinar
73
as crianças a dizer não ou a fugir. É preciso, também, ensiná-las a
identificar os comportamentos manipuladores e coercitivos dos
adultos e mostrar como podem escapar e/ou buscar ajuda;
3) Que os abusadores empenham-se em dessensibilizar as crianças
aos contatos sexuais. Essa estratégia parece bastante sofisticada,
com uma progressão do contato das regiões não-sexuais (pernas,
costas) em direção aos órgãos genitais; tudo isso se dá no quadro de
uma relação que progrida de tal modo, e tão bem, que a crinça pode
sentir que deu seu consentimento (não protestou quando o adulto
massageou-lhe as costas) ao abuso.
Outras características, algumas semelhantes a já citadas, pode-se
acrescentar no perfil do abusador sexual, tais como:
Geralmente ele procura uma profissão que esteja próxima das crianças.
Como estratégia de aproximação, normalmente usa como arma de sedução o
suborno material ou afetivo, pois ele tem uma sensibilidade grande em perceber
o ponto fraco da sua vítima, explorando a curiosidade infantil e o interesse por
atividades lúdicas. Também usa a ameaça para impedir que seja denunciado
por suas vítimas. Outra característica é a procura da obtenção da confiança da
mãe, como também busca casar ou se unir com mulher que tenha filhos
pequenos.
Ensina-se
às
crianças
a
desconfiarem
de
estranhos,
mas,
simultaneamente, a serem obedientes e afetuosas com todos os adultos que
cuidam delas. A criança não provoca, não seduz o adulto. “Os adultos que
procuram crianças pequenas como parceiros sexuais descobrem rapidamente
que as crianças não têm defesas, não se queixam e nem resistem” (Gabel,
1997, p.68, citando Summit).
74
CAPÍTULO V
5. O PROCESSO FAMILIAR INCESTUOSO
Os indivíduos que mantém relações sexuais dentro da própria família,
excetuando a relação entre os cônjuges, não configuram apenas como
abusivos sexuais, mas também como uma quebra do pacto social do qual
depende a família, havendo a troca ou ausência de determinadas funções.
Assim, este tipo de relacionamento sexual aparece como sinalizador de uma
ausência de estruturação dentro deste grupo de pessoas.
É importante ressaltar que o conceito de família utilizado no presente
estudo, leva-se em conta a “função de parentesco social” entre as pessoas, não
importando se existe entre elas um laço de consaguinidade ou afinidade, mas
sim, se há existência de um laço emocional que justifique uma relação da qual
se esperam funções psico-afetivas relativas a membros de uma família.
Destes conceitos, depreende-se que a relação sexual incestuosa é
totalmente subjetiva pelos aspectos que a caracterizam: tanto o vínculo familiar,
quanto o abuso sexual. Assim, uma melhor compreensão da dinâmica que
envolve estes grupos de pessoas pode auxiliar na abordagem desta complexa
questão.
5.1- Confusão nos diferentes níveis de dependência
Nas famílias que ocorre abuso sexual da criança, as fronteiras entre
gerações foram rompidas em certas áreas do funcionamento familiar embora
permanecendo intatas em outras. A inversão da hierarquia familiar entre pais e
75
filhos em algumas áreas conduzem à incongruência entre os diferentes níveis
de funcionamento familiar, o que é desorientador e perturbador para a criança.
No nível do cuidado prático, não parece haver diferença nos padrões das
famílias com abuso sexual. Entretanto, no nível sexual, a dependência
estrutural da filha ou filho, opõe-se ao seu papel de parceiros pseudo-iguais no
inadequado relacionamento sexual intergeracional com o abusador.
Em termos de dependência emocional, o pai está em nível de
imaturidade semelhante ao da criança.
Numa ampla gama de diferentes fatores individuais etiológicos e
precipitantes que levam ao abuso sexual, o processo subjacente central está
nos conflitos emocionais e sexuais entre os pais, que se encontram presos
nessa desigual parceria.
Quando uma criança vem em busca de cuidado emocional e recebe uma
resposta sexual, mais tarde, essas crianças que sofreram abuso sexual, em sua
confusão entre o cuidado emocional e experiência sexual podem apresentar
comportamento sexualizado, quando na verdade o que elas querem é o
cuidado emocional. Num extremo, os meninos podem crescer e se tornar
também pessoas que abusam sexualmente, e as meninas podem repetir a
confusão emociossexual tornando-se promíscuas e prostitutas.
Importante destacar é o grande número de pesquisas que exploram a
questão de indivíduos
que foram vítimas de abuso sexual, tornaram-se na
adolescência ou vida adulta, perpetradores deste tipo de abuso.
Pesquisas indicam que a maioria dos pais “abusivos sexuais” tem na sua
própria história experiências de abuso ou negligência na infância. Estudos de
caso indicam que pais que foram vítimas de incesto tem inibições em relação a
76
carinho e ternura, além da tendência a repetir a experiência incestuosa da
infância com as crianças da sua família (Goodwin,1989).
Além da percepção do ciclo “vítima-agressor”, nota-se uma dinâmica
específica nestas famílias onde se incluem todos os membros, tornando
inadequada a estigmatização nestes termos.
Ao levar em consideração a dinâmica familiar, tira-se do foco o problema
individual. A família é um “sistema com uma estrutura inconsciente” e, de
acordo com este, confecciona regras para manter sua estabilidade. Estas
regras definem o funcionamento do grupo familiar ( Berenstein, 1989).
No casamento ou união, o conflito sexual é ignorado e não manejado. A
incapacidade dos pais de lidar com seus problemas sexuais e emocionais e a
introdução de um tabu contra o reconhecimento dessas tensões e conflitos na
família, estabelece o cenário que pode manter o abuso sexual da criança por
longo tempo na família uma vez que o mesmo já tenha começado.
Em um processo secundário da manutenção do abuso, a criança se
mantém aprisionada
no abuso sexual com o pai, com base nas ameaças
paternas, sejam físicas ou emocionais, ou ambas. Sentimentos mútuos de culpa
e medo da punição impedem a revelação por parte de qualquer um deles.
Por outro lado, o desenvolvimento da confiança e proximidade emocional
entre mãe e filha fica bloqueado por sentimentos de rejeição ou culpa, apesar
de uma possível pseudo proximidade entre ambas. Tal atitude impede o claro
reconhecimento do abuso sexual e faz com que a criança não receba ajuda
dessa mãe. O segredo se une a toda uma confusão de hierarquias nos
diferentes níveis de cuidado prático, cuidado emocional e parceria sexual entre
os pais, e entre cada progenitor e a criança. É o caos!
77
A confusão sistêmica de hierarquias nos diferentes níveis funcionais em
um sistema de segredo, une os membros da família em um sistema conivente,
em que o abuso sexual pode perdurar por muitos anos.
5.2 - O padrão familiar
Quando na revelação do abuso e subsequente tratamento, foram
detectados diferentes padrões de relacionamento nas famílias com abuso
sexual da criança. Nela foi identificado diferentes funções do abuso sexual, que
opera como mecanismo evitador ou regulador do conflito nessas famílias
(Furniss, 2002, p.51).
Obviamente, é sabido que fatores psiquiátricos e psicológicos individuais
influenciam os relacionamentos interpessoais dentro da cada família. Uma
ampla gama de fatores de personalidade e diferentes experiências de vida dos
pais, e a grande variedade de circunstâncias em que as unidades familiares se
estabelecem, agem como fatores etiológicos e precipitantes na formação do
padrão de relacionamento de abuso sexual da criança na família.
A razão individual para os pais se tornarem pessoas que abusam, ou
para as mães serem incapazes de proteger, podem ser muito variadas. Ambos
podem ter sofrido abuso sexual quando crianças. A experiência individual de
vida dos pais faz com que muitas vezes seja compreensível porque eles
reagem de tal modo e porque escolheram
um ao outro como parceiros,
frequentemente recriando o padrão familiar de suas próprias famílias de origem.
A descrição do padrão familiar com a respectiva função do abuso sexual
da criança como mecanismo “evitador de conflito” ou “regulador de conflito” é
essencial para que os terapeutas entendam o processo familiar na intervenção
(Furniss,p.52)
78
A pergunta não é por que e qual a razão individual surgiu o presente
padrão de relacionamento, mas sim, como é que esse padrão funciona. Ou
seja, como é que funciona esse padrão mantenedor, que sustenta o abuso
sexual prolongado da criança naquela família ( Furniss, 52).
Na complexidade da organização familiar, nenhuma tipologia jamais faria
justiça à singularidade das famílias reais. No entanto, a distinção entre evitação
do conflito e regulação do conflito na família organizada e desorganizada tem
importantes implicações práticas, que ajudaram os terapeutas a se orientar nas
complexidades da intervenção nas famílias com abuso sexual da criança.
5.2.1- A família organizada
5.2.1.1- Dependência emocional e imaturidade do pai
A experiência clínica, revela que o comportamento de um pai agressivo e
autoritário em relação a uma mãe aparentemente fraca e silenciosa não reflete,
de modo algum, a estrutura familiar de governo e de dependência emocional
(Furniss,p.52). O trabalho no padrão subjacente de dependência emocional,
pode revelar uma constelação inversa, com um pai emocionalmente frágil e
uma mãe bem mais fortalecida e independente em termos emocionais.
O esteriótipo do pai independente e forte, o “gorila que toma para o sexo
não apenas a sua esposa mas também sua filha”, não se sustenta. Homens
verdadeiramente independentes e autônomos não se voltam para as crianças
em busca de gratificação sexual.
Os pais, nas famílias em que o abuso sexual se prolonga por muitos
anos, frequentemente parecem ser emocionalmente imaturos e profundamente
dependentes de suas esposas para cuidado emocional. Juntamente com
79
imaturidade emocional, os pais geralmente fazem exigências sexuais normais
ou excessivamente adultas, ou pelo menos as parceiras percebem como se
fosse assim.
5.2.1.2 - O papel da mãe como progenitor não abusivo
Nas famílias em que acontece abuso sexual da criança, mães
geralmente têm o papel de “não abusivo”. Nesse papel, a função protetora é
crucial no abuso sexual prolongado. Apesar da aparente dominância paterna,
as mães podem determinar a cultura familiar em termos da qualidade dos
relacionamentos emocionais na família. Isso inclui a maneira como os assuntos
sexuais e emocionais são falados na família.
Em famílias rígidas e moralistas, as mães geralmente compensam uma
atitude de moralista ou punitiva em relação à sexualidade com um cuidado
compulsivo. Em um nível prático, essas mães geralmente cuidam perfeitamente
de seus filhos e parecem ser muito próximas e carinhosas. Em muitas áreas,
elas são na verdade mães competentes e cuidadosas. A distância na relação
mãe-criança emerge quando se trata das questões de proteção contra o abuso
sexual. Quando as crianças tentam indicar abertamente que está acontecendo
abuso sexual, as mães ou desconsideram essas declarações ou não levam a
sério suas filhas e filhos, embora possam tomar medidas para desmentir tais
alegações.
Em dois casos, como afirma (Koshina, apostila p.16), as filhas haviam
contado às mães sobre o abuso sexual cometido por seus pais durante muitos
anos. As mães em vez de tentarem verificar a situação com seus maridos,
levaram as meninas ao médico da família. Em um dos casos, o médico rotulou
a menina de “ciumenta”, no outro, ele declarou que as alegações eram
“fantasias”. Em nenhum dos casos a mãe confrontou o pai. As visitas do médico
serviram, em ambos os casos, para evitar o esclarecimento da suspeita de
80
abuso sexual dentro da família, buscando um aliado profissional fora da família
para confirmar a negação.
O abuso sexual da criança também acontece em famílias com um
relacionamento mãe-filha próximo e protetor. Contudo, nesses casos, o abuso
sexual não continuará através dos anos. Essas mães geralmente revelam, elas
mesmas, o abuso. Elas captam os sinais de abuso sexual por parte das
crianças, que falam a respeito e são acreditadas. Ou elas reconhecem
mudanças no processo familiar, quando os maridos e filhos começam a se
comportar de modo estranho. Quando detectam indicadores de abuso sexual
ou descobrem, em flagrante, elas levam a sério o que viram ou ouviram e agem
de acordo com isso. Elas geralmente tomam medidas para proteger a criança e
induzem uma revelação.
5.2.1.3 - A posição da criança
Nas famílias em que ocorre o abuso sexual prolongado, as crianças não
se sentem emocionalmente compreendidas nem adequadamente cuidadas por
qualquer um dos pais. Depois das ameaças paternas, algumas vezes de morte,
as crianças se submetem às exigências sexuais inadequadas dos pais, porque
estão com medo de serem castigadas por ambos os pais caso tentem revelar.
Elas percebem suas mães emocionalmente rígidas e distantes, ou sentem que
elas não iriam acreditar, e nem protegê-las do abuso paterno.
Crianças
muitas
vezes
tentaram
revelar
e
muitas
apelaram
constantemente em vão, pela proteção do progenitor não-abusivo. Algumas das
crianças, jamais haviam se sentido próximas às mães, e haviam se voltado para
o pai em busca de cuidado emocional, sendo que o pai traiu sua confiança ao
abusar sexualmente delas (Furniss,p.54).
81
Crianças que sofreram abuso sexual, os sentimentos de ser especial, de
rivalidade e triunfo podem chegar muito perto de uma extrema culpa,
sentimentos de total desvalia e sentimentos de ser suja e não amada. A
atuação e punição autodestrutiva, ao repetir o padrão abusivo em outros
relacionamentos, é frequentemente uma expressão do apego continuado, forte
e destrutivo, em relação à pessoa que abusa. Relacionamentos extremamente
danosos podem ser relacionamentos muito fortes e importantes. O apego à
pessoa que abusa pode, apesar do extremo abuso sexual, ser o vínculo mais
importante na vida da criança. “Por que eu era tão má que meu pai tinha que
me bater e abusar sexualmente de mim quando criança? “ Eu odeio meu pai,
mas pelo menos uma vez eu quis ser vista e apreciada por ele”. Disse uma
mulher com quase cinquenta anos (Gabel,1977, p. 127).
O tabu familiar contra falar sobre abuso sexual evita que as crianças
possam encontrar ajuda dentro ou fora da família.
“Todas as crianças em terapia, em certo estágio da
terapia, ficam com raiva da pessoa que a abusou, assim
como todas culpam suas mães, por não tê-las protegido
do abuso e pela posição de desamparo e desespero
que tiveram de suportar na família, sem poderem falar
com ninguém sobre a sua experiência de abuso
sexual...”
(Furniss, p.54).
5.2.1.4 - Exemplos clínicos
Pela ótica de Furniss (2002,p.25), selecionou-se os exemplos clínicos
abaixo, objetivando dessa forma, melhor compreensão sobre a dinâmica da
família sexualmente abusiva da criança.
82
•
A família M.
P. M., 33 anos de idade, engenheiro naval, desde tenra infância até a
morte da mãe, há cinco anos atrás, havia tentado ser um filho amoroso e
agradar à sua mãe imensamente gorda. Entretanto, o que quer que fizesse
estava sempre errado aos olhos dela, que o castigava conforme lhe dava
vontade, primeiro ficando em silêncio e ignorando-o, e depois explodindo
subitamente em tapas e gritarias ferozes.
Embora parecesse que P.M. jamais agradasse a mãe, ela não permitia
que ele a deixasse para brincar com outras crianças. Ela o mantinha
frequentemente em casa, sob seu olhar eternamente assustador. Não obstante,
ele continuava em vão tentar agradá-la e obter seu reconhecimento, sendo-lhe
útil e dando-lhe com freqüência presentes caros. Mas o simples fato de sua
ausência ou presença, poderia levá-la a um súbito ataque furioso. P. M. vivia
em um permanente estado de medo e insegurança, como também
constantemente se sentia culpado em relação à mãe.
O pai de P.M. era um homem bom, mas muito fraco. “Ele era um
verdadeiro escravo de minha mãe e tinha que fazer tudo o que ela queria. Ela o
obrigava a nos acordar (filhos), durante a noite, para nos castigar por aquilo que
tínhamos feito a ela durante o dia.” Aos 11 anos de idade, P.M. fugiu de casa
pela primeira vez. Aos 16, ele se tornou marinheiro e escapou da família.
Afirma P.M., “em casa, jamais recebi nem por uma vez na vida, um
lampejo de amor e afeição real por parte de minha mãe.” Como marinheiro, ele
“cometeu as loucuras da mocidade” nos portos do mundo, mas sempre
acabava
voltando
desapontadoras.
para
a
mãe,
embora
essas
férias
fosse
sempre
83
Aos 22 anos, P.M. conheceu sua esposa, A., que na época tinha um filho
de três anos de idade e uma menina ainda bebê.
A., hoje com 32 anos de idade, vinha de uma família grande, muito
religiosa, de uma vila rural no sul. Sua família era pobre, e A. estava
acostumada a trabalhar duro desde criança. Se pai era alcoolista e desde aos
nove anos de idade, A. tivera que assumir tarefas adultas na família. Embora se
pai fosse rude, ela ficava ao lado dele, mas supercompensava seu ódio por seu
violento alcoolismo adotando idéias morais rígidas. Aos 17 anos, ela ficou noiva
de um rapaz da vila, engravidou, dando à luz a um menino. O noivo rompeu o
compromisso e foi embora, retornando dois anos mais tarde prometendo
casamento, e, A. engravidou novamente. O relacionamento não durou e depois
do nascimento da segunda criança, A. mudou-se com seus filhos para uma
cidade grande e foi trabalhar como ajudante de cozinha. Lá conheceu P.M. e
casou com ele. Depois do casamento, P.M. voltou para o mar por três anos e
então estabeleceu-se em terra firme. Nasceram dois meninos desse
casamento, e a trabalhadora A. controlava a casa de modo muito matriarcal,
cuidando bem dos filhos e do marido. Eles eram considerados, na vizinhança,
pessoas trabalhadoras, corretas e bons pais para seus filhos bem-vestidos e
bem-educados. P.M. relatou: “Desde que encontrei A., tive uma família de
verdade e me senti seguro”.
Como o pai de P.M., era “um escravo da mulher”, P.M. também havia
sido um escravo de sua mãe. Quando conheceu A., descobriu nela, como
esposa, uma figura de mãe moralmente rígida, mas carinhosa, que cuidava dele
e dos filhos com a mesma compulsão maternal. A. sempre cuidara das
pessoas, especialmente de seu pai, e P.M. procurara alguém que cuidasse
dele. Eles estabeleceram um relacionamento complementar pseudomãe-filho
bastante estável. No nível sexual, eles também tinham necessidades diferentes.
Durante a terapia, A. revelou que P.M. sempre fora, em sua opinião,
“supersexuado”.
84
O abuso sexual entre P.M. e sua enteada, E., desenvolveu-se
lentamente. Começou quando A. mandara P.M. e as crianças, incluindo E., com
8 anos de idade, tomar banho juntos. O “pai” e a enteada ensaboaram e
lavaram um ao outro, e essas ações tornaram-se progressivamente mais
sexualizadas pelo “pai”. E., quando estava com 9 anos de idade, já havia sido
submetida a um completo intercurso sexual.
P.M. fez várias tentativas de parar, mas ao mesmo tempo criava
situações que levavam à continuação do abuso. Ao tomar banho, ele deixava a
porta do banheiro aberta, e era incapaz de resistir quando E. entrava nua no
banheiro, enquanto ele estava no banho. Conforme E. se aproximava da
puberdade, P.M. tornava-se cada vez mais obcecado e sexualmente envolvido
com ela, e usava de força em várias ocasiões. O relacionamento tornou-se mais
tenso quando E. começou a sair com rapazes da idade dela. O abuso terminou
quando ela estava com quase 14 anos de idade, e contou sobre o abuso a uma
pessoa que trabalhava no clube de jovens. A revelação do abuso ameaçou a
sobrevivência da família e do casamento. A., a mãe, ficou extremamente
perturbada e afirmou que não sabia nada sobre o abuso.
• Círculos viciosos interligados na família M.
A confusão de hierarquia intergeracionais e o padrão de relacionamento
na família M. conduziram o seguinte processo que manteve o abuso sexual
acontecendo:
Quanto mais P.M. se envolvia no abuso sexual com E., mais culpado ele
se sentia e mais se submetia à esposa.
A Sra. A.M. por sua vez, assumia uma atitude moralista em relação ao
marido e cuidava dele de modo compulsivo, o que permitia que ela rejeitasse
85
suas exigências sexuais. P.M, por sua vez, passou a se envolver mais com a
“filha”.
O segundo círculo vicioso estava interligado com o primeiro: Quanto mais
E. queria ser compreendida pela mãe, mais se sentia rejeitada. Ela então
aproximou-se do pai em busca de cuidado emocional e o pai usou a confiança e
desejo emocional da filha para abusar dela e satisfazer seus desejos sexuais.
No processo, o P.M se tornou mais estreitamente ligado à filha em um
sistema de segredo de pseudoparceria que afastou ainda mais a filha da mãe.
Isso fez com que E. se sentisse mais culpada em relação à mãe, mas
desejando estar mais perto dela, tentou distanciar-se do pai, e não foi
compreendida pela mãe.
5.2.2 - A família desorganizada
O padrão familiar básico mantenedor do abuso sexual
na família
desorganizada é semelhante ao da família organizada, mas existem algumas
diferenças importantes.
O abuso sexual da criança, na família organizada, é a expressão de um
problema focalizado muito específico, em uma família que de outra forma
demonstra um funcionamento familiar global satisfatório ou bom.
A família desorganizada tem um funcionamento familiar global bem pior,
e os pais e filhos parecem estar em nível emocional pseudo-igual. Muitas
vezes, uma das crianças assume o papel de organizador da família e cuidador
emocional dos pais e irmãos. Como consequência da mútua dependência e
privação emocional de ambos os pais, essas famílias não possuem fronteiras
86
emocionais intergeracionais adequadas. O pai é mais abertamente controlador
e muitas vezes fisicamente violento.
Enfermidade, má formação física ou deficiência física podem tornar o pai
também mais dependente externamente de sua esposa como figura parental,
para cuidados práticos. De modo típico, a mãe é mais permissiva e menos
moralista em sua atitude. O abuso pode ser mais ou menos conhecido por
outros membros da família. O tabu para comunicar o abuso assume a forma de
um conluio de toda a família contra o mundo externo.
A família muitas vezes é conhecida, por outras razões, nos serviços
educacionais, sociais ou na polícia, e muitos outros profissionais já podem estar
envolvidos. A família é muito mais uma família multiproblema com claro conflito
conjugal, e mais de uma criança geralmente está envolvida no abuso. Meninos
e meninas podem sofrer abuso sexual simultâneamente. Pode inclusive haver
um elemento de competição pela atenção entre as diferentes crianças que
sofrem abuso. O pai muitas vezes começa a abusar das crianças menores
quando uma criança mais velha deixou a casa. Isso é o contrário do que
acontece na família organizada, onde encontramos um relacionamento muito
especial e emocionalmente carregado entre o pai e a criança que sofre abuso,
com uma forte reação de perda quando essa criança deixa a casa.
• A família S
Quando R., de 27 anos de idade, trouxe seu filho de 7, D., para o
hospital, emergiu uma longa história de enfermidades menores desde o
nascimento. R. veio acompanhada de sua mãe, que falava por todos e falava
como se ela fosse a mãe de D. A mãe e a avó competiam uma com a outra pela
última palavra e logo ambas estavam falando sobre como o pai de R. abusara
sexualmente dela durante quartoze anos.
87
O abuso sexual começara quando R. tinha quatro anos de idade. Seu pai
era cego, desempregado, e estava confinado em casa. Ele era um homem
amargo, impaciente e violento. Havia constantes brigas e problemas em casa, e
R. acostumou-se a severos castigos físicos. Depois de uma descoberta inicial
do abuso, pela mãe, quando R. estava com 5 anos, a mãe passou a levar todas
as três filhas com ela quando precisava sair de casa. Isso durou apenas certo
tempo, e logo R. foi novamente deixada sozinha em casa com o pai. Mais tarde,
na terapia, R. disse: “Minha mãe sabia, mas não queria enxergar. Eu nunca
pude falar com ela sobre isso.” R. queixou-se de que sua mãe jamais quis ouvir
seus problemas. Quando R. estava com oito anos, comprou presentes para a
mãe com o seu próprio dinheiro, porque sentia que a mãe precisava de sua
ajuda: “Eu sou como minha mãe, sempre pronta a cuidar dos outros, mas
jamais de mim.”
O abuso sexual acontecia de noite. O pai de R. entrava em seu quarto
quando ela estava dormindo e a forçava ao intercurso. Muitas vezes ela a
amordaçava para que ela não pudesse gritar. Quando R. ficou mais velha, fugia
para ficar com seu avô materno, a quem era muito apegada. Ela revelou o
abuso sexual, mas o avô não acreditou nela e sempre a trazia de volta para
casa. Quando ela não conseguiu também que seu irmão a ajudasse, foi à
polícia, que a trouxe para casa, aceitando a negação fraudulenta da alegações
de R. por parte do pai.
Quando R. estava com nove anos, fugiu de casa várias vezes. Desta vez
a polícia acreditou nela e seu pai foi mandado para a prisão sob a acusação de
agressão sexual. Depois que foi libertado, a mãe de R. o levou imediatamente
de volta para casa. Durante a entrevista, a mãe de R. explicou: “Eu quis me
divorciar durante anos. Mas não podia fazer isso. Ele era cego, não é? Eu casei
com ele por compaixão e ele precisava de mim.”
88
Mais tarde, o pai teve intercurso com as duas irmãs mais jovens de R.
Ela relatou, amargamente, que a caçula era a favorita do pai e que apreciava o
abuso. Havia um sentimento de rivalidade e R. nem mesmo tinha quaisquer
ganhos secundários com o relacionamento abusivo do pai. Aos 18 anos, R. fez
uma séria tentativa de suicídio e passou alguns dias no hospital. Somente
então, depois de um longo período de quatorze anos de relacionamento
incestuoso, foi que o pai acabou sentenciado a uma pena mais longa de prisão,
onde morreu pouco tempo depois.
Enquanto ainda estava no hospital, R. conheceu um homem da idade do
pai. Ela casou com ele em poucas semanas, para não precisar voltar para casa
e morar lá novamente.
O casal vivia na mesma rua que a mãe de R. morava, e sua vida familiar
acabou sendo completamente dominada por ela. Logo depois de ter dado à luz
a um menino e quando estava grávida novamente, R. divorciou-se do marido.
Ela teve vários relacionamentos caóticos com homens, mas seu ex-marido
continuou uma permanente figura-pai-marido ao fundo. Depois do divórcio, R. e
seus dois filhos foram morar com a avó materna. O padrão familiar de total
individuação e a completa confusão de fronteiras intergeracionais eram
ilustrados pelas crianças, que chamavam tanto a mãe quanto a avó de
“mamãe”.
5.3 - Função familiar do abuso sexual da criança
5.3.1- Abuso sexual da criança como evitação do conflito
Nas famílias que evitam conflitos, encontra-se uma enorme discrepância
entre a auto-imagem familiar e a realidade da qualidade dos verdadeiros
relacionamentos familiares (Furniss, p.58).
89
As famílias que evitam conflitos apresentam-se ao mundo externo como
funcionando bem, e são governadas por regras morais familiares rígidas. O
abuso sexual da criança serve como uma maneira de negar qualquer tensão e
desequilíbrio emocional e sexual entre os parceiros conjugais. Para o mundo
externo, todos os membros da família parecem aceitar e submeter-se ao rígido
código moral, o que pode estar refletido em um ativo envolvimento nas
atividades da igreja. A família frequentemente é muito respeitada na vizinhança
e bem-sucedida em outras áreas da vida. Todos os membros da família entram
em uma conspiração contra qualquer reconhecimento aberto do abuso, que,
como clara realidade familiar, seria totalmente inaceitável para qualquer
membro da família.
A atitude punitiva e moralista em relação ao sexo e a conversar sobre
assuntos sexuais, e a simultânea dependência emocional e rejeição sexual
entre os parceiros conjugais, alimentam o processo conectador de evitação do
conflito.
O relacionamento sexualmente abusivo serve para conservar a divisão
entre os aspectos emocional e sexual do relacionamento conjugal e entre os
aspectos de cuidados emocionais e práticos do relacionamento entre a mãe e
a criança. O abuso sexual encobre o desequilíbrio da dependência emocional
na casamento e remove a pressão do precário relacionamento sexual entre os
pais.
Os pais são incapazes de suportar um claro conflito conjugal e sexual.
Os relacionamentos conjugal e familiar são idealizados, o que impede a
adequada solução dos problemas. Os problemas do casal precisam ser
negados para ser mantida a aparência de harmonia conjugal perfeita. A
evitação do problema de qualquer conflito sexual conjugal claro conduz à
triangulação da criança. A delegação do relacionamento sexual coloca a criança
em uma aliança sexual de pseudo-adulta com o pai e que lhe dá o status de
90
pseudoparceria no nível sexual, do qual a mãe é excluída pelo segredo. Ao
mesmo tempo, a filha mantém um status de criança conjuntamente aceito, no
nível do cuidado prático. O papel secreto de pseudo-parceria sexual da criança
resulta em uma perturbadora vitimizacão. Ao mesmo tempo, lhe dá uma
posição central na família , sobre a qual a família, com sua imensa e rígida
moralidade, jamais comunica.
5.3.2 - Abuso sexual da criança como um regulador do conflito
Nas famílias que regulam o conflito, o conflito conjugal e familiar é
claramente visível e reconhecido, e não há muita discrepância entre a autoimagem das famílias e a realidade da qualidade de seus relacionamentos
familiares (Furniss,p.60). Nessas famílias, existe um conflito familiar claro e
agressivo. O relacionamento sexualmente abusivo ajuda a diminuir o conflito
conjugal que poderia levar à ruptura familiar. A criança submete-se ao pai com
conhecimento relativamente mais claro. Isso não significa que o abuso seja
comentado claramente na família. Toda a família conspira para manter o
segredo em relação aos de fora. Além da imediata função sexual, o abuso
oferece uma saída para a agressão do pai decorrente de seus problemas
pessoais.
Na família que regula o conflito, o abuso sexual não constitui a maior
ameaça à família. Embora o abuso nunca possa ser discutido abertamente,
ambos os pais podem secretamente aceitar o papel da criança ou crianças que
são submetidas a abuso sexual. O conluio entre os pais aumenta a
dependência do pai em relação à esposa e ela, por sua vez, tolera o abuso ou
pode até mesmo facilitá-lo. Isso serve, apesar de todos os claros e violentos
conflitos, para manter o pai emocionalmente dependente e firmemente ligado à
família. Na família que regula o conflito, o abuso sexual serve para estabilizar
os picos do violento conflito conjugal que ameaça a coesão da família.
91
5.3.3 - Diferentes reações à revelação e ao tratamento
A revelação pública do abuso sexual da criança na família organizada e
que evita o conflito provoca um imediato desastre familiar. A discrepância
geralmente imensa e evidente entre a proclamada auto-imagem familiar de
elevados padrões morais dos relacionamentos familiares e a realidade dos
verdadeiros relacionamentos cria uma crise máxima no momento da revelação,
que ameaça provocar uma imediata desintegração familiar. As mães
geralmente vêem como seu dever pedir o divórcio e o pai pode ameaçar
suicídio.
Nas famílias organizadas que evitam o conflito, ações drásticas de
violência, auto-agressão, fuga, ou o desenvolvimento de seus sintomas
psicossomáticos por parte do pai na revelação inicial são uma atuação para
evitar enfrentar os problemas reais, assim como são os pedidos imediatos de
divórcio.
Os problemas conjugais realmente precisam ser tratados e o divórcio
pode, no final, ser a solução adequada. No entanto, pedidos imediatos de
divórcio no momento da revelação são sempre reações ao golpe contra a autoimagem da família depois da revelação. Ações legais imediatas por parte das
mães têm a função de aliviar seu agudo sentimento de culpa e choque. Depois
de algumas semanas ou meses, todavia, nós muitas vezes encontramos mães,
que haviam iniciado imediatos procedimentos de divórcio, unindo-se em
segredo com seus maridos novamente. Tendo em vista a crise familiar inicial
máxima, o momento da revelação não é o momento de falar a respeito de
divórcio. Isso deve acontecer mais tarde no tratamento. Depois da crise inicial,
as famílias organizadas e evitadoras de conflito muitas vezes são capazes de
enfrentar o problema familiar fundamental, na terapia, e de mudar os
relacionamentos familiares.
92
Nas famílias desorganizadas e reguladoras de conflito, a revelação de
abuso sexual da criança para o mundo externo não conduz a uma crise de
magnitude comparável aquela família organizada e evitadora de conflito. Não
há uma grande lacuna entre a auto-imagem da família e a realidade dos
verdadeiros relacionamentos e nem o mesmo grau de segredo dentro da
família. Não é a revelação do
abuso sexual e sim a mudança nos
relacionamentos familiares e a introdução de fronteiras emocionais e sexuais e
intergeracionais durante o tratamento subsequente que induz a crise familiar e
ameaça as fundações sobre as quais a família está construída.
Serviços sociais e outras agências muitas vezes já estiveram envolvidos
nos problemas familiares e o novo profissional pode se associar a uma grande
rede profissional já existente. As famílias desorganizadas e reguladoras de
conflito frequentemente integram novos profissonais como “tios” e “tias”, numa
rede familiar mais extensa. Esses profissionais são jogados uns contra os
outros e se encontram em discussões de caso surpreendentes grandes, muitas
vezes assistidas por 10-20 profissionais bem qualificados e altamente
experientes. Essas discussões de caso geralmente
espelham o processo
familiar da família desorganizada e reguladora de conflito, em que ninguém tem
permissão para ser eficiente e tampouco tem permissão para partir. Enormes
quantidades de café são consumidas, normalmente às expensas dos serviços
sociais, mas nada muda na família por meses ou anos. Essas famílias são
muitas vezes campeãs mundiais em conseguir que grandes redes profissionais
sejam acionadas sem lhes permitir obter qualquer efeito nos relacionamentos
familiares e no funcionamento familiar.
A maior crise nas famílias desorganizadas e reguladoras de conflito é
desencadeada quando as redes profissionais deixam de se comportar como
“tias” ou “tios” em uma família ampliada, e quando elas cessam de espelhar o
processo familiar. Quando a rede profissional consegue estabelecer fronteiras
apropriadas dentro da rede e permite que alguns colegas se retirem e que
93
outros assumam clara responsabilidade e se tornem efetivos, as famílias
desorganizadas e reguladoras de conflito reagem com máxima crise. Elas
tentam, muitas vezes com sucesso, parar a terapia, de modo a evitar mudanças
a qualquer custo.
A família M, foi um exemplo de família organizada e evitadora de conflito.
A família S, sendo uma família desorganizada e reguladora de conflito, não era
tão moralista, rígida e cheia de segredos como a família M. Ao contrário, eram
mais abertos e o pai era mais superficialmente explorador: quando R. não
estava mais disponível para abuso sexual, uma irmã logo teve que tomar seu
lugar. Em termos de prognóstico a longo prazo para terapia e mudança nos
relacionamentos familiares, a família organizada e evitadora de conflito teria um
prognóstico muito melhor para a reabilitação do que a família desorganizada e
reguladora de conflito (Furniss,p.62).
5.4- Abuso sexual intrafamiliar enquanto sintoma
Através dos diversos casos pesquisados de abuso sexual intrafamiliar,
também pode-se perceber um outro padrão de comportamento na família
abusiva sexual da criança. O fato observado, é que a relação sexual incestuosa
denunciada, em muitas vezes perdia a importância para outros fatores, que
eram considerados como problema para a família.
Assim, o que se observou durante as pesquisas, é que a família não
parece desestruturar-se pela ocorrência de um abuso sexual entre os seus
membros, nesse caso a criança, mas pelo contrário, o abuso sexual emerge
num contexto familiar desestruturado entre vários outros relacionamentos não
saudáveis. De alguma forma, a relação sexual parece denunciar um problema,
que nem sempre é representado por ela mesma. Minuchin e Cohen enriquecem
esta questão quando afirmam:
94
Abuso da criança, abuso sexual, violência familiar,
mulheres espancadas, o abandono dos idosos – esses
são os sintomas dos relacionamentos que se perderam.
(Minuchin,1995).
O incesto ocorre em famílias nas quais existe uma
colaboração consciente ou inconsciente, dos outros
membros da família. O incesto pode ser considerado,
assim, o sintoma de uma crise da estrutura familiar.
(Cohen, 1993).
95
CONCLUSÃO
Em nosso estudo procurou-se verificar se na família sexualmente
abusiva da criança existem padrões específicos de comportamento. Face aos
resultados obtidos através de inúmeras pesquisas bibliográficas conclui-se:
Efetivamente, existem padrões específicos de comportamento na família
que pratica o abuso sexual da criança. Estes por sua vez operam como
mecanismo “evitador de conflito” ou “regulador de conflito” nessas famílias.
Nas famílias onde o abuso sexual da criança opera como mecanismo
“evitador de conflito”, observou-se um padrão específico de “família organizada”
que se distingue por: um funcionamento familiar global satisfatório ou bom;
enorme discrepância entre a auto-imagem familiar e a realidade dos
relacionamentos; casamento mantido idealizado; relacionamento incestuoso
altamente secreto; tabu quanto a reconhecer o abuso sexual ou qualquer
problema sexual; pais contra uma criança; apenas uma criança, num
relacionamento altamente especial e apenas um gênero envolvido.
Nas famílias onde o abuso sexual da criança opera como mecanismo
“regulador de conflito”, observou-se um padrão específico de “família
desorganizada” que se distingue por: um funcionamento familiar global
prejudicado; pequena discrepância entre a auto-imagem familiar e a realidade
dos relacionamentos familiares; claro conflito conjugal, o pai é mantido na
família através do abuso sexual; segredo é relativamente conhecido. Algumas
vezes o incesto é reconhecido, entretanto desconsiderado e não se fala a
respeito; tabu quanto ao revelar o abuso sexual publicamente; toda a família
contra a criança e o mundo externo; competição entre irmãos no
relacionamento abusivo e meninos e meninas muitas vezes envolvidas.
96
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100
FOLHA DE AVALIAÇÃO
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PROJETO A VEZ DO MESTRE
Pós-Graduação “Lato Sensu”
Curso: Terapia de Família
Aluno: Sonia Maria Amat
Título da monografia: Violência sexual: Padrões específicos de
comportamento na família sexualmente abusiva da criança
Data da Entrega: 05 de Janeiro de 2004-01-04
Avaliado por: Profa. Maria da Conceição Maggioni Poppe
Grau: Especialista em Terapia de Família
Rio de Janeiro, RJ, 05 de Janeiro de 2004
101
ATIVIDADES CULTURAIS
TEATRO
Peças:
1. Intimidade indecente
2. Faça humor, não faça guerra
3. O mundo um moinho
4. Como eu aprendi a dirigir um carro
5. O pé da árvore de natal
102
ATIVIDADES CULTURAIS
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Sonia Maria Amat Orientadora