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DURVAL PEREIRA DA FRANÇA FILHO
BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de
Iararana de Sosígenes Costa
Dissertação apresentada à Coordenação do
Mestrado em Cultura & Turismo – Linha “A”
(Cultura), da Universidade Estadual de Santa
Cruz – UESC/Universidade Federal da Bahia –
UFBA, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre.
Área de concentração: Turismo
Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro
de Freitas.
ILHÉUS – BAHIA
2003
2
DURVAL PEREIRA DA FRANÇA FILHO
BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de Iararana de
Sosígenes Costa
Dissertação apresentada à Coordenação do
Mestrado em Cultura & Turismo – Linha “A”
(Cultura), da Universidade Estadual de Santa
Cruz – UESC/Universidade Federal da Bahia –
UFBA, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre.
Área de concentração: Turismo
Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro
de Freitas.
Ilhéus – BA, 19 de setembro de 2003.
Antonio Fernando Guerreiro de Freitas - DS
UFBA/UESC
(Orientador)
Antonio Albino Canelas Rubim - DS
UFBA
Jorge de Souza Araújo - DS
UESC
3
DEDICATÓRIA
À minha esposa: Maria Lúcia Nonato França
Aos meus filhos: Cassius Marcelus, Lísia Cláudia e Lúcio Marcus Oliveira de Nonato
e França
Aos meus netos: Brunna Nonato França Rocha
Rafael Nonato França Tosto
Diogo Almeida Nonato França
4
AGRADECIMENTOS
Deo, causa prima in luminibus intelligentiarum.
Ao Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas, não somente pela
orientação segura para a elaboração deste trabalho, como também pelo incentivo,
pela confiança e pela amizade ao longo desses anos.
Ao Prof. Dr. Hélio Estrela Barroco, coordenador do Mestrado em Cultura &
Turismo, pelas informações técnicas.
Ao Prof. Dr. Jorge Souza Araújo, colega ontem, mestre amigo hoje, pelo
apoio, pelo incentivo e pela co-orientação extra-oficial.
Aos professores do mestrado em Cultura & Turismo, pelos ensinamentos e
pelo apoio recebidos.
Aos colegas do mestrado em Cultura & Turismo pelo convívio, pelo apoio e
pelo incentivo.
Aos funcionários da UESC, direta ou indiretamente ligados ao mestrado em
Cultura & Turismo, pelo atendimento e pela presteza.
Às famílias de origem italiana: Magnavita, Paternostro, Tedesco e Tosto,
pelos depoimentos prestados.
Aos amigos: Adriano Ferreira Tosto, Afrânio Benzaquém de Souza, Alberto
Magnavita, Alcides Costa Neto, Álvaro Nonato de Souza, Antônio Amorim Tolentino,
Carlos Luis Borges Ribeiro de Carvalho, Dária Maria Cardoso, Dissival Batista de
França (meu irmão), João Bartoli Schubach, José Alves dos Santos Filho, José
Frazão Araújo Souza, José Roberto Melo de Souza, Luis Carlos do Nascimento,
Manoel Costa Magnavita, Raimundo Antônio Tedesco e Sara Maria Brito Araújo,
pela contribuição e pelo material disponibilizado.
5
NO JEQUITINHONHA
Desvaneceu-se a névoa. Ao sol a veia
do rio é prata. O pássaro procura,
tonto de luz, a sombra. Até clareia
o interior da brenha sempre escura.
Fulgor. Ar morno. Abelha na espessura
a flor azul, de pólen de ouro cheia,
buscam rodando. A abóbada é tão pura!
O vento gira músico e meneia
as frondes. Cresce a luz. Aumenta a gala.
As bromélias desprendem cheiro brando,
brilhantes como fogos de Bengala.
E pelas ramas pêndulas, repletos
de fruta, orvalho e mel, vão orquestrando
clarins as aves, crótalos os insetos.
(Sosígenes Costa,1924)
6
SUMÁRIO
Resumo...................................................................................................................…x
Abstract...............................................................................................................…...xi
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
CAPÍTULO I – TURISMO, CULTURA & MEIO AMBIENTE......................................22
A viagem.....................................................................................................................22
Cultura & Turismo.......................................................................................................26
Equipamentos Turístico-Culturais..............................................................................31
Rio Jequitinhonha – Lugar de Memória......................................................................34
A Lavoura do Cacau...................................................................................................37
As Praias....................................................................................................................46
As Ilhas.......................................................................................................................48
Os Manguezais...........................................................................................................49
Bens Representativos do Patrimônio Arquitetônico-Cultural de Belmonte...............54
O Farol Belmonte.......................................................................................................57
Festejos Religiosos....................................................................................................60
Referências Bibliográficas..........................................................................................68
CAPÍTULO II – NOS ARCANOS DA MEMÓRIA.......................................................71
Belmonte na Colônia..................................................................................................71
Belmonte no Império..................................................................................................78
Belmonte na República..............................................................................................83
Canoeiros e Tropeiros................................................................................................85
Protestantismo...........................................................................................................86
Grêmio Literário Castro Alves....................................................................................89
Santa Casa de Misericórdia.......................................................................................90
Filarmônicas...............................................................................................................92
7
Maçonaria...................................................................................................................94
A Literatura do Cacau.................................................................................................98
Sosígenes Costa........................................................................................................99
Múltiplo e Singular....................................................................................................105
Referências Bibliográficas........................................................................................110
CAPÍTULO III – IARARANA....................................................................................112
Quando Nasce o Brasil.............................................................................................112
Mito de Origem para o Cacau..................................................................................120
Tupã-Cavalo – o Colonizador Português.................................................................122
Origem do Cacau.....................................................................................................129
Transplante Cultural.................................................................................................132
Coronelismo.............................................................................................................136
Referências Bibliográficas........................................................................................141
CAPÍTULO IV - ARACANJUBA.............................................................................143
Migração Européia...................................................................................................143
A Italianidade dos Filhos da Imigração....................................................................145
“Palmatória do Mundo”.............................................................................................155
Teoria do Branqueamento........................................................................................157
Laços de Sangue......................................................................................................164
Referências Bibliográficas........................................................................................168
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................170
GLOSSÁRIO............................................................................................................175
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................183
8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURAS
Figura 1 - Rio Jequitinhonha em Belmonte..............................................................36
Figura 2 - Aspecto de parte do manguezal de Belmonte.........................................50
Figura 3 - Igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Belmonte..................................58
Figura 4 - Chafariz de Belmonte importado da Europa............................................59
Figura 5 - Farol de Belmonte em sua primeira instalação (12.10.1901)...................61
Figura 6 - Farol de Belmonte assentado em seu segundo sítio (01.05.1907)..........62
Figura 7 - Farol de Belmonte em 1960....................................................................63
Figura 8 - Farol de Belmonte na fase atual, no mesmo local para onde foi
transferido em 1907. Fotografia de 1999..............................................64
Figura 9 - Pouso de uma tropa................................................................................77
Figura 10 - Sosígenes Costa (1901-1968) quando saiu de Belmonte para Ilhéus............101
Figura 11 - Família Magnavita – Início do Século XX..............................................162
MAPAS
Mapa 1 - Município de Belmonte próximo à sede....................................................37
Mapa 2 - Mapa do Sul da Bahia – Remanescentes da Mata Atlântica – 1960........42
Mapa 3 - Mapa do Sul da Bahia – Remanescentes da Mata Atlântica – 1974.........43
Mapa 4 - Mapa do Sul da Bahia – Remanescentes da Mata Atlântica – 1990.........44
Mapa 5 - Mapa da Itália (Campânia e Calábria)....................................................163
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QUADROS
Quadro 1 - População brasileira - 1872...................................................................81
Quadro 2 - População livre e escrava na Província da Bahia – 1872......................82
TABELAS
Tabela 1 - Turistas segundo o local da entrevista. Belmonte, jan. 1999................55
Tabela 2 - Turistas segundo o país de residência permanente. Belmonte, jan. 1999
..............................................................................................................56
Tabela 3 - Turistas segundo o estado de residência permanente. Belmonte, jan.
1999......................................................................................................56
10
BELMONTE, MEMÓRIA, CULTURA E TURISMO: numa (re)visão de Iararana de
Sosígenes Costa
Autor: Durval Pereira da França Filho
Orientador: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas
RESUMO
Entendendo cultura como a lente pela qual se pode perceber a realidade, o
presente trabalho procura salientar aspectos da memória, cultura e turismo em
Belmonte, com ênfase aos princípios de desenvolvimento sustentável, evidenciando
ainda que, em várias circunstâncias, o turismo pode significativamente contribuir
para a conservação do meio ambiente e dos bens culturais. Contudo, é necessário o
planejamento desse espaço, dos equipamentos e das atividades turísticas e uma
tomada de consciência da população local a respeito do meio ambiente e dos bens
culturais. A comunidade belmontense, situada na foz do Rio Jequitinhonha, surgiu
de alguns aldeamentos de índios do grupo Kamakan catequizados no início do
século XVIII. Com o desenvolvimento da vila e a expansão do cacau, foram
incorporados colonos nacionais e estrangeiros, principalmente italianos. Nessa
sociedade multirracial, estava presente o ideal de branqueamento, o que levou ao
casamento de imigrantes brancos com filhos e filhas de fazendeiros locais. Nesse
contexto, criou-se uma instabilidade social nos diversos setores da economia e da
política, o que levou os fazendeiros (coronéis) a organizarem uma polícia particular
para defender sua honra, sua família e sua propriedade – os jagunços clavinoteiros.
Nessa sociedade competitiva e instável, a violência fazia parte do cotidiano, como
uma necessidade imperiosa. Esses aspectos da memória e da cultura belmontenses
foram percebidos e sintetizados por Sosígenes Costa, poeta belmontense ligado ao
movimento modernista, que criou um mito de origem para o cacau do Sul da Bahia,
através de Iararana, poema de caráter rapsódico da mesma linha de Macunaíma,
de Mário de Andrade; Cobra Norato, de Raul Bopp, e Martim Cererê, de Cassiano
Ricardo. Aí, os seus personagens tipificam os colonizadores e seus descendentes
mestiços. Tupã-Cavalo, figura mitológica que foge do Olimpo e se instala na foz do
Jequitinhonha, simboliza o colonizador português, e Iararana, sua filha com a iara do
rio, simboliza a nossa hibridez cultural e o mandonismo dos coronéis. No final do
poema, acontece a vitória do filho da terra sobre o colonizador, procedimento
antropofágico em que o poeta propõe o aproveitamento da cultura européia, no
vínculo de sangue com o herói nativo que vai libertar a iara – símbolo das tradições
culturais brasileiras. Ao analisar toda essa produção simbólica, o trabalho considera
Belmonte ideal para o desenvolvimento de vários segmentos do turismo. Mas
considera também como grande desafio dos gestores do turismo – público ou
privado - tornar possível a utilização dos recursos do meio ambiente e da cultura
urbana e evitar simultaneamente a sua degradação. Daí a importância de um
planejamento eficiente e o desenvolvimento de ações básicas com vistas à
sustentabilidade das diversas formas de vida.
Palavras-chaves: Belmonte, cultura, sustentabilidade, turismo.
11
BELMONTE, MEMORY, CULTURE AND TOURISM: in a (re)vision of Sosígenes
Costa`s Iararana
Author: Durval Pereira da França Filho
Adviser: Prof. Dr. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas
ABSTRACT
Understanding culture like a “glass” through which one can see reality, this
work tries to show some aspects of Belmonte`s culture, memory and tourism,
emphasizing the sustainable development principles, keeping in mind that in various
circumstances, tourism can significantly contribute to environmental conservation
and cultural assets. However, it is necessary to plan the space, equipment, tourists
activities, as well as to have the population aware of the environmental values and
cultural assets. The Belmontese community, located in the mouth of the
Jequitinhonha river, arised from several Kamakan Indians villages catechized in the
beginning of XVIII century. As the village development took place and the cocoa
culture expanded, many national and foreign colonists arrived, specially the Italians.
In that multiracial society, it was evident the whitening goal, which guided the white
immigrants to marry the sons and daughters of the local farmers. In this context,
arised a social instability in the various political-economical sectors of the
community, responsible for the designing of a private police to defend their honor,
family and properties – the so called “jagunços clavinoteiros”. In this competitive and
unstable society violence was the rule. All theses remarks on Belmonte`s memory
and culture were caughted and synthesized by Sosígenes Costa, a modernist poet
who created a myth to the beginning of the cocoa culture in south of Bahia,
through Iararana, a rhapsodical poem belonging to the same style of Macunaíma,
written by Mário de Andrade; Cobra Norato, by Raul Bopp, and Martim Cererê by
Cassiano Ricardo. In all this set, the personages typify the colonizer and their
hybrids descendants. Tupã-Cavalo, a mythological figure who scapes from the
Olympus and sets himself by the mouth of the Jequitinhonha river, symbolizes the
Portuguese colonizer, and Iararana, his daughter, together the with river siren,
symbolizes our cultural hybridity and mighty despotism of the farmers. At the end of
the poem the victory of the native son over the colonizer take place, an
anthropophagic procedure in which the poet proposes the use of the European
culture in the blood-tie union with the native hero who is headed to free the river
siren (iara) - symbol of the Brazilian cultural tradition. Analyzing all this symbolical
production, this work regards Belmonte to be the right place for the development of
many tourism segments. However, it also considers to be a great challenge to the
tourism managers, in the public or private sphere, to make possible the use of
environment and cultural resources, as well as to avoid its own degradation. That is
why it is so important to plan efficiently and to develop some basic actions in order
to maintain the many different forms of life.
Key words: Belmonte, culture, sustainable development, tourism.
12
INTRODUÇÃO
Ao se escolher
“Belmonte, memória, cultura e turismo: numa (re)visão de
Iararana de Sosígenes Costa” como objeto de estudo, procurou-se fazer um apelo
histórico-cultural para o desenvolvimento do turismo,
quando se anunciam
consideráveis mudanças para o turismo na Bahia, num processo de integração entre
turismo e cultura.
Iararana é um poema modernista, de caráter rapsódico, em que Sosígenes
Costa procura criar um mito de origem para o cacau da Bahia. O cenário é o Sul da
Bahia, principalmente Belmonte, cidade natal do poeta, à qual o poema é dedicado,
numa demonstração do seu apego sentimental. Contudo, além de Belmonte, o
poema gira em torno de Canavieiras, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, região por
onde passaram e onde aportaram as caravelas de Cabral e onde moravam alguns
parentes do poeta.
O poema trata, de forma simbólica, da chegada dos colonizadores
portugueses, da origem e da expansão do cacau, da xenofobia presente no próprio
título – Iararana, a falsa iara, a iara mestiça - do meio ambiente regional, da
destruição da cultura indígena, do transplante cultural através da imigração
européia, da dominação dos descendentes dos colonizadores, e conclui de forma
apoteótica com a vitória da cultura nacional.
O trabalho está dividido em quatro capítulos.
No capítulo I, foi estudada a relação entre turismo, cultura e meio ambiente,
iniciando-se o capítulo com uma abordagem a respeito da viagem através dos
tempos e de como as pessoas viajavam em épocas remotas para lugares
desconhecidos, até mesmo por desígnios sobrenaturais, como o caso do patriarca
Abraão, mencionado na Bíblia, e a rapsódia de Ulisses, na Odisséia de Homero.
13
Com o aumento das atividades comerciais, as grandes viagens se
intensificaram, primeiro através do Mediterrâneo e depois pelos grandes oceanos,
Pacífico e Atlântico, o que resultou na conquista de novas terras.
Hoje, viajar é algo simples porque, com o avanço da tecnologia, o planeta
todo se transformou numa aldeia global. A viagem já não é o resultado de
determinações sobrenaturais nem simplesmente imposta pela força do mercado,
embora, não se possa negar a sua importância no deslocamento das pessoas. A
viagem é também a ruptura com o cotidiano e a oportunidade de novas experiências
na relação com outras pessoas e com outras culturas. Nesse contexto, a importância
do turismo é altamente relevante, por tratar-se de um fenômeno dominante nas
sociedades modernas.
Daí, a importância de se
estudar a cultura regional para entender os
processos pelos quais os agrupamentos humanos se formam, vivem e se modificam
sob o impacto das transformações físicas, mentais e psicossociais, presentes os
componentes geográficos, os costumes, as atividades e os estímulos da imaginação.
Cultura então é vista como a lente através da qual o homem percebe o mundo e
expressa seus sentimentos, conceito que vai contemplar o modo de viver de um
povo, associado às suas instituições, costumes, instrumentos etc.
De que maneira se pode estabelecer a relação entre memória, cultura e
turismo? Como a memória e a cultura podem ser evocadas como apelo turístico? A
partir desses questionamentos, procurou-se estabelecer uma argumentação a
respeito da relação entre
memória, cultura e turismo com base no conceito
antropológico de cultura e tendo como justificativa a memória de Belmonte e seus
bens culturais.
Somente o homem é portador de cultura, somente ele a cria, possui e a
transmite, o que vai estabelecer uma íntima relação entre memória e cultura:
enquanto uma mantém vivas as marcas do homem em sua caminhada, a outra pode
estudá-las, analisá-las, interpretá-las e transmiti-las a outros povos ou a outras
gerações.
14
No processo de colonização do Brasil, os europeus entendiam que estavam a
serviço de um poder divino para estabelecer a conquista e impor sua cultura, o que
significa o domínio de alguns homens sobre outros que foram sujeitados ou
adaptados a um padrão cultural tido como superior. Foi o que aconteceu com a
colonização portuguesa com referência aos povos indígenas.
Foram essas características do processo de aculturação que Sosígenes
Costa, o poeta belmontense, conseguiu sintetizar no poema modernista Iararana
(1933), salientando na figura de Tupã-Cavalo o colonizador português que investe
contra a cultura indígena, quando violenta sexualmente a iara do Jequitinhonha –
mito fluvial caboclo. O resultado é Iararana, hibridismo cultural que emerge em
momentos de transformação histórica (BHABHA, 1998) – a comunidade de
Belmonte e, por extensão, do Sul da Bahia.
Belmonte e sua cultura vistos a partir de uma (re)visão da obra sosigenesiana
é um apelo para que se desenvolva um turismo, em que a cultura não seja vista
simplesmente como um produto de mercado, mas como construção da imaginação,
como percepção das paisagens e do patrimônio cultural. Afinal de contas, a
percepção do turista é essencialmente cultural, mesmo que o enfoque seja
mercadológico.
O trabalho procura elencar os equipamentos culturais de Belmonte,
componentes simbólicos, representativos de um tempo, de um espaço, onde ações
humanas aconteceram e cujos vestígios ainda estão lá para serem revitalizados e
colocados à disposição da população (residente e visitante). Aí estão incluídos os
recursos da natureza:
florestas, ilhas,
praias, rios; e os da cultura: fazendas
representativas, espaços urbanos, patrimônio arquitetônico, filarmônicas e cultura
originária da imigração (gastronomia, música, língua).
O rio Jequitinhonha aparece em primeiro lugar, como local de memória, com
seu curso de águas,
afluentes, ilhas, sítios onde se desenvolveram grandes e
pequenas fazendas de cacau repletas de lendas e tradições, no conflito com os
povos indígenas e com a força bruta da floresta.
15
As praias e os manguezais aparecem a seguir no rol dos atrativos turísticoculturais, os primeiros mais relacionados ao turismo de massa (sol, areia e mar) e os
segundos relacionados ao turismo ecológico e científico. No seu desenvolvimento, o
trabalho chama a atenção para o perigo de deterioração desses ecossistemas e dos
recursos costeiros e marinhos em função do desenvolvimento turístico e urbano,
caso não haja um planejamento por parte da administração pública e dos demais
gestores do turismo.
A noção moderna de patrimônio cultural não se restringe à arquitetura,
embora seja reconhecida como um dos pontos altos da realização humana; não
apenas as coisas tangíveis, mas também aquelas percebidas pelo espírito. Então, o
capítulo II trata da memória de Belmonte, de suas origens e de seu
desenvolvimento, da saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros, daquilo que
os registros, os documentos da administração pública e os acervos particulares
guardam dessa memória e dos equipamentos culturais.
O patrimônio arquitetônico-cultural de Belmonte revela aspectos históricos,
artísticos, religiosos e ecológicos que podem ser percebidos por viajantes e
pesquisadores. Nas ruas, praças e casarões, parece se ouvir o som dos
clavinoteiros
ou os dobrados das filarmônicas, fantasmas que emergem para
alimentar a memória da cidade.
Assim, o capítulo II procura fazer uma incursão nos arcanos da memória
belmontense, em rápida análise a respeito da expansão européia que procurou
reordenar o mundo segundo os seus interesses. No processo de colonização, o
sistema de
capitanias hereditárias fracassou, resultando apenas em algumas
povoações e vilas ao longo da costa.
Uma dessas povoações, na capitania de Porto Seguro, foi o resultado de um
antigo aldeamento de índios do grupo Kamakan, catequizados pelo padre José de
Araújo Ferraz. O povoado, que se chamava São Pedro do Rio Grande, tornou-se a
Freguesia de Nossa Senhora da Madre de Deus, em 1718 e Vila do Jequitinhonha
de Belmonte em 1764, em homenagem à Belmonte portuguesa, terra dos Cabral.
16
Consta ainda da memória belmontense que os colonos da ex-capitania de
Porto Seguro, agora
comarca – após sua incorporação à coroa, em 1761 -
continuaram desenvolvendo suas atividades agrícolas, com o plantio de cereais
(arroz, feijão e
milho),
cana-de-açúcar, mandioca e batata na região do baixo
Jequitinhonha. Também criavam galinhas, bois, ovelhas, porcos, e burros,
considerados animais mais úteis e rendosos.
Desde os primeiros anos da colonização que o movimento bandeirante seguiu
pelo rio Jequitinhonha, na exploração de riquezas minerais e na conquista dos
índios. Contra essas atividades mineradoras, a Coroa tomou providências no sentido
de que suas riquezas não se esvaíssem. A mineração particular foi proibida e
divisões militares foram colocadas para impedir os mais ousados. Nesse momento,
as terras da antiga capitania foram distribuídas pela Coroa, em forma de sesmarias,
para incrementar a colonização e o povoamento das áreas costeiras.
Em razão das pressões do governo contra os garimpeiros do vale do
Jequitinhonha, as atividades mineradoras foram diminuindo no transcorrer das
primeiras décadas do século XIX. Muitos que haviam saído de Belmonte retornaram
à vila e se dedicaram ao cultivo da terra, plantando cafeeiros e coqueiros, atividades
que não tiveram expressão econômica.
No período imperial, Belmonte vai se notabilizar com a expansão da lavoura
cacaueira, sendo portanto o terceiro município baiano a desenvolver essa cultura,
depois de Canavieiras e Ilhéus, de forma acentuada a partir de 1860, quando o
cacau se tornou a principal base de sustentação econômica. A expansão da lavoura
do cacau
motivou, assim, uma grande migração de europeus
e também de
brasileiros oriundos do sertão da Bahia e de Sergipe, o que contribuiu para acelerar
o desenvolvimento da vila e do município. A partir daí, acentuaram-se as relações
comerciais com a província de Minas Gerais, através do rio Jequitinhonha.
Também a extração de madeira de lei para exportação foi outra atividade
marcante que se desenvolveu nesse período, o que contribuiu para a degradação da
mata atlântica, nesse espaço como em outros tantos da costa brasileira.
17
A
proclamação
da
República
vai
encontrar
Belmonte
em
franco
desenvolvimento: abertura de estradas que facilitaram as relações comerciais com a
província de Minas Gerais, navegação do Jequitinhonha, por meio de canoas e de
pequenos barcos, estação telegráfica e o Farol Atalaia, posteriormente denominado
Farol de Belmonte.
Em razão dessas atividades econômicas, políticas
e culturais, a vila de
Belmonte foi elevada à categoria de cidade, em 23 de maio de 1891. Os coronéis
foram fortalecidos, a jagunçada organizada a serviço dos grupos dominantes.
Nesse final do século XIX, aconteceram movimentos culturais que
contribuíram para alterar as feições da cidade: surgem novas escolas, agremiações
literárias, jornais, Santa Casa de Misericórdia. O movimento protestante se torna
uma realidade, através de missionários norte-americanos e de fazendeiros que
vieram em busca de novos empreendimentos agrícolas no Brasil, para fugir dos
efeitos da Guerra Civil Americana (1861-1865) já que, com a Constituição Brasileira
de 24 de fevereiro de 1891, a Igreja Católica Romana deixava de ser a religião oficial
do Brasil.
As filarmônicas também ocupam posição de relevo, como parte do patrimônio
cultural belmontense. Embora nos estatutos dessas sociedades constasse que elas
não tinham cunho político, na realidade, cada uma delas estava a serviço de grupos
políticos dominantes, o que gerou grandes enfrentamentos nem sempre de caráter
cultural-recreativo.
O capítulo III procura mostrar como toda essa memória secular de Belmonte o rio Jequitinhonha, os índios, o garimpo, o folclore, a religiosidade, a saga do cacau
com seus coronéis e clavinoteiros - foi percebida e sintetizada por Sosígenes Costa,
o poeta belmontense, através do poema Iararana que, embora com alguns aspectos
diferenciais, situa-se na linha modernista-nacionalista de Macunaíma, de Mário de
Andrade (1928); Cobra Norato, de Raul Bopp (1928), e Martim Cererê, de Cassiano
Ricardo (1928).
Iararana
é semelhante aos poemas mencionados, na busca da tradição
indígena para sua inspiração, na linguagem próxima à oralidade folclórica, como
18
símbolo de libertação e pelo caráter antropofágico que o poema revela. Mas se
diferencia pelo seu anacronismo estilístico (embora discutível), porque enquanto
todos os poemas anteriores foram escritos em torno de 1928, na primeira fase do
Modernismo, chamada de stricto sensu ou primitivista (1922-1930), Sosígenes o
escreve já na segunda fase, mas com características do primitivismo.
Diferencia-se também pela liberdade que o poeta demonstra ao misturar em
seu poema mitologia grega com mitologia indígena, quando os poetas da primeira
fase modernista
queriam destruir tudo que
tivesse qualquer ligação com o
Parnasianismo ou se relacionasse à cultura da Antiguidade clássica, e também se
diferencia pelo caráter localista de que o poema se reveste – o locus de Iararana é
Belmonte e suas adjacências.
O poema mostra a chegada de um centauro que veio da Europa e adentrou
foz do Jequitinhonha, dominou a iara do rio e os caboclos do mato. Esse centauro,
chamado de Tupã-Cavalo, simboliza o conquistador europeu, o colonizador, o
violentador e dominador da cultura local.
Da relação forçada entre Tupã-Cavalo e a iara – símbolo da cultura indígena,
local – nasce Iararana, figura miscigenada, de natureza dominadora e violenta, que
tipifica os descendentes dos colonizadores primitivos, que vão constituir uma
sociedade aristocrática e dominadora plasmada às margens do rio Jequitinhonha –
os coronéis do cacau.
No capítulo IV, a análise recai sobre a figura de Aracanjuba, uma mulher loura
que
Tupã-Cavalo traz da Europa
quando foi levar o cacau para mostrar aos
poderosos de lá. É a representação simbólica da imigração européia em Belmonte –
principalmente de italianos – no final do século XIX e início do século XX, o que vai
resultar em um profundo processo de miscigenação biológica e cultural.
No final da narrativa, ocorre a destruição parcial da cultura européia,
dominadora – representada por Aracanjuba, Iararana e Tupã-Cavalo – por meio de
um descendente da iara com um índio aimoré. É o procedimento antropofágico, em
19
que a cultura européia não é totalmente destruída, mas aproveitada num vínculo de
sangue com o herói nativo que liberta a iara da sua prisão.
Os principais objetivos neste trabalho são:
•
Salientar a importância de se buscar o entendimento de aspectos
culturais do Sul da Bahia, que ainda não foram devidamente
estudados, através de acontecimentos, no município de Belmonte,
considerados relevantes para a memória coletiva regional.
•
Sensibilizar as autoridades e o povo de Belmonte para a importância
da revitalização e da preservação de seu patrimônio histórico-cultural
como atrativo turístico no Sul da Bahia.
•
Desenvolver a idéia da necessidade de planejamento dos espaços,
dos equipamentos e das atividades turísticas, e de uma tomada de
consciência da população local e dos visitantes a respeito do meio
ambiente e dos bens culturais.
O referencial teórico é onde a pesquisa se fundamenta, e constitui o universo
de princípios, categorias e conceitos, formando sistematicamente um conjunto
coerente, dentro do qual o trabalho vai
se desenvolver. Como suporte para a
argumentação, foram utilizados embasamentos de
teóricos que tratam do tema
focalizado, como orientação de caminhos de reflexão, e da metodologia da pesquisa
científica como um todo.
Esse posicionamento procurou enfocar aspectos do patrimônio cultural como
apelo turístico, no município de Belmonte, entendida a cultura no sentido
antropológico, como a lente pela qual se pode perceber a realidade. A pesquisa
procurou salientar o patrimônio cultural de Belmonte, com ênfase nos princípios de
desenvolvimento sustentável, que possam minimizar
negativos, procurando evidenciar
de que forma,
os impactos ambientais
em circunstâncias diversas, o
turismo pode, significativamente, contribuir para a conservação do meio ambiente e
do patrimônio cultural.
20
No contexto das transformações culturais pelas quais passou, o município de
Belmonte, como espaço natural que sofreu os efeitos de ações humanas, deve ser
entendido também como espaço cultural, lugar da cultura. Aí o termo cultura deverá
ser entendido como os produtos do sentir, do pensar e do agir humanos, desde os
antigos povos das florestas até os habitantes dos nossos dias. Esse espaço
territorializado, fruto da interação entre o homem e o meio ambiente, poderá ser
reconfigurado e ressignificado como espaço turístico-cultural.
Além do referencial teórico, foram trabalhados outros instrumentos que, no
caso, são também fundamentalmente bibliográficos. Levando em conta os aspectos
da pesquisa qualitativa, foram
examinados dois trabalhos sobre a história de
Belmonte: Memória sobre o município de Belmonte, de Francisco Borges de Barros
(1916) e Belmonte e a sua história, de Afonso M. Monteiro (1918), que serviram de
base para a pesquisa.
Também foram levados em consideração os registros do naturalista alemão
Robert Avé-Lallemant, em Viagem pelo norte do Brasil no ano de 1859 (1961) e do
Capitão Durval Vieira de Aguiar em Província da Bahia (1979). Foram colhidos
alguns depoimentos de descendentes de italianos, a fim de estabelecer
comparações com a bibliografia que trata da imigração italiana no século XIX e
início do século XX.
A exegese que se procurou fazer do poema Iararana seguiu a ordem dos
capítulos ou cenas como se encontra no livro, embora em alguns momentos tenha
sido necessário retroceder ou avançar no texto, para estabelecer comparações entre
o que foi dito antes e o que foi dito depois, a fim de facilitar a compreensão da
mensagem. Quando se trata da utilização de citações diretas do poema, vai
aparecer no texto, entre parênteses, apenas o número da página. Ex.:
Eu te beijo, menino do céu (p. 105)
No final do trabalho, foi organizado um glossário visando esclarecer alguns
brasileirismos pouco comuns e idiomatismos do Sul da Bahia, particularmente da
região de Belmonte, empregados por Sosígenes Costa, em Iararana. A base para a
organização desse glossário foi o texto de José Paulo Paes, no final de Iararana.
21
Contudo, foram cotejados os termos, alguns colocados em discordância, e
acrescentados outros, através do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, Grande Enciclopédia Delta Larousse, Dicionário do
Folclore Brasileiro (2001), de Câmara Cascudo,
Português-Tupi, de Octaviano Mello.
Dicionário Tupi-Português
22
CAPÍTULO I
TURISMO, CULTURA & MEIO AMBIENTE
Fala-me, ó Musa, do homem de talento multiforme que tanto
vagueou após haver destruído a sagrada fortaleza de Tróia, viu
numerosas cidades, conheceu a índole de homens vários, e
muito sofreu sobre o mar quando buscava o meio pelo qual ele
e os companheiros poderiam manter-se vivos e voltar à pátria
(HOMERO – Odisséia).
A Viagem
O ato de se deslocar de um lugar para outro tem sido uma atividade milenar,
desde que o homem existe sobre a terra, por motivos os mais diversos. A história
dos homens está marcada pela busca do desconhecido, pela experiência, pela
surpresa da novidade, pela descoberta de diferentes formas de ser, de sentir, de
fazer ou de pensar.
Viajar, portanto, é ultrapassar fronteiras, vencer barreiras espaço-temporais,
dissolvendo-as ou recriando-as. Ao tempo em que se demarcam as diferenças,
singularidades ou alteridades, demarcam-se também “semelhanças, continuidades,
ressonâncias” (IANNI, 2000, p. 13).
Assim, viajante é aquele que, no processo de deslocamento no espaço,
encontra-se suspenso entre a partida e o regresso, referências basilares desse
deslocamento, dessa passagem. Aí, o indivíduo separa-se do meio familiar, para
depois ser reintegrado à sua família, em sua casa, em sua terra. Longe
de
ser
sofrimento, como em muitas circunstâncias no passado, hoje, a viagem se constitui
em excitação e prazer, dentro de uma autonomia liberta das imposições
sobrenaturais, mas como fruto da volição pessoal, pela determinação da vontade.
O viajante é alguém que penetra um território alheio. Em certos grupos
indígenas, os estrangeiros são considerados portadores de alguma ameaça e por
23
isso não podem transitar livremente, antes dos ritos mágico-religiosos de purificação.
Como o espaço onde o viajante se desloca possui a peculiaridade de
descontinuidade, ou seja, “cada sítio, cada cultura, constitui um território particular”,
ele aí é um intermediário que “coloca em comunicação lugares que se encontram
separados pela distância e pelos hábitos culturais”. Diante dessa descontinuidade, o
viajante é alguém que aproxima unidades heterogêneas e interliga pontos
desconexos. Deslocar-se então significa tomar conhecimento daqueles que são
diferentes de nós, e nessa nítida separação entre o visitante, aquele que se move, e
os lugares visitados, o contraste se torna fonte de experiência e de conhecimento.
Nesse processo de interação, a troca de experiência é inevitável.
Com a mundialização da cultura, deslocar-se no espaço deixou de ser uma
aventura, para tornar-se habitual, tanto para os que viajam (turistas), como para os
que organizam as viagens (agentes), com a disponibilidade de todos os mecanismos
da modernidade-mundo. Já não se viaja para o desconhecido, pois o turista deve
possuir
informações sobre o seu destino. A viagem deixa de ser um rito de
passagem, porque “o outro lado é parte integrante do imaginário daqueles que se
locomovem”. Por outro lado, os meios de comunicação contribuem para debilitar a
idéia de fronteiras entre as culturas e a realidade envolvente (ORTIZ, 2000).
Ao analisar a vida nas fronteiras dos locais da cultura, no contexto da
diáspora cultural e política, através dos grandes deslocamentos sociais, Homi
Bahbha (1998), citando Heidegger, concorda que uma fronteira não é o ponto onde
algo termina, mas é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.
Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos
morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles
possam alcançar outras margens... a ponte reúne enquanto passagem que
atravessa (HEIDEGGER apud BHABHA, 1998).
É essa ponte que, com a visão dupla de migrante indiano muçulmano,
Salman Rushdie, em Os Versos Satânicos (2000), tenta construir para reunir os
extremos e conciliar os opostos, numa resposta para a vida. Através de uma alegoria
criada
na era Thatcher, o autor reúne dois personagens, atores indianos, com
características que os opõem e os associam: Saladim Chamcha e Gibriel Farishta,
24
que, ao caírem no solo da Inglaterra, se metamorfoseiam, um em diabo e outro em
anjo. A visão una e multiplicada de Rushdie transita entre o real e o fantástico, entre
o sagrado e o profano, entre o bem e o mal, entre os opostos complementares e
inconciliáveis da vida.
Na Antiguidade, as pessoas se deslocavam de um lugar para outro, para
lugares até mesmo desconhecidos, por desígnios sobrenaturais, segundo contam
os rapsodos, através da escrita trazida pelos fenícios, que uniam antigos poemas
transmitidos por via oral (Odisséia, Eneida). Segundo a Bíblia, o patriarca Abraão
saiu de sua terra, do meio de sua parentela, por determinação de Jeová, “e saiu sem
saber para onde ia”1. No final da Idade Média, a intensificação de atividades
comerciais foi responsável por grandes viagens, primeiro de caráter comercial, nas
proximidades do Mar Mediterrâneo, e depois através do Oceano Pacífico, o que
resultou na descoberta de novas terras.
Nos dias atuais, a distância já não é motivo de preocupações, porque o
espaço pode ser conquistado viajando-se de forma real, entre locais; nas asas da
imaginação, através da literatura, ou simplesmente de forma virtual, na tela de um
computador (BAUMAN, 1999).
Hoje, a viagem não é simplesmente uma atividade
de lazer ou de ruptura com o cotidiano, mas também uma oportunidade de
experiência de conhecimento do outro, da natureza e de si mesmo (LABATE, 2000).
Em uma sociedade de consumo, como a nossa, em que todas as coisas , e
até mesmo as pessoas, podem ser transformadas em mercadoria, a satisfação do
consumidor não deve ser completa, porque sempre vai haver novas mercadorias
para se consumir e a criação de novas necessidades a serem satisfeitas. “O que
realmente conta é apenas a volatilidade, a temporalidade interna de todos os
compromissos”, a invenção das necessidades e a busca de sua satisfação num
processo de realimentação do sistema capitalista. Hoje existe toda uma rede de
bens e serviços para atrair o viajante, o turista, para estimular os seus desejos de
consumo, e transformá-lo em “uma criatura acentuadamente diferente dos
1
Uma referência ao deslocamento do principal patriarca dos judeus, Abraão, da cidade de Ur (Epístola aos
Hebreus 11:8).
25
consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui” (BAUMAN, 1999, p. 88,
89).
Sendo o
turista um consumidor em potencial, que procura emoções e
coleciona experiências, precisa ser mantido acordado, exposto às tentações do
mercado, para que sua capacidade de consumo esteja sempre aumentada e em
estado de constante insatisfação. Se o mercado seduz o consumidor é porque o
consumidor deseja ser seduzido, o que o torna uma pessoa sempre em movimento
e insatisfeita.
Não sendo apenas e simplesmente uma atividade de lazer ou de ruptura com
o cotidiano, a viagem pode ser também uma oportunidade de experiência de novos
conhecimentos do outro, da natureza e de si mesmo. Embora não se reduza ao
fenômeno turístico, é forma dominante nas sociedades modernas e, de modo
especial, nas pós-modernas, onde o turismo internacional faz parte do processo de
globalização.
Se o ato de viajar é uma constante no transcurso da história, o turismo, no
sentido moderno do termo, é um fenômeno recente, uma peculiaridade do século
XX, com todos os impactos no âmbito econômico, político, sócio-cultural, ambiental e
ecológico (THEOBALD, 2000), os quais podem ser de caráter positivo ou negativo.
Positivos quando revitalizam a cultura – as habilidades artesanais, a música, a
literatura, as tradições etc. – e favorecem o intercâmbio cultural entre diferentes
populações (COOPER et alii, 2000). Podem ser negativos quando os ritos, as artes,
o artesanato da população local são adulterados para efeito de comercialização, ou
apresentam uma visão limitada e distorcida de uma das populações.
No contexto da globalização, de um mundo em descontrole - em razão da
interferência do homem no ambiente - no capitalismo desorganizado, em que
sujeitos e objetos circulam numa escala cada vez maior, o tempo e o espaço são
separados, “desencaixados”, reduzidos a eventos deslocados das relações sociais.
Aí, as culturas são desterritorializadas, os sujeitos despojados de sua afetividade e
os objetos, de seu conteúdo simbólico e material, em que as imagens (do outro) são
apropriadas para o turismo com todos os riscos decorrentes (GIDDENS, 1991).
26
Cultura & Turismo
Estudar a cultura regional é procurar entender os processos pelos quais os
agrupamentos humanos, em determinado espaço, se formam, vivem e se modificam
sob o impacto das transformações físicas, mentais e psicossociais. Nesse processo,
entre
outros, estão presentes os componentes geográficos, os costumes, as
atividades e os estímulos da imaginação.
O ser humano vê o mundo através das lentes de sua cultura, o que permite
que cada um tenha uma percepção diferente da realidade que o cerca. Isto vai
marcar todo um comportamento, todo um modo de viver. Embora os
homens
compartilhem atitudes e perspectivas comuns, a visão que cada um tem do mundo
é única.
A cultura é também uma herança que se recebe ao nascer, por meio
de uma série de influências do grupo no qual está inserida. Quanto mais o indivíduo
se integra, mais hábitos adquire, capacitando-se como membro dessa sociedade,
agindo e atuando dentro dos padrões estabelecidos, que são justamente a cultura
(LARAIA, 1992).
Cultura é, então, a lente através da qual o homem pode ver o mundo e
expressar seus sentimentos. Homens de culturas diferentes percebem de formas
diferentes e, muitas vezes, terão percepções desencontradas dos objetos da
observação.
Nesse conceito antropológico, cultura vai além da inovação e da
diversificação das indústrias culturais, nos seus múltiplos ramos de atividade, para
contemplar o modo de viver de um povo e suas particularidades: instituições,
costumes, idéias, linguagem, instrumentos e sentimentos.
Como somente o homem é portador de cultura, somente ele a cria, possui e a
transmite, seja como modo de vida (sentido antropológico), seja como arte, produtos
e experiências culturais espiritualmente elevados - alta-cultura (FEATHERSTONE,
1995). Daí a íntima relação que se pode estabelecer entre memória e cultura:
enquanto uma mantém vivas as marcas do homem em sua caminhada, a outra pode
27
estudá-las, analisá-las, interpretá-las e transmiti-las a outros povos ou a outras
gerações. Afinal de contas, o homem não é concebível sem a sua cultura
(AZEVEDO, 1964).
Ainda segundo Azevedo
cada povo tem o seu temperamento e o seu gênio próprio que, elaborados
através de séculos, são o produto do meio físico, dos elementos raciais, e
do processo de sua evolução social, e se manifestam tanto na sua história
e nas suas instituições, quanto na sua língua e na sua literatura, nas suas
obras de arte e de pensamento (Id. p. 45).
É o que Alfredo Bosi (1994) chama de “a possibilidade de
enraizar no
passado a experiência atual de um grupo”, através das mediações simbólicas. “O
gesto, o canto, a dança, o rito, a oração, a fala que evoca, a fala que invoca” são
símbolos culturais que vinculam o presente “com o outrora-tornado-agora, laço da
comunidade com as forças que a criaram em outro tempo e que sustém a sua
identidade” (p. 15).
Ao analisar os conceitos de colônia, culto e cultura, Bosi nos remete à idéia
de colonização como “um projeto totalizante cujas forças motrizes poderão sempre
buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter
os seus naturais” (Id. 15). Os agentes do processo não são simplesmente suportes
físicos de caráter econômico, mas crentes que trouxeram na memória “aqueles
mortos que não devem morrer”. O colonizador europeu trazia no arcabouço de sua
memória a certeza, a convicção de que
estava a serviço de um poder divino
(representado pelo rei) para dominar e impor a sua cultura.
Esse processo de aculturação significava o domínio do homem sobre outros
homens, sujeitando-os ou adaptando-os a um padrão cultural considerado superior.
É aí que a ação colonizadora dialetiza as três ordens propostas por Bosi: do cultivo,
do culto e da cultura. A primeira, do cultivo, fundamenta-se no princípio básico do
domínio sobre a natureza para se desenvolver o processo do mercantilismo, em que
a economia colonial foi efeito e estímulo dos mercados metropolitanos.
28
Nesse processo de dominação, também o cacau contribuiu para a eliminação
do índio e para a escravização do negro. Assim, analisando os aspectos gerais da
formação econômico-social do Brasil-Colônia, pode-se perceber que – mudando o
que deve ser mudado – as características no Sul da Bahia foram semelhantes ao
que Gilberto Freyre (1987) afirma quando diz que o açúcar eliminou o índio, através
das marchas colonizadoras.
Houve o predomínio dos latifundiários com interesses vinculados a grupos
mercantis europeus, com força produtiva também escrava, sendo a administração
pública local exercida pelas câmaras municipais formadas pelos “homens bons”, os
proprietários (coronéis), o que também representava um dos aspectos do poder que,
na esfera ideológica, era exercido pela Igreja.
A idéia de que o cacau eliminou o índio e escravizou o negro está presente
nas memórias dos viajantes, nos historiadores regionais e na ficção do cacau:
Adonias Filho, Afrânio Peixoto, Ciro de Matos, Jorge Amado, Sosígenes Costa etc.
Através desses autores, embora seguindo por caminhos diferentes, a História e a
Literatura se complementam, constroem o social e nos revelam como cultura
(SOUSA, 2001).
Quanto aos aspectos psicoculturais do passado brasileiro, enfocados por
grandes nomes como Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda, há que se levar
em conta que a idéia de cordialidade do escravo e a carência de orgulho do
português, despido de preconceitos, levaria a uma democracia racial, precisa ser
revista. Caso contrário, a violenta dominação do colonizador e sua
imposição
cultural, seja nos engenhos de açúcar, no apresamento de índios, nas conquistas
dos bandeirantes ou no coronelismo do cacau sulbaiano, ficarão relativizadas e
minimizadas, o que vai levar a uma ideologia que privilegia o vencedor.
Seja pela ação ideológica da Igreja, seja pela dominação do colonizador,
uma cultura gestada em meio a um povo pobre e dominado, num processo de
simbiose cabocla, mulata ou cafuza, “foi prevalecendo em todos os campos da vida
material e simbólica... na comida, na roupa, na casa, na fala, no canto, na reza, na
festa...” (BOSI, 1994, p. 46).
29
Sosígenes Costa, o poeta belmontense, consegue sintetizar esse processo de
aculturação no poema modernista Iararana2, em que a figura de Tupã-Cavalo3,
símbolo do colonizador português, investe contra as tradições indígenas, quando
violenta a iara do rio Jequitinhonha e se apodera simbolicamente de um mito fluvial
caboclo que representa a força do rio.
Dessa relação forçada, entre Tupã-Cavalo e a iara, da apropriação das
nossas matas, do estupro da cultura indígena nasceu Iararana, figura miscigenada,
símbolo da hibridação racial e cultural brasileira ou, como prefere Bosi, das culturas
brasileiras. De brancura araçuaba semelhante a uma taruíra (p.45), ou lagartixa
branca, Iararana puxa às suas origens européias, ao pai, não apenas na cor da
pele, mas no caráter cruel e violento: “danada de runhe” (p. 60). Nossa mestiçagem
aparece aí como resultado de uma limpeza étnica, de um estupro praticado contra a
cultura de povos considerados inferiores (no caso, os índios do Sul da Bahia). São
os “hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica”
(BHABHA, 1998, p. 19).
Assim, a comunidade belmontense é o resultado de um profundo processo
de miscigenação biológica e cultural, com a incorporação de diversas etnias
(COUTO, 1995). De início, o contato entre portugueses e índios, nos primeiros anos
da povoação, através do aldeamento dos kamakan pelo padre Ferraz. Depois, a
inclusão do elemento de origem africana nas atividades de subsistência, na
garimpagem de pedras preciosas, ao longo do rio Jequitinhonha, e na cultura do
cacau. A alma-avô que apareceu no mato explica:
Tudo isto que aqui vês dando flor e dando fruto
fui eu que plantei com escravo nagô (p.99).
No momento atual, quando os bens simbólicos sãos transformados em
mercadorias e consumidos principalmente pelos meios de comunicação de massa, é
preciso que novas mercadorias sejam produzidas para a satisfação do consumidor.
2
Iararana (do tupi ig = água, iara = senhor, acrescido do sufixo rana = semelhante a) – Semelhante à senhora
das águas. A iara ou mãe-dágua é uma criação do indianismo literário, segundo Câmara Cascudo (apud José
Paulo Paes).
3
Tupã, na mitologia indígena, é uma divindade hostil, que aniquila a floresta com seus raios trovejantes (Id.).
30
Contudo, essa satisfação nunca deverá ser completa, para que ele volte a consumir
sempre, alimentando e realimentando o mercado consumidor.
Como o turista é um consumidor em potencial, na busca de emoções e novas
experiências, os bens culturais – presentes aí os produtos do sentir, do pensar e
fazer humanos – as artes, a literatura, etc. se constituem em grandes atrativos
turísticos que, devidamente formatados, podem ser colocados à disposição do
público consumidor. Contudo, não se deve perder de vista os impactos negativos
decorrentes no âmbito econômico, político, sócio-cultural, ambiental e ecológico.
No contexto das teorias da cultura de consumo, Mike Featherstone (1995) entende
que o objetivo de toda produção é o consumo, em que os indivíduos maximizam a
satisfação de suas necessidades, através
da aquisição de mercadorias em
expansão.
Embora o turismo tenha papel importante no desenvolvimento cultural das
comunidades, é preciso se desenvolver uma política que privilegie um turismo de
impacto sociocultural positivo, onde estejam incluídas claras noções relacionadas
com a educação ambiental, envolvendo aí os recursos da natureza e os bens
culturais. Assim, o patrimônio cultural poderá ser usado para estimular o turismo e o
turismo, por sua vez, poderá contribuir para a preservação dos bens culturais e da
natureza.
A despeito da possibilidade de grandes
benefícios que o turismo pode
promover, o seu crescimento desordenado pode levar a resultados mais nocivos
que benéficos. Pode ter efeito inflacionário nas regiões receptivas; pode contribuir
para a elevação de preços, tanto para os turistas como para os moradores; pode
contribuir para a poluição das águas, etc. Do ponto de vista cultural, pode trazer
contribuição negativa para os usos e costumes locais, como alteração do artesanato
e do folclore para satisfazer os desejos dos turistas, além do incentivo à prostituição
infanto-juvenil, em muitos casos (IGNARRA, 1999).
“Belmonte: memória, cultura e turismo – numa (re)visão de Iararana de
Sosígenes Costa” é um apelo para o desenvolvimento de um turismo que perceba a
cultura não simplesmente como um produto de mercado, com motivação meramente
31
materialista, mas também como o vivenciar na realidade das construções da
imaginação, com a sensibilidade voltada para os elementos visuais das paisagens e
dos bens culturais que estão situados além do cotidiano (TRIGO, 2000).
Equipamentos Turístico-Culturais
Como esse conceito antropológico de cultura ultrapassa a diversificação das
indústrias culturais, nos seus múltiplos ramos de atividade (WARNIER, 2000), vai
contemplar o modo de viver de um povo e suas particularidades, bem como
abranger objetos culturais aparentemente simples, mas de considerável “valor para o
conhecimento de pormenores de uma região, de uma época, de um estilo de vida”
(PELLEGRINI FILHO, 1997, p. 91);
Assim, a idéia de patrimônio cultural se amplia com os produtos do sentir, do
pensar e do fazer humanos, entendida
assim como todo e qualquer artefato
humano com forte componente simbólico, representativo da coletividade, de um
espaço, de um tempo específico, que facilite a compreensão do processo histórico,
levando-se em conta tanto as ações das classes dominantes como das classes
excluídas do processo de dominação (Ibid.).
Ao tomarmos como objeto de estudo
aspectos histórico-culturais do Sul da
Bahia, fazemo-lo como evocação turística para a cidade de Belmonte.
Seguindo o
raciocínio de Pellegrini Filho (1997), no contexto das transformações culturais pelas
quais passou, o município de Belmonte, como espaço territorializado que sofreu os
efeitos de ações humanas, pode ser entendido também como espaço cultural, lugar
da cultura. Aí o termo cultura será entendido como os “produtos do sentir, do pensar
e do agir humanos” , desde os antigos povos das florestas, até os habitantes dos
nossos dias. Esse espaço poderá ser reconfigurado e re-significado como espaço
cultural ”para atividades turísticas que minimizem impactos ambientais e contribuam
para o desenvolvimento sustentado” (Ibid. p.10). A noção moderna de patrimônio
cultural, portanto, não se restringe à arquitetura, embora seja reconhecida como um
32
dos pontos altos da realização humana; não apenas às coisas tangíveis, mas
também aquelas percebidas pelo espírito.
Aí podem ser relacionados: canoas para transporte de cacau, instrumentos de
pesca, arreios para tropas de animais, clavinotes4 antigos; fotografias documentais
(paisagens, eventos, pessoas); cultura originária da imigração (culinária, música),
religiosidade; jornais antigos; lendas, folclore e outras manifestações orais;
documentos da administração pública, documentos particulares, etc. Ao lado desses
bens, devem ser considerados também os bens imóveis, que formam o patrimônio
arquitetônico:
igrejas, conjuntos residenciais, logradouros públicos, sedes de
fazendas – “interessando que sejam todos e cada um a seu modo representativos
da cultura em que estiveram ou estão inseridos” (Ibid.).
Para Trigo (2001), o turismo está intimamente associado à paisagem e ao
meio ambiente. E ao entrar em contato com a natureza e percorrer as diversas
paisagens, o ser humano interpreta o que viu através da cultura, por mais simples
que seja a descrição. A percepção do turista é essencialmente cultural, seja o
enfoque artístico, mercadológico ou científico.
Pela observação da natureza, também grandes obras de arte foram
realizadas, despertando o imaginário nos diversos campos da atividade humana,
seja na escultura, na pintura, na música ou na literatura.
A historia, a antropologia, a geografia, a cartografia e a sociologia são
especialistas em descreverem os espaços culturais e naturais e por isso
são ciências fundamentais para o Turismo [...]. A arte ajuda a ciência e a
filosofia a melhor refletir sobre os amplos espaços do planeta. Florestas,
desertos, geleiras, praias, montanhas, cavernas, lagos e rios, tudo tem o
seu mistério guardado no inconsciente das culturas e civilizações e nem
sempre a aridez da ciência consegue transmitir as sensações contidas
nessa natureza tão cercada de mistérios no passado (TRIGO, 2000, p.
147).
É fato notadamente conhecido o significativo crescimento das atividades
turísticas, tanto em termos sociais como econômicos, já que o turismo é responsável
pela geração de 255 milhões de empregos, o equivalente a 10, 7% de toda a força
4
Pequena clavina, ou carabina, usada pela polícia particular dos coronéis.
33
de trabalho no mundo, o que pode chegar 385 milhões de empregos dentro dos
próximos 3 anos, o que significa cerca de 11,1% de toda a força de trabalho do
planeta (THEOBALD, 2001; COOPER et al., 2001). O turismo também é o setor que
mais contribui para a economia mundial, com 10,2% do produto nacional bruto
mundial, sendo ainda o maior gerador de receitas de impostos (TRIGO, 2000;
VALLS, 1996). Além da força econômica mundial, o turismo representa também uma
grande contribuição em termos socioculturais, por tratar-se de um produto baseado
na produção e no consumo simultâneos.
Como a motivação básica das pessoas, em relação ao consumo, não é
simplesmente materialista, o olhar do turismo é direcionado para aspectos diversos
do campo ou da cidade, com a sensibilidade voltada para os elementos visuais das
paisagens e das culturas que estão situados além do cotidiano, fora do habitual.
Afinal de contas, “os motivos para viajar são muito variados e bastante influenciados
pela cultura e pelo imaginário do turista” (Ibid. p. 24).
Nos segmentos das tendências contemporâneas do turismo, é preciso ter
em mente dois aspectos extremamente relevantes: a satisfação do turista e o
desenvolvimento equilibrado no contexto da economia nacional, tanto no que se
refere aos atrativos da natureza, como aos bens culturais.. Tanto num caso como
em outro, é preciso se ressaltar a importância da preservação ativa, ou seja, o uso
equilibrado de atrativos da natureza e da cultura, minimizando-se os impactos
negativos (PELLEGRINI FILHO, 1997).
Falando sobre a percepção, as atitudes e os valores envolvidos nas relações
das pessoas com o meio ambiente, Yi-fu Tuan (1980) considera que na medida em
que a sociedade e a cultura evoluem com o tempo, podem mudar a atitude para com
o meio ambiente, ou seja, a herança biológica e a cultura interferem na preferência
ambiental de uma pessoa. É a topofilia, “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou
ambiente físico”.
Por outro lado, o meio ambiente também vai influenciar na
percepção da realidade, nas atitudes e valores e na visão do mundo.
Assim, as pessoas têm uma visão de mundo construída a partir dos
elementos do ambiente natural, refletindo os seus ritmos e suas limitações.
34
Enquanto os ambientes urbanos estão diferenciados em céu e terra, com marcos
referenciais visíveis, por exemplo, a floresta não possui marcos visuais
diferenciados, porque todos os elementos visíveis estão próximos do observador.
Contudo, nesse ambiente fechado, seus habitantes têm suas referências e
conhecem em detalhes como a vida aí se desenvolve.
Nas antigas civilizações, no Egito, na Mesopotâmia, na Índia, na China as
águas dos grandes rios
determinaram sua paisagem e sua economia, os rios
também funcionando como indicadores de direção. As águas, o céu, as planícies, o
vale foram elementos decisivos para a construção dos
valores desses povos,
segundo Tuan, onde as idéias cosmológicas refletiam aspectos do seu meio
ambiente natural.
Rio Jequitinhonha – Lugar de Memória
Levando-se em conta a clássica afirmativa, atribuída a Heródoto, de que o
Egito é uma dádiva do Nilo, podemos afirmar que Belmonte também pode ser
considerada uma dádiva do Jequitinhonha, porque, em razão desse rio,
desenvolveu-se a vila, posteriormente cidade, e toda a cultura do cacau. O rio aí
funcionou não apenas como meio de comunicação, mas como lugar da riqueza, seja
pela exploração de ouro e pedras preciosas, no alto Jequitinhonha; seja pela lavoura
do cacau, no município de Belmonte.
O rio Jequitinhonha
nasce na serra do Espinhaço, próximo às históricas
cidades de Serro e Diamantina, no estado de Minas Gerais. Cruza com a BR-116,
em Itaobim (MG) e a BR-101, em Itapebi (BA). Na divisa de Minas Gerais com a
Bahia se encontra o Salto Grande, ou Salto da Divisa e, após um percurso de
1.086 km (BARROS, 1916; MONTEIRO, 1918), deságua no Oceano Atlântico, em
cuja foz se encontra a cidade de Belmonte, na Bahia. No passado, elo de ligação,
meio de comunicação entre Bahia e Minas, o Jequitinhonha foi de grande
importância econômica como escoadouro de produtos. Hoje, representa a memória
35
cultural de um passado grandioso, que pode ser
re-significada para atividades
turísticas.
Na foz do rio Jequitinhonha, no Sul da Bahia, situa-se a cidade de Belmonte
(Fig. 1), antiga povoação onde, no começo do século XVIII, índios botocudos foram
aldeados e catequizados pelo padre jesuíta José de Araújo Ferraz, responsável pela
construção de
uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Madre de Deus
(entre 1708 e 1712), ficando o povoado com o nome de São Pedro do Rio Grande,
segundo os memorialistas.
Na época do descobrimento, os nativos que ocupavam esse espaço - o vale
do Jequitinhonha - tiravam daí o sustento para as suas comunidades. As mulheres
plantavam, colhiam, teciam, cozinhavam e cuidavam das crianças. Os homens
caçavam, pescavam, construíam canoas e armas de guerra. Derrubavam o mato,
preparavam a terra para o plantio e cuidavam da segurança da aldeia. O
Jequitinhonha era o símbolo da vida, o lugar da subsistência.
No início do século XVIII, muitas bandeiras foram organizadas, a partir de
Belmonte, para exploração de pedras preciosas, o que trouxe benefícios
econômicos, no sentido de que muitas pessoas ficaram ricas nessa atividade.
Todavia, a vila sofreu um grande atraso, porque ficou esvaziada pela ausência de
homens que se infiltravam nos garimpos em busca de ouro e pedras preciosas, ao
longo do rio (BARROS, 1916).
Desde a sua nascente, o Jequitinhonha apresenta um grande número de
voltas que dão lugar a diversos sítios históricos, dos quais nomeamos alguns no
estado da Bahia, no antigo município de Belmonte, hoje Belmonte e Itapebi:
Engenho do Camilo, Coroa Grande, Sítio Monte Alegre, Engenho de Areia, Ibipura,
Diogo, Ingauíra, Boca do Ubu, Meroaba, Currais, Ipiranga, Bolandeira, Boca do
Córrego, Espinheira, Ponta Grossa, Coroa da Palha, Timiqui. Bacorinha, Ilha
Grande, Ilha do Chaves, Barreiras, Ilha das Pombas, São José do Falhado, Genebra
(antiga sesmaria do Gen. Pederneiras), Jacarandá, Oiteiro Feio, Coqueirinho,
Limoeiro, Pedra Branca (atual cidade de Itapebi), Maraú e Cachoeirinha. Alguns
desses sítios são ilhas que também estão mencionadas adiante (Mapa 1).
36
Figura n.º 1
Vista aérea da cidade de Belmonte, destacando-se a Av. Rio-Mar e o farol
37
MAPA n.º 1 – Município de Belmonte próximo à sede
38
No chamado baixo Jequitinhonha, o grande rio recebe ainda as águas de
outros pequenos rios e riachos, tais como: Palmeiras, Jaqueira, Lapinha, S. José de
Cima, Cairi, Taquaras, Córrego do Jacarandá, Limoeiro, Timiqui, Ubu (seu maior
afluente em território baiano), Riacho Grande, Conceição, Riacho do Freire, Boquete
e Passaí (MONTEIRO, 1918).
Na divisa da Bahia com Minas, está a Cachoeira do Salto Grande, que desce
por um estreito canal e precipita suas águas em cinco níveis ou tombos de grande
beleza, próxima à cidade de Salto da Divisa. Além dessa, existem outras quedas
d’água menores, como: Araçazeiro, Cachoeira Seca, Cotinguiba, Escadinhas,
Gameleira, Gangorra, Guaribas, Italiano, Marimbondos.
A Lavoura do Cacau
Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e a conseqüente abertura dos
portos, a partir de 28 de janeiro de 1808, os produtos da terra não se limitaram,
como antes, ao exclusivo abastecimento do país, mas podiam ser exportados para
outros lugares. Mesmo assim, as atividades cacaueiras, no Sul da Bahia, tiveram um
desenvolvimento lento por um período de aproximadamente 50 anos. Somente a
partir de 1860 o cacau deixa os vales dos grandes rios e ganha o interior das matas,
ficando protegido das inundações. Novas espécies são introduzidas, o que
possibilitou sua expansão pelas encostas, e o cacau passa a ganhar relevância, em
termos econômicos, e se afirma como cultura predominante. Belmonte é assim o
terceiro município baiano a desenvolver a cultura do cacau, depois de Canavieiras e
Ilhéus (MONTEIRO, 1918).
O período de 1890 a 1930 é o mais grandioso, quando o cacau assume a
posição de principal produto de exportação da Bahia. Sosígenes Costa, o poeta de
Belmonte, assim o percebe:
O cacau agora era um deus na terra
e só se falava em cacau,
ninguém queria mais plantar mandioca
39
no oiteiro da Conceição
nem coco em Mogiquiçaba.
O povo todo recebeu debaixo de festa
o cavalo-do-mar aqui na roça (p. 86).
A expansão da lavoura cacaueira, no município de Belmonte, foi rápida, com
colheita farta e lucrativa, o que resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma
grande migração, tanto de nordestinos como de europeus, principalmente italianos,
o que também contribuiu para consideráveis mudanças na sociedade, levando-se
em conta os aspectos econômicos, políticos e religiosos – a cultura em geral.
As sementes vieram de Ilhéus para a região do Poaçu, através dos
agricultores Pedro Seare e Belmiro Francisco de Lotero, e depois para os lugares
Franca e Ingauíra, por meio de Joaquim Silva e Manoel José de Bittencourt, e para o
Engenho, por meio de Eugênio Amorim. Esses foram os primeiros cacauicultores de
Belmonte, que fizeram pequenas plantações, a título de experiência. Posteriormente,
outras pessoas também se interessaram pelo cultivo do cacau, em vista
do
acelerado desenvolvimento, principalmente às margens do Jequitinhonha.
Segundo Borges de Barros (1916), antigas fazendas de cacau, no município
de Belmonte, existiam registradas já em 1854, localizadas nos seguintes sítios:
Boca do Ubú, Córrego das Rãs, Escadinhas, Sapucaia, Cariri, Ilha do Peso,
Palmeiras, Araras, Marimbondos, Córrego Bananal, Córrego Curibas, Torcicolo,
Jaqueiras, Mundo Novo, Burgalhau, Gangorras, Ipibura, Gameleira, Boa Paz, Coroa
Grande, Outeiro Feio, Furado, Ventania, Cachoeira Seca, Poço do Meio, Quartéis
Velhos, Estreito, Jacobina, Cachoeirinha, Jacarandá, Alagoa dos Cocos, Riacho da
Conceição, Riacho Grande, Barra Velha, Pombas, Campo Seco, Corregozinho, Ubu
de Baixo, Ilha do França, Diogo, Ubu do Meio.
A fazenda As Pombas, em meados do século XIX,
pertencia ao então
Coronel Inocêncio Veloso Pederneiras, preposto do presidente da Província da
Bahia, Cansação de Sinimbu, para obras de melhoramentos nos vales dos rios
Pardo e Jequitinhonha. “As Pombas chamam-se assim aquelas colinas florestais no
fundo do belo quadro. Imediatamente por trás delas, a segunda propriedade do meu
40
companheiro, o Coronel Pederneiras, que é conhecida pelo nome de Genebra”
(AVÈ-LALLEMANT, 1961, p.116).
A fazenda Cachoeira Seca, que fica situada na divisa entre os municípios de
Belmonte e Canavieiras, foi adquirida em 1904 pelo Eng. Alberto César Navarro,
conforme Planta e Memorial Descritivo da medição e demarcação das referidas
terras, e, a partir de 1982, pertence a Rafael Tosto Filho, de família italiana.
Com o desenvolvimento da lavoura cacaueira e a migração de pessoas de
várias partes do Brasil e da Europa, criou-se uma instabilidade social nos diversos
setores da economia e da política, o que levou os fazendeiros (coronéis) a
organizarem uma polícia particular para defender sua honra, sua família e sua
propriedade – os clavinoteiros5.
A sociedade que se forma aí vai ter no
Jequitinhonha o seu referencial,
pulsando no contexto das transformações materiais e culturais pelas quais passou o
rio,
sob os efeitos de ações humanas, o que pode ser entendido também como
espaço cultural, lugar da cultura, entendido o termo como os “produtos do sentir, do
pensar e do agir humanos” (PELLEGRINI FILHO, 1997).
O rio Jequitinhonha, em cujas florestas habitavam os indígenas, filhos da
terra, era o lugar da subsistência; meio de comunicação, lugar da riqueza dos
diamantes e do cacau; espaço natural tornado espaço cultural, passa a perder as
características evidentes de seus aspectos histórico-culturais. Com a abertura de
estradas e a expansão da lavoura cacaueira, os indígenas são massacrados,
expulsos ou aculturados; a floresta é devastada e o rio perde sua vocação histórica
de meio de comunicação. Depois, o cacau perde o seu caráter de “fruto de ouro”
como o denominou Afrânio Peixoto, com as constantes crises, situação que chegou
ao ápice, nas últimas duas décadas, com a praga conhecida por vassoura-de-bruxa,
provocada pelo fungo Crinipellis perniciosa, endêmico da Amazônia.
5
Homens armados de clavinotes, a serviço dos coronéis.
41
Mais do que um corpo de águas, o vale do baixo Jequitinhonha reúne
atributos ambientais ainda preservados, graças ao que restou da lavoura cacaueira
que aí foi implantada em meados do século XIX, e que depende de sombreamento
para a sua sobrevivência, o que, de certa forma, contribuiu para a preservação de
parte da Mata Atlântica.
Todavia, hoje, percebem-se impactos diferenciados de acordo com as formas
de uso da terra, motivados pela tendência de mudança para outras culturas, em
razão da
atual crise do cacau, associadas a diferentes situações fundiárias e
diferentes níveis de fertilidade do solo. Salvador Trevisan (2000) percebe que é no
cacau onde mais se encontram fazendas sem mata e sem capoeira, enquanto que
nas áreas de diversificação agrícola não se encontram fazendas sem área de mata
e capoeira.
A zona da Mata Atlântica teve sua destruição iniciada com o ciclo do paubrasil, foi intensificada durante todo o período colonial para dar lugar a culturas
como a cana-de-açúcar, fumo e mandioca, e para suprir de madeiras e lenha os
engenhos e vilas.
No século XX, a despeito de sua expansão, pode-se analisar a cultura do
cacau em três momentos: 1) até 1960, antes da CEPLAC, quando as atividades
cacaueiras eram desenvolvidas de forma empírica, sendo a mata derrubada para o
plantio de cacau, com algumas árvores de maior porte sendo preservadas para o
sombreamento, que era completado com a plantação de árvores frutíferas e
bananeiras; 2) a partir da CEPLAC, quando foi incrementada a prática da cabruca
ou brocada6, que conservava a maior parte da mata, e 3) após a vassoura-de-bruxa,
quando muitas áreas, consideradas de segunda e de terceira categoria, foram
utilizadas para a introdução de novas culturas ou transformadas em pastagens para
a pecuária. Tudo isto aliado à abertura de estradas litorâneas, o que deu novo
alento à indústria madeireira, também contribuiu consideravelmente para a
destruição de boa parte das reservas de matas que ainda restavam (Mapas 2, 3,
4).
6
Derrubada do mato pequeno conservando as árvores grandes.
42
43
44
45
Embora não haja uma clara preocupação com a questão ambiental, muitos
fazendeiros e trabalhadores rurais revelam alguma percepção no que se refere à
extração de madeira e suas conseqüências futuras. Também esses ruralistas
admitem que o sistema de cabruca é o melhor e necessário para o cultivo do cacau
e preservação da mata. Já a noção de reflorestamento está presente em apenas
50% dos proprietários, que replantam árvores novas ou deixam crescer as que
surgem espontaneamente (Id.).
Foi nesse espaço construído e ordenado que ocorreram as transformações
físicas, por conta dessa riqueza, a lavoura do cacau. Mas, a despeito da onda
transformadora das estruturas sociais, as marcas ficaram, vestígios do passado:
comportamentos, normas, posturas municipais – modos de viver, modos de fazer –
traços culturais.
Ao se tentar perceber os vestígios dessas ações, procura-se
reconstruir um passado através de representações coletivas, que devem ser
preservadas, revitalizadas, re-significadas e colocadas à disposição da comunidade
belmontense e de seus visitantes.
Como o turismo contemporâneo está intimamente ligado à paisagem e ao
meio ambiente, é, portanto, um grande consumidor da natureza, e sua evolução,
nas últimas décadas, vem ocorrendo como conseqüência da busca do verde e da
fuga dos grandes conglomerados urbanos (RUSCHMANN, 1997). Aí, o meio
ambiente, o espaço natural se transforma em patrimônio cultural, com vistas ao
desenvolvimento sustentável da atividade turística. Considerando a tendência
moderna da interiorização territorial do fenômeno turístico, o município de Belmonte,
que integra a chamada Costa do Descobrimento, pode ser utilizado também para o
desenvolvimento de um turismo cultural urbano ou no espaço rural, onde o espaço
turístico é (re)criado como objeto de consumo, inclusive pelo seu valor simbólico
(CUNHA, 2001).
A partir dos anos 1980, a lavoura de cacau no vale do Jequitinhonha, como
em toda a região sulbaiana, tem sofrido os efeitos nocivos da vassoura-de-bruxa
(Crinipellis perniciosa), praga que vem provocando uma crise sem precedentes na
história da cacauicultura
no Sul da Bahia. Assim, enquanto se aguarda a sua
recuperação e, a despeito dela, como saída para a crise e como forma alternativa de
46
turismo, essas antigas fazendas de cacau poderão ser re-configuradas, dentro de
um leque de diferentes denominações: agroturismo, ecoturismo, turismo de
aventura, turismo cultural, turismo rural etc. Para tanto, é necessário o planejamento
desses espaços, dos equipamentos e das atividades turísticas para se evitar
possíveis danos sobre os meios
visitados.
Dentre os bens representativos da
cultura belmontense, no meio rural, podem ser destacadas antigas casas-sede, do
início do século XX, construídas nas seguintes fazendas: em Mogiquiçaba - Boa
Vista, São Francisco (casa com mirante),
Conjunto Estrela do Sul e Humaitá
(estufa de cacau) - em Boca do Córrego.
Existe ainda uma Unidade de Conservação criada pelo Decreto Estadual n.
3.413/94, de 01 de setembro de 1994, a APA Santo Antônio, com área de 346 ha,
cerca de 2,5km após a sede do município, rumo sul, até a foz do rio João de Tiba,
que apresenta considerável diversidade de animais e vegetais.
As Praias
Embora seja incompleto qualquer inventário que se faça de recursos da
natureza, ao elencar aqueles que em Belmonte são considerados os mais
significativos, não se pode esquecer as praias, esses espaços que têm fascinado o
imaginário das pessoas ao longo dos tempos. No momento em que o turismo deixa
de estar simplesmente relacionado com sol, areia, mar e sexo, típicos do turismo de
massa, para dar lugar a equipamento, meio ambiente, entorno e acontecimento
(VALLS, 1996), a praia ainda é uma grande atração.
De modo geral, alguns ambientes naturais têm figurado de maneira
proeminente nos sonhos da humanidade de um mundo ideal: a floresta, o vale, a
ilha e, de forma especial, as orlas marítimas. Assim, as praias do “mar moreno” de
Belmonte em toda a sua extensão, com seu horizonte aberto para o mar, dão uma
sensação de segurança e, ao mesmo tempo, convidam à aventura.
47
A Praia de Mogiquiçaba, onde se localiza
uma antiga povoação de
pescadores, às margens da BA-001, encontra-se a 19 quilômetros de Belmonte, em
direção a Santa Cruz Cabrália, e é considerada ideal para a pesca esportiva. Na
linguagem indígena, Mogiquiçaba significa “pouso do rio das cobras”. Trata-se de um
dos litorais
mais piscosos da região,
com duas nascentes naturais, ricos
manguezais e com proximidade da Mata Atlântica.
A Praia do Rio Preto é deserta e sombreada por extensos coqueirais, em
frente a sítios particulares, e oferece boas condições para banho e caminhadas. A
Praia do Mangue Alto é propícia para banho e pesca de molinete, caminhadas e
prática do surf. Aí os visitantes podem observar a diversidade natural: brejo,
restinga, manguezais e coqueirais. A Praia do Pontal, ou Praia da Barra, situa-se na
foz do Jequitinhonha, onde ocorre o encontro do rio com o mar, com duas barras
formando uma ilha no meio, o que favorece o banho de mar e de rio. Essa ilha é
conhecida também como Praia do Meio e o acesso não é muito fácil. Um desafio
para quem gosta de aventuras. A Praia da Barra Nova é quase deserta e apresenta
uma bela paisagem em manguezais. É considerada boa para o banho no período
da maré baixa e adequada para a prática do surf, na maré alta. Também serve para
a prática da pesca de rede e de molinete, para captura do robalo e do camurim-açu.
A Praia do Peso, apesar de ser ideal para banho, é pouco freqüentada.
Belmonte é considerada a “capital do guaiamum”, porque o rio Jequitinhonha,
no período de cheias, transporta argila para as margens, o que vai proporcionar um
ambiente apropriado para o desenvolvimento desses caranguejos de coloração azul.
Na Praia da Costa, reta e extensa,
encontra-se o Monumento ao Guaiamu, em
meio à extensão de areia repleta de coqueiros.
Segundo Margarita Barreto (1998), embora não haja um padrão universal
para determinar a capacidade de uma praia, o ideal seria 10m2 por pessoa, embora
em muitas praias este índice seja bem maior. Acredita-se que este seja o caso de
Belmonte. De qualquer forma, o planejamento de uma praia para o turismo envolve
a revisão de certos serviços considerados necessários: água, esgoto, energia
elétrica, telefone, sanitários, equipamentos desportivos, bem como
serviços de
48
vigilância, salvamento e primeiros socorros, estes considerados imprescindíveis. No
processo de urbanização, não se deve construir edifícios altos à beira mar nem
grandes construções que obstruam a passagem para praia nem contribuam para a
destruição da vegetação que impede o movimento da areia.
As Ilhas
Outro recurso natural que ocupa especial lugar na imaginação do homem e,
conseqüentemente, um fascínio especial sobre os turistas, é a ilha (SWARBROOKE,
2000; TUAN, 1980), seja por sua beleza natural, seja por seu isolamento geográfico,
o que pode melhor garantir a homogeneidade e preservação de suas culturas. A
ilha tem uma importância considerável por ocupar um lugar especial na imaginação
do homem. Simboliza um estado de inocência religiosa e de beatitude até, pelo seu
isolamento.
Os antigos gregos dependiam do mar e dos pequenos espaços de terra firme
e fértil para sua subsistência. Por isso, o mar, a terra fértil e as ilhas figuravam de
forma proeminente na sua imaginação. As ilhas eram as âncoras de segurança de
vida nas águas do oceano. A imaginação medieval colocou no Oceano Atlântico
grande número de ilhas, inclusive uma chamada Brasil. O cardeal Pierre d’Ailly
pensava que o Paraíso Terrestre estava localizado nas Ilhas da Fortuna em razão do
solo fértil e do clima excelente, e Ponce de Leon procurou a fonte da juventude na
Flórida, imaginando ser uma ilha. No final do século XV, a imaginação européia via o
Novo Mundo como um conjunto de ilhas-jardim. Talvez por força da imaginação, no
correr dos séculos, as ilhas tenham exercido, nos tempos modernos, tanto fascínio
para atrair os turistas (TUAN, 1980).
No contexto de Iararana , Sosígenes Costa, o poeta grego da Bahia, no dizer
de Gerana Damulakis (1996), utilizou-se da imagem de algumas ilhas do vale do
Jequitinhonha da Bahia para sua construção simbólica da saga do cacau. Dessas
podemos citar no município de Belmonte: Coroa do Capim, Coroa Grande, Coroa da
Palha, Genebra (ou Andorinhas), Ilha Grande (antigo QG de clavinoteiros), Maraú,
49
Ilha do Albino, Ilha da Bacorinha, Ilha das Pombas, Ilha do Chaves, Ilha do Diogo,
Ilha do França, Ilha de Joaquim Gordo, Ilha do Maia, Ilha do Monte Alegre, Ilha dos
Coelhos, Ilha do Peso, Ilha do São Francisco, Ilha do Ubu, Ilha das Vacas e
Taquaras.
Aí, nesse espaço rural, pode se desenvolver uma considerável gama de
modalidades turísticas: agroturismo, ecoturismo, turismo de aventura, turismo
cultural, turismo rural, o que também poderá ser um agente motivador do trabalho
para as famílias originárias do campo. Por outro lado, especialmente nas antigas
fazendas, toda uma diversidade cultural poderá ser revitalizada para fins turísticos.
Essa memória do rio Jequitinhonha - os índios, o garimpo, o folclore, a religiosidade,
a saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros - forma um caldo cultural atrativo,
já que em
Belmonte diversas ações humanas aconteceram, significados foram
construídos, os quais poderão ser
expressos através de representações da
realidade daquilo que os registros da memória e os documentos, tanto particulares
como da administração pública, guardam desse passado secular.
Os Manguezais
Manguezais (Fig. 2) são o conjunto das comunidades vegetais costeiras,
típico das regiões tropicais e subtropicais, de clima quente. Desenvolvem-se nas
enseadas, estuários e lagunas de água salgada e tranqüila, avançando, às vezes,
pelas margens dos rios que deságuam no mar, até onde alcança a salinidade.
Apresentam flora e fauna típicas e são considerados os berçários dos mares porque
abrigam larvas
de inúmeras espécies de peixes e crustáceos.
Também
proporcionam a sobrevivência das comunidades humanas que vivem da venda e do
consumo de mariscos e pescados. Alimentam as áreas costeiras, fornecendo
nutrientes que vão fazer parte das cadeias alimentares, que resultam em peixes de
pequeno e grande porte utilizados na alimentação humana. Cerca de 70% da
população de peixes do mundo depende dos manguezais, podendo este índice
chegar a 97% em algumas regiões.
50
FIGURA n.º 2
Aspecto de parte do manguezal de Belmonte
51
O conjunto de manguezais, do Sul e extremo Sul da Bahia, localizado entre
os municípios de Valença e Mucuri, num total de aproximadamente 70 mil hectares,
representa mais de 80% das áreas de manguezais da Bahia. Desses, a maior parte
se encontra nos municípios de Canavieiras e Belmonte. É considerável o potencial
econômico desses ecossistemas, suas importância ecológica, turística, científica e
geomorfológica, além da contribuição direta para a manutenção de muitas famílias e
para a geração de receita e divisas para os municípios.
Conforme estudo realizado para a Secretaria de Turismo e Esporte da
Prefeitura Municipal de Canavieiras (1999), pelos biólogos Sara Maria Brito Araújo,
Anders Schmidt e Maurício Arantes, foram observados, nos manguezais dos
municípios de Belmonte e Canavieiras, os seguintes tipos de caranguejos, que são
os seres mais visíveis e os que maior interesse despertam:
•
Guaiamum – Grande caranguejo de cor cinza-azulada que habita as
margens internas dos manguezais, em terra firme, em locas que podem
chegar até 9 metros de comprimento.
•
Almofada – Pequeno caranguejo que vive somente sobre as árvores,
camuflando-se nas cascas e se alimentando de folhas. Suas pinças são
fracas, o que possibilita que ande até mesmo sobre o corpo humano sem
causar dano.
•
Aratu – Caranguejo de exuberante colorido vermelho, negro e branco, que
costuma vagar pela lama na maré baixa, mas foge da água na maré alta,
escalando as árvores. Pode ser pescado com vara, amarrando folhas ou
carne na linha (sem anzol).
•
Chama-maré – Pequeno caranguejo que cava buracos na lama ou na
areia. O macho apresenta uma das puãs desproporcionalmente maior do
que a outra. As fêmeas possuem as duas puãs pequenas. No período de
acasalamento, o macho executa uma coreografia com essa pinça para
atrair as fêmeas.
52
•
Siri-de-mangue – Como todos os siris, vive sempre dentro d’ água,
respirando como os peixes. É um carnívoro voraz, predador de pequenos
peixes, com dentes afiados em suas puãs.
•
Caranguejo uçá – É o caranguejo mais utilizado na alimentação, sendo,
portanto, a espécie mais ameaçada. Sua cor varia de verde escuro ao
amarelo, confundindo-se com as folhas de mangue. Vive em tocas
cavadas na lama, saindo apenas para a reprodução ou para pegar folhas
de mangue, seu único alimento.
Para a conservação dos caranguejos nos manguezais, recomendam-se os
seguintes procedimentos para a sua captura: não capturar as fêmeas; 2) não
capturar caranguejos menores de 4,5 cm; 3)não capturar caranguejos no período de
andada; 4) não utilizar redes para captura. Levando-se em conta essas
recomendações, o envolvimento de pegadores de caranguejos na atividade de
ecoturismo possibilita interessante demonstração da arte de captura desses
crustáceos.
Também podem ser vistos outros bichos, como: ostras, lambretas e sururus,
moluscos utilizados na alimentação; gusanos, que perfuram a madeira; tamarus,
crustáceos que se assemelham ao camarão; garças (aves azuis e brancas), sabacus
(aves caçadoras noturnas) e guaxinins, mamíferos que se locomovem na lama e
capturam caranguejos.
Como os manguezais são áreas de preservação ambiental permanente,
nenhuma árvore deve ser cortada, nem a lama removida para facilitar o acesso ao
turista. Como o fundo dos manguezais é de lama, os transportes náuticos devem
transitar em baixa velocidade para evitar ondas impactantes, principalmente em
canais sinuosos.
Segundo o I Simpósio sobre Manguezais do Sul e Extremo Sul da Bahia
(1999), tem-se observado que a crescente ação antrópica sobre os manguezais
constitui um perigo eminente para a conservação desses ecossistemas. O êxodo
provocado pela agricultura regional nos últimos anos, a falta de consciência regional,
53
a ausência de programas específicos para a preservação e controle exploratório, a
falta de estudos locais sobre suas potencialidades e de concessão de licenças para
o desenvolvimento de atividades sem os padrões exigidos pelo Estudo de Impacto
Ambiental, a omissão das políticas públicas municipais de zoneamento urbano são
fatores agravantes que conduzem uma boa parte de nossos manguezais a um
processo destrutivo que pode ser irreversível.
Embora o Sul da Bahia detenha um grande potencial de ofertas de recursos
da natureza para atividades ecológicas e turísticas, nos seus diversos segmentos,
detém, por outro lado, um complexo de problemas ambientais resultantes das
atividades que aí foram sendo desenvolvidas ao longo do tempo: extrativismo
vegetal, mineração, agropecuária, pesca predatória, reflorestamento (com a cultura
do cacau) e a expansão urbana. Todas estas atividades envolveram ações de
desmatamento e o uso inadequado dos solos e das águas, o que vem se refletindo
sob forma de impactos negativos nos ecossistemas regionais.
Até meados do século XIX, as modificações do sistema natural ocorreram
com baixa intensidade. A exploração desses ecossistemas estava relacionada com o
povoamento das áreas costeiras, onde as atividades econômicas se limitavam à
pesca nos estuários, praias e manguezais e ao extrativismo vegetal (madeira-de-lei,
piaçava e coco). Depois, o homem avançou um pouco para o interior, seguindo o
curso dos rios, onde desenvolveu culturas de subsistência: mandioca, cereais, café e
cana-de-açúcar.
A partir de 1860, intensifica-se a extração de madeiras nobres e expande-se a
plantação de cacau, situação que trouxe grandes modificações no sistema
ecológico, a partir de 1890, com a ocupação de novas extensões de terras para a
lavoura cacaueira e, paralelamente, com o desenvolvimento da pecuária bovina e
das culturas de subsistência nas áreas consideradas inaproveitáveis para o cacau
(BAHIA, PDRS – Sul da Bahia, 1997).
Falando sobre a necessária integração entre sociedade e natureza, Trevisan
(2000) procura destacar o inter-relacionamento existente entre os fatores antrópicos,
54
bióticos e abióticos do meio ambiente. Nesse contexto, se a ação antrópica pode ser
benéfica ao ecossistema, também pode ser nociva pela degradação dos recursos
naturais, o que vai impedir ou reduzir o desenvolvimento de uma melhor qualidade
de vida humana.
Tomando como centro de suas reflexões as situações da região cacaueira do
Sul da Bahia, Trevisan, além dos riscos relacionados com os aspectos naturais do
meio ambiente, analisa os riscos sociais decorrentes do mau uso dos recursos da
natureza, o que pode prejudicar o desenvolvimento de uma gestão sustentável do
ecossistema como um todo.
Assim, como os ecossistemas e os recursos costeiros e marinhos podem se
deteriorar em função do desenvolvimento urbano e turístico, o desafio para os
gestores da administração pública é planejar e tornar possível o controle da
utilização dos recursos fornecidos pelo meio ambiente marinho. Então, os objetivos
do desenvolvimento poderão ser alcançados sem a simultânea degradação da
qualidade do meio ambiente e dos recursos naturais (CAVALCANTI, 1997).
Bens Representativos do Patrimônio Arquitetônico-Cultural de
Belmonte
Belmonte é uma dessas pequenas cidades cuja riqueza cultural ainda não foi
devidamente valorizada. Aspectos históricos, artísticos, religiosos e ecológicos
podem ser percebidos por viajantes e pesquisadores, no contexto dessa realidade
sociocultural, o que pode resultar em um conjunto de eventos e atrativos voltados
para o lazer, como também produzir a interação entre pessoas das mais diferentes
origens e culturas.
De modo geral, a cultura belmontense é influenciada pela zona rural,
sobretudo em decorrência da lavoura do cacau que ali se desenvolveu a partir do
início do século XIX, cuja rusticidade pode conviver com os aspectos intelectuais e
artísticos urbanos, pela sua história e pelas relações externas que estabelece.
55
A despeito de seu acervo cultural e histórico, Belmonte ainda se encontra
esquecida no tempo, sendo pouco freqüentada por nacionais e muito menos ainda
por estrangeiros (Tabelas 1, 2, 3). O patrimônio cultural belmontense está lá
esperando para ser visitado. Mas, primeiro faz-se necessária uma ação de caráter
político para tombamento (daquilo que deve ser tombado), restauração (daquilo que
precise ser restaurado) e preservação desse patrimônio, de acordo com as
orientações do IPAC, da SPHAN e de outros órgãos governamentais de proteção e
preservação.
Cada rua, cada praça, cada casarão é a representação simbólica da realidade
de um povo. Antigas praças, antigos casarões, antigas ruas, velhas esquinas por
onde ainda ressoam os passos dos coronéis e seus clavinoteiros, por onde ainda se
ouvem os dobrados das filarmônicas que desfilavam em competições nem sempre
tranqüilas, são fantasmas que emergem no cotidiano para alimentar a memória da
cidade, quando o patrimônio arquitetônico-cultural é reabilitado. Essas “velharias”
são o que Michel de Certeau chama de “cacos de histórias naufragadas” de uma
cidade invisível que irrompem na cidade visível, tornando-a confiável para abrir-se
aos seus visitantes.
As “velhas pedras” renovadas se tornam lugares de trânsito entre os
fantasmas do passado e os imperativos do presente. São passagens sobre
múltiplas fronteiras que separam as épocas, os grupos e as práticas. À
maneira das praças públicas para onde afluem diferentes ruas, as
construções restauradas constituem, de forma histórica e não mais
geográfica, permutadores entre memórias estranhas (CERTEAU, 1996, p.
194, 195).
Tabela 01 – Turistas segundo o local da entrevista. Belmonte, Jan. 1999
Local
Abs.
%
Estação Rodoviária
Posto Policial
33
23
58,93
41,07
Total
56
100,00
56
Tabela 02 - Turistas segundo o país de residência permanente. Belmonte, Jan. 1999
País
Abs.
%
Brasil
Outros
56
--
100,00
--
Total
56
100,00
Tabela 03 - Turistas segundo o estado de residência permanente. Belmonte, Jan.
1999
Estado
Abs.
%
Bahia
Rio de Janeiro
São Paulo
Minas Gerais
Espírito Santo
Distrito Federal
Alagoas
34
6
5
4
4
2
1
60,72
10,71
8,93
7,14
7,14
3,57
1,79
Total
56
100,00
Belmonte
.
UESC/NTT
Pesquisa de Turismo Receptivo/Bahiatursa
Jan/99
Na Av. D. Pedro II, destacamos em meio à residência de antigos políticos e
coronéis do cacau: a sede da Sociedade Filarmônica de Belmonte, fundada em 15
de setembro de 1895 e a sede da Sociedade Filarmônica Lira Popular de Belmonte,
fundada em 08 de dezembro de 1914. Essas filarmônicas estavam vinculadas a
grupos políticos diferentes, o que ocasionou verdadeiros duelos, não apenas de
caráter artístico, como também com armas de fogo, por conta dos clavinoteiros que
defendiam suas facções políticas.
57
Na Av. Rio-Mar se encontra o prédio da Prefeitura Municipal, construído em
1907 como residência do italiano José Paternostro. Cerca de 18 anos depois, foi
adquirido pelo Patrimônio Municipal, na administração do intendente Dermeval
Oliveira Viana, e adaptado para instalação da sede municipal.
Na Av. Mal. Deodoro, dentre outros, os antigos prédios: Instituto de Cacau da
Bahia, Banco Econômico da Bahia S. A. e Capitania dos Portos. Na Av. Beira Rio, o
Conjunto Comercial dos Wildberger, a Santa Casa de Misericórdia, Loja Maçônica,
sede do Sindicato dos Arrumadores de Belmonte, e a Praça
13 de Maio,
antigamente conhecida como a “Praça dos Gringos”, onde moravam
algumas
famílias italianas do grupo Magnavita.
Outros componentes do patrimônio arquitetônico: Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Carmo (Fig. 3), padroeira da cidade, que marca
as origens da
Freguesia e é o símbolo maior da comunidade católica em Belmonte. O chafariz
(Fig. 4) importado da Europa (França ou Portugal) que está localizado na Praça
Manoel Veloso, e o Farol Belmonte.
O Farol Belmonte
É um dos atrativos integrantes do patrimônio cultural de Belmonte, que
desperta a atenção dos visitantes e que se constitui no monumento símbolo da
cidade, segundo o belmontense João Bartoli Schubach.
De acordo com o Serviço de Documentação da Marinha, o Farol Belmonte
teve duas torres, em três locais diferentes, todos na margem direita do rio
Jequitinhonha. A primeira torre, com altura de 13,25m, foi construída pelo mecânico
José Gomes Serpa e tinha um aparelho luminoso de 6a
10 milhas náuticas. Foi inaugurada em 20 de maio de 1885.
ordem, com alcance de
58
FIGURA n.º 3
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo
59
FIGURA n.º 4
Chafariz de Belmonte importado da Europa
60
Com a necessidade de se aumentar o alcance luminoso e melhorar as
condições de sua estrutura, uma segunda torre e aparelho de luz foram
encomendados à França, em 1892. Esta nova torre, do sistema Mitchell,
inteiramente de ferro, com altura de 35 metros, foi construída sobre oito parafusos
roscados no chão, e dispunha de residências para faroleiros. Com um aparelho
luminoso de 3a
ordem, mais potente,
exibia um lampejo branco a cada 10
segundos, com alcance de 18 milhas náuticas. Foi inaugurada em 12 de outubro de
1901.
Em abril de 1905, a Diretoria de Faróis tomou conhecimento de que o mar
ameaçava derrubar a estrutura do farol e decidiu afastá-la cerca de 1500 metros
para sudoeste. As obras foram iniciadas em dezembro do mesmo ano e estiveram a
cargo do mecânico Alfredo Kurt Schulze. Essa segunda torre do sistema Mitchell foi
desmontada, remontada e re-inaugurada em 01 de maio de 1907. Desde então,
passou a exibir três lampejos de luz branca seguidos de um vermelho, à mesma
altura e com o mesmo alcance (Fig. 5, 6, 7, 8).
A torre do sistema Mitchell do atual farol Belmonte, rara, é a única do
gênero no Estado da Bahia [...] São similares a ela, as dos faróis
Salinópolis no Pará; Aracaju em Sergipe, desativada como farol, mas
tombada pelo Patrimônio do Estado; Rio Doce no Espírito Santo; e
São Tomé no Rio de Janeiro (MINISTÉRIO DA MARINHA, em 23 de
maio de 1995).
Festejos religiosos
Bom Jesus dos Navegantes, em primeiro de janeiro, um dos
mais
concorridos; São Sebastião, no período de 11 a 20 de janeiro (com Boi-Duro e
Contradança); as festas juninas (Santo Antônio, São João e São Pedro), a festa da
Padroeira Nossa Senhora do Carmo, cujos festejos são comemorados de 6 a 18 de
julho, sendo o ponto alto no dia 16, consagrado à santa, e a festa de São Vicente,
em 19 de julho.
O belmontense é um religioso típico, tradicional, que vai à missa e deposita
nos santos uma fé de significado absoluto.
Para o turista, esses símbolos de
devoção religiosa têm um significado histórico ou cultural, mesmo sem perder de
61
FIGURA n.º 5
FAROL DE BELMONTE
Reprodução de fotografia do Farol de Belmonte. Não há referência de autor e época.
Presumível que seja da inauguração de sua primeira instalação na foz do Rio Jequitinhonha em
12/10/1901.
Fonte: Arquivo Carlos Burlacchini
62
FIGURA n.º 6
FAROL DE BELMONTE
Reprodução de um cartão postal com fotografia do Farol de Belmonte, sem indicação de data,
assentado em seu segundo sítio onde ainda se encontra e cuja reinauguração ocorreu em
01/05/1907.
Fonte: Arquivo Mariazinha Guerrieri
63
FIGURA n.º 7
FAROL DE BELMONTE
64
FIGURA n.º 8
FAROL DE BELMONTE
Fotografia atual (1999) do Farol de Belmonte na mesma localização para onde foi transferido
em 1907.
Notar as mudanças sofridas em sua estrutura original:
— perdeu a marquise da parte destinada para residência do faroleiro;
— o vão livre no solo entre os pilares de sustentação, foi fechado com muro de alvenaria.
Foto: José Andrade
65
vista o sentido religioso. É aí que os templos viram museus e os museus viram
templos (BRANDÂO, 1989, apud GIOVANNINI JÚNIOR, 2001).
Fora dos festejos religiosos, além do Reveillon (31 de dezembro), do Carnaval
(que até 1980 foi considerado o melhor do extremo sul da Bahia) e da festa cívica
do Sete de Setembro, o grande destaque são os festejos do Aniversário da Cidade,
em 23 de maio.
Cooper et al. (2001) entendem que não é possível desenvolver turismo sem
que ocorram impactos ambientais, mas é possível gerenciar o desenvolvimento
turístico de tal maneira que os impactos negativos sejam minimizados e sejam
estimulados os impactos positivos. Assim, as atividades turísticas decorrentes
desses recursos (da natureza e da cultura), se devidamente planejadas, podem
minimizar
impactos ambientais e contribuir para o desenvolvimento sustentável,
com benefícios para a população local.
Por outro lado, um turismo
meio ambiente, destruição do
desordenado pode ocasionar deterioração do
patrimônio histórico-cultural, mudança da cultura
regional, além das questões de caráter econômico, como alta dos preços, redução
da oferta de produtos à demanda da população local e instabilidade no mercado de
trabalho.
Tanto a preservação do meio ambiente como a preservação, a recuperação e
a conservação do meio urbano devem se constituir em preocupação dos gestores do
turismo, seja na esfera pública ou privada. Com o incremento do turismo, a
expansão urbana, em conseqüência, pode trazer sérios problemas de ordem social:
crescimento desordenado, baixa qualidade habitacional, infra-estrutura deficiente,
falta de segurança, serviços de má qualidade etc., o que vai demandar esforços no
sentido da recomposição mínima e conservação do patrimônio cultural urbano e
suas estruturas.
Embora haja a tendência de se considerar o turismo como uma atividade de
caráter econômico apenas, talvez com base no fato de que seus efeitos econômicos
são mais evidentes, Beni (1998), Barreto (2001) e outros o consideram como um
fenômeno eminentemente social, porque
66
só a observação do seu impacto na economia não basta para explicar e
conter toda a complexa e múltipla importância na sociedade sob o rótulo de
“econômico”. Pelo contrário, o Turismo é eminentemente um “fenômeno
social” que, ao originar toda uma série de atividades, como transporte,
alojamento, recreação e outras, as faz gerar outra série de efeitos sobre o
meio ambiente em que se desenvolvem e que podem ser de caráter
econômico, social, cultural e até ecológico (BENI, 1998, p. 107).
Assim, para que Belmonte possa desenvolver um turismo de baixo impacto
negativo, no meio ambiente e no seu patrimônio cultural, faz-se necessário, por parte
dos gestores da administração pública, um planejamento,
no sentido de se
“estabelecer objetivos, definir ações e determinar as necessidades de recursos”
num processo contínuo, permanente e
dinâmico, dentro dos princípios de um
desenvolvimento sustentável, que atenda aos interesses do presente, mas sem
descuidar das gerações futuras, dentro dos limites da capacidade de sustentação
dos sistemas ambientais (CAVALCANTI, 1997).
Nesse processo de planejamento do turismo, é preciso se desenvolver uma
política governamental voltada para os visitantes e também para os benefícios à
população local, que deve ser conscientizada sobre a necessidade de preservação
do seu patrimônio turístico-cultural. Para isso, deve haver a participação conjunta do
poder público e do setor privado com os instrumentos necessários à execução dos
objetivos propostos, levando em conta os seguintes serviços: serviços urbanos,
saneamento básico, sistema viário e de transportes, etc.
Os serviços urbanos são da competência da administração municipal,
indispensáveis à qualidade de vida e a todo empreendimento habitacional ou
empresarial: energia elétrica e iluminação pública, limpeza pública,
transporte
coletivo, comunicação, abastecimento, conservação de logradouros públicos, e os
equipamentos e serviços gerais de infra-estrutura do turismo, incluídos aí os serviços
de preservação e conservação dos recursos da natureza e do patrimônio cultural,
preservação e conservação dos espaços culturais e recreacionais e de suas vias de
acesso, bem como equipamentos junto aos espaços culturais e de recreação com
grande concentração de público, como sanitários, bebedouros, vestiários, etc.
67
Saneamento básico envolve as atividades e o controle dos fatores do meio
físico ocupado pelo homem, que possam causar mal-estar físico, mental ou social:
abastecimento de água; coleta, transporte e destino final do lixo; controle da
poluição das águas e do ar; higienização de habitações e dos locais de trabalho;
educação e recreação. Em princípio, de atribuição da administração municipal,
esses serviços podem ser desenvolvidos por outros setores da sociedade.
Os sistemas viários e de transporte são de vital importância para o
desenvolvimento socioeconômico de uma região e para a expansão e o
desenvolvimento do turismo, com especial atenção para o sistema rodoviário. Daí a
importância da ligação rodoviária Canavieiras-Belmonte, que vai colocar Belmonte
em ligação com todo o Brasil, levando-se em conta também o valor cênico da região
(Id. p. 108, passim).
Turismo, cultura e meio ambiente devem ser vistos de forma una e harmônica,
já que o ato de viajar não é simplesmente uma atividade materialista, mas também a
oportunidade de se vivenciar outras culturas e outros ambientes, a despeito dos
impactos decorrentes. É nesse contexto que entra a relevância da conscientização
da população para a importância da cultura e
do turismo, numa ação de
reciprocidade, dentro de um planejamento que envolva todos os seus atores:
empresários do turismo, políticos, sindicatos, estudantes etc.
A cultura que foi formada às margens do rio Jequitinhonha foi o resultado de
um processo de aculturação, de adaptação pelo colonizador das culturas locais,
consideradas “inferiores”, adaptando-as a um padrão considerado “superior”. Foi
esse processo de aculturação que Sosígenes Costa procurou realçar através do
poema Iararana.
68
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71
CAPÍTULO II
NOS ARCANOS DA MEMÓRIA
Quem não pode lembrar o passado não pode sonhar o
futuro e, portanto, não pode criticar o presente (ROUANET,
1989).
Belmonte na Colônia
A história das sociedades humanas, nos últimos séculos, é a história da
expansão européia ocidental sobre outros povos, num processo de violência e
opressão. O mundo tem sido ordenado e reordenado nos termos dos interesses
europeus. Cada povo tem sido envolvido
pelos ideais de riqueza e poder que
nortearam a onda de expansão européia, a partir da invasão mercantilista, para a
qual as terras descobertas são lugares existentes apenas para o benefício dos
“civilizados”.
Através da colonização, instalou-se no Brasil um sistema de trabalho não
assalariado, nas fazendas,
que durou por muito tempo, e que se refletiu
posteriormente nas práticas políticas do povo brasileiro, cujas características gerais
podem ser sintetizadas como segue.
Havia o predomínio de uma camada de latifundiários, com interesses ligados
a grupos mercantis europeus, com força de trabalho que se constituía basicamente
de escravos. O escravo tinha, como alternativa, não a possibilidade de um regime
assalariado, mas a fuga para os quilombos. Quando alforriado, poderia ter uma
vida de subsistência como posseiro de pequenos sítios ou a condição de agregado,
o que aconteceu mesmo após a abolição da escravatura. A estrutura política girava
em torno dos interesses dos senhores rurais, com uma administração local exercida
pelas câmaras municipais,
formadas pelos “homens bons”, os proprietários,
posteriormente, coronéis. No final do século XVIII, as câmaras perdem poder, com a
72
nomeação dos juízes de fora, que se sobrepunham à instituição dos juízes eleitos
nas vilas.
As origens do processo que levou o país à independência estão ligadas ao
agravamento da crise do sistema colonial, que se percebe pelas revoltas do final do
século XVIII e início do século XIX.
Tudo isto amparado nas idéias liberais da
independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789-1799).
Com a transferência da Corte para o Brasil, profundas transformações aconteceram,
as quais levaram à ruptura do pacto colonial.
Com a Independência, o mandonismo local pode afirmar-se através da
presença dos bacharéis nas assembléias provinciais, bacharéis que eram filhos da
aristocracia
rural.
O exercício da cidadania ficou limitado pelo Estado e pelo
esquema interno de forças, com a centralização administrativa que caracterizou o
Brasil-Império, em um sistema eleitoral censitário e indireto. O clero secular se
imprensava entre os senhores rurais e a Coroa à qual estava vinculado, econômica
e juridicamente, através do sistema de padroado.
No que se refere ao clero regular, as ordens religiosas, principalmente os
jesuítas, procuravam cumprir o projeto das missões junto aos índios, dentro da idéia
do papel cristianizador da expansão portuguesa. Posteriormente, esse exercício vai
acontecer
apenas às margens do sistema, vindo a sucumbir à pressão dos
bandeirantes e à força do exército colonial, restando aos jesuítas a educação
humanística para os jovens de famílias privilegiadas.
A cultura letrada, rigorosamente
vertical,
salvo os raros casos
estamental, não permitia a mobilidade
de apadrinhamento. O domínio das letras era
reservado a poucos e servia para estabelecer o marco divisor entre a cultura oficial
e a popular.
Pode-se resumir as considerações acima afirmando que
o Brasil estava
vinculado, economicamente, aos interesses mercantilistas de escravos, de açúcar, e
73
de ouro, e politicamente ao absolutismo reinol e ao mandonismo rural (BOSI, 1994,
passim).
Embora os primeiros contatos feitos pelos portugueses no Brasil tenham
ocorrido no Sul da Bahia – “entrou pela barra nadando do mar” (p. 22) – a região
permaneceu esquecida. A notícia do “descobrimento” foi recebida com pouco
entusiasmo, porque Portugal estava mais interessado no comércio com a Índia, já
que o país passava por grande necessidade de especiarias e metais preciosos.
Somente o pau-brasil despertou interesse.
No
processo
de
colonização,
o
sistema
de
capitanias-hereditárias,
fracassado, resultou apenas em algumas povoações e vilas ao longo da costa.
Mesmo assim, essas povoações, às margens dos grandes rios, viviam isoladas,
entre um oceano de corsários – que muitas vezes entravam pela embocadura dos
rios para contrabandear madeira – e uma imensa floresta desconhecida, com
animais selvagens e índios.
No começo do século XVIII, foi criado
um aldeamento de índios do grupo
Kamakan, chamados botocudos, que foram catequizados pelo padre jesuíta José
de Araújo Ferraz, responsável pela construção de uma capela sob a invocação de
Nossa Senhora da Madre de Deus, na foz do rio Jequitinhonha. Um povoado aí se
formou com a presença de colonos que passaram a ter uma convivência mais ou
menos pacífica com os índios aldeados - São Pedro do Rio Grande (BARROS, 1916;
MONTEIRO, 1918).
Pouco tempo depois, em 1718, foi criada a freguesia, pelo então arcebispo da
Bahia, D. Sebastião Monteiro da Vide, com a denominação de Freguesia de Nossa
Senhora do Carmo do Belmonte. Em 1764, o povoado foi elevado à categoria de
vila, cuja instalação aconteceu a 23 de junho de 1765, sob a presidência do Ouvidor
Geral de Porto Seguro, Tomé Couceiro de Abreu (1763-1765).
O emprego
do nome
Belmonte decorre de
uma instrução do governo
português a Tomé Couceiro de Abreu, no sentido de substituir antigos nomes das
povoações da comarca por outros de cidades ou vilas do Reino. Belmonte é o
74
nome de uma antiga vila de Portugal, onde nasceu Pedro Álvares Cabral, nome
relacionado à mítica do descobrimento. Mesmo depois de instalada a vila, a
nomenclatura se apresenta de forma variada em diversos documentos municipais,
como Rio Grande de Belmonte, Villa de S. Pedro de Belmonte, e em escrituras
publicas e notas de tabeliães, aparece Villa do Rio Jequitinhonha de Belmonte
(BARROS, 1916; MONTEIRO, 1918).
Os colonos da ex-capitania de Porto Seguro, agora comarca – com
sua
incorporação à Coroa, em 1761, após a expulsão dos jesuítas, de Portugal e do
Brasil, pelo Marquês de Pombal, continuaram desenvolvendo suas atividades
agrícolas, com o plantio de cereais
(arroz, feijão e
milho),
cana-de-açúcar
(atividade iniciada por Caetano Vicente), mandioca e batata, na região do baixo
Jequitinhonha. Também criavam galinhas, bois, ovelhas, porcos, e burros, “as raças
mais úteis e rendosas, respeita a linha dos escravos, porque, como animaes de
maior valor, tinha-se aos pobres homens escravisados” (MONTEIRO, 1918, p. 20).
Desde os primeiros anos da colonização que o movimento bandeirante seguiu
pelo rio Jequitinhonha na exploração de riquezas minerais e na conquista dos índios.
Possivelmente, a primeira foi a de Francisco Braza Spinosa, que vinha do Peru com
larga experiência na busca de metais, e partiu a 13 de junho de 1553; outra, a de
Sebastião Fernandes Tourinho, sobrinho do donatário de Porto Seguro, em 1573 ; a
de Lucas de Freitas, em 1724, “que saiu a descobrir esmeraldas pelo Jequitinhonha
abaixo”; a de Sebastião de Leme, em
1733, que encontrou sinais de ouro, já
descobertos por João Gonçalves do Prado, na mata “que medeia entre os rios
Pardo e Jequitinhonha”; a de Sebastião Senret (1737), que facilitou as expedições
de Pedro Leonino de Mariz (1752) e do padre Albano Pereira Coelho, “em busca de
esmeraldas” (FREIRE apud MONTEIRO, 1918, p.22 passim).
Além destas, outras expedições percorreram os sertões, através do
Jequitinhonha, onde diversos grupos de aventureiros procuravam encontrar uma
serra resplandecente, também conhecida por Serra Amarela e Sol da Terra porque,
segundo as notícias que corriam, jorrava ouro dessas serras para dentro do rio. Os
jorros de ouro não foram encontrados, mas desvendaram grandes áreas dos sertões
75
e subjugaram índios selvagens que, cada dia, mais se revoltavam contra a invasão
de suas terras.
Apesar de muitas pessoas terem ficado ricas nas atividades mineradoras, a
povoação de Belmonte sofreu um grande atraso, porque ficou esvaziada pela
ausência de homens, que se infiltravam nos garimpos em busca de ouro e metais
preciosos, ao longo do Jequitinhonha.
Por questões de ordem estratégica, os bandeirantes alistavam índios
domesticados, porque, conhecedores dos terrenos e dos costumes das selvas, iriam
contribuir para as conquistas de metais preciosos e dos moradores selvagens. A
pacata vila de Belmonte, em vez de pouso sossegado dos colonos, transformara-se
em valhacouto dos mineradores.
Contra essas atividades mineradoras, a Coroa tomou providências no sentido
de que suas riquezas não se esvaíssem. A mineração particular foi proibida e
divisões militares foram colocadas para impedir os mais ousados. O governo tomara
a iniciativa de construir novas estradas, ligando povoados, vilas e cidades, e de
estabelecer agências de correio, conhecidas como Paradas, em diversos lugares,
no ano de 1777, a fim de facilitar a comunicação. Depois, resolveu extinguir as
Paradas a fim de dificultar o trabalho dos mineradores, além de estabelecer multas,
confiscos e denúncias.
Por volta de 1802, José e Gaspar Dantas Coelho, junto com o capitão-mor
das ordenanças de Porto Seguro, Mariano Manoel da Conceição, envolveram-se
em atividades de mineração, extraindo ouro e diamante, “e venderam muitos kilos
ao Capitão de um Brigue Inglez, Thomas Lindley, em contrário às ordens regias”
(BARROS, 1916, p. 48), o que motivou uma devassa de que resultou a prisão dos
transgressores e processo para o Ouvidor da Comarca.
Os garimpeiros usavam de todo expediente para transportar o contrabando:
nos cabos das facas, entre os forros das cangalhas ou no meio de outras
mercadorias dos mascates. Mas a pressão do governo foi muito grande e, depois de
muitos anos, conseguiu isolar a zona mineradora do Jequitinhonha.
76
Nesse momento, as terras da antiga capitania, agora comarca de Porto
Seguro, são distribuídas pela Coroa, em forma de sesmarias, para incrementar a
colonização e o povoamento das áreas costeiras. Essas sesmarias, ordinariamente,
tinham “1 légua de largo por 3 de comprido, com todas as águas e logradouros
úteis” : Pauaçu, a Manoel Gomes da Cruz, por Alvará de 8 de abril de 1771; outra a
José da Silva Mein, por Alvará de 4 de setembro de 1772 (Ibid., 1918, p. 19).
Com a restauração das agências ou Paradas7 (Fig. 9), o governo concedeu
novas sesmarias: a José Pereira dos Santos (20 de novembro de 1795), a Domingos
Pereira dos Santos (15 de março de 1796), a José da Silva Meira, a Manoel José
Joaquim, “no lugar chamado Pocassu” (Ibid. p. 32). Em 1820, sesmarias de meia
légua em quadra: a José Tomás Boca Seare e a José Lino dos Santos Coutinho,
Francisco José de Souza Castro, entre os rios Jequitinhonha e Salsa; a Antônio da
Costa Coelho, a Domingos José Monteiro da Silva e a José Dias Lopes, nas
margens do Jequitinhonha (BARROS, 1916).
Muitas povoações foram se formando nesses lugares, como Mugiquiçaba,
Quartéis Velhos e Cachoeirinha, onde foi instalado o Destacamento dos Arcos,
criado por decreto de 21 de novembro de 1813, por representação do ouvidor de
Belmonte, José Marcelino da Cunha, para “pacificação” dos índios, no governo de D.
Marcos de Noronha e Brito, 8o Conde dos Arcos, governador da Bahia (Id. p. 44).
Esse governador também promoveu a navegação no
rio Jequitinhonha e criou
novos destacamentos. D. Francisco de Assis e Mascarenhas, Conde da Palma, que
o sucedeu, último governador da Bahia
antes da Independência, deu
prosseguimento a essas atividades e incrementou as relações comerciais com Minas
Gerais. Era o Estado intervindo para estabelecer a ponte entre a sociedade nacional
e a regional, “atuando no sentido de ver reproduzido o conjunto das relações sociais”
(GUERREIRO DE FREITAS, 2000, p. 25).
Em razão das pressões do governo contra os garimpeiros do vale do
Jequitinhonha, as atividades mineradoras foram diminuindo no transcorrer das
primeiras décadas do século XIX. Muitos que haviam saído de Belmonte retornaram
7
Agência de Correios e lugar de troca das tropas de carga.
77
FIGURA n.º 9
Pouso de uma tropa
78
à vila e se dedicaram ao cultivo da terra, plantando cafeeiros e coqueiros, atividades
que não tiveram expressão econômica. Mesmo assim, em menor escala, a
mineração no vale do Jequitinhonha se estendeu por muitos anos.
Belmonte no Império
Com a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil e a conseqüente abertura dos
portos, a partir de 28 de janeiro de 1808, os produtos da terra não se limitaram,
como antes, ao exclusivo abastecimento do país, mas puderam ser exportados para
outros lugares. Mesmo assim, as atividades agrícolas, no Sul da Bahia, tiveram um
desenvolvimento lento por um período de aproximadamente 50 anos. Somente a
partir de 1860 passam a ganhar relevância, com o incremento da lavoura cacaueira,
em termos econômicos. Belmonte é assim o terceiro município baiano a desenvolver
a cultura do cacau, depois de Canavieiras e Ilhéus (MONTEIRO, 1918).
A importância do rio Jequitinhonha sempre foi reconhecidamente notória
desde os nossos tempos coloniais, em que o governo da metrópole
considerava o dito rio um manancial de riquezas;mandando no princípio
desde século coloniza-lo;nomeando comandante para as colônias e mais
expedições a Julião Fernandes Leão, que abriu estradas, fundou núcleos,
estabeleceu postos militares, criou presídios e aldeias e fundou a 10 de
fevereiro de 1814 a importante posição estratégica do Salto Grande, divisa
da Bahia e Minas, onde colocou muitos índios, colonos e um destacamento
de 20 praças para impedir o passo aos botocudos (AGUIAR, 1979, p. 277).
O cacau que veio do Pará para Canavieiras, em 1746 – segundo tradição
corrente - sendo plantado na fazenda Cubículo, de Antônio Dias Ribeiro, chegou
também a Belmonte, vindo a ser sua principal sustentação econômica a partir de
1860. Como consta no capítulo I, a expansão da lavoura cacaueira, no município de
Belmonte, foi rápida, o que resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma
grande imigração de brasileiros oriundos do norte da Bahia e de Sergipe, norteamericanos e europeus – alemães, franceses, norte-americanos,
suíços e,
principalmente, italianos, o que também motivou consideráveis mudanças sociais.
Outro fator que contribuiu para a dinamização da economia regional foi a
decadência da mineração em Minas Gerais. A criação de gado então se apresentou
como alternativa para a ocupação dessa mão-de-obra excedente. A mobilidade do
79
gado favorecia o deslocamento em busca de mercados consumidores que também
pudessem fornecer outros produtos de subsistência.
Tudo isto contribuiu para
acelerar o desenvolvimento da vila e do município de Belmonte. O comércio aí se
desenvolveu, especialmente com a província de Minas Gerais, através do rio
Jequitinhonha, elemento de integração entre as duas províncias, ao longo do qual se
fizera mineração de metais e pedras preciosas, acima do Salto Grande, em território
mineiro.
Posteriormente, foram construídas estradas ao longo dos cursos d‘água, o
que ajudou a configurar, no Sul da Bahia, uma nova espacialidade, independente
de Salvador, onde os laços com os estados vizinhos se desenvolveram e se
tornaram
mais fortes, num processo de mistura cultural. “Essas relações,
perceptíveis no econômico e social, avançaram para o político e cultural. Nessas
fronteiras, os baianos falam, vestem e comem muito mais parecido com o vizinho
mineiro...” (GUERREIRO DE FREITAS, 2000, p. 34).
Outra atividade que também se desenvolveu nesse período foi a extração de
madeira de lei para exportação, o que contribuiu para a degradação da mata
atlântica, nesse espaço como em outros tantos da costa brasileira. Das matas de
Cachoeirinha e Poaçu, onde foram estabelecidos os principais cortes de madeira,
os troncos eram transportados pelo
rio, por meio de balsas, até os
lugares
chamados Franquia e Peso-do-Pau, próximos à foz do Jequitinhonha, onde eram
embarcados.
Borges de Barros em sua Memória esclarece que, a exemplo do que se fazia
em Santa Cruz, Porto Seguro, Jacarandá, Comandatuba, Mogiquiçaba e em outros
locais, “nas margens do Jequitinhonha, abrem-se, a torto e a direito, num ímpeto
devastador, cortes de madeira, quase sempre em terrenos devolutos e pertencentes
ao Estado” (BARROS, 1916, p. 36).
As estradas, que favoreciam as relações comerciais de Belmonte com a
província de Minas Gerais, eram mantidas transitáveis por meio dos escravos da
Nação, os quais se achavam divididos em dois grupos: um no Poaçu e outro em
80
Cachoeirinha. Esses grupos, controlados por feitores, garantiam o trânsito das
boiadas e das tropas de animais que conduziam mercadorias.
A partir de 1870, houve um grande interesse pela navegação do
Jequitinhonha, o que foi incrementado através de contrato celebrado pela Província
da Bahia, inicialmente com George Adolpho Stolz, Christovam Retberg e John Blay,
e depois, em 1875, após rescisão do primeiro contrato, com o deputado Manoel
Ernesto de Souza França e Christovam Reitberg. Pela costa, já havia sido concedido
privilégio à Companhia Bahiana de Navegação através do Decreto n. 1.038, de 30
de agosto de 1852 (BARROS, 1916; MONTEIRO. 1918). Era a revolução da
navegação, que ocorrera na Europa desde 1830, com a substituição dos navios
movidos a pano pelos movidos a vapor, que chegava ao sul da Bahia e que iria
contribuir para a sustentação de toda a história do século XIX, reconfigurando os
processos de produção (WARNIER, 2000).
Segundo o imperfeito censo da época, Belmonte contava com uma população
de 4.323 pessoas, das quais 462 eram escravos, o que significa um pouco mais de
10% dos belmontenses, abaixo da média brasileira que era de 15% e abaixo ainda
da média baiana que era de 12,16% (Quadros I e II).
Foi termo da Comarca de Porto Seguro até 28 de maio de 1873, quando
passou para a Comarca de Canavieiras. A expansão da lavoura cacaueira, a
aquisição de novas
propriedades agrícolas, inclusive por parte dos imigrantes
europeus (alemães, franceses, italianos), que vieram em busca de terras fáceis, a
extração de madeiras de lei, os resíduos da mineração, tudo favoreceu o
desenvolvimento de atividades forenses, ações cíveis e criminais.
A vila de Belmonte passa então a reivindicar melhoramentos ao governo da
Província, principalmente o estabelecimento de escolas de instrução primária
(fundamentais). O atendimento às vilas e pequenas cidades, por parte do governo
provincial, estava relacionado com o número de eleitores e o poder de barganha dos
seus representantes, os coronéis. Havia dois níveis de eleitores: o eleitorado geral
ou paroquial e, dentre este, o eleitoral especial ou provincial.
81
A vila era governada pela Câmara Municipal que, de acordo com o artigo 24
da Constituição de 1824, exercia um poder de natureza exclusivamente
administrativa. As posturas municipais, que tratavam da ordem e da saúde pública
tinham que ser aprovados pelo Conselho Geral da Província, e qualquer “ato
político”, como vender, permutar ou alugar bens do município,
autorização do
dependia da
presidente da Província. As questões relacionadas com
desapropriações, repartição de impostos municipais e provinciais, nomeação de
funcionários municipais, salários, criação e supressão de cargos eram de alçada da
Assembléia
Provincial. O poder do Império, em todas as
suas instâncias, era
autoritário e centralizador.
Se fosse nos dias atuais, com uma população de aproximadamente 5.000
pessoas, Belmonte teria cerca de 2.500 eleitores. Naquela época, quando o voto era
censitário, analfabetos e mulheres não votavam, e o índice de analfabetismo era
muito alto, eram raros os homens que podiam ser eleitores, ou mesmo exercer um
cargo público, “o que facilitava o domínio de uma oligarquia sobre o conjunto da
população livre” (MATTOSO, 1992, p. 258, passim).
Quadro nº 1
POPULAÇÃO BRASILEIRA – 1872
15%
Escravos
42%
Livres
43%
Ex-escravos
Apud SCHIMDT, Mário Furley. Nova História Crítica do Brasil 500 anos de História malcontada. São
Paulo; Nova Geração, 1997.
82
Quadro nº 2
POPULAÇÃO LIVRE E ESCRAVA NA PROVÍNCIA DA BAHIA – 1872
População Livre
1.211.972
87,84%
167.824
12,16%
1.379.796
100,00%
População Escrava
Total
Fonte: LYRA, Colonos e Colônias; 1982.
No período de 1876 a 1878, o eleitorado geral contava com um pouco mais
de duzentos eleitores. Dentre esse, formavam o eleitoral especial: Cap. José Gomes
de Oliveira, Ten. Ignácio Manoel da Conceição, Vigário Ignácio Alexandrino Borges,
Ten. Severiano Tiburtino Portella, Major Fernando da Cunha Melo, Frontino Eunapio
da Conceição, Ten. Antônio Furtado dos Reis, Trajano Rosa de Salles, Ramiro
Fernandes dos Santos, Antonio Joaquim da Silva Bittencourt e Antônio Joaquim da
Encarnação. Destes, apenas quatro não faziam parte da Câmara de 1876 a 1880, o
que evidencia o caráter oligárquico de dominação.
Nesse tempo, foram realizadas as seguintes obras que permaneceram por
muitos anos: estação telegráfica inaugurada em 19 de fevereiro de 1880, a criação
da Freguesia de N. S. da Conceição da Cachoeirinha do Baixo Jequitinhonha, por
força da lei de 6 de agosto de 1881, e a inauguração do Farol Atalaia, em 1885, que
foi substituído em 1900 pelo farol atual, do sistema Mitchell, trasladado para o local
onde hoje se encontra, em 12 de outubro de 1901.
83
Belmonte na República
Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a Câmara
Municipal de Belmonte encaminhou ao Governador do Estado da Bahia a seguinte
mensagem:
Tenho a satisfação de communicar a V. Exa. não só que a Câmara em
sessão solemne hoje adherio unanimemente ao regimen republicano e
jurou fidelidade ao mesmo juntamente com vários funccionarios públicos,
como ainda ficou unanimemente deliberado que se felicitasse em seu
nome e do Município a V. Exa. pela acertada escolha de tão distintco
cidadão para dirigir o governo deste Estado.
Enthusiasmo geral com as deliberações da Câmara. Sessão muito
concorrida. Paz e harmonia completas. Wencesláo de Oliveira Guimarães,
Presidente da Câmara Municipal (BARROS, 1916, p. 32).
A antiga Câmara funcionou até 31 de
abril de 1890. Com a posse de Dr.
Manoel Victorino Pereira como Governador do Estado, foi nomeado o primeiro
intendente de Belmonte e o Conselho Municipal, em 15 de abril de 1890, que ficou
assim constituído: Intendente – Bel. Francisco Ferreira Pinto Lobão; Vice-intendente
- Manuel Maria de Andrade; Conselheiros - Elpídio Paschoal Amâncio da Silva
Camelyer; Eugenio de Sant’Anna Amorim, Licinio Guerreiro da Silva, Antonio Maria
de Mello e Manoel Domingues Mendes.
Por conta das atividades econômicas – especialmente a lavoura do cacau e a
extração de madeira – e do poder político dos coronéis, a vila de Belmonte foi
elevada à categoria de cidade, em 23 de maio de 1891, através do Ato assinado
pelo governador José Gonçalves da Silva, nos seguintes termos:
1a S. n. 386 – Acto. O Governador do Estado resolve, pelo presente Acto,
elevar a Villa de Belmonte à catagoria de Cidade. Palácio do Governo do
Estado da Bahia, 23 de Maio de 1891. José Gonçalves da Silva. Conforme.
O Secretário Manoel Pedro de Resende. Confere. A. Rocha.
Muita coisa aconteceu a partir daí: a jagunçada organizada a serviço de
grupos dominantes no município, para manutenção das relações de poder, tanto na
esfera política como na econômica; movimentos culturais, tais como: ampliação de
escolas, criação de jornais, loja maçônica, agremiações literárias e sociedades
84
filarmônicas, que se faziam presentes tanto nas atividades culturais-recreativas,
como também nos acontecimentos políticos.
Foi então nomeado um novo Intendente e um novo Conselho, os quais
tomaram posse em 15 de junho de 1890: Intendente – Cel. José Gomes de Oliveira.
Conselheiros: Dr. Demócrito de Bittencourt Calazans, José Pereira Barbosa Jr.,
Flameano Gaudêncio Leal do Bonfim, José Ferreira de Souza, Licínio Guerreiro da
Silva. Novos horizontes se descortinavam para Belmonte, a partir da iluminação
pública, de melhor qualidade, e da criação de novas escolas. Com o advento da
República, já não havia mais distinção entre o
eleitorado, que chegava a 600
eleitores, e a Igreja Católica Romana não era mais a religião oficial do Estado.
O desenvolvimento da lavoura cacaueira e, conseqüentemente, a migração
de pessoas de várias partes do Brasil e da Europa, criaram uma instabilidade social
nos diversos setores da economia e da política, o que levou os fazendeiros
(coronéis) a organizarem uma polícia particular para defender sua honra, sua família
e sua propriedade – os jagunços clavinoteiros8. Nessa sociedade competitiva e
instável, a violência fazia parte do cotidiano, como uma necessidade imperiosa.
Assim como o jagunço sertanejo, o clavinoteiro era o braço armado do coronel do
cacau, e tanto podia ser um trabalhador da fazenda como fazer parte de um grupo
armado, sob sua proteção e em troca de eventuais serviços.
A cada alteração do controle hegemônico dos partidos políticos, no Brasil, a
violência estava presente, tanto em forma de vingança aos desafetos, quanto como
manifestação de poder. Os chefes locais precisavam mostrar seu valor aos chefes
maiores, controladores da política na província – os donos do poder. Para tanto,
chefes de bandos armados, verdadeiros condottieri
do cacau, “faziam a terra
tremer” no serviço da vendetta, que complementava os grandes debates, tanto na
tribuna como nos jornais, nos grandes centros urbanos (PEIXOTO, 1933). No final
do século XIX além do cacau, ainda se cultivava mandioca, cana-de-açúcar (em
decadência, com relação ao cacau), café e cereais.
8
Homens armados de clavinotes, a serviço dos coronéis.
85
A onda de violência, que fez de Belmonte o palco dos clavinoteiros, acentuouse logo nos primeiros anos após sua elevação a cidade, tendo como quartel general
o distrito de Ilha Grande, na administração do Cel. José Gomes de Oliveira. Este é
um assunto que será mais bem explanado no capítulo III.
Canoeiros e Tropeiros
Toda a comunicação e o transporte de mercadorias eram feitos por via fluvial
ou pelas estradas que eram abertas para o tráfego das caravanas de animais de
carga, conhecidas como tropas. Dessas atividades surgiram duas figuras típicas do
vale do Jequitinhonha: o canoeiro e o tropeiro.
Grande parte do transporte fluvial era feito através de canoas - pequenas
embarcações feitas com tronco de madeira escavado - que transportavam
mercadorias e passageiros. Tinham, próximo à extremidade traseira, uma cobertura
de couro ou de lona, onde a tripulação se abrigava. Aí também os canoeiros
levavam um pequeno fogão para cozinhar os alimentos: feijão com carne do sol e
farinha. O controle e a condução da canoa eram feitos pelo canoeiro, caboclo forte
e treinado, através da zinga, lugar onde o remo tem função de leme, na popa da
embarcação. Na proa, à frente, um ou dois auxiliares ajudavam o zingador,
impulsionando a canoa com varas apoiadas no peito, na cadência das passadas.
Nos lugares em que a profundidade do leito do rio não permitisse o uso de varas, o
canoeiro da popa fazia o trabalho sozinho. Algumas dessas canoas chegavam a
transportar 6 toneladas de mercadorias.
Tropeiros eram os condutores das caravanas de animais de carga, mais
conhecidas como tropas. A organização das tropas surgiu em decorrência do
comércio entre as províncias de Bahia e Minas Gerais e ao longo desse percurso,
com as populações ribeirinhas.
86
A tropa era uma instituição de grande importância, numa época em que não
se cogitava em rodovias, e os tropeiros eram os agentes de notícia e informações.
A chegada e a partida desses homens marcavam os dias, as horas e até mesmo os
anos, determinando o tempo no cotidiano das cidades e vilas (GUERREIRO DE
FREITAS, 2000). Era formada por um comboio de animais de carga que poderia ser
dividido em lotes, a depender da quantidade de animais, e conduzida pelo tropeiro
tocador, o tropeiro-chefe que, normalmente, era o proprietário da tropa. Com uma
chibata de couro trançado, calçado de alpercatas ou mesmo descalço, chapéu de
couro
ou de palha, o tropeiro-condutor conduzia sua tropa com experiência e
sabedoria.
A passos lentos e cadenciados, os animais se deslocavam e seguiam a
madrinha, que ia
à frente do comboio, enfeitada com fitas, chapas de metal,
pequenos guizos e um cincerro9 ao pescoço, chamando a atenção. Sua função era
servir de orientação aos outros animais e facilitar a reunião da tropa e o seu
descanso.
A viagem era longa e poderia durar vários dias. Os tropeiros se acomodavam
em propriedades de fazendeiros conhecidos. Com o carregamento protegido por
pedaços de couro ou de lona, a tropa descansava nas Paradas ou pontos de apoio,
e seguia viagem no outro dia cedo. Até pouco tempo, existia em Itapebi, antigo
povoado de Pedra Branca, um lugar chamado o mercado da tropa (STOLZE, 2003).
Protestantismo
A liberdade de culto era, teoricamente, garantida aos cidadãos brasileiros,
através do artigo 5 da Constituição de 1824. Contudo, o artigo 179 restringia essa
liberdade no que se referia ao Estado e à moral pública, o que favorecia todo tipo de
repressão, porque a lei não esclarecia o que era “respeito ao Estado” ou “ofensa à
moral pública”, ficando a interpretação ao arbítrio da administração policial. Ao
reafirmar que a religião católica apostólica romana continuaria a ser a religião oficial
9
Campainha que se pendura ao pescoço da “madrinha”, besta de carga que serve de guia às outras.
87
do
Império do Brasil, a Constituição permitia o culto doméstico das outras
confissões religiosas, mas proibia a construção de prédios com forma exterior de
templos com torre, sino ou cruz.
Os primeiros protestantes a chegarem ao Brasil, no século XIX, foram os
colonos alemães, que para aqui vieram em 1826, entre outras finalidades, para
branquear a população brasileira, de acordo com as teorias racistas em voga na
Europa. Contudo, vale salientar que esses luteranos (na sua maioria) eram filhos da
imigração e não da evangelização.
Em termos de evangelização,
os
congregacionais chegaram em 1855, os presbiterianos em 1859, os metodistas a
partir de 1867, os batistas em 1871, os episcopais em 1889 (CÈSAR, 2000) e os
adventistas em 1895.
Kátia Mattoso (1992) coloca os metodistas americanos como os primeiros a
chegarem ao Brasil para o trabalho de evangelização no século XIX. Isto parece
estar em desacordo com o que foi exposto acima, mas a aparente discordância é
explicável: os metodistas começaram seus trabalhos, de fato, em 1835; um trabalho
que não foi adiante, interrompido em 1841, e somente retomado em 1867, quando
congregacionais e presbiterianos já estavam definitivamente instalados.
De todas as confissões protestantes que procuraram se estabelecer no Brasil,
os que primeiro alcançaram
sucesso, na obra evangelizadora, foram os
presbiterianos, oriundos dos Estados Unidos. Em 1859, o missionário Ashbel G.
Simonton (1833-1867) foi enviado ao Brasil pela Igreja Presbiteriana dos Estados
Unidos, antes da divisão motivada pela guerra civil.
Com a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, a Igreja Católica Romana
deixava de ser
a religião
oficial do Estado, o que abriu oportunidade para os
movimentos evangélicos protestantes e provocou a revolta do clero católico. Até
então, a igreja dominante era menos tolerante com as manifestações cultuais dos
protestantes do que com os cultos afro-brasileiros, já que esses não representavam
ameaça por serem os últimos na hierarquia social. Em Belmonte, o líder dos clericais
e monarquistas era o Padre Antonio Francisco da Hora, que encetou enérgica
88
campanha contra a candidatura ao senado, de Rui Barbosa, “republicano do dia
seguinte”, como se autodenominara, e simpatizante do movimento protestante.
Enquanto o protestantismo era uma religião cristã, de brancos, e dominante
em países da Europa e na América do Norte, o culto afro-brasileiro era pagão,
praticado por escravos, ex-escravos ou seus descendentes. O protestante tinha uma
mensagem semelhante à católica, mas que apontava outro caminho de salvação,
com doutrina e prática mais atraentes, enquanto o culto afro-brasileiro
era
considerado ofensivo à moral pública.
Ao chegarem em uma comunidade, os missionários protestantes se
preocupavam também em estabelecer escolas, alfabetizar a população para que ela
pudesse ler a Bíblia e decidir a respeito de sua conversão. Com métodos
pedagógicos diferentes dos católicos, os protestantes trabalhavam em cima da
alfabetização no meio rural. Na cidade, o ensino era centrado, além da Bíblia, em
literatura, ciências, poesia, música e trabalhos manuais. Era uma educação que
reproduzia, de certa forma, os modelos da ideologia norte-americana –
individualismo, liberalismo e pragmatismo (MATTOSO, 1992).
A primeira notícia que se tem de evangélicos protestantes na
região
cacaueira data de 1876, quando houve um casamento de presbiterianos norteamericanos na fazenda Barreiras, no município de Canavieiras. Esses norteamericanos vieram em busca de terras, no Sul da Bahia, em razão da Guerra Civil
Americana (1861-1865) e suas posteriores conseqüências.
O trabalho de evangelização foi desenvolvido por meio dos missionários
William Alfred Wadell (1862-1939) e Henry
J. Mc-Call (1868 - ?), primeiro em
Canavieiras e logo depois em Belmonte, no final do século XIX e inicio do século XX,
de sorte que em 1906, a igreja foi organizada em Canavieiras e, em 1909, foi
lançada a pedra fundamental do templo, sob a administração do Rev. Salomão
Barbosa Ferraz (1880-1969). Pouco tempo depois dos presbiterianos, os batistas
também se instalaram em Belmonte, em 1907,
através da evangelização do
missionário norte-americano Robert E. Pittigrew (MONTEIRO, 1918).
89
Grêmio Literário Castro Alves
No contexto das transformações que marcaram a cidade de Belmonte, no
final do século XIX, com dois jornais – o Lábaro e o Liberal – duas filarmônicas,
clubes, 13 escolas (2 estaduais, 6 municipais e 5 particulares), foi também criado o
Grêmio Literário Castro Alves.
A cidade estava vivendo seus grandes momentos
culturais. A idéia partiu de Afonso Marques Monteiro que reuniu um grupo de amigos
e propôs a criação de um grêmio literário composto de 20 cadeiras, que teriam os
nomes de vultos literatos baianos, já falecidos.
De início, os baianos escolhidos para dar nome às cadeiras da Academia
foram: Gregório de Matos Guerra, João de Britto, Muniz Barretto, Manoel de Souza
Britto, Francisco Mangabeira, Luiz da Gama, Urbano Duarte, Joaquim Freire,
Franklim Dórea, Domingos Borges de Barros, Manoel Vitorino, José da Silva
Paranhos, Bellarmino Barretto, Francisco Montezuma, Rodrigo Brandão, Sebastião
da Rocha Pitta, Euzébio de Mattos, Visconde de Cayrú, Abílio Cezar Borges e Emílio
Embassahy.
Com a aprovação dos Estatutos, foram criadas mais 5 cadeiras para as quais
foram indicados os seguintes patronos: Nabuco de Araújo, Agrário de Menezes,
Teixeira de Freitas, Xisto Bahia e Dionysio Martins. Periodicamente, um dos sócios
era sorteado para fazer pronunciamentos de caráter literário ou científico, e a
instituição também se responsabilizava por organização de festas cívicas, sendo a
primeira a comemoração do “Dois de Julho”, em Belmonte.
Na segunda década do século XX, após os devidos ajustes, o Grêmio ficou
assim constituído com seu quadro de sócios ocupando as cadeiras dos respectivos
patronos:
Rodrigo Brandão: Carlos Marques Monteiro
Francisco Mangabeira: Euclides Candido Pereira
Emílio Embassahy: Carlos Conceição
Agrário de Menezes: José Cortes Duarte
Luiz da Gama: Afonso Marques Monteiro
90
José da Silva Paranhos: Gilberto Marques Monteiro
Franklin Dórea: Esmero Martins
Visconde de Cairu: João Pedro Neves
João de Brito: Prof. Giraldo Baltazar da Silveira Filho
Xisto Bahia: Antonio Pinho
Urbano Duarte: Manoel Joaquim de Magalhães
Gregório de Matos: Sílvio Alves Pereira
Francisco Montezuma: Prof. Lúcio da Silva Coelho Jr.
Manoel Vitorino: Dr. José Martins da Paixão
Teixeira de Freitas: Ascânio Pinto Imbassahy
Belarmino Barreto: Eduardo Santos Maia
Para fazer parte do Grêmio, era necessário que o pretendente submetesse
algumas produções literárias a uma comissão formada por três membros do referido
Grêmio, que emitiria um laudo aprovando-o ou não. Sendo aprovado, sorteava-se o
nome da cadeira que deveria ocupar.
Santa Casa de Misericórdia
A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia é uma instituição, de caráter
religioso, tipicamente mediterrânea, fundada também em Portugal desde o final do
século XV. Propagou-se rapidamente por todo o Reino, chegando ao Brasil nos
primórdios da colonização. Quando Tomé de Sousa chegou ao Brasil para fundar a
cidade do Salvador, em 1549, e instalar a capital do Brasil, uma das primeiras
preocupações foi a criação de um hospital. Dos homens que vieram como colonos
da terra, inclusive os que acompanharam o governador, muitos dormiam ao relento
ou em abrigos que não ofereciam comodidade, deixando-os expostos às doenças
tropicais.
O governador então convocou os homens mais importantes de sua armada
para, sob a direção do padre Manoel da Nóbrega, fundarem a primeira Santa Casa
de Misericórdia da Bahia. Antes já havia sido fundada a Santa Casa de Misericórdia
91
de Santos, em São Paulo (1543-1545), e depois a Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro, em 1556 (OTT, 1960).
A organização hospitalar no Brasil foi algo desordenado, nos primeiros
séculos, predominando os hospitais do tipo Santa Casa da Misericórdia, instituição
voltada para os carentes e desvalidos, preocupada com a vida e a dignidade pessoal
de seres humanos que a procuravam, muitas vezes de forma oculta e silenciosa,
através dos tempos.
No final do século XIX, apesar do
crescente desenvolvimento que se
percebia em Belmonte, a cidade ressentia-se de um hospital que pudesse atender
às necessidades da população, principalmente dos mais carentes. Foi nesse
momento que o Cel. José Gomes de Oliveira e sua esposa, Guilhermina Ferreira de
Oliveira, venderam uma casa situada na então rua Primeiro de Março, n. 46, para a
Associação da Santa Casa de Misericórdia, conforme escritura de compra e venda
de 30 de outubro de 1893 . Outra escritura de 31 de outubro de 1893 estabelece a
compra e venda do prédio n. 48, contíguo ao de n. 46.
Os irmãos da Santa Casa
de Misericórdia, reunidos em assembléia, deram procuração
ao seu Provedor,
Wenceslau de Oliveira Guimarães, com todos os poderes, para
a compra dos
prédios 46 e 48,
os quaes se destinam ao estabelecimento do Hospital que, por força de
seus estatutos mantem nesta cidade a mesma Instituição, que os vai
adquirir, podendo o referido Provedor assignar a competente escriptura e
fazer tudo quanto for necessário para aquelle fim, em virtude dos plenos
poderes que como procurador recebe pelo presente instrumento...
(BARROS, 1916, p. 168).
Embora houvesse médicos particulares na cidade, era um privilégio para as
pessoas abastadas: comerciantes, fazendeiros, funcionários públicos. As pessoas
do povo, de modo geral, não tinham acesso a esses benefícios, salvo quando
protegidas por um dos grandes da terra (coronéis). Para aqueles menos
afortunados, a Santa Casa de Misericórdia era a tábua de salvação.
92
Filarmônicas
De modo geral, o belmontense se orgulha de suas tradições,
de sua
memória, do seu patrimônio cultural e, nesse contexto, merecem especial relevância
as sociedades filarmônicas, de grande sucesso no final do século XIX e nas
primeiras décadas da segunda metade do século XX.
A primeira delas, em Belmonte, foi a Sociedade Filarmônica XV de Setembro,
ou Sociedade Filarmônica de Belmonte, fundada em 15 de setembro de 1895, e
carinhosamente chamada de “Quinze” pelos seus adeptos e admiradores.
A
outra era a Filarmônica Bonfim, fundada pela família do Cel. José Gomes de
Oliveira, que foi intendente municipal, em dois períodos (1890-1896 e 1896-1899) e
integrava uma das mais poderosas famílias belmontenses do final do século XIX, no
período áureo dos clavinoteiros.
Nos estatutos dessas filarmônicas, consta como objetivo principal a cultura
da arte musical, incluindo a criação e manutenção de uma escola de música para
manter valorizado o seu corpo de estante.
Em princípio, as filarmônicas não
tinham caráter político. Todavia, o que se via na prática era exatamente o contrário,
porque elas, no transcurso do tempo, iriam marcar o compasso e dar o tom, não
somente nas atividades culturais-recreativas, como também nos acontecimentos
políticos.
Um acontecimento de caráter humanitário, relacionado com a Sociedade
Filarmônica XV de Setembro, ocorreu na epidemia de varíola que assolou a cidade
de Belmonte em 1910. A diretoria da filarmônica cedeu sua sede social para abrigo
dos doentes. Por causa disto, o prédio ficou interditado por alguns anos. Em
consideração ao ato generoso, o governo municipal, através da Lei n. 92, de 18 de
dezembro de 1911, isentou-a de impostos.
Nos primeiros anos do século XX, a Filarmônica Bonfim foi desativada. A 07
de dezembro de 1914, numa reunião transformada em assembléia, foi constituída a
93
primeira diretoria da Filarmônica Lira Popular de Belmonte, que incorporou 17
músicos da antiga Filarmônica Bonfim e seu instrumental.
Essas filarmônicas estavam vinculadas a grupos políticos diferentes, o que
ocasionou verdadeiros duelos, não apenas de caráter artístico, como também com
armas de fogo, por conta dos clavinoteiros que defendiam suas facções políticas. A
Filarmônica de Belmonte, nos anos de 1930, tornou-se simpática ao grupo dos
integralistas, formado por italianos e seus descendentes, enquanto a Filarmônica
Lira Popular estava vinculada ao grupo político da família Gomes de Oliveira.
Segundo relatam as professoras Ariadne da Silva Rocha e Maria Adalcy
Rocha Brazão Santana (1992), em uma monografia baseada em depoimentos de
Faustiniano Henrique do Carmo (Senhorzinho da Lira), no ano de 1919, houve um
confronto violento entre homens vinculados à Lira Popular e homens do Cel. Alfredo
Matos, um dos poderosos da cidade, pessoa ligada à Filarmônica XV de Setembro.
Tudo começou quando o velho Acelino, pai do músico da Lira, Felismino
Pereira dos Santos, foi espancado por homens do Cel. Alfredo Matos, o que deixou
a população revoltada. À tarde do mesmo dia, os bandidos tentaram matar o
presidente Aristóteles, o que levou os homens da Lira à reação, transformando a
Rua XV de Novembro em verdadeira praça de guerra. Dias depois, um músico da
Lira chamado Zeferino foi assassinado.
Passando por altos e baixos, essas sociedades musicais particulares iam
marcando o cotidiano da sociedade belmontense, arrastando multidões às ruas, às
praças, tanto nas
festividades cívicas e religiosas, como nos acontecimentos
políticos.
Outro grande momento dessas filarmônicas aconteceu em 16 de julho de
1948, dia de Nossa Senhora do Carmo, padroeira de Belmonte. O presidente da
organização das festividades, considerando a importância da data festiva, que
atraía, como atrai ainda, muitos visitantes, resolveu mandar construir dois coretos
para apresentação das duas filarmônicas: a XV de Setembro e a Lira Popular.
94
Encerrada a festa religiosa, às 9 horas, com a bênção do S. Sacramento, por
D. Eduardo, bispo da Diocese de Ilhéus, começaram as apresentações musicais.
Cada uma das filarmônicas procurava apresentar o melhor do seu repertório, uma
após a outra. A cada apresentação havia aplausos e vaias.
Às 5 horas da manhã, quando o bispo ia celebrar a missa, as duas
filarmônicas estavam lá, exaustas, sem qualquer disposição de abandonar o posto,
nem a pedido do líder religioso. Somente ao meio dia, foi que os presidentes das
respectivas agremiações subiram simultaneamente aos coretos e desceram com
os seus maestros, encerrando assim o duelo musical. Musical apenas porque foi
encerrado em tempo: as armas estavam lá, embaixo dos coretos, prontas para
qualquer emergência.
Em 1951, no governo de Regis Pacheco, a Lira Popular participou em
Salvador das comemorações do centenário de Rui Barbosa, como representante das
filarmônicas do interior da Bahia. Em 1961, já no governo de Juraci Magalhães,
participou de um concurso de bandas do interior da Bahia, “Salve Retreta”,
classificando-se em primeiro lugar.
A partir da década de 1970, as filarmônicas vêm perdendo o seu prestígio, em
razão da popularização das bandas modernas, que têm influenciado na cultura
musical, especialmente das gerações mais
jovens. Contudo, alguns segmentos
ligados à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia estão procurando revitalizar
essas filarmônicas como preservação do patrimônio cultural.
Maçonaria
A maçonaria é uma sociedade secreta de fins filantrópicos e de assistência e
defesa mútua aos seus membros, admitidos dentro de certos requisitos morais e
após rito de iniciação. Espalhada por todo o mundo, seus membros devem ajudar-se
onde quer que se encontrem, seja qual for o país, a classe social ou organização a
que pertençam. A admissão à maçonaria só ocorre após cerimônias de iniciação,
95
principalmente com relação à integridade moral, além do juramento de manter sob
rigoroso sigilo os segredos da confraria.
Na maçonaria, o local de reuniões é chamado de loja ou oficina; a sala
fechada onde são realizados os trabalhos presididos pelo venerável é o templo. Na
estrutura maçônica, salientam-se três graus de hierarquia: 1) aprendizes (membros
novos), 2) companheiros, logo a seguir; e 3) os mestres ou maçons perfeitos. Além
desses, há outros graus, de caráter honorífico, em número variável, de acordo com o
rito, sendo o grau 33o o mais elevado de todos e poucos são aqueles que chegam a
alcançá-lo.
A origem da maçonaria é discutível e se perde em hipóteses e lendas. Alguns
a levam para os primórdios da Antiguidade oriental; outros acreditam que seu
fundador foi Hiram-Abif, arquiteto do templo de Salomão; e outros ainda acham que
ela deriva dos mistérios do Egito, ou da Grécia.
Contudo, é possível que a origem mais provável seja um desenvolvimento
das confrarias medievais de pedreiros-livres, daí a denominação adotada. No início
do século XVII, começaram algumas lojas a admitir pessoas estranhas à arquitetura.
Com o tempo, as lojas assumiram caráter meramente simbólico, conservando-se,
porém, toda a antiga simbologia: o triângulo, o avental, o esquadro e o compasso,
além de outros, cujo sentido somente os iniciados conhecem.
O triângulo eqüilátero,
templo do
triângulo perfeito, é
representação simbólica do
corpo humano. O avental, o compasso posicionado em relação
ao
esquadro, com o vértice apontando para o Oriente, e seus braços abertos para o
Ocidente, são símbolos dessa construção, porque o maçom é, sobretudo, construtor.
Os adeptos da maçonaria podem ser membros de qualquer religião, e sua
concepção de “Grande Arquiteto do Universo” não apresenta ligação com a crença
em Deus nas diferentes religiões. Apenas não são aceitos ateus ou agnósticos, dado
o caráter sagrado que reveste todos os seus ritos.
A primeira Grande Loja simbólica foi fundada em 1717, em Londres, e em
1723, o Livro de constituições, do pastor James Anderson, dá à ordem seu caráter
96
secreto e místico. Da Inglaterra, as lojas se multiplicam pela Europa, principalmente
na França, onde alcançou considerável importância, e daí pelo resto do mundo,
principalmente para os países latinos. A ela aderiam os membros das classes mais
elevadas, atraídos por seu ideal de igualdade, liberdade e fraternidade, o que a
tornou via de propaganda do racionalismo filosófico do século XVIII, que levou à
Revolução Francesa.
Condenada pela Igreja Católica, a maçonaria teve boa aceitação entre os
protestantes, e relevante papel na independência das nações americanas, inclusive
nos movimentos políticos que levaram à independência do Brasil. Com pressupostos
ideológicos trazidos de Portugal, da França ou da Inglaterra, a maçonaria brasileira
tinha força e prestígio, através de princípios herdados do Iluminismo, salientando-se
a liberdade de pensamento e o racionalismo.
A data da penetração da maçonaria em território brasileiro não se pode
precisar, porque não existe consenso nem mesmo entre os historiadores maçons.
Há notícias que remontam a 1788, mas sem qualquer confirmação documental.
Assim, a organização oficial da maçonaria, no Brasil, data de 1801, com a fundação
da Loja Reunião, filiada ao Grande Oriente da França, segundo posteriormente
anunciou José Bonifácio de Andrada e Silva.
Na Bahia, a idéia da fundação da Loja Maçônica Cavaleiros da Luz, em
1797, por influência do capitão francês Antoine René Larcher não tem
fundamentação histórica, embora não se descarte a possibilidade de que alguns dos
conjurados fossem maçons, mais por afinidade cultural do que por participação em
alguma sociedade secreta organizada (TAVARES, 1995). Caso fosse comprovada a
sua fundação, seria ela a primeira Loja maçônica do Brasil, já que a Reunião, de
1801, é considerada a primeira Loja regular do Brasil, ou seja, com sua Carta
Constitutiva.
Segundo Ávila Júnior (2000), pesquisador maçom, a primeira Loja maçônica
da Bahia foi fundada em 5 de julho 1802, denominada Virtude e Razão, que
adotou o
rito francês, nos termos da Constituição do Grande Oriente Lusitano,
embora não fosse a ele subordinada. Acredita-se que, entre os seus fundadores
97
estão José Borges de Barros (envolvido com a maçonaria na Ilha da Madeira),
Cipriano José Barata de Almeida, Pe. Agostinho Gomes e o Prof. Francisco Muniz
Barreto de Aragão, elementos relacionados com a Conjuração Baiana, entre outros.
Ávila Júnior fala ainda da presença de viajantes maçons na costa brasileira, à
altura da Bahia, das dificuldades e das perseguições políticas que enfrentaram os
baianos maçons e da ajuda que sistematicamente recebiam dos seus irmãos, na
maioria “pessoas
importantes da sociedade”, bem como
da participação da
maçonaria nos movimentos políticos.
Nesse contexto, figuras proeminentes na política
brasileira aderiram à
maçonaria, como José Bonifácio, Gonçalves Ledo e o próprio D. Pedro de Alcântara
que, ao ser aclamado Imperador, paradoxalmente, por força da Carta de Lei de 20
de outubro de 1823, proibiu as sociedades secretas, o que obrigou as lojas
maçônicas a permanecerem “adormecidas”, por um certo período, retornando com
força total após 1831.
Com a proclamação da República, é promulgada a primeira Constituição
republicana, a 24 de fevereiro de 1891, o que vai direcionar os novos rumos da vida
nacional. Foi nesse cenário que surgiu a primeira
Loja maçônica da Bahia, no
período republicano, a União e Caridade, de Canavieiras, em 27 de dezembro de
1890. Muitas outras Lojas foram criadas na Bahia, durante a Primeira República.
Filha da União e Caridade, a Loja maçônica União e Sigilo, de Belmonte, foi
fundada em 04 de agosto de 1931, filiada ao GOEB – Grande Oriente Estadual da
Bahia, quando o município já se encontrava em franco declínio. Com a agitação
nacional ocorrida em 1935, o movimento integralista, de extrema direita entrou em
choque com o movimento comunista, de extrema esquerda, o que culminou com o
acontecimento que ficou conhecido como intentona comunista.
A repressão ao comunismo possibilitou a Getúlio Vargas a oportunidade para
dar um golpe em 10 de novembro de 1937, assumindo um governo ditatorial, nos
moldes fascistas, começando assim uma nova fase nacional que ficou conhecida por
Estado Novo (1937-1945). Aí o Conselho de Segurança Nacional propôs a Getúlio o
98
fechamento das lojas maçônicas, por serem contrárias ao regime político vigente. A
Loja União e Sigilo ficou então “adormecida” de 1938 até 1949, quando foi reerguida.
A Literatura do Cacau
Toda essa memória do rio Jequitinhonha: os índios, o garimpo, o folclore, a
religiosidade, a saga do cacau com seus coronéis e clavinoteiros; todo esse caldo
cultural faz de Belmonte um lugar especial, onde ações humanas se desenvolveram,
significados foram construídos, os quais são expressos através de representações
da realidade. Nas clareiras das roças de cacau, nos entrepostos dos transportes de
cargas, surgiram povoações que rapidamente se transformaram em cidades. Essa
construção histórico-cultural vai alimentar o imaginário
e influenciar a produção
literária regional.
A literatura do cacau, que tem início com Inglês de Souza, com o Cacaulista
(1876) na Amazônia, e vai ter em Jorge Amado sua expressão mais evidente,
assinala seu começo na Bahia, com Afrânio Peixoto, através dos romances Maria
Bonita (1914) e Fruta do Mato (1920). Esses romances descrevem acontecimentos
relacionados com o final do século XIX, no Sul da Bahia, o primeiro tendo como
pano de fundo a mineração do Salobro, no então município de Canavieiras; o
segundo, as fazendas de cacau do rio Salsa, hinterlândia nos vales dos rios Pardo e
Jequitinhonha.
Além de Afrânio Peixoto (Maria Bonita e Fruta do Mato) e Jorge Amado
(Cacau, Terra do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela Cravo e Canela, Tocaia
Grande), outros nomes se destacam para compor o mosaico da região cacaueira,
feita de suor e sangue: Adonias Filho (Servos da Morte, Memórias de Lázaro, Corpo
Vivo, Léguas da Promissão), Jorge Medauar (Água Preta, A Procissão e os Porcos,
Visgo da Terra) Hélio Pólvora (Os Galos da Aurora, Estranhos e Assustados), Cyro
de Matos (Berro de Fogo, Violentos e Desalmados, Os Brabos), e tantos outros.
99
A temática do cacau também vai aparecer no poema Iararana, do
belmontense Sosígenes Costa, no qual o poeta cria um mito de origem para o cacau
do sul da Bahia, e sintetiza as características histórico-culturais de Belmonte. Aí,
Tupã-Cavalo, figura mitológica que foge do Olimpo e vai se instalar na foz do
Jequitinhonha, simboliza o colonizador português, e Iararana, sua filha com a iara do
Jequitinhonha, simboliza a nossa hibridez cultural, a nossa missigenação com todas
as implicações decorrentes.
Sosígenes Costa
Para se conhecer um trabalho é importante se conhecer também o seu autor,
pois uma das principais causas determinantes de uma obra é o seu criador. Daí a
necessidade de se analisar a personalidade e a vida do escritor para melhor
entender a
sua produção artística.
Sosígenes Costa, o poeta de Belmonte, é
considerado uma das mais expressivas figuras da poesia modernista no Brasil,
embora pouco conhecido. Seu trabalho somente vai aparecer diante do grande
público depois que José Paulo Paes editou através da Cultrix, em 1977, um ensaio
sobre a poesia sosigesiana intitulado Pavão Parlenda Paraíso: uma tentativa de
descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa, no qual pretende contribuir para a
sua reabilitação perante a literatura brasileira.
Gerana Damulakis (1996), num ensaio crítico da obra de Sosígenes Costa,
percebe que, na História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, o nome do
poeta de Belmonte é mencionado duas vezes, en passant, numa referência a Jorge
Amado, quando se menciona o nome de Sosígenes ligado à Academia dos
Rebeldes, grupo do qual faziam parte o próprio Jorge Amado e o futuro historiador e
folclorista Edson Carneiro. A outra, quando trata de outros poetas, no fim da
página, “em letras pequenas, esclarecendo que José Paulo Paes, ‘seu admirador e
crítico’, chamou atenção sobre o poeta ao publicar Pavão Parlenda Paraíso, um
estudo crítico sobre a poética sosigenesiana” (p. 17, 18). A edição consultada por
Damulakis é a 3a, de 1990; na 2a edição, de 1979, existe apenas uma referência
relacionada com a Academia dos Rebeldes. Nenhuma menção foi feita ao trabalho
100
crítico de José Paulo Paes sobre a obra sosigenesiana, que é de 1977. A ensaísta
menciona ainda que
na História da Literatura Brasileira, edição de 1989, de
Massaud Moisés, “SC mereceu um pouco mais de espaço”.
Sosígenes Marinho da Costa (Fig. 10) nasceu em Belmonte, no sul da Bahia,
no dia 14 de novembro de 1901, filho de Inocêncio Inácio da Costa e Brasília
Marinho da Costa e faleceu no Rio de Janeiro, em 5 de novembro de 1968. Era um
introspectivo, tímido ao extremo. Nascido e criado em Belmonte, onde viveu e foi
professor até 1926, não freqüentava as rodas literárias e tinha poucos amigos, o que
foi negativo para o conhecimento de sua obra.
A partir daí, a maior parte de sua vida passou em Ilhéus, onde foi secretário
da Associação Comercial, onde também cuidava de pássaros e flores; telegrafista do
Departamento dos Correios e Telégrafos e redator do Diário da Tarde. Morava num
pequeno minarete do primeiro andar de uma loja de ferragens, na rua D. Pedro II. O
espaço de sua caminhada estava compreendido entre os locais de trabalho e o
local de residência. Assim vivia o poeta, sonhador, a olhar o mar de Ilhéus e sonhar
com o mar de Belmonte, sua terra natal, concebendo imagens, figuras mitológicas
que ganhariam vida na estrutura de seus poemas. Sua timidez e a ausência de
vaidades, contudo, continuavam conspirando contra a divulgação de sua obra.
Arredio em Belmonte, em Ilhéus fugia dos amigos que insistiam com ele para a
publicação dos poemas. Somente a partir de 1928, quando foi fundada Academia
dos Rebeldes, em Salvador, “com o objetivo de varrer com toda a literatura do
passado – raríssimos os poetas e ficcionistas que se salvariam do expurgo – e iniciar
a nova era” (AMADO,1992, p. 84) sob a égide de Pinheiro Viegas, foi que
começaram a aparecer as primeiras publicações de seus poemas.
Foi a partir de Ilhéus que sua veia poética fluiu com maior intensidade,
inspirando-se ora em Belmonte, a terra do mar, ora em Ilhéus, o búfalo de fogo,
resultado de sua grapiunidade, filho legítimo das terras do cacau.
Falando sobre o pequeno impacto que causou a primeira publicação de Obra
Poética, em 1959, Jorge Amado (1979), amigo e incentivador, diz que
101
FIGURA n.º 10
Sosígenes Marinho da Costa (1901-1968), quando saiu de Belmonte para Ilhéus
102
seu inegável sucesso de estilo foi, porém, insuficiente para situar
Sosígenes Costa no panorama da poesia brasileira no lugar que lhe cabe
entre os maiores [...].
Faz-se finalmente justiça a quem representa um desses instantes
raros de alta criação na literatura de um povo. Creio que, publicada toda a
sua produção, a consciência da importância deste poeta só fará crescer de
agora em diante, seja no que se refere à crítica, ao ensaio e à história
literária, seja – o que é ainda mais grato – entre os leitores [...] Poeta do
mar, poeta do cacau, poeta social marcado por seu tempo, tão requintado e
ao mesmo tempo tão popular, pois grande parte de sua obra se baseia na
vida do povo e dela se alimenta – folclore, hábitos, expressões, humanismo
– ele ficará nas nossas letras como uma dessas grandes árvores isoladas
que se destacam na floresta.
Wilson Rosa (2002), que o conheceu de perto, fala de seu gosto pela leitura
“principalmente de autores brasileiros e portugueses”.
Aposentado, em 1954, o
poeta foi morar no Rio de Janeiro, quando então viaja pela Europa e Ásia, novas
fontes de inspiração para muitos dos seus poemas. No Rio, por insistência de
amigos, publica em 1959 a Obra Poética, pela Editora Leitura, o que lhe valeu o
Prêmio Jabuti de Poesia, em 1960. O poeta faleceu no dia 5 de novembro de 1968.
Numa construção de caráter simbolista, Sosígenes se voltou para um mundo
lendário, oriental e bíblico, onde figuras exóticas de silfos, dragões, pavões; mirra,
cravo, canela e nardo emergem do Jequitinhonha numa correspondência de
símbolos, “no poente, a linha limite, para onde confluem o real e o irreal,
transfigurando-se tudo em sons, cores e perfumes” (Id.).
Embora, atualmente, tenha havido um despertar de interesse pela obra de
Sosígenes Costa, indiscutivelmente, foi José Paulo Paes – grande crítico literário
que organizou o Pequeno dicionário de literatura brasileira (1967), ao lado de
Massaud Moisés – quem impediu que o poeta de Belmonte ficasse na vala comum
do esquecimento. Além de levar de novo ao público a obra sosigenesiana, publica
também um estudo crítico, Pavão Parlenda Paraíso (1978), como “tentativa de
despertar o interesse pelo poeta” (Id. p, 18), ao salientar seu vigor e originalidade
no contexto da poesia modernista.
Conhecedor da poesia de Sosígenes, José Paulo Paes, que temia o seu
desaparecimento,
preocupou-se em reeditá-la, em 1978, pela Cultrix/MEC/INL,
103
incluindo ali mais 70 poemas inéditos, conjunto ao qual o organizador deu o título de
Obra Poética II, o que se tornaria a obra básica para a compreensão da poesia
sosigenesiana, cujo lançamento aconteceu em Belmonte, em dezembro do mesmo
ano. Dez anos após a sua morte, chegava o momento da “ressurreição”.
Apenas
um pequeno trecho de Iararana aparece nessa Obra Poética, em razão mesmo da
extensão do poema. No ano seguinte (1979), com introdução, apuração do texto e
glossário de José Paulo Paes e apresentação de Jorge Amado, que o chamou o
“canto ao cacau”
o longo poema Iararana, isoladamente, foi também editado pela
Cultrix.
Paes demonstra a convicção de que “um dia a literatura brasileira há de ficar
devendo a Sosígenes Costa um desses certificados de vitalidade que só um grande
poeta esquecido, quando criticamente reabilitado, pode passar-lhe” (PAES, 1997, p.
11). Aí ele apresenta alguns sonetos de Sosígenes, numa visão panorâmica para
dar ao leitor alguma familiaridade e “despertar a apetência”... para a leitura da Obra
Poética que sairia no ano seguinte.
A partir daí, o nome de Sosígenes Costa, quando vivo, considerado por Jorge
Amado como o maior poeta da Bahia, aparece nos meios de comunicação e passa a
chamar a atenção de políticos e intelectuais, sendo lembrado em Belmonte, sua
cidade natal, com a criação da biblioteca que leva o seu nome.
Sosígenes Costa foi um escritor que não se prendeu a escolas ou modelos,
embora alguns críticos o considerem
simbolista, como Wilson Rosa, enquanto
outros o inserem entre os modernistas, como José Paulo Paes. Se levarmos em
conta as características marcantes do espírito romântico presente na sua poesia, o
tom idealista e religioso, a sonoridade dos versos e a policromia das formas, tudo
isto associado a idéias representadas por metáforas e símbolos (COUTINHO, 1976),
podemos afirmar que ela traz em si reminiscências simbolistas que
ressaltam em particular no ciclo de sonetos dedicados ao crepúsculo, hora
eminentemente simbolista, em que as cores delimitativas das coisas, cuja
nitidez é como que a garantia das fronteiras do real, se entremesclam e
esmaecem na ambigüidade das tintas do poente (PAES, 1977, p. 14).
104
Observe-se que no soneto Crepúsculo de Mirra os sentidos perdem sua
função natural para a “experiência sobrenatural das coisas visíveis”, onde toda
palavra é uma representação simbólica de uma realidade além da percepção. Na
primeira estrofe, há uma combinação aromática, sonora e policrômica, em que as
funções sensoriais extrapolam para uma outra realidade além das percepções
comuns: “Vêm os aromas como uma grinalda,/ ornar a sombra arroxeada e bela/ e
ungir os nossos sonhos de esmeralda”. Em suas funções naturais, os aromas não
“ornam” sombras nem “ungem” sonhos e muito menos sonhos de esmeralda; mas
na concepção simbolista do poeta isto é possível.
Crepúsculo de Mirra
A tarde fecha a cintilante umbela.
Vêm os aromas como uma grinalda
Ornar a sombra arroxeada e bela
E ungir os nossos sonhos de esmeralda.
Nuvens de mirra e oriental canela
Formam na sombra a singular grinalda.
e a tarde fecha a cintilante umbela
E o vento as asas de dragão desfralda.
A própria lua vem lançando aroma.
Nasce vermelha como a flor de um cardo
E sobre a mirra dos vergéis assoma.
E a noite chega no seu grifo pardo,
Cheirando a incenso como o rei de Roma
E como Herodes recendendo a nardo.
(1937)
Falando sobre a pluralidade de estilos que envolve a poética sosigesiana,
Hélio Pólvora diz que ele
foi parnasiano sob o prisma formal da construção rigorosa do poema; foi
simbolista pela intensa musicalidade, pelo ritmo, pelas rimas internas. Foi
modernista quando bem quis e entendeu. Um poeta de verdade transcende
filiações. Sua importância maior está na fusão da arte tradicional como o
“espírito novo” da sua época... Sua poesia tinha militância política,
dependia da memória – mas teve sobretudo o dom de escapar a aspectos
da realidade, pela transfusão, e abraçar o mito de sereias, dragões,
pavões, búfalos, reis e rainhas orientais... (2002, p. 9).
105
Poder-se-ia acrescentar que Sosígenes foi também romântico pelo caráter
localista de muitos de seus poemas, como no caso de Iararana. Assim, não seria
impróprio afirmar-se que Sosígenes Costa é um poeta múltiplo, com trânsito nas
diversas escolas da literatura brasileira, desde o barroco de construção
magnificente, passando pelo nacionalismo e subjetivismo românticos, pelos fortes
traços parnasianistas dos Sonetos Pavônicos, no rigor da rima e da métrica, para
desembocar
na
profusão
dos
perfumes
e
na
policromia
simbolistas
da
transfiguração imagética. É quando o poeta aproveita a hora crepuscular para
aplicar os poderes da imaginação à realidade que o cerca: os coqueirais das praias
de Belmonte, a cidade natal, ou de Ilhéus, onde passou muitos anos de sua vida. Aí
os pássaros reais
se transfiguram em
pássaros de bronze - “o amarelo-ouro
misturado a vermelho, as duas cores básicas do sol poente...” (Id. p. 19) – e os
coqueiros em figuras da mitologia.
Múltiplo e Singular
A despeito de sua vivência local, ainda sem muito contato com a cultura
universal, a não ser através das leituras, sua imaginação é cosmopolita, capaz de
trazer para o Sul da Bahia antigos reinos, personagens da História, da Bíblia e da
mitologia - grega ou indígena. Pode-se aqui recorrer à paráfrase que Ítalo Calvino
faz, ao comentar os vislumbres do Purgatório, de Dante:
Ó imaginação, que tens o poder de te impores às nossas faculdades e à
nossa vontade, extasiando-nos num mundo interior e nos arrebatando ao
mundo externo, tanto que mesmo se mil trombetas estivessem tocando não
nos aperceberíamos (CALVINO, 1990, p. 98).
Foi esse poder que fez de Sosígenes Costa um poeta ao mesmo tempo
múltiplo e singular: por cantar e contar sobre o Sul da Bahia de uma forma especial e
por buscar em diversos tempos
e em vários lugares os
motivos para a sua
construção poética, que é a sua própria construção, ele mesmo ator e expectador
dos dramas vividos e experimentados no palco da
vida. “Os poetas, como os
filósofos, exprimem a consciência do mundo” (ARAÚJO, 2000, p. 16), ultrapassando
106
os seus limites através da linguagem. “O que importa é o universo polissêmico da
estética literária, o que se alcança com o exercício da sensibilidade” (Id. p. 26).
Gerana Damulakis, falando sobre as singularidades que formam a pluralidade
de Sosígenes Costa, aponta caminhos diversos que podem ser encontrados na
Obra Poética que
o definem, nos seus múltiplos aspectos, “como poeta social
datado”, desde o luxo barroco que ele mistura a sonetos parnasianos na forma, de
técnica simbolista, os
sonetos pavônicos.
(DAMULAKIS, 2001/2002, p. 53
passim).
Poema narrativo, de caráter rapsódico, dentro da linha modernistanacionalista de Macunaíma, de Mário de Andrade (1928); Cobra Norato, de Raul
Bopp (publicado em 1931 com indicação de que fora escrito em 1928), e Martim
Cererê, de Cassiano Ricardo (1928), Iararana (1933) representa um mito de origem
para o cacau da Bahia, em que os seus personagens tipificam os colonizadores e
seus descendentes mestiços.
Iararana assemelha-se a Cobra Norato quando vai
buscar na tradição
indígena a sua inspiração, e também no espaço sagrado da floresta, assim como
Macunaíma, cuja linguagem empregada se “aproxima da oralidade folclórica”
(PACHECO, 1967). Contudo, enquanto o paulista Mário de Andrade e o gaúcho
Raul Bopp vão a Amazônia para situar os seus heróis, o baiano Sosígenes o faz em
sua terra mesmo, na Bahia, ou melhor, em Belmonte, na foz do Jequitinhonha.
Símbolo de libertação do inconsciente coletivo, Macunaíma transforma-se ao
sabor da imaginação, carece de um caráter definido, posto que se modifica no
transcorrer da história, revelando-se,
desmentindo-se, na evolução de suas
peripécias, características amorfas (a imaturidade) do povo e da cultura brasileira.
Em Cobra Norato, um estudo do folclore, das lendas e da paisagem da
Amazônia e do seu regionalismo (SILVA, 1967), percebem-se as características do
movimento antropofágico, do qual é talvez a obra mais representativa, que apela aos
elementos de uma cultura primitiva através da figura indígena. Tupy, or not tupy that
is the question
é a
síntese de Oswald de Andrade para as conquistas do
107
movimento modernista, parodiando a célebre dúvida de Hamlet. Oswald de Andrade
cobra dos brasileiros uma postura comprometida com um
nacionalismo de caráter
verde-amarelo e tupi.
Identificado com o movimento primitivista da década de 1920, que vai do
Manifesto Pau-Brasil (1924) e se cristaliza com o Manifesto Antropófago (1928),
quando Oswald de Andrade
propõe o caminho contrário ao das correntes
nacionalistas, próximas às tendências fascistas da Europa, que defendiam um
Estado forte (SCHWARTZ, 1980),o poema Iararana situa-se nesse contexto de
forma anacrônica. Escrito entre 1932 e 1934, na opinião de José Paulo Paes (1979),
o poema era a expressão da simpatia do poeta de Belmonte pelo Verde-Amarelismo
e pela Antropofagia, correntes que perdiam seu fulgor após 1930.
Nessa época, Sosígenes morava em Ilhéus, situação que o deixava afastado
dos movimentos culturais. O sistema de radiodifusão estava engatinhando no Brasil
e nas pequenas cidades ainda era um sonho impossível. Tudo isso contribuiu para
que as informações chegassem sempre com atraso. Contudo, embora de forma
tardia, Sosígenes imprime sua marca pessoal naquilo que escreve, sem se
preocupar com “os corifeus do Modernismo paulista”, imprimindo assim um estilo
sosigenesiano de escrever.
Ao analisar a arte como autoconsciência do desenvolvimento da humanidade,
Georg Luckács (1968), dá ênfase ao humanismo como representação artística, em
que “o particular, como categoria estética, abraça o mundo global”. Aí, a arte serve
de mediação para a representação do homem e os seus modos de manifestação.
Luckács acredita ainda que essa força evocativa reside no fato de que nesses
dramas é revivido e feito presente o próprio passado, não como sendo a vida
anterior pessoal de cada indivíduo, mas um passado que retorna miticamente
ressignificado, enquanto pertencente à humanidade. “Será que é possível
estabelecer se são mais numerosos os homens que aprenderam a história de sua
pátria através da arte ou através da ciência?” (p. 297). Sosígenes procurou levar a
história da origem do cacau no Brasil através de sua arte.
108
Jorge de Souza Araújo (2000) enfatiza que não se deve temer o universo das
palavras, mas com elas metamorfosear o real, refletir sobre elas e, a partir daí,
construir-se melhor o seu destino, num processo de invenção ou de transgressão
do mundo. Foi o que Sosígenes procurou fazer ao se manter numa linguagem
próxima à oralidade. A linguagem em Iararana tem um sabor todo especial, seja pela
temática indianista, seja pela construção literária para a figura da Iararana, a falsa
iara, mestiça. Segundo Câmara Cascudo (2001), a iara é simplesmente uma forma
literária brasileira para representar a lenda mediterrânea da sereia sedutora ou a da
mãe-dágua do folclore africano – Iemanjá. Não é, portanto, um mito autenticamente
brasileiro. Sosígenes recorre também a nomes diversos da fauna, da flora e de
entidades fantásticas; cantigas, usos e costumes do vale do Jequitinhonha, em cuja
foz se encontra a cidade de Belmonte, o locus do poeta.
A partir de 1930 – coincidindo com os grandes acontecimentos políticos que
marcaram a época - desponta uma geração de escritores comprometidos com a
realidade social dolorosa e ainda desconhecida. Era uma espécie de neo-realismo
que procurava mostrar a nudez crua da verdade, denunciando a vida subumana do
nordestino, sob a política autoritária do coronelismo, ou simplesmente dos excluídos
da sociedade. Em meio às obras de Raquel de Queiroz (O Quinze, 1930), José Lins
do Rego (Menino de Engenho, 1932; Doidinho, 1934), Graciliano Ramos (Caetés,
1933, S. Bernardo, 1934),
surge também Jorge Amado com País do Carnaval
(1932), Suor (1934), e Capitães de Areia (1937), os romances da Bahia, obras
comprometidas com a denúncia das injustiças sociais e da opressão.
De cunho regionalista são as obras Cacau (1933), Terras do Sem-Fim (1942),
e São Jorge dos Ilhéus (1944), em que Jorge Amado retrata a vida na região
cacaueira da Bahia, tomando Ilhéus como exemplar, e denuncia a opressão a que
estavam
submetidos os trabalhadores rurais, em contraste com os coronéis
enriquecidos a fogo e sangue: fogo das armas e sangue dos trabalhadores.
Jorge Amado admite que o grupo modernista da Bahia não conseguiu varrer
da literatura os movimentos literários que o precederam; não conseguiu levar ao
esquecimento nomes consagrados como Coelho Neto e Alberto de Oliveira, que
eram os alvos prediletos. Os Rebeldes e outros grupos concorreram “para afastar
109
as letras baianas da retórica, da oratória balofa, da literatice, para dar-lhe conteúdo
nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros” (AMADO, 1994, p.
85). É aí que a antropofagia entra, não simplesmente como destruição do passado,
mas como metáfora daquilo que deveria ser culturalmente repudiado, assimilado e
superado na busca de uma verdadeira independência cultural, em que a crítica
social se volta para a dominação da burguesia.
Comentando sobre as possíveis influências do modernismo paulista sobre
Iararana, Marcos Aurélio Souza (2002) salienta como Sosígenes Costa soube
redimensioná-las, o que descaracteriza a idéia de imitação, ou de epigonismo,
principalmente no que se refere à antropofagia oswaldiana.
Sosígenes falava das margens e nas margens, não seguia, portanto, uma
tendência de busca pelo exótico macunaímico, com arroubos e
automatismos surrealistas, nem vociferava em favor de um movimento
nacional, ou se embrenhava nas matas amazônicas e paulistas com botas
de bandeirante ‘protofuturista’, louvando a investida colonial como
formadora de uma cultura bela e ‘colorida’ (Id. 2002).
É nesse momento que Sosígenes, através da construção emblemática de
Iararana (cerca de 1933), primeiro poema consagrado ao cacau, narra as aventuras
de Tupã-Cavalo, símbolo do colonizador português que, ao lado de Iararana, sua
descendência mestiça, “fez guerra com espingarda aos cabocos do mato” e os
obrigou a plantar cacau. Aí o poeta belmontense desconstrói “o discurso histórico
oficial”, para mostrar o lado perverso da colonização européia.
Reabilitada, a obra sosigenisiana vai ganhando espaço nas academias, nas
bibliotecas, entre os amantes da poesia. Canto ao cacau, segundo Jorge Amado, ou
pantomima curiboca, como o considerou o próprio Sosígenes Costa, Iararana é
uma história de bicho “no tempo da onça”, no tempo em que ainda não havia cacau.
Como produção simbólica, o poema conta a saga do cacau no Sul da Bahia, em
que os mais estranhos personagens emergem, num conflito mítico que coloca em
cena o centauro conquistador; a iara, símbolo cultural dos filhos da terra; o menino
do céu, como o grande herói da saga, e Iararana, símbolo da miscigenação biológica
e cultural.
110
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112
CAPÍTULO III
IARARANA
- Ô Vênus, ô Déesse!
Je regrette les temps de l’antique jeunesse,
Des satyres lascifs, des faunes animaux,
Dieux qui mordaient d’amour l’écorce des rameaux
Et dans les nénufars baisaient la Nymphe blonde!
Je regretted les temps où la sève du monde,
L’eau du fleuve, le sang rose des arbres verts
Dans les veines de Pan mettaient un univers!
Où le sol palpitait, vert, sous ses pieds de chèvre
Où, baisant mollement le clair syrinx, sa lèvre
Modulait sous le ciel le grand hymne d’amour...
(RIMBAUD, 1870)10
Quando nasce o Brasil
Analisando o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, quando estabelece uma
comparação entre o aparecimento de novas idéias filosóficas e a descoberta da
América, Marilena Chauí (2000) dá ênfase ao fato de que a conquista da América e
assim também do Brasil não foram “descobertas” nem “achamentos”, mas invenções
históricas e construções culturais. As terras, achadas ou não, sempre estiveram lá,
mas Brasil é uma criação dos conquistadores europeus, uma instituição de Portugal.
Os principais elementos para a construção de um mito fundador aparecem em
forma de três componentes especiais: a obra de Deus (a Natureza), a palavra de
Deus (a História), e a vontade de Deus (o Estado). Em suma, o mito fundador é
construído sob a perspectiva do conceito de poder teológico-político.
As grandes navegações e, conseqüentemente,
as conquistas e a
colonização, do ponto de vista econômico, social e político, foram realizadas no
curso da abertura de novos mercados para o capitalismo mercantil, como
desdobramento da expansão comercial. “Do ponto de vista simbólico, seriam um
10
Jean-Nicolas-Arthur Rimbaud (1854-1891), poeta do simbolismo francês. “Ó Vênus, Deusa!/ Quem me dera
viver na juventude antiga/ Dos faunos, dos sátiros lascivos/ Que mordiam de amor a casaca do arvoredo,/
Beijando nas ninféias suas Ninfas louras!/ Saudoso sou do tempo em que a seiva do mundo,/ A água do rio, o
sangue a arder de árvores verdes,/ Nas artérias de Pã vertia um universo!/ Sob seus pés de cabra, o verde solo
arfava/ E seu lábio a beijar a siringe sonora,/ Sob o céu modulava um grande hino de amor...” Trad. Ivo
Barroso (1995).
113
alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível
para chegar a regiões que a tradição dizia impossíveis” (Id. p. 58).
A idéia de “visão do paraíso” que aparece em antigas obras de escritores
brasileiros, a partir da célebre carta de Pero Vaz de Caminha, vai produzir a imagem
mítica fundadora do Brasil.
Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas,
que pareciam bem.[...]. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do
que nós andávamos entre eles. [...]. Parece-me gente de tal inocência que,
se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles,
segundo parece, não têm nem entendem em nenhuma crença [...] porque,
certo, essa gente é boa e de boa simplicidade [...]. E, pois, Nosso Senhor,
que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui
nos trouxe, creio que não foi sem causa.
{...} Eles não lavram nem criam [...]. Nem comem senão desse
inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as
árvores de si lançam. (CAMINHA, apud CHAUÍ, 2000, p. 60).
A idéia de paraíso terrestre é a idéia de uma bela e luxuriante vegetação, com
flores e frutos perenes, feras dóceis e temperatura amena, “nem muito frio nem
muito quente”, como repete a literatura dos navegantes, a eterna primavera. É o
retorno à perfeição da origem, ao Jardim do Éden, onde essa gente nova, simples e
inocente está pronta para ser evangelizada, porque “não
foi sem causa” que os
portugueses aí chegaram.
Esse Paraíso-Brasil-Natureza não comporta o estado de Natureza descrito
por Hobbes, em que o medo da guerra de todos contra todos e, conseqüentemente,
o temor da morte, levaria ao surgimento da vida social, ao pacto social e ao poder
político, o Leviatã11 (CHEVALIER, 1973, p. 64 passim).
Todavia, esse Brasil-Paraíso, “abençoado por Deus e bonito por natureza” vai
sofrer os efeitos do escravismo que se impunha como contingência econômica,
dentro da estrutura do mercado europeu. Aí as formas compulsivas de trabalho eram
exigidas para
o desenvolvimento e a
acumulação
do capital nas economias
européias e para a exploração colonial.
11
Monstro da mitologia fenícia, mencionado na Bíblia. Em Hobbes, simboliza o Estado.
114
Neste contexto, a escravidão se justifica porque não estamos concebendo um
estado de Natureza, dentro de um conceito moderno, da guerra de todos contra
todos, mas segundo as teorias dos teólogos católicos, na Universidade de Coimbra,
de acordo com as idéias de direito natural objetivo e subjetivo.
Primeiro, a teoria do direito natural objetivo parte da idéia de que Deus é o
legislador supremo, criador de uma ordem jurídica, que ordena os seres dentro de
uma hierarquia segundo sua perfeição e seu poder, onde o superior comanda e o
inferior obedece. Já a teoria do direito natural subjetivo afirma que, por ser dotado de
razão, o homem possui naturalmente o sentimento do bem e do mal, do certo e do
errado, do justo e do injusto, o que se constitui no fundamento da sociabilidade
natural.
Segundo essas teorias, o estado de inocência do homem fica ameaçado
pelo risco de degenerar em injustiça e guerra, em decorrência do pecado original.
Mas isto é evitado porque Deus envia sua lei e representantes da sua vontade que
manterá a harmonia natural, em conformidade com o direito natural objetivo,
estabelecendo o estado de sociedade. Assim, a Natureza é constituída por seres
que, naturalmente, subordinam-se uns aos outros.
Ainda nos termos dessas teorias, o cativeiro dos índios, a subordinação e a
violentação de sua cultura são obra espontânea da Natureza, já que os nativos são
juridicamente inferiores e, portanto, devem ser mandados e controlados pelos
superiores naturais, o conquistador, o colonizador. Contra a argumentação de que “a
vida, o corpo, a liberdade são concebidos como propriedades
naturais, que
pertencem ao sujeito de direito racional e voluntário”, os navegantes e colonizadores
afirmavam que os índios não podiam ser considerados como sujeitos de direito, em
razão de seu estado selvagem e, portanto, eram escravos naturais, “sem fé, sem lei
e sem rei”. Estão, portanto, naturalmente subordinados ao poder do conquistador.
Contudo, no início da colonização, quando as sesmarias foram repartidas
pelos capitães da terra, os índios entenderam que deveriam usar a livre faculdade
da vontade e recusar a servidão voluntária. Percebe-se então a natural indisposição
do índio para a lavoura e a natural “afeição” do negro para ela, como resposta da
115
Natureza, pelas mãos do direito natural objetivo, para legitimar a subordinação do
negro “inferior” ao branco “superior”, não mais como servidão voluntária, mas pelo
direito natural de dispor dos vencidos de guerra. Vamos ter assim uma sociedade
essencialmente escravista, onde o escravo-mercadoria era também um ser humano.
Ao analisar O caráter nacional brasileiro, de Dante Moreira Leite (1983), na
introdução Aventuras e desventuras de uma ideologia, Alfredo Bosi afirma que boa
parte do livro sugere que a existência de traços psicológicos no interior de raças,
nações ou povos derivam de paixões, simpatias ou antipatias manipuladas por
interesses que pouco têm a ver com a busca da verdade, ao procurar responder a
pergunta “quem somos enquanto nacionalidade?”
Esta questão
não pode ser
respondida satisfatoriamente à luz das ciências humanas, “mas por um ‘saber’ sob
suspeita, entre emotivo e dogmático, que se chama ideologia”, sistema de idéias que
constituem uma doutrina política ou social adotada por partido ou grupo humano.
Bosi salienta ainda que, enquanto o presente exige o escarmento da
pseudociência do caráter nacional, do passado vem o fascínio pelos textos poéticos
e narrativos, onde gritam as vozes de cronistas e viajantes deslumbrados com as
belezas da terra; “vozes de pensadores ‘positivos’ veladas de sombras pessimistas
quando falam de um povo mestiço ainda,
tão distante
do
topo da
evolução
européia” (p. 9).
Nessa discussão, Dante Moreira Leite (1983) chama a atenção para alguns
contatos entre povos de culturas diferentes que podem ser fatais para um deles, a
ponto até mesmo de sua destruição de forma total ou parcial, como no caso dos
povos indígenas das Américas. O grupo considerado tecnicamente mais “evoluído”
procurou explorar o grupo mais “atrasado”, que não teve como
se defender.
Também muitos instrumentos dos conquistadores foram introduzidos na vida
indígena, o que foi fatal para o seu sistema de crenças e valores, como a arma de
fogo, por exemplo, que tende a alterar o significado da educação e da hierarquia
indígena.
Assim como outros povos ficaram marcados pelos estereótipos projetados
pelas classes dominantes, aqueles que resultaram do colonialismo europeu, que
116
foram explorados por um sistema fundado na violenta divisão da sociedade, entre
um pequeno grupo de senhores e uma grande massa de escravos, fatalmente, na
concepção dos dominantes, só trabalhariam à força dos capatazes. Daí os epítetos
de apático, desanimado, desequilibrado, fanático, malandro, resignado, etc. etc.,
caracterização que teve sua fase áurea na segunda metade do século XIX.
Posteriormente,
algumas
auto-imagens
foram
sendo
construídas
e
generalizadas, em que a matriz do brasileiro não é mais o trabalhador forçado, mas
o proprietário que já conheceu algumas décadas de próspera ociosidade e é
identificado como: individualista, aventureiro, sensual (principalmente com índias,
negras e mulatas), mandão, imitador dos luxos europeus, amante da ostentação,
mas também cordial, generoso etc.
Para pensar o Brasil em termos de nacionalismo, vale lembrar como se foram
construindo os símbolos e mitos que justificam e explicam a formação de uma
imagem nacionalista brasileira, no século XIX (LEITE, 1983).
Carlos Guilherme Mota (1999), ao analisar o processo do que ele chama de
(re)descobrimento do Brasil, vai buscar, em relatos de viajantes, formas de
pensamento, hábitos de época, o momento em que o Brasil-Colônia se torna Nação,
no que diz respeito à sua identidade, mais ou menos entre 1808 a 1850. São
momentos em que o Brasil “se descobre”, ou se cristaliza uma idéia de Brasil-Nação,
através dos diversos atores sociais que se apresentaram na
cena da História.
Segundo essa versão, o primeiro grande impacto cultural sofrido pelo Brasil teria
acontecido quando da transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808.
Essa nova descoberta seria compreender como as pessoas que viveram na
metade do século XIX entendiam o que estavam vivendo. Trata-se da percepção da
mentalidade, especialmente no tocante ao estudo dos “lugares da memória” e nas
histórias da vida pública e privada, em um Brasil de formação estamental.
Essa temática,
estudada por
grandes mestres brasileiros como Gilberto
Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior primeiro, é retomada por
117
Raimundo Faoro e Florestan Fernandes depois, e por outros mais novos que vão
fazer a releitura dos chamados novos objetos da História, como: o cotidiano, a
mulher, o público e o privado, o religioso, o meio ambiente, a vida sexual, a cidade
etc.
A idéia de um só rebanho, um só pastor; uma só cabeça, um único cetro e
um único diadema, era a imagem teológica do poder político que se manifesta no
tempo profano: a monarquia absoluta por direito divino dos reis. Dentro da tese
jurídica de Ulpiano12, “o que apraz ao rei tem força de lei”, o que coloca o rei acima
da lei e não estando obrigado por ela. No Brasil, é através desse poder teocrático
que a Coroa tem base jurídica para a distribuição das capitanias hereditárias e das
sesmarias.
A herança desse sistema de monarquia absoluta vai se refletir na construção
da sociedade brasileira como um todo, de onde provêm as diversas manifestações
do mandonismo, do autoritarismo político, nas zonas da mata,
nas zonas da
mineração, na zona do cacau.
Com a independência do Brasil, em 1822, três séculos de mandonismo
haviam sedimentado o poder dos grandes senhores e construído em volta deles
uma sociedade submissa. A esse poder, o Império nascente haveria de recorrer para
sua consolidação. Os coronéis brotados da burguesia comercial, tanto quanto os
antigos senhores das sesmarias, exerciam um poder absoluto sobre suas
comunidades, das quais se faziam, não apenas distribuidores da justiça e
mantenedores da ordem, mas também provedores do sustento da maioria pobre
(LINS, 1988).
No regime republicano, a situação política, social e econômica, no interior do
Brasil, não havia sofrido grandes modificações. Permanecia muito semelhante ao
que acontecera na Colônia
12
e no Império. O monopólio da terra, que gerou o
Domitius Ulpiano (170-228), jurisconsulto romano, cuja carreira teve início no império de Setímio Severo
(193-211); dedicou-se ao magistério no reinado de Caracala (212-217), sendo banido por Marco Aurélio (218222). Chamado a Roma pelo imperador Alexandre Severo (222-235) foi assassinado pela guarda pretoriana.
118
mandonismo local, em tempos anteriores, subsistia, embora enfraquecido pelas
transformações sociais decorrentes do desenvolvimento tecnológico.
O século XX começara ainda no final do século XIX, com as inovações
tecnológicas que alteraram o cotidiano das pessoas, numa velocidade maior do que
elas mesmas podiam se adaptar, contribuindo assim para uma supervalorização do
progresso. O navio a vapor, o telefone, o automóvel, a máquina de escrever e
tantas outras criações tecnológicas que adentraram o século XX, assinalaram a
exaltação do mundo da máquina, da velocidade e da ação, com fortes influências
também no mundo das letras e das artes.
Os modelos artísticos, que vieram do Parnasianismo e do
Simbolismo,
estavam desgastados, mas não havia uma nova proposta estética, o que só vai
aparecer com o movimento modernista de 1922 - centenário da Independência uma ruptura artística que coincidia com movimentos políticos que estavam
desestabilizando a Velha República: a prática da política das salvações, que visava
acabar com as oligarquias cafeeiras, o aumento da inflação e as greves de operários
contra a carestia. A insatisfação política coincidia com a insatisfação referente às
tendências artísticas. Por outro lado, a crise do capitalismo iria conduzir à Primeira
Guerra Mundial (1914-1918), pondo fim à chamada
belle-époque13
e
desacreditando os sistemas políticos, sociais e filosóficos.
O período entre as duas guerras mundiais é conhecido como “os anos
loucos”, em que predominou a ânsia de viver o presente. Foi nesse período de
inquietação, contradição e insatisfação que surgiu a necessidade de interpretar e
expressar a realidade de um modo novo, inédito. Foi dessa necessidade que
resultaram os movimentos artísticos que integraram a vanguarda européia e
influenciaram o modernismo brasileiro.
Na primeira fase do movimento modernista brasileiro, houve uma disposição
muito forte para se colocar em prática as propostas de renovação, o que deveria
acontecer através de uma nova linguagem, em que as características principais
13
A bela época (do fr. belle époque) foi os anos de euforia para as classes privilegiadas francesas, no início do
século XX.
119
sobressaíssem: 1) através da liberdade formal - verso livre, abandono das formas
fixas, linguagem coloquial -
e 2) do emprego de imagens resultantes da livre
associação de idéias, até mesmo com aparente falta de lógica.
O ambiente de transformações culturais que culminou com a Semana da Arte
Moderna, já começara a se delinear antes de 1922, com as novidades futuristas de
Oswald de Andrade (1912), as exposições sem princípios acadêmicos de Lasar
Segall (1913), o expressionismo de Anita Malfati (1914). O pré-modernismo foi assim
um período de transição, em que prevalecia a preocupação em entender e explicar
a realidade social brasileira.
Após a Semana da Arte Moderna, grupos renovadores se formaram. Em São
Paulo: Mário de Andrade (Macunaíma), Oswald de Andrade (Pau-brasil), Menotti Del
Picchia (Chuva de pedra), Cassiano Ricardo (Martim Cererê), Raul Bopp (Cobra
Norato) etc. No Rio de Janeiro: Ronald de Carvalho (Toda a América), Manoel
Bandeira (Poesias) etc. Em Minas Gerais: Carlos Drumond de Andrade (Brejo das
Almas). Na Bahia: Jorge Amado (Cacau), Sosígenes Costa (Iararana) etc.
Macunaíma (1928) é a mais importante obra de
Mário de Andrade,
classificada por ele como uma rapsódia que conta as aventuras de Macunaíma,
herói sem caráter que se torna - índio, negro e branco - símbolo da miscigenada
sociedade brasileira. Numa linguagem quase coloquial, o autor incorpora ao texto
várias frases feitas, provérbios e fragmentos da cultura popular.
A poesia de Cassiano Ricardo acompanha as diversas fases do Modernismo
brasileiro, sendo sua obra a mais importante da fase do nacionalismo verde-amarelo,
Martim Cererê, em que o poeta recria poeticamente o período compreendido entre a
descoberta do Brasil e a modernização de São Paulo, sob a influência da agricultura
cafeeira e da chegada do imigrante.
O Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, propunha a devoração da
cultura
e
das
técnicas
importadas
e
sua
reelaboração
com
autonomia,
transformando o produto importado em exportável. O nome do manifesto recuperava
120
uma crença em que índios antropófagos comiam o inimigo, para assimilar as suas
qualidades (COUTINHO & COUTINHO, 1999).
Mito de origem para o cacau
O mito é uma narrativa tradicional que procura explicar os principais
acontecimentos da vida de um povo, por meio do sobrenatural, e que comporta
sempre uma significação simbólica, de caráter cosmogônico, onde deuses são os
principais personagens. Para a psicologia e a sociologia, é uma forma de explicação
do mundo, onde são expressas certas estruturas da sociedade ou do espírito
humano, que projetam certos tipos gerais de explicação das coisas, apoiando em
terra firme as fantasias e os conteúdos do inconsciente (JUNG, 1995).
Embora não haja concordância entre os explicadores da mitologia, sua
importância maior reside em sua influência nas artes e, de modo especial, na
literatura. De todas as mitologias do mundo, a que mais influência exerceu foi a da
Grécia antiga, não somente na Antiguidade Clássica, mas também nos tempos
modernos com o Renascimento. Na literatura de língua portuguesa, Os Lusíadas, de
Camões, é o exemplo maior, modelo clássico para poetas posteriores em Portugal e
no Brasil.
A mitologia indígena no Brasil, já estudada por poetas e escritores do
romantismo, como Gonçalves Dias, reaparece no modernismo, no contexto do
folclore brasileiro, aliada à mítica de procedência africana e à herança dos mitos da
cultura ibérica.
Iararana, de Sosígenes Costa, é um poema narrativo, escrito em torno de
1933, de caráter rapsódico, dentro da linha modernista-nacionalista de Macunaíma,
de Mário de Andrade (1928); Cobra Norato, de Raul Bopp (1931), e Martim Cererê,
de Cassiano Ricardo (1928).
Assim como em Macunaíma os personagens são
símbolos do povo brasileiro, Iararana narra as aventuras de Tupã-Cavalo, figura
mítica que fugiu do Olimpo e se instalou na foz do rio Jequitinhonha, símbolo dos
conquistadores portugueses, numa época quando ainda “não tinha cacau”, o que o
121
coloca em um tempo anterior à colonização, quando esse espaço pertencia aos
habitantes da floresta.
A chegada do centauro Tupã-Cavalo com seus raios trovejantes –
simbolizando as armas de fogo dos conquistadores – termina com esse tempo
mítico, ocupa o espaço sagrado, aniquila as florestas e seus
habitantes. O
Jequitinhonha, que era o símbolo da vida, o lugar da subsistência, é invadido e
violentado.
Iararana também se assemelha a Cobra Norato quando vai
buscar na
tradição indígena a sua inspiração, e também no espaço sagrado da floresta, assim
como Macunaíma, cuja linguagem empregada se “aproxima da oralidade folclórica”
(PACHECO, 1967). Contudo, enquanto o paulista Mário de Andrade e o gaúcho
Raul Bopp vão à Amazônia para situar os seus heróis, o baiano Sosígenes o faz em
sua terra mesmo, na Bahia, ou melhor, em Belmonte, na foz do Jequitinhonha.
Símbolo de libertação do inconsciente coletivo, Macunaíma transforma-se ao
sabor da imaginação, carece de um caráter definido, posto que seu caráter se
modifica no transcorrer da história, revelando-se, desmentindo-se, na evolução de
suas peripécias,
características amorfas
(a imaturidade) do povo e da cultura
brasileira.
Em Cobra Norato, um estudo do folclore, das lendas e da paisagem da
Amazônia e do seu regionalismo (SILVA, 1967), percebe-se as características do
movimento antropófago, do qual é talvez a obra mais representativa, que apela aos
elementos de uma cultura primitiva através da figura indígena. Tupy or no tupy that is
the question, na síntese de Oswald de Andrade.
Embora sejam marcantes as semelhanças de Iararana com Macunaíma e
Cobra Norato, como símbolo de libertação e pelo caráter antropofágico, Sosígenes
fica mais próximo de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê, quando centra sua
temática no Sul da Bahia, que começa com a exaltação do indígena brasileiro, “no
tempo da onça”, e passa aos colonizadores, através da gesta de Tupã-Cavalo até a
expansão do cacau e à criação dos núcleos populacionais,
um discurso por
122
imagens que pode brotar de qualquer tipo de terreno (CALVINO, 1990), mas que o
autor prefere localizar em Belmonte, sua terra natal.
Enquadrado
no chamado modernismo primitivista, Iararana, contudo,
apresenta alguns traços diferenciais, com relação às obras da mesma linha de
estilo acima mencionadas. Primeiro, o próprio anacronismo estilístico (discutível), já
que o primitivismo fora abandonado pela escola modernista em 1930. Segundo,
que Sosígenes não estava preso ao normativo ortodoxo do movimento modernista,
daí o anacronismo ser discutível.
Enquanto os modernistas abominavam tudo que tivesse relação com a cultura
helênica, ou com qualquer resquício de parnasianismo, Sosígenes, tranqüilamente,
misturava mitologia indígena com mitologia grega sem qualquer constrangimento.
“Os deuses do Parnaso comparecem em Iararana sob o signo negativo da paródia –
signo modernista por excelência e particularmente caro a Sosígenes Costa, a quem
ensejou invenções notáveis – mas nem por isso deixam de ali estar menos
presentes” (PAES,1979, p. 6). E ainda outro traço diferencial é que o caráter local
prevalece sobre o nacional, porque quase toda a ação de Iararana se passa em
Belmonte.
Tupã-Cavalo – o colonizador português
O poema começa por descrever o susto que os bichos e figuras lendárias do
Jequitinhonha tiveram com a chegada do centauro que veio do mar e adentrou o rio,
com uma forma de “anta medonha com cara de homem”. Embora o nome Belmonte
vá aparecer somente bem mais adiante, há toda uma menção a topônimos e nomes
relacionados com a fauna e com a flora, instrumentos, folguedos, bem como a
aspectos lendário-mitológicos locais. Lugares: Boca do Córrego, Bolandeira, Coroa
Grande, Ibipura, Ilha das Vacas, Ingauíra, Limoeiro, Meroaba, Pedra Branca, Peso,
Poaçu, Rio das Pedras, Rio Bu (Ubu).
Figuras lendário-mitológicas: boitatá,
bruxa, bute, caburé, caçari, caipora, calunga, capeta, curupira, homem-de-saia, iara,
ipupiara, jurupari, lobisomem, mula-de-padre, oxum, pai-do-mato, romãozinho, tupã,
123
tutu. Elementos da fauna: acauã, anequim, anta, aramaçá, aruá, bacurau, baiacu,
beija-flor, caburé, caçari, calunga, canapu, capivara, caxinguelê, come-grilo, formigade-estalo, gambá, grauçá, grilo, jabuti, japu, jitiranabóia, jundiá, jupati, jupará, mãeda-lua, marobá, maruim, martim-pescador, micuim, miriqui, mutuca, perequito-testa,
perua, pico-de-jaca, pitu, pixixica, salgo, saruê, siri, sucuriuba, surucucu, taruíra, teiú,
xaréu, xexéu, vaca. Elementos da flora: babá, bananeira, barba-de-barata,
baronesa, beijo-de-frade, cajá, carrapicho, coco, fita-de-moça, fruta-pão, gameleira,
gravatá, ingá, jasmim-borboleta, mané-velho, mangue, maturi, mulungu, patioba,
quiçare, quioiô, quitoco, rabo-de-arara velame. Instrumentos de caça e pesca: anzol,
camboa, jequi, mundéu, munzuá, siripóia, tarrafa. Instrumentos de fazenda de
cacau: caçuá, dedeira,
gancho, podão, porango.
Folguedos: burrinha, jote,
mataná-ariti, picula, sacudido (V. Glossário).
Toda esta nomenclatura vai caracterizar o estilo localista do poeta, que é
também acentuado com brasileirismos e idiomatismos regionais, cantigas e outros
aspectos culturais. A linguagem coloquial utilizada pelo poeta também é outro traço
que vai reforçar a predominância do caráter localista sobre o nacional.
- Compadre de Bu, disse dom Grilo,
Tenho uma coisa pra lhe contar.
...
Eu estava na ilha brincando de jote,
Correndo picula, defronte do mar,
E quando olho, menino,
Que vejo? Menino (p. 21, 22.)
...
...não contou lorota nem semana de onze dias
...não foi lodaça, foi verdade purinha (p.32).
Os artistas do movimento modernista defendiam a existência de uma língua
“brasileira”, diferente daquela que nos foi imposta pelos colonizadores simbolizados
por Tupã-Cavalo, o “bicho danado que veio da Oropa com feição de mondrongo” (p.
33). Sosígenes Costa, de acordo com os pressupostos norteadores do movimento
modernista, através do uso da linguagem popular e regionalista, procura justificar a
idéia de que “a língua dos simples é portadora de algum saber”
BARBERO, 2001).
(MARTÌN-
124
Todo o poema - e isto já se percebe na primeira cena - está recheado de
palavras e expressões regionais que podem ser de difícil compreensão em um outro
contexto. São ditos, ditados e dichotes aprendidos e apreendidos pelo poeta, em
Belmonte ou em Ilhéus, os quais refletem essa brasilidade tão cara aos
representantes do movimento modernista.
Quando ele diz que “aquela bruxa também azulou” (p.21), significa
simplesmente que ela saiu dali apressadamente. Na expressão “compadre de Bu”, o
autor está se referindo ao principal afluente do Jequitinhonha, na Bahia, o rio Ubu, e
é uma alusão ao jundiá (personificado), o “compadre de Bu”, e assim por diante.
... amarelo empapuçado (p. 26)
Zeca Fedeca sem pé nem munheca (p. 27)
Elê elê pela porta do capeta
Dom Grilo passou por aqui? (p.31)
O poema é composto de quinze capítulos ou cenas, como denomina o autor.
Na primeira cena, que abre o poema, a narrativa é impessoal, salvo alguns diálogos
entre animais e entidades do reino das selvas. Na segunda e na terceira cenas, o
narrador se personaliza na figura do avô, que conta ao neto a gesta de TupãCavalo, símbolo do conquistador europeu, aquele que saiu da “pontinha da Oropa
(...) e veio nadando e chegou neste rio” (p. 33, passim).
De acordo com a última cena do poema, a história se passa em um tempo
mítico, “tempo da onça, no tempo em que o rio não tinha cacau...” (p. 100). Esta
indicação do poema situa a ação em época anterior à colonização, quando as matas
do Jequitinhonha ainda pertenciam aos seres
da floresta - homens, animais e
entidades.
Com a chegada de Tupã-Cavalo, os seres míticos da floresta desapareceram.
O centauro tomou o lugar de Jurupari (entidade indígena, deus reformador), e “fez
guerra com espingarda aos cabocos do mato e venceu os cabocos, escorraçou o
pai-do-mato e ficou no lugar dele e se chamou dono da gente. Mas caboco com
ódio o chamou Tupã-Cavalo...” (p. 34).
125
Tupã, na mitologia indígena, é uma divindade, cujo raio trovejante (no poema,
símbolo das armas-de-fogo dos colonizadores) aniquila as árvores e os seres da
floresta. O pai-do-mato é um monstro folclórico, muito grande, cujo urro estronda
por toda a floresta; nem tiro nem facada o matam a menos que lhe acertem o
umbigo; come gente, tem pés de cabrito e corpo peludo (PAES, 1979).
Com os colonizadores europeus, há uma substituição de poder, porque a
mata - lugar sagrado - é invadida, conquistada, derrubada para se plantar o cacau.
Os cabocos aprendem a cultivar o cacau e a fazer o chocolate, essa bebida
maravilhosa (gr. theobroma = bebida dos deuses). José Paulo Paes quer ver no
caráter dúplice de Tupã-Cavalo os aspectos, ao mesmo tempo, hostil e benéfico
que, enquanto destrói - a floresta, a cultura indígena, mitos e lendas - constrói aquilo
que seria a civilização do cacau.
Ao comentar sobre A colônia brasileira: economia e diversidade, Sheila de
Castro Faria (1997) salienta que, embora houvesse facilidades para o acesso à
terra, pelo colonizador, havia também uma espécie de barreira indígena que impedia
que as terras da colônia fossem efetivamente livres. Daí o cuidado que se tinha para
não se estabelecer atividades muito afastadas dos núcleos de povoamento. Os
riscos teriam que ser reduzidos com
presença dos corpos de milícia e da
administração portuguesa - os “mondrongos” - para espantar os ataques indígenas.
Com a rarefação da presença indígena no litoral, as incursões do colonizador
europeu e de seus descendentes tornaram-se mais acentuadas.
Diante das dificuldades para a apropriação das terras, o colonizador procurou
utilizar o próprio índio para servir de colono, primeiro na extração de pau-brasil e
depois nas atividades agrícolas açucareiras, a despeito da interferência dos jesuítas.
Embora os primeiros contatos entre colonizadores europeus e os nativos tenham
sido amistosos, a situação mudou, iniciando-se um longo processo de escravização.
Iararana, portanto, é também um poema de denúncia contra a apropriação das
terras brasileiras pelos colonizadores europeus, contra a exploração violenta na
busca de riquezas e contra a apropriação da cultura indígena, a iara do
126
Jequitinhonha, situação que se confunde com a exploração dos trabalhadores das
roças de cacau, tão colocada em evidência nos romances de Jorge Amado.
A narrativa da alma-do-mato, em Iararana vai dessacralizar a visão heróica do
“descobrimento” do Brasil, perpetrada pela história oficial, substituindo-a pela idéia
de invasão e violência. O colonizador é representado pela figura errante
do
centauro, que se intercessiona com representações mitológicas nativas, como a do
cavalo-marinho, monstro marítimo fantástico da mitologia cabocla; o Ipupiara, gênio,
bestial e repugnante, inimigo, conforme crença indígena, dos pescadores; e Tupã,
deus poderoso, presente no estrondo do trovão e no clarão do relâmpago (SOUZA,
2002).
Já na segunda cena, Sosígenes recorre à mitologia grega para justificar o
mito do centauro como símbolo da origem do cacau. Os centauros eram seres
fantásticos, metade homem, metade cavalo que, segundo se acreditava, viviam nas
montanhas da Tessália e da Arcádia. Filhos de Íxton, rei dos lápidas, tentaram raptar
a noiva de Pireto, o que provocou uma luta feroz. Na arte clássica, a vitória sobre os
centauros simboliza o triunfo da civilização sobre a barbárie e da legalidade sobre a
desordem (SULFINCH, 1965).
Marcos Aurélio Souza (2002) percebe, ainda, na narrativa sosigenesiana,
um diálogo com obras do modernismo hispano-americano, de onde se extrai a idéia
do mito do centauro, o que se explica “pelo fato dos colonizadores espanhóis terem
explorado a América sob o lombo de cavalos e, como os índios não os conheciam
em estado domesticado, enxergavam, assim, homem e bicho em um só corpo,
formando uma figura arrebatadora e terrível”.
O “Papai-vovô [ ...] que é o dono da Oropa [...],
manda o pau cantar”
dono do corisco e é quem
pode ser identificado com Zeus, senhor do Olimpo; pode
também ser um símbolo da hegemonia cultural da Europa, onde, em seus tronos,
assistem os doze deuses do Olimpo, ou as doze mais poderosas nações da Europa.
127
A idéia de desbravar está presente quando os índios foram obrigados a servir
o colonizador.
Tupã-Cavalo brocou a mataria
e onde havia bananeira do mato
plantou, na sombra e na umidade, umas sementes
que molhou com querosene para o grilo não comer.
E disseram: é carrapicho!
E as sementes nasceram e se viu que era cacau (p. 37).
Tupã-Cavalo, ao mesmo tempo homem e bicho, inteligência e brutalidade,
construção e desconstrução, apresenta esse caráter dúplice dos começos do cacau
na Bahia, desde que Luis Frederico Warneaux trouxe as sementes do Pará, que
foram plantadas na fazenda Cubículo, no município de Canavieiras, em 1746, a se
levar em consideração a tradição mais aceita. Quando as matas eram brocadas, ou
derrubadas, para o plantio do cacau, era costume molhar as sementes com
querosene para que não fossem comidas pelos bichos, principalmente o jupati, um
roedor típico das roças de cacau. O colonizador
era branco e bonito mas gostava de judiar.
Porque não achou aqui com quem pudesse se casar,
judiava da gente e fez índio escravo dele.
E mandava caboco limpar a roça dele.
E o cacau já estava crescidinho
e saía com uma força... (p. 39).
O colonizador português, aqui simbolizado pelo centauro Tupã-Cavalo,
investe contra as tradições indígenas, contra o caráter sagrado da terra, quando,
apaixonado, se apossa da iara do Jequitinhonha e a violenta, “apoderando-se, a
partir daí, simbolicamente, de um importante mito fluvial dos caboclos, cujo encanto
é muito respeitado, pois representa a força do rio” (SOUZA, 2002). Desse encontro
forçado, nasce Iararana14, a falsa iara, “símbolo de uma hibridez racial, assimiladora,
conivente com os valores coloniais” (Id.).
Tupã-Cavalo ficou logo apaixonado,
Passou junto da camboa,
Se escondeu na cana brava
E pegou a mãe-dágua na coroa.
14
Iararana (do tupi ig = água; iara = senhor/senhora, acrescido do sufixo rana = semelhante a, falso) –
Semelhante à senhora das águas.
128
Foi daí que nasceu o samba:
Olha o fogo no canaviá (p.41).
O fogo no canaviá é o fogo do desejo, o fogo da luxúria de que é tomado o
centauro-conquistador que vai profanar a figura sagrada da iara do Jequitinhonha, o
que leva o rio a encher e alagar tudo na tentativa de “levar Tupã-Cavalo”. Aí se
percebe uma explicação mítica para as grandes enchentes que causam temor aos
belmontenses, principalmente às populações ribeirinhas e, ao mesmo tempo, uma
resposta da natureza aos seus agressores.
Nos primeiros tempos da colonização portuguesa, no Brasil, as sociedades
indígenas eram igualitárias, onde tudo era dividido, e desconheciam, portanto, a
propriedade privada. No processo de troca de mercadorias (escambo), os índios
incluíam no negócio também mulheres, que eram oferecidas como esposas,
enquanto os portugueses as viam como escravas. Onde o português via a
conquista, a dominação, os índios viam simplesmente uma aliança fundada na
relação de parentesco.
Havia, pois, um fosso cultural enorme entre europeus e povos indígenas. Os
portugueses recebiam as mulheres indígenas, mas não davam suas mulheres em
troca, como seria o esperado pela cultura da terra. A violentação da iara entre a
cana brava foi mais que se apoderar “de um mito fluvial dos caboclos”, o que levou
o rio a “ficar danado”, alagar tudo e botar lama no pasto. Foi a apropriação das terras
indígenas, de suas mulheres, de sua cultura, de forma
violenta, pois que se
julgavam superiores e acreditavam que a terra lhes pertencia por direito. Ali o
português era o mandachuva da Oropa, dono do corisco e
que “manda o pau
cantar”. Onde não funcionou a persuasão, a violência foi a norma.
Comentando sobre os quinhentos anos do descobrimento da América, na
sua Pedagogia da indignação, Paulo Freire coloca em relevância o fato de que não
se pode mudar o passado, mas compreendê-lo, recusá-lo ou aceitá-lo. Com esta
compreensão, salienta ainda que o colonizador não descobriu, mas conquistou a
América e, no que diz respeito à conquista, seu “pensamento em definitivo é o de
recusa”. A conquista se caracteriza pela presença predatória não apenas no que se
129
refere ao espaço físico, como também aos aspectos históricos e culturais dos
invadidos diante do mandonismo e do poder avassalador dos conquistadores sobre
terras e gentes, nessa ambição incontida de destruir a identidade cultural de povos
considerados inferiores (FREIRE, 2000).
Origem do Cacau
O cacaueiro é uma planta nativa das regiões tropicais da América Central e
da América do Sul. Quando os colonizadores espanhóis chegaram à América, o
cacau já era cultivado pelos nativos, principalmente os Astecas (México), os Maias
(América Central) e os Incas (Peru).
De acordo com uma lenda asteca, o cacahualt (cacaueiro) era considerado
uma árvore de origem divina, pois Quatzalcault,
o profeta agricultor, ensinara o
povo a cultivá-lo, pois ele mesmo o havia trazido do paraíso e daquelas sementes
tinha se alimentado e adquirido o conhecimento universal. Por isso, a plantação do
cacaueiro era quase sempre cercada de cerimônia religiosa. Provavelmente, foi este
significado religioso que levou o botânico sueco Carolus Linneu (1707-1778) a
denominar a planta de Theobroma cacao, o manjar dos deuses.
Na época da conquista, os espanhóis perceberam que os nativos já usavam
uma bebida feita de amêndoas de cacau trituradas, misturadas com água e plantas
aromatizantes. A essa bebida chamavam de chocolatl. O próprio imperador
Montezuma era um grande consumidor do chocolate e o ofereceu ao conquistador
Fernão Cortez, após a conquista de Tenochititlán, em 1519.
Com
a utilização do açúcar na preparação do chocolate, os espanhóis
passaram a usá-lo também como alimento e, posteriormente, o levaram para a
Europa, transformando-o em bebida da aristocracia européia que depois se
espalhou por todo o mundo.
Outro uso que os nativos faziam do cacau era como moeda. O imperador
Montezuma recebia anualmente cerca de 1,6 milhões de sementes de cacau, ou
130
200 xiquipils, como tributo da cidade de Tabasco, o equivalente hoje a
aproximadamente 120 arrobas.
Alguns antigos escritores falaram
sobre o cacau na América e suas
diferentes formas de uso. Peter Martyr de Algeria,
historiador da América e
conselheiro do imperador Carlos V, menciona o cacau em seu livro De obre novo
Petri Martyris ab Algeria, publicado em 1530, fala de sua utilização como bebida e
como moeda, enfatizando sua importância porque protege seus possuidores da
cobiça, pois não pode ser acumulado por muito tempo nem escondido.
O italiano Girolamo Benzoni publicou em 1565 La Historia Del Mondo Nuovo,
onde fala do uso do cacau como dinheiro e das técnicas de sombreamento
usadas pelos nativos para proteger a planta do sol. Dizia ele ainda que as amêndoas
de cacau, usadas como moeda, tinham grande valor, porque com uma centena
delas se poderia comprar um bom escravo.
Outro italiano que escreveu a respeito do cacau foi José de Acosta na obra
De Natura Novi Obris, publicada em 1585, onde se fala da utilização do cacau pelos
índios, como bebida e como dinheiro, e do comércio que já estava sendo realizado
pelos espanhóis.
Também Antonio de Herrera, historiador de Felipe III, publicou a Historia
General de los Hechos de los Catellanos, em 1601, em Madri, onde fala da
importância do cacau tanto como produto de subsistência como para o comércio.
A utilização do açúcar no preparo do chocolate serviu para atenuar o gosto
amargo da bebida e contribuiu para sua difusão entre o povo, permitindo-se que
fosse servido até mesmo nas igrejas. Em 1624, o chocolate foi condenado
na
Europa, por certo Francisco Rauch, que escreveu um livro onde afirmava que o
cacau era um “inflamatório das paixões” e, portanto, seu uso devia ser proibido nos
mosteiros (BONDAR, 1938. p. 7 passim).
A partir daí se levanta toda uma polêmica de caráter teológico a respeito dos
benefícios e malefícios do cacau, suas qualidades nutritivas e terapêuticas, se os
131
padres poderiam tomá-lo antes de celebrar a missa e se poderia beber chocolate
sem quebrar o jejum. Essa questão teológica somente foi resolvida com a abalizada
opinião do Cardeal Brancatio, que sentenciou:
Liquidum non frangit jejum (Id.p. 18).15
No Brasil, o marco oficial do cultivo do cacau é 1679, através da Carta Régia
que autorizava sua plantação em terras da Colônia. Entretanto, o cacau que já
vinha se desenvolvendo em estado nativo no Amazonas, e no Pará, começou a ser
cultivado em meados do século XVIII, embora tenha ficado ali, por muitos anos,
como simples atividade extrativa.
Na Bahia, existe notícia
de que, por volta de 1665, D. Vasco de
Mascarenhas, vice-rei do Brasil pediu ao capitão-mor da Capitania do Pará, Paulo
Martins Carro, sementes de cacau para serem plantadas na Bahia. Contudo, não se
conhece documento algum
que confirme o atendimento a esse pedido. Mas, é
tradição corrente e dada como certa que, em 1746, Antônio Dias Ribeiro recebeu
algumas sementes do colonizador francês Luiz Frederico Warneaux, do Pará, e as
plantou em sua fazenda Cubículo, à margem direita do Rio Pardo, no atual município
de Canavieiras. Daí então, em 1752, o cacau foi levado para o município de Ilhéus, e
depois para Belmonte que é assim o terceiro município baiano a desenvolver a
cultura do cacau, depois de Canavieiras e Ilhéus.
Em Ilhéos e em Cannavieiras, primeiro que em Belmonte, se bem que por
pouco tempo, começou esse utilíssimo trabalho; até que, de Ilhéos, foram
trazidas as sementes para o Pao-assu, pelos lavradores Pedro Seare e
Belmiro Francisco de Lotero, e após para o França e Ingauhyra, por
Joaquim Silva, Manuel José de Bittencourt, e Eugenio Amorim, no
Engenho, os quaes fazendo algumas plantações, pequenas a principio,
por experiência, logo tornaram-n’as maiores, em virtude de se mostrar a
terra muito própria para o desenvolvimento e exhuberancia da arvore
indígena da América Meridional, - da grande arvore do manjar divino,
como se traduz do grego o seu nome botanico de “Theobroma cacáo”
(MONTEIRO, 1918, p. 38).
O cacau se adaptou ao clima do Sul da Bahia, a ponto de tornar-se a principal
base de sustentação econômica, não somente da região mas também do Estado.
15
Líquidos não quebram jejum.
132
Em Belmonte, a expansão foi rápida, com colheitas fartas e lucrativas, após 1860, o
que resultou no reflorescimento da vila e estimulou uma grande migração de
nordestinos e de europeus. Tudo isto contribuiu para consideráveis mudanças na
sociedade local, levando-se em conta aspectos econômicos, políticos, sociais e
religiosos – a cultura em geral.
Para os que chegaram nas terras do sul da Bahia, atraídos pelo cacau,
antes de qualquer sinal do dinheiro fácil, pelo qual se deslocavam, (...) o
primeiro choque vinha sempre na natureza. Para trabalhar precisava
enfrentar a mata atlântica, desbravando-a, queimando árvores e animais
para só assim poder plantar o cacau, o qual viria a ser realidade cinco anos
depois (GUERREIRO DE FREITAS, s/d).
Belmonte passa a manter as mais estreitas relações com a província de
Minas Gerais, via Jequitinhonha, e pelas longas estradas que eram mantidas
transitáveis pelo trabalho dos escravos da Nação, que também ajudavam no trânsito
das boiadas e das tropas de animais que transportavam mercadorias.
Analisando as transformações que se processaram no Sul da Bahia, por
conta da expansão do cacau, em luta contra o poder natural da floresta, Antonio
Pereira Sousa percebe a apropriação do espaço que, territorializado, seria a região
do cacau, em estágios distintos, de forma gradativa.
Num primeiro momento, os pioneiros viviam numa espécie de equilíbrio
cósmico com a terra (...). Numa segunda fase, temos o tempo histórico dos
desbravadores, em busca do plantio do cacau (século XIX). O equilíbrio
inicial se desfaz ao se intensificar o avanço do homem sobre a mata, na
cobiça pela posse de terras, na disputa pelo processo acumulador de
propriedade e de poder (SOUSA, 2001, p. 19, 20).
Transplante Cultural
Símbolo de uma hibridação racial e cultural, nasceu Iararana, de brancura
araçuaba comparada a uma taruíra (lagartixa branca). Puxa às suas origens
européias, ao pai, não apenas na cor da pele, mas no caráter cruel e violento:
“danada de runhe”. Nossa mestiçagem aparece aí como resultado de uma limpeza
étnica, de um estupro praticado contra a cultura de povos considerados inferiores
(no caso, os índios do Sul da Bahia).
133
Passado o tempo, Tupã-Cavalo com podão
colheu fruta de cacau que tinha dado
e estava assim de madurinha.
E se sambou no cacau (p.62).
De que tempo está falando o poeta? Aqui, o tempo mítico, o “tempo da onça”,
se confunde com o tempo histórico de Belmonte, do Jequitinhonha, das fazendas de
cacau. Esse tempo pode ser situado na segunda metade do século XIX, quando o
cacau passou a ganhar importância em meio a outras culturas de subsistência,
vencendo em preferência a cana-de-açúcar que declinava.
Quando o poeta diz que “se sambou no cacau”, possivelmente,
referindo à prática de se pisar o cacau fermentado,
está se
levado para secagem na
barcaça (a sol) ou na estufa (a fogo), quando os trabalhadores executavam uma
espécie de coreografia, cantando alguma música da região. Esse processo favorece
a limpeza das amêndoas e lhes dá um brilho especial. Contudo, pode quebrar a
película de proteção e deixá-las sujeitas à infiltração de traças e outros bichos, o que
pode levar ao mofo interno desqualificando o produto.
O cacau passa a ter múltiplas finalidades: dele se extrai o mel, faz-se
chocolate, doce, jacuba, vinagre. No vale do Jequitinhonha, assim como em outros
lugares da região, o cacau é trazido da roça em cestos ou caçuás e depois colocado
em canoas velhas utilizadas para servirem de cocho. “Tupã-Cavalo [...] botou cacau
num pedaço de canoa pra fermentar” (p. 63). Os fazendeiros maiores, normalmente,
constroem cochos especiais, que ficam abrigados contra as chuvas e o vento em
galpões ou abrigos para evitar as variações de temperatura, que podem prejudicar
o processo de fermentação. Quando o cocho está cheio, é então coberto com folhas
de bananeira ou sacos de aniagem16 para manter o calor. Para que o cacau seja
submetido às mesmas condições de temperatura e fermentação, é revolvido com
uma pá de madeira de uma para outra parte do cocho. Novamente coberto, a
operação é repetida no dia seguinte, e assim durante aproximadamente seis dias,
período considerado ideal para uma boa fermentação.
Quando o cacau fermentou bem,
Pôs em cima de um saco na coroa
O cacau do gavião que não é do jupará.
16
Tecido grosseiro de algodão ou linho cru para sacos e fardos.
134
Também botou cacau em zinco velho e numa esteira
E em taboa velha que apanhou na alagação (p. 63).
Após a fermentação, naqueles tempos era comum, entre os pequenos
produtores, a secagem do cacau em panos, esteiras ou folhas de zinco nos bancos
de areia, ao sol, método ainda rudimentar mas considerado o melhor (BONDAR,
1938), tanto pela qualidade do produto como pela facilidade do processo. Daí o
poeta afirmar:
“O sol veio e secou tudo e o cacau ficou bom” (p. 63).
Depois é torrado “numa lata torradeira” (uma lata de querosene aberta ao
meio) posta em fogo brando, a seguir moído “no pilão grande de pau” (tronco grosso
de madeira cavado), e depois peneirado na urupema (peneira) de cipó, com açúcar,
canela e baunilha. Está pronto o chocolate.
Em
Forrobodó na coroa (p.65), e Sacudido do cavalo-marinho (p. 74), o
bicho-cavalo canta e conta a sua origem com todos os ingredientes mitológicos,
retomando a narrativa da cena II contada pela alma do avô. Aí Sosígenes Costa,
notadamente sério, torna-se irreverente ao misturar os elementos lendários para
construir a sua narrativa.
Quando o centauro diz que nasceu de um “engano danado” e que “mamãe
enganou papai, virou nuvem lá do céu”, está se referindo a um acontecimento
mitológico relacionado com o envolvimento amoroso de Íxion com Hera a esposa de
Zeus. Tomando conhecimento do fato, Zeus moldou uma nuvem à semelhança de
Hera, a quem Íxion se uniu e geraram o Centauro, gênese de todos os centauros.
Recorrendo então ao mito dos centauros, fala de uma festa no céu (Olimpo),
a que o Centauro fora convidado pela Aurora e lá foi onde ele “quis roubar a mulher
mais bonita de lá”, que era exatamente do “dono do corisco” e por isso ele foi
expulso pela fúria do grande mandachuva. A seguir, vem um elenco de seres
mitológicos como a Medusa, Pégaso (que o poeta chama de jegue), Ceres
(encantada em égua) e Hebe (a copeira do Olimpo).
135
Ao fugir da Medusa, o Centauro vai se esconder em Roma, de onde tem que
fugir, porque aí caem também os destroços do céu e um bode preto que morre, o
que provoca uma “noite pesada” que dura muito tempo e só termina com a
ressurreição dele e de uma grande turba de aleijados. No contexto de Iararana, José
Paulo Paes (1979) identifica o bode preto como Pã, deus dos pastores, o único deus
a morrer e que divertia os demais deuses do Olimpo com sua feiúra. Pã em grego
significa tudo. Daí que no Forrobodó na coroa
- O bode perdeu a gaita
naquela festa do céu.
A gaita de sete bicos,
a gaita de sete bocas,
a gaita de sete braços
a gaita de sete peitos,
a gaita de tudo sete
não se mete mais na boca,
na boca não mais se mete (p. 72, 73).
Entre os antigos hebreus, sete era considerado o número da perfeição e da
universalidade: os sete castiçais, as sete trombetas, os sete selos, as sete igrejas.
Na mitologia grega, “a gaita de tudo sete” está relacionada com a amplitude de seu
alcance, que divertia a todos os deuses do Olimpo. Com a morte de Pã, “caiu a noite
pesada que quase não teve fim”, o que significa o declínio da cultura helênica e a
longa noite medieval que se seguiu. A ressurreição do bode seria o período
renascentista, cujo final coincide com o descobrimento do Brasil, com a chegada do
centauro-colonizador à foz do Jequitinhonha, símbolo do transplante e da imposição
cultural eurocêntrica.
E quando na Oropa se soube
que estava de volta o cavalo-do-mar,
os bichos da Oropa que enxotaram aquele cavalo
do lugar mais bonito de lá,
disseram assim:
- Olhe, menino, voltou do país das araras
o cavalo-do-mar.
Está queimado que nem salgo fugido
mas voltou com dinheiro (p. 78).
O que ocorre aqui é depois de “passado tempo”, quando o cacau é levado
para a Europa como produto de exportação. Tupã-Cavalo tipifica o colonizador, o
desbravador das matas, o plantador de cacau que estabelecerá o coronelismo - nas
relações de poder na esfera do econômico, do político e do social - num processo de
136
hibridação cultural (CANCLINI,1998), figura que Iararana simboliza, na concepção
do poeta. O cacau é “recebido no palacete dos bichões que tinham morrido uma
vez, mas se levantaram mais tarde
do caixão”. O cacau, então, em forma de
chocolate, é servido “na mesona dos bichões”.
Mais uma vez existe aqui uma recorrência de Sosígenes à mitologia grega
quando, de forma irreverente, ele trata os deuses como os “doze bichões” .Em
razão da própria etimologia da palavra theobroma, em grego, manjar dos deuses,
Sosígenes imagina as figuras do Olimpo a exigirem de Zeus o theobroma em lugar
da ambrosia . A despeito de toda esta percepção simbólica, a poesia sosigenesiana
pode ser entendida, além da justificativa etimológica ou do “desejo de zombar da
parafernália helenizante dos parnasianos”, como acredita José Paulo Paes, como
uma referência à importância que o cacau alcançou no mercado europeu, o que o
colocou “lá naquelas alturas” (p. 84).
Coronelismo
Coronelismo é um termo que se refere ao conjunto de influências exercidas
pelos coronéis da política brasileira, grandes fazendeiros e chefes políticos que
controlavam o processo eleitoral, no exercício de um poder absoluto, mantinham a
ordem e até mesmo distribuíam
a justiça e se tornavam provedores da grande
maioria pobre.
Na Primeira República, a fragilidade do poder central, tanto em nível estadual
como federal, era evidente, o que contribuiu para o predomínio dos coronéis, nos
municípios, onde sua vontade era imposta como lei, pela força das armas de seus
bandos, transformando o coronelismo na única instituição viável de poder, tudo isto
favorecido pela ausência de um Estado forte e centralizado.
De modo geral, acredita-se que o termo coronel decorre das patentes da
Guarda Nacional dadas aos potentados locais, pessoas influentes, da confiança do
governo imperial e que assim adquiriam autoridade para impor a ordem. O termo
continuou mesmo quando foi extinta a Guarda Nacional, sob o regime republicano.
137
Nesse momento, o coronel já dispunha de sua própria polícia, dezenas e centenas
de jagunços a seu serviço para defender e ampliar suas propriedades, bem como
garantir a vitória de seus candidatos nas eleições.
Para Wilson Lins (1988), as raízes do coronelismo estão ligadas às antigas
sesmarias
que, no desbravamento dos grandes espaços pouco povoados,
introduziram as práticas do mandonismo, idéia que também tem apoio em Eul-Soo
Pang (1979), que vê o termo “coronel” relacionado com os aspectos sociais e
políticos do monopólio do poder, e que vai se projetar, após a independência do
Brasil, tanto no regime monárquico como no republicano. Após a independência, o
título de coronel foi legitimado, com a Guarda Nacional, em 1831, instituição criada
para garantir o cumprimento das leis do país e a defesa nacional; mas o
coronelismo, enquanto poder, foi legitimado pela aceitação do seu
status pelas
classes dominadas, forjadas no sistema agrário do Brasil colonial.
Embora a economia monocultora do período colonial tenha impedido a
ascensão das classes não-agrárias ao poder, privilégio da aristocracia rural, no final
do século XVIII, a classe mercantil urbana já desafiava os proprietários de terras.
Posteriormente, como a terra era o grande símbolo do poder, muitos comerciantes
das pequenas cidades resolveram aplicar os seus lucros no campo, comprando
terras, “já que a terra era a fonte de dominação dos ricos e a poupança dos
remediados”. No sertão, a terra era símbolo do poder pela sua extensão; no litoral,
pela sua produção.
Ao falar sobre o coronelismo no Sul da Bahia, Gustavo Falcón (1988) não o
vê como algo isolado, distante da realidade do mercado, mas como parte intrínseca
do jogo do poder, numa relação muito próxima “com os mecanismos de dominação
do capital” (Id. p. 62). Ele percebe em Ilhéus essa relação profunda entre o sistema
mercantil e a política do coronelismo, o que vai desembocar na formação de uma
burguesia agrária
do cacau. As raízes do mandonismo político local estavam
entrelaçadas nas relações entre o poder econômico, o político e o social.
Falcón analisa o coronelismo no município de Ilhéus em particular, e o faz por
extensão em toda a região cacaueira, “onde se produzia um bem em expansão”,
138
uma atividade que se desenvolvia rapidamente em termos de produtividade. Em
Ilhéus, o pessoal resolvia suas pendências
“na boca do revólver, do trabuco,
fazendo os processos eleitorais das formas mais estapafúrdias possíveis, chegando
a conhecer no período uma coisa engraçada: a duplicata eleitoral efetiva” (Ib. p. 66).
Em Belmonte também.
A cada ascensão e queda de partido no Brasil, turvam-se os ares e treme a
terra no sertão com o levante da canalha, ao serviço das vinganças, dos
chefetes dos pequenos burgos que, pelo fato, na violência, reproduzem os
debates de tribuna e de jornalismo dos chefes nos grandes centros
policiados. Não se comparam, pois, os bandidos sertanejos com criminosos
das cidades. Os moveis egoístas, de natureza econômica e de injustiça
social que impelem a estes, são naqueles apenas substituídos pela falta de
educação e de polícia, pelos costumes partidários sem elevação e
patriotismo, que os arma em desmandos contra a ordem, mas para
repressão e castigo de desmandos opostos e passados (PEIXOTO, 1933,
p. 121).
Eduardo Santos Maia, em Recontos da minha terra, fala de um dos chefes de
clavinoteiros, como eram conhecidos os jagunços do vale dos rios Pardo e
Jequitinhonha – José Alves Leão, conhecido por Zeca Petisco, protegido de alguns
coronéis e políticos da região. Figura contraditória, cometia os piores desatinos,
deixando a população apavorada. Por outro lado,
à sua sombra viviam algumas famílias a quem concedia esmolas e
garantias, praticando, muita vez, atos de verdadeira benemerencia e
misericórdia: casava moças pobres e seduzidas, costeava enterros, fazia
batizados, dava credito comercial, emprestava dinheiro para começo de
vida, etc. (MAIA, p. 262).
Segundo Afonso M. Monteiro (1918), José Alves Leão era capitão da Guarda
Nacional; dava-se também o título de coronel e assim fazia questão de ser tratado.
Seu Quartel General ficava na Ilha Grande e, quando
visitava a cidade de
Belmonte, vestia sempre uma farda de brim branco com três galões nos punhos,
cobria-se de jóias e montava cavalos
ricamente arreados,
símbolos de poder.
Exercia as funções de Juiz de Paz da Ilha-Grande, por influência do intendente
municipal e com o apoio do Conselho.
O movimento desses clavinoteiros começou no distrito de Ilha Grande, no
final de 1891, com espancamentos,
roubos, assassinatos e outros
tipos de
139
agressão. Daí, a violência organizada foi se distendendo pelas redondezas em
direção a outros povoados através dos rios Jequitinhonha, Pardo, Salsa , chegando
aos povoados de Cachoeirinha, Campo do Zinco, Campinhos, Jacarandá e Salobro.
Fazendas eram incendiadas e seus donos obrigados a fugirem quando
não
morriam. Afrânio Peixoto, em Fruta do mato (1933), reproduz um diálogo entre
clavionoteiros:
Vocês já limparam toda a redondeza?...
Qual?!... falta muito!... dá trabalho...
Da Ilha Grande partimos, faz três meses, por dentro, até o Campo do
Zinco, para juntar os companheiros. Saímos no rio Pardo, fomos ao
Salobro, ao Campinho, à Cachoeirinha... até aí serviço bem feito.
Escorraçamos e “demos exemplo” a tudo quanto foi “mandioca”, bolos nos
homens, “confianças” nas mulheres, fogo nas casas, p´ra não ficar sinal
(PEIXOTO, 1933, p. 113).
O mesmo Afrânio Peixoto ainda explica a conjuntura política que motivava as
ações daqueles homens armados a serviço do poder:
Com a queda dos conservadores, os liberaes que subiram ao poder, como
é de regra a cada ocasião destas, açulavam a vindicta contra os
adversários. Grupos de criminosos, canalha desclassificada, se armava e
percorria, de deu em deu, toda a comarca e adjacências [...]. É assim, o
ritual, a cada ascensão de partido. Desde 7 de junho que anda a
conflagração em Canavieiras, em Belmonte, sei lá por quantos termos,
desse infeliz Brasil! Chama-se a isso “política” [...]
Chegam
à
noite,
quando os inimigos não cuidam e se anunciam ruidosamente com
descargas, vivas aos liberaes, - “pinguelos” para eles - , morras aos
“mandiocas”, - que são os conservadores -, bebem, comem, descansam,
se é fazenda de amigo ou correligionário, ou insultam, batem, violentam,
matas, às vezes incendeiam, quando topam adversários (Ibid. p. 114).
Em algumas vezes, esses clavinoteiros chegaram a invadir cidades, como
Porto Seguro, em 1892, e Canavieiras, em 1894, quando saíram dando tiros pelas
ruas da cidade, estes sob o comando de Sérgio Portugal, outro dos condottieri do
vale do Jequitinhonha, colocando a população em polvorosa.
A 24 de julho de 1892, os clavinoteiros atacaram a propriedade do suíço
Frederico Gustavo de Lecoultre, que faleceu dois dias depois. José Alves de Leão, o
Zeca Petisco, foi preso pelo Ten. Francelino Telles de Menezes, julgado em
Salvador e absolvido. No dia 19 de fevereiro de 1896, enquanto caminhava pelas
ruas de Salvador, foi assassinado pelo fazendeiro Macedônio Cardoso, a quem
havia assaltado e saqueado, no município de Belmonte.
140
Em 15 de julho de 1894, foi fundada em Belmonte uma organização
denominada “União”, porque representava a união de pessoas que não pactuavam
com os clavinoteiros nem com os seus chefes-políticos-coronéis. Por esse tempo,
Sérgio do Nascimento Portugal foi detido, julgado e condenado a seis anos de
prisão. A partir daí, por algum tempo, a ousadia dos clavinoteiros se arrefeceu.
Filha do centauro-colonizador europeu com a iara do Jequitinhonha, num
processo de hibridação biológica e cultural, Iararana cresceu, tornou-se poderosa,
“com ar de raposa e de pata-choca danada de runhe” (p. 60). No conceito dos filhos
da terra, daquelas pessoas identificadas com a cultura local, “Iararana puxou ao
cavalo-marinho”. A expressão “ar de raposa e de pata-choca” combina duas
características marcantes do coronelismo: astúcia e sagacidade (da raposa) e a
opulência (da pata-choca), herança do processo colonizador (Tupã-cavalo).
Figura emblemática do mandonismo do cacau, do coronelismo, que foi
plasmando uma sociedade às margens do Jequitinhonha, através de conquista e
dominação das terras e da cultura indígenas, Iararana “tocou a judiar”, exigindo a
obediência de uma população que não conheceu outra justiça senão a dos
senhores que impuseram a lei da força, a justiça do clavinote.
É neste sentido que Wilson Lins (1988) vê o coronelismo como “filho caçula
do autocratismo discricionário dos primeiros povoadores brancos da terra selvagem”
(Id., p. 27), que chegou até nós depois das várias fases de adaptação a cada
estágio de desenvolvimento do país, e
que
marcou, indelevelmente, a vida
brasileira, moldando caracteres e impondo costumes, ao longo de quatro séculos
de mandonismo e obediência.
141
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Lisboa: Notícias, 2000.
143
CAPÍTULO IV
ARACANJUBA
Iahweh os dispersou dali por toda a face da terra, e
eles cessaram de construir a cidade. Deu-se-lhe
por isso o nome de Babel, pois foi lá que Iahweh
confundiu a linguagem de todos os habitantes da
terra e foi lá que ele os dispersou sobre toda a face
da terra.17
Migração Européia
O que se entende por migração, a despeito da variedade de fenômenos que
reúne, é simplesmente a mobilidade dos homens. É qualquer deslocamento,
individual ou coletivo, de um lugar para outro, desde os caçadores e coletores até
os grandes êxodos dos tempos modernos.
As pessoas não migram simplesmente porque querem mudar de lugar, sem
qualquer motivo plausível. Em qualquer estudo sobre migração, há que se levar em
conta o peso dos fatores de expulsão ou de atração e como se equilibram. De modo
geral, os migrantes na sua maioria não gostariam de abandonar seus locais de
origem, suas comunidades. A migração, então, se dá quando as pessoas concluem
que já não poderão mais viver ali em suas comunidades de origem por motivos os
mais diversos (RAISON, 1986).
Analisando, em primeiro lugar, os fatores de expulsão, pode-se perceber que,
mesmo nos movimentos aparentemente homogêneos, as causas podem ser
diferentes: culturais, econômicas ou políticas. Quando as causas são de caráter
econômico, é preciso se levar em conta ainda os fatores responsáveis pelo
agravamento da situação:
o acesso à terra (e ao alimento), a variação de
produtividade da terra e o número de pessoas
da família.
Além
das causas
econômicas, as pessoas podem estar sendo perseguidas por sua nacionalidade (as
17
Explicação bíblica para a mobilidade dos homens na pré-história (Bíblia de Jerusalém – Gênesis 11: 8, 9)
144
minorias, numa cultura nacional maior, como no caso dos judeus em países como
Portugal e Espanha, nos séculos XV e XVI) ou por causa de religião (grupos
minoritários ou dissidentes, como no caso dos protestantes no tempo da Reforma).
No século XIX, o crescimento populacional em muitos países pressionou a
agricultura, o que causou grandes demandas por alimentos. Os métodos tradicionais
de arrendamento, cultivo e produção foram mudados, com a supressão dos antigos
direitos à terra, a criação dos enclosures18, o que implicou na perda do direito dos
camponeses, obrigando-os a trabalharem para outros. Com a mecanização da
agricultura, houve menor necessidade de mão-de-obra, justo quando surgia um
excedente de força de trabalho. Aí a fome foi a grande ameaça para as populações
sem terra ou com poucas terras.
Assim, os fatores de expulsão, nos locais de partida, e os fatores de atração,
nos locais de chegada, estabeleciam um jogo de forma dialética. Como esses
fatores existem em função uns dos outros, reforçam-se reciprocamente. Por
exemplo, enquanto na Europa a terra era cara e a mão-de-obra barata, na América a
terra era abundante e disponível. Contudo, a mão-de-obra era escassa e,
conseqüentemente, cara, o que possibilitava aos trabalhadores europeus uma
grande probabilidade, em pouco tempo, de conseguirem suas próprias fazendas.
Portanto, as fronteiras estavam abertas para o trabalho, e a possibilidade de adquirir
terras era grande atração para os imigrantes (KLEIN, 2000).
Cerca de dez milhões de africanos e quinze milhões de europeus cruzaram o
Atlântico até 1880. Mas o grande fluxo migratório da Europa aconteceu mesmo no
final do século XIX e início do século XX, principalmente no período de 1880 a 1915.
A segunda metade do século XIX coincide com grandes avanços tecnológicos, como
a substituição da vela pela energia a vapor nos navios de passageiros, o cabo
telegráfico transatlântico, as ligações ferroviárias, que foram marcantes para os
meios de transporte e de comunicação, de forma mais rápida e mais barata, entre a
Europa e a América.
18
Processo de passagem de terras livres ou comuns para o uso privado, com a demarcação de áreas e seu
cercamento.
145
Nesse período, foram cerca de 31 milhões de europeus que cruzaram o
Atlântico. Entre esses estava uma grande quantidade de italianos pobres, primeiro
do Norte e depois do Sul da Itália. Em menor escala, vieram também alemães,
poloneses, russos, suíços, etc. Na sua maioria, eram jovens adultos do sexo
masculino
que tinham como lema “fazer a América”.
O objetivo primordial era
acumular dinheiro para retornar aos seus países de origem. Muitos realmente
conseguiram voltar, mas a grande maioria mandou buscar suas famílias: esposas e
filhos, e noivas. De início, havia uma preocupação de casar com mulheres de sua
própria origem étnica. Depois,
o processo de aculturação ao ambiente receptor
mudou os valores comportamentais desses imigrantes.
A Italianidade dos Filhos da Imigração
A primeira notícia que temos de presença italiana em Belmonte vem de AvéLallemant, quando passou por aquele município no ano de 1859, e fez referência “a
um lugar por nome Italiano, por se ter domiciliado lá um indivíduo dessa
nacionalidade”, muitos anos antes da grande imigração do final do século XIX. (AVÉLALLEMANT,1961, I v., p. 104).
Nos movimentos migratórios para o Brasil, que aconteceram no final do
século XIX e início do século XX, há que se levar em conta dois tipos de imigrantes:
aqueles que vieram de forma espontânea, por sua conta e risco, e aqueles que o
fizeram como parte dos contingentes de colonização oficial (CONSTANTINO, 2000).
De acordo com os depoimentos prestados por descendentes de imigrantes italianos
que vieram para Belmonte, nesse período, esses estão incluídos na primeira
relação: os que não estavam vinculados a grupos de colonização, de ordem pública
ou privada.
Assim como a maioria dos italianos que imigraram para outras regiões do
Brasil, esses que vieram para o Sul da Bahia o fizeram em razão da crise que se
abatera na Itália recém-unificada. A incorporação da península italiana à produção e
ao mercado capitalistas pesou sobre as condições de vida das populações
146
camponesas. Contudo, dentro do contexto das teorias racistas, do determinismo
biológico e geográfico, Gramsci informa sobre a ideologia disseminada que atribuía o
atraso do Sul da Itália ao fato de que os sulistas eram “seres biologicamente
inferiores, semibárbaros ou completamente bárbaros por destino natural” (apud
OLIVEN, 1992, p. 16). Assim, a culpa do atraso não estaria relacionada ao sistema
capitalista nem às desigualdades sociais.
No entanto, das famílias italianas que se radicaram em Belmonte – quase
todas originárias do Sul da Itália - a maioria obteve sucesso em seus
empreendimentos.
Muitos
imigrantes
ou
seus
descendentes
enriqueceram,
tornaram-se latifundiários; outros fizeram sucesso na política ou ocuparam cargos
importantes, e todos, de alguma forma, contribuíram para que Belmonte se tornasse
uma das mais importantes cidades do Sul da Bahia, no final do século XIX e início
do século XX.
Nesse momento histórico, a Itália era uma colcha de retalhos em termos
culturais, onde se falavam diversos dialetos, e quando ainda não se havia
desenvolvido uma concepção nacionalista, uma italianidade. Dentre os diversos
falares dialetais que se desenvolveram na península itálica, o toscano foi o que
alcançou maior prestígio, pelo fato de ser o mais próximo do latim, a língua mãe.
Assim, o toscano foi mais assimilado pelas classes dominantes e pelos grupos
letrados, sendo a Divina Comédia, de Dante Alighieri, o elemento central nesse
processo de aceitação como língua escrita das elites peninsulares e, mais tarde,
como língua nacional italiana, até mesmo antes da unificação. Também a situação
geograficamente privilegiada de Florença, como principal centro político, econômico
e cultural da Toscana, com suas corporações, favorecia o papel de língua
hegemônica entre as diversas regiões da Itália e sua ligação com o resto da Europa.
Segundo Carboni, “no contexto de relações comerciais e produtivas mais
sistemáticas e refinadas, o falar dominante dos burgueses florentinos refinou-se,
padronizou-se e generalizou-se” (CARBONI, 2000, p.48). Acontecia na Itália o que
Marc Ferro fala com referência à França, a partir do século XVI, quando se
recomendava aos historiadores que abandonassem a língua latina em benefício da
147
língua vulgar “para melhor glorificar a pátria e legitimar o Estado que a encarna”
(FERRO,1993, p.12).
Embora os falares dos diversos centros urbanos da Itália fossem se
modificando, sob a influência do toscano (também conhecido como volgare,
fiorentino ou italiano) - principalmente no Norte - as populações do Sul pouco sabiam
da língua de Dante, principalmente as camadas camponesas. Assim, permaneceu e
se fortaleceu uma situação de bilingüismo – língua oficial e língua dialetal – em que
o dialeto continuava sendo a língua principal das massas camponesas (Sanga apud
CARBONI, 2000, p. 63).
De um modo geral, a grande maioria dos imigrantes italianos no Brasil veio
por conta da contingência da colonização, muitos a serviço de elites italianas que
lideravam grande massa de trabalhadores, na Itália, como intermediários de
fazendeiros brasileiros; ou mesmo como aconteceu no Espírito Santo, na atividade
extrativa de madeiras-de-lei, um empreendimento de Pietro Tabachi já conhecido na
Europa (MEDEIROS, 1997, p. 55).
Em Belmonte, como era a tendência no Brasil, os italianos foram o maior
grupo nacional
alemães,
entre os imigrantes, mais do que
com uma diferença
portugueses,
espanhóis e
considerável. “Paradoxalmente, os imigrantes
reforçaram, assim, o caráter ‘latino’ da população branca brasileira, a despeito da
esperança de muitos promotores da imigração de que europeus nórdicos fossem
atraídos em grande número” (SKIDMORE, 1989 p. 162).
Esses imigrantes italianos vieram quase todos da cidade de Paola, região
administrativa da Calábria. Tinham poucos recursos e eram de baixa escolaridade,
tinham
pouco conhecimento da língua oficial e, conseqüentemente, falavam o
calabrês. Eram famílias que, na impossibilidade de sobreviver
em suas
comunidades de origem, vinham “fazer a América” (no caso específico, o Sul da
Bahia).
O imigrante europeu, particularmente o italiano, foi bem recebido pela
comunidade belmontense, porque, através do branqueamento pela união
de
148
miscigenados com brancos, nesse processo de redução étnica, seria lógico esperar
que no curso de mais um século os mestiços
tivessem desaparecido. Muitos
casamentos aconteceram entre filhos e filhas de fazendeiros locais e imigrantes ou
seus descendentes. Contudo, mais de cem anos depois, a população belmontense
– como de toda a região – continua miscigenada.
As condições econômicas, portanto, foram o
mais poderoso fator
de
expulsão, agravadas ainda pela impossibilidade de acesso à terra e, portanto, ao
alimento; pela variação de produtividade da terra, e pelo número de membros da
família que precisavam ser mantidos.
As famílias italianas eram geralmente
numerosas, numa época em que as taxas de mortalidade se mantiveram estáveis,
chegando mesmo a decrescerem nas décadas seguintes (KLEIN, 2000; ALVIM,
2000).
No Sul da Bahia, a cultura do cacau, em termos econômicos, havia começado
há pouco tempo. Com a terra barata, muitos imigrantes conseguiram construir suas
fazendas num período curto (os Magnavita, os Paternostro, os Tedesco, os Tosto),
enquanto outros, além da lavoura de cacau se dedicaram também ao comércio (os
Magnavita), ou se inseriram em atividades socioculturais (os Bafica, os Guerrieri, os
Troccoli).
Em atividades menos condicionadas pelo ambiente físico, alguns costumes
originários da italianidade ainda guardam vestígios. Foi assim que o imigrante
continuou fazendo a macarronada, o salame, a lingüiça, o queijo, a polenta e o pão,
práticas
que,
aos
poucos
foram
desaparecendo
no
cotidiano
dos
seus
descendentes, em parte desmotivados pelo desinteresse em manter tais costumes,
em parte influenciados pela força do mercado. Não tiveram, por exemplo, a força
reprodutora e de permanência cultural como os “árabes” de Ilhéus e Itabuna.
Nas relações de vizinhança, também houve profundas mudanças. Na Itália, a
vizinhança dos camponeses era próxima, porque moravam em pequenas aldeias.
Nas colônias brasileiras, com lotes de 25 hectares, a distância já era bem maior. No
Sul da Bahia, onde as fazendas de cacau ultrapassavam os 200 hectares, favorecia
o distanciamento entre um morador e outro.
149
A cultura do cacau, em si, foi um fator poderoso de abrasileiramento dos
imigrantes italianos no Sul da Bahia. Tratava-se de uma atividade produtiva, sem
raízes européias e muito menos italianas que, por mais de um século, exerceu a
hegemonia na economia regional. Envolver-se com tal atividade significava cortar as
raízes culturais do país de origem.
Em São Paulo, pode-se dizer que houve um processo semelhante. Os
imigrantes vieram para atender uma demanda de mão-de-obra para o cultivo do
café, atividade esta também desvinculada de raízes italianas ou européias.
No Rio Grande do Sul, a realidade foi outra. Além de tratar-se de imigrantes
vindos do Norte da Itália e, por isto, familiarizados com uma paisagem de topografia
acidentada, reproduziram no Brasil uma atividade típica da região de origem: a
produção de uva e vinho. Estava, portanto, instalada a
infra-estrutura que
reproduziria a cultura do país de origem.
Os de São Paulo, Espírito Santo e Sul da Bahia imigraram do Sul da Itália. No
Espírito Santo, esses imigrantes italianos se dedicaram, principalmente, à extração
de madeira-de-lei, especialmente jacarandá, atividade já conhecida na Europa
(MEDEIROS, 1997).
Na Bahia, a história da imigração italiana em Belmonte, portanto, como em
todo o Sul do Estado, está vinculada primeiro à expansão da lavoura cacaueira que,
em termos de sustentação econômica, havia começado há pouco tempo, e depois à
extração de madeiras-de-lei, com a vinda de descendentes de imigrantes de origem
capixaba, já na metade do século XX.
Ao se tentar entender como os imigrantes e seus descendentes aproveitaram
as oportunidades fornecidas pelo processo de mudança social, que eles próprios
ajudaram a desencadear, através da transformação do seu equipamento cultural,
percebe-se que foi no crescimento da economia cacaueira que encontraram as
condições favoráveis, na disponibilidade de terras e no estímulo fornecido pelo
mercado externo.
150
O clima tropical, a floresta densa e úmida, com fauna e flora típicas,
a
extensão das terras agricultáveis, os rios caudalosos, tudo era muito estranho para o
imigrante. Precisava romper os laços que o ligavam à Itália expulsora e abrasileirarse para melhor viver nesta terra desconhecida. Esses imigrantes de uma Itália
culturalmente diversificada, chegaram à Bahia unidos por características culturais
de sua região: a religião (católica), o dialeto (calabrês), o trabalho (camponês),
diferentemente da diversidade cultural que marcou outras áreas de colonização.
Na onda de naturalização que ocorreu em face do Decreto n. 58, de 14 de
dezembro de 1889 e pelo Decreto n. 396, de 15 de maio de 1890, muitos imigrantes
italianos alteraram a grafia de seus nomes: Francesco passou a ser Francisco,
Giovanni passou a ser João, Giuseppe passou a ser José, Salvatore passou a ser
Salvador e assim por diante. Era o corte do cordão umbilical que os ligava à
comunidade de origem.
Em Belmonte, a imigração italiana do final do século XIX levou o governo
italiano a criar uma Delegacia da Real Agência Consular de Itália, sob a
responsabilidade de Demetrio Guerrieri, que a geriu por um período de trinta anos.
Apesar de não ter sido possível determinar o número de famílias italianas que
vieram para Belmonte, algumas podem ser mencionadas: Baffica, Bartelotti, Bartolli,
Burlacchini, Carnovali, Casali, Daiello, Ferrari, Giffoni, Guerrieri, Leonardo,
Magnavita, Mega, Multari, Nervino, Pastore, Paternostro, Ricci, Roconi, Romano,
Tartari, Tedesco, Tosto, Trocolli, Vitorelli etc.
Hoje, os descendentes desses imigrantes falam de sua ancestralidade com
forte dose de ufanismo, em que a figura patriarcal aparece de forma mítica e
heroicizada, num discurso de exaustiva valorização do imigrante italiano, que serviu
de modelo de cidadão, operoso e ordeiro, capaz de fácil assimilação. “Tal discurso
está próximo das concepções do imigrante ansioso por uma segunda pátria, que lhe
oferece a possibilidade de acesso à propriedade de terra, onde poderá demonstrar
sua capacidade de trabalho” (CONSTANTINO, 2000, p. 71).
Os descendentes de imigrantes italianos entrevistados são quase todos de
famílias provenientes da Calábria, região administrativa do Sul da Itália. Uns poucos
151
vieram primeiro e depois retornaram à Itália para trazer os seus parentes, amigos e
vizinhos, a maioria da cidade de Paola, seguindo uma tendência dos imigrantes de
atraírem parentes e conterrâneos. No grupo calabrês, havia diferenças ocupacionais
que incluíam um contingente de pessoas
com ocupações rurais (camponeses,
pequenos proprietários) e urbanas: artesãos (alfaiates, marceneiros, carpinteiros,
ourives), técnicos e pequenos comerciantes.
Na série de mitificações que caracterizam a cultura de imigração italiana no
Sul da Bahia, estão presentes: o culto do trabalho (“Em termos de trabalho, os
italianos eram pessoas ativas e empreendedoras”.... “O trabalho era um exercício
constante”), a religiosidade (“Família tradicionalmente católica, os Tosto tinham em
casa imagens de santos...”), o espírito de solidariedade (“...vovô e vovó trabalhavam
na agricultura junto com os filhos”), a alegria permanente
(‘... pelo vinho como
complemento alimentar e pela alegria como uma correta atitude de vida”), a solidez
da ordem familiar (“A família de imigrantes italianos era de mesa farta. Os filhos se
sentavam à mesa, já tomados os banhos, calçados e bem vestidos”) e assim por
diante.
“O che se vince o pur se muore”19 é a frase de um imigrante italiano citada
por Carlin Farbis (apud POZENATO, 2000), mostrando um discurso que reforça o
caráter de grandeza dos pioneiros imigrantes: indivíduos que lutaram fortemente
contra o destino adverso e venceram, ao invés de morrerem.
Falando de sua ancestralidade, Alberto Magnavita20 diz que seu avô,
originário da Calábria, estudou apenas o primário. “Era mestre alfaiate de profissão,
pequeno comerciante e cultivador de uvas...” Quando chegou ao Brasil, foi se
dedicar a uma
atividade produtiva completamente desvinculada de raízes
européias, o que significava romper com os laços culturais do seu país de origem e
sofrer as mudanças decorrentes das migrações (CANCLINI, 1998). “....Dedicou-se
ao cultivo do cacau, no município de Belmonte, uma cultura que vinha ganhando
espaço no Sul da Bahia”,
que seria a cultura dominante e um poderoso fator de
abrasileiramento dos imigrantes.
19
20
Ou se vence ou se morre.
Alberto Magnavita, 45 anos. Depoimento em outubro de 2001 – Canavieiras (BA).
152
Embora Alberto admita que os italianos de Belmonte se abrasileiraram, que
os seus descendentes perderam as características culturais da imigração, faz
questão de enfatizar que preservaram parte de sua cultura, principalmente no que
se refere à gastronomia... “Os italianos imigrados passaram para seus descendentes
o gosto por uma boa macarronada. Também apreciavam polenta, salame, lingüiça
e
mortadela, comidas que eram preparadas pela própria família”. Outra
característica que ele enfatiza é o gosto pela música italiana orquestrada.
Quando fala em termos de trabalho, seu discurso é altamente heroicizado
porque “os italianos eram pessoas ativas e empreendedoras, que contribuíram de
forma acentuada para transformar o município de Belmonte e outros municípios
vizinhos”. Essa idéia é reforçada quando ele diz que os Magnavita representam a
mais extensa família de imigrantes italianos no Sul da Bahia, cujos descendentes
“estão espalhados em todo o estado, como lavradores, políticos, empresários ou
funcionários públicos”.
De igual maneira, Rafael Tosto Filho21 fala de seu pai e de
seus avós
também calabreses, que trabalhavam na agricultura, junto com os filhos, e
“produziam salame, lingüiça, pernil defumado e extraíam azeite de oliva”, produtos
estocados no verão e vendidos no inverno para o sustento da família. “Além das
atividades no campo, os filhos aprenderam outras profissões: papai aprendeu a arte
de sapateiro, tio Mário a de carpinteiro, tio Vicente (Vincenzo) era radiotelegrafista”.
A fala de Rafael é muito semelhante à de Alberto, sobretudo quando se refere
aos aspectos gastronômicos de sua família ancestral: “macarronada, polenta,
inhoque e feijoada com carne de porco [...] principalmente aos domingos, ao som da
boa música italiana”.
Contudo, deixando de lado os aspectos heróicos desses imigrantes, podemos
perceber que também houve conflitos, seja pela posse da terra, seja por
desentendimentos entre os próprios imigrantes, como o que aconteceu entre
Francesco Tedesco e Agostinho Magnavita por causa da construção de um prédio
21
Rafael Tosto Filho, 61 anos. Depoimento em agosto de 2001- Feira de Santana (BA).
153
no atual sítio histórico de Canavieiras. A questão só foi solucionada com a
interferência da Intendência Municipal 22.
Essas questões normalmente não são lembradas, sobretudo pela imagem
extraordinária que se quer dar
aos patriarcas. São os silêncios da história que
“jogam um véu pudico sobre alguns segredos de família” para
assegurar a
legitimidade dos discursos heroicizados (MARC FERRO , 1993, p. 34).
Assim, pode-se afirmar que a comunidade belmontense é o resultado de um
profundo processo de miscigenação biológica e cultural (COUTO, 1995), com a
incorporação de diversas etnias. De início, o contato entre portugueses e índios, nos
primeiros anos da povoação, através do aldeamento dos kamakan pelo padre
Ferraz. Depois, a inclusão
do elemento de origem africana nas atividades de
subsistência, na garimpagem de pedras preciosas, ao longo do rio Jequitinhonha e
na cultura do cacau. Com a expansão da lavoura cacaueira e a imigração de
nordestinos e europeus, novos elementos de diversas etnias são incorporados à
formação cultural de Belmonte.
Para os filhos da imigração, o Sul da Bahia seria assim um novo mundo, o
eldorado, a terra da promissão que mana leite e mel, o ideal messiânico para uma
vida nova livre da opressão na Itália recém-atrelada ao mercado capitalista. Com o
declínio do feudalismo, o capitalismo é a principal força modeladora do mundo
moderno que transforma em mercadoria, não somente os bens materiais, como
também a força do trabalho humano.
Nesse contexto, a descoberta de novos lugares, “a substituição de diferentes
unidades espaciais”, tornam as culturas
desterritorializadas, abrindo “múltiplas
possibilidades de mudança”. É a proposta de Giddens (1991) como noção de
“desencaixe” das relações sociais do contexto local da interação (ORTIZ, 2000); em
um homogêneo tempo vazio (ANDERSON, 1991). Aí, o processo de construção da
22
Correspondência da Secretaria da Intendência Municipal de Canavieiras: n. 351 e 352, de 13 de julho de 1900;
362, de 25 de agosto de 1900; 363, de 29 de agosto de 1900; 381, de 17 de dezembro de 1900, e 392, de 4 de
fevereiro de 1901.
154
identidade seria um novo projeto de vida, “com base em uma identidade que se
expande no sentido da transformação da sociedade ...” (CASTELLS, 1999, p. 26).
Stuart Hall (1999) entende a identidade como algo que se vai construindo
através de processos inconscientes, e que vai permanecer incompleta, sempre em
formação, a partir das formas pelas quais nós imaginamos ser vistos pelos outros.
Como os imigrantes italianos se abrasileiraram, a cultura de imigração é apenas um
traço diferencial no contexto da cultura sulbaiana, na qual estão perfeitamente
inseridos. Não estão incluídos, portanto, entre aqueles que não sabem onde chegar
e “decidem assumir todas as identidades disponíveis” (CANCLINI, 1998, p. 323).
Belmonte, ou qualquer outra cidade do Sul da Bahia, longe de ser o que
Marc-Augé (1994) chama de “não-lugar,” é o “lugar antropológico”, onde o imigrante
se torna sulbaiano, belmontense, identificado com a “geografia econômica, social,
política e religiosa do grupo” no qual está agora inserido.
Assim, os italianos que migraram para a Bahia, no final do século XIX e até
meados do século XX, não chegaram a formar uma comunidade coesa, apesar de
terem introduzido, entre os baianos, alguns dos hábitos e valores do seu país de
origem. Percebe-se, em Belmonte, uma população que pode ser considerada
como assimilada na sociedade local, pois até o uso da língua italiana desapareceu
no convívio familiar.
Não se consegue estabelecer diferenças marcantes entre as famílias de
origem italiana e as famílias locais, seja nos aspectos religiosos, nas cerimônias e
festividades, seja no que se refere à alimentação, embora tenham mantido alguma
tradição
herdada dos
ancestrais. Também não se percebem diferenças
significativas entre os descendentes de italianos e a população de origem nacional
quanto à escolaridade, nível ocupacional e propriedade de imóveis, apenas que os
descendentes de italianos se distribuem por todas as posições da hierarquia social.
Contudo, embora identificados como brasileiros que são, e que
pouco
contato mantêm entre si e menos ainda com seus parentes na Itália, ignorando até
mesmo sua relação de parentesco, os filhos da imigração se reconhecem herdeiros
155
dessa italianidade (WILLYS, 1998). E tanto é assim que alguns a estão buscando
através da aquisição de dupla cidadania para si e seus familiares.
“Palmatória do Mundo”
Em Iararana, no final da Cena X (p. 64), Tupã-Cavalo personifica a figura do
coronel enriquecido, que acabou de vender o cacau e se prepara para um passeio à
Europa: “[...] amanhã vai pra Oropa o bichão que veio do mar”. No final da página
77, vamos encontrar o
centauro dizendo que vai para a Europa se vingar “da
palmatória do mundo”. A palmatória era uma pequena peça circular, de madeira,
comumente com cinco orifícios em forma de cruz, presa a um cabo, que servia para
castigar as crianças, nas escolas, batendo-lhes na palma da mão. Embora essa
prática tenha sido uma herança de Portugal, Câmara Cascudo (2001) informa que
sua origem é remotíssima, já conhecida na Roma antiga, ao lado do açoite, como
“excitador” da memória infantil. O termo “palmatória do mundo”, como foi utilizado
por Sosígenes, significa sujeito moralista, metido a censor de tudo e de todos, uma
referência à hegemonia cultural da Europa.
E quando na Oropa se soube
que estava de volta o cavalo-do-mar,
os bichos da Oropa que enxotaram aquele cavalo
do lugar mais bonito de lá,
disseram assim:
Olhe, menino, voltou do país das araras
o cavalo-do-mar.
Está queimado que nem salgo fugido
mas voltou com dinheiro (p.78).
O centauro agora recebe um tratamento especial e é convidado “pra comer
manjar do céu”. Também é chamado pelos mondrongos (portugueses) de
“Centaurinho -do-rio e bichão de Belmonte”, e então ele “foi recebido no palacete
dos bichões”. É o reconhecimento de que ele agora é “um graúdo e chefia aquilo lá”.
E quando o copeiro servia manjar
na mesona dos bichões
metidos a gente bonita,
a gente que não quer acabar nem a pau,
Tupã-Cavalo levantou-se da cadeia estofada
e botou nos doze canecos dos bichos da Oropa
156
chocolate que aquela gente metida a letrada não conhecia,
nem sabia o que era mas achou bem cheirozinho (p. 81).
Mais do que uma referência aos deuses do Olimpo, na irreverência do poeta,
os doze bichões podem muito bem representar as doze mais poderosas nações da
Europa, onde os produtos do cacau foram difundidos. Vale a pena salientar que o
nome científico para o cacau, theobroma (gr. = manjar dos deuses) justifica a
presença da
mitologia grega em um poema do Modernismo, movimento que
despreza toda a construção helenizante dos parnasianos.
Na Europa, Tupã-Cavalo se casa com uma “mulher esquisita”, “bicha loura”
“que falava franciú”, “uma gringa metida a princesa” que expulsa a iara de casa.
Iararana fica logo “unha e carne” com a madrasta, desprezando a mãe, que se
refugia na roça de cacau, onde se encontra com um caboco do mato e engravida
outra vez. Agora, diferente da mestiçagem cultural imposta pela força, existe uma
união por amor: um índio pataxó, cujos descendentes ainda estão por aí, com a iara
do grande rio Jequitinhonha, seres da mesma terra. “É desse puro filho de iara com
aimoré que descende em linha reta o arquinarrador do poema, segundo lhe revela a
alma do avô” (PAES, 1979, p. 16):
E este netinho
de botocudo
foi pai do meu pai
e avô do teu avô (p. 90)
(...)
- Menino do céu, você tem sangue da mãe-dágua.
Teu sangue bom é sangue do rio,
sangue caboco com sangue do rio
sangue mais limpo que o da falsa iara (p. 93).
O desprezo de Iararana pela mãe significa a preferência pela cultura
eurocêntrica. Quanto a Aracanjuba, é possível
perceber na “gringa metida a
princesa” um símbolo da imigração européia, no Sul da Bahia, particularmente em
Belmonte, no final do século XIX e início do século XX, de alemães, suíços e,
principalmente, italianos. O fato de Aracanjuba falar franciú (francês) e não italiano,
por exemplo, está relacionado à importância que o idioma francês alcançara na
Europa daquele tempo.
157
Quando a gringa chega em Belmonte, os cabocos
fazem uma descrição
crítica da figura:
essa moça é Aracanjuba,
é de chulé.
Cabelo de estopa,
pirão com jacuba,
nariz de tucano,
jabá na maré,
olho de peixe
E de caburé.
(...)
Eta japu
Eta xexéu
Eta gambá
Eta pituim (p. 84, 85).
Estas expressões jocosas e debochadas, que aparecem no excerto acima,
refletem na parte final, o pensamento difundido na região de que o europeu exalava
mau-cheiro, porque não gostava de tomar
banho. O banho em água corrente
sempre foi um hábito popular entre os povos equatoriais. Tanto os povos indígenas
quanto os africanos tinham o banho como divertimento e, particularmente para o
indígena, fazia parte dos cerimoniais de iniciação. Câmara Cascudo (2001)
esclarece que na iniciação aos cultos Jurupari, considerado o mais nacional dos
cultos ameríndios, o rapaz ou a moça (esta por ocasião da primeira menstruação)
toma banho várias vezes nas águas do rio, junto com os padrinhos. Os
belmontenses, na concepção do poeta, de formação
multirracial, culturalmente
marcados pela ascendência índia e africana, achavam estranhos os hábitos
estrangeiros. Fica evidente aqui a intenção do poeta de salientar a importância da
cultura local ao ser confrontada com a cultura européia.
Teoria do Branqueamento
Formado pela miscigenação de índios, negros e colonos europeus, o
belmontense do século XIX, segundo a concepção da época,
se enquadrava
naquele tipo identificado por Vacher de Lapouge (apud POUTIGNAT & FENART)
que, submetido à seleção social, adquire características morfológicas e qualidades
psicológicas que são determinadas pelas “vicissitudes da história”.
158
Essa teoria da superioridade ariana e da inferioridade do negro e do índio era
aceita pela elite intelectual brasileira, como fator de determinismo histórico no final
do século XIX. Esses conceitos racistas, tão em voga na Europa, se tornaram
particularmente verdadeiros, “por volta da passagem do século, quando o
condicionamento reflexo e a preferência dos brasileiros pela cultura francesa
levaram-nos, diretamente, a escritores racistas populares como Gustave Le Bon e
Vacher de Lapouge” (SKIDMORE, 1989, p. 69). Não é à toa que Aracanjuba falava
franciú.
No Brasil do século XIX, a miscigenação era vista como mecanismo para a
formação de um tipo nacional através de um processo seletivo que resultasse no
branqueamento da população – Iararana. Isso deveria ser efetivado através de uma
política de imigração regulamentada por força da Lei n. 601, de 1850, que favorecia
a expedição de títulos de terra para estrangeiros e definia o imigrante ideal (branco,
camponês, resignado) e o indesejável - “raças atrasadas, não civilizadas e inferiores”
(RAMOS, 1996; SEYFERTH, 1996).
Como se acreditava que os povos do Norte da Europa eram superiores aos
outros homens (segundo Gobineau, Ammon, Lapouge, Chamberlain etc.), a fórmula
para melhorar o Brasil consistia em aumentar o influxo de alemães, que deveriam
ser distribuídos e disseminados pelo país...(SKIDMORE, 1989, p.72). Esses
conceitos da
propalada superioridade da “raça branca”
estão presentes nos
registros deixados pelos viajantes europeus, quando passaram pela costa brasileira.
Vejamos as impressões
do naturalista alemão Robert Avé-Lallemant, quando
passou pelo Sul da Bahia no ano de 1859:
Assim foi que vi muitas negras minas na sua fatiota domingueira,
esplêndido quadro africano, mas só um quadro africano, um quadro
selvático, que se desmorona totalmente ao lado da figura de uma
mulher nórdica, mesmo duma muito modesta, sem nenhuma
pretensão (AVÉ-LALLEMANT, 1961, v. 1, p. 22).
E mais:
Quando será que um silvícola fará do ferro um cinzel, para esculpir
num bloco de mármore do seu rio pátrio, uma Vênus de Milo ou fazer
sair dele aquele maravilhoso grupo das
Graças do grande
dinamarquês? Nunca! Nunca, digo eu! O botocudo nunca terá noção
do que pisa, quando na noite espectral de lua passa sobre aquela
159
jaziada de mármore, nunca sonhará que naquela pedra alva dormitam
estátuas de deuses e heróis e diversas formas graciosas, para serem
trazidas pela mão para a luz e para a vida! Sua noção de beleza vai
apenas até um pedaço de pau atravessando o lábio inferior, e sua
capacidade artística até a confecção duma flecha, dum arco e duma
rede (Ibid. 103).
Desse
pensamento,
participavam
intelectuais
brasileiros
como
Nina
Rodrigues, o cientista miscigenado que ensinava que a inferioridade do africano fora
estabelecida fora de qualquer dúvida científica, e desprezou como sentimental a
noção de que um “representante das raças inferiores” pudesse atingir através da
inteligência, “o elevado grau a que chegaram as raças superiores” (SKIDMORE,
1989, p. 75). Toda essa construção, era por conta do darwinismo social, que
estabelecia “o primado das leis biológicas na determinação da civilização” e que o
progresso humano é o resultado da competição entre raças, onde os mais aptos
(os brancos) prevalecerão, enquanto as demais raças (principalmente os negros)
sucumbirão à seleção natural e social (SEYFERTH, 1996).
Muitos desses intelectuais brasileiros - como o historiador Oliveira Viana,
admirador dos mestres do pensamento racista europeu, teórico do branqueamento concluíram que o Brasil estava em vias de atingir a pureza étnica pela miscigenação.
No final do século XIX, o ideal do branqueamento estava plenamente inserido na
alma do brasileiro, por questões sociais e por conta do liberalismo, aplicado aos
aspectos político e econômico, para produzir uma imagem nacional mais definida. O
estímulo à imigração estava presente na propaganda dirigida a estrangeiros pelas
agências oficiais e na produção intelectual que refletia o pensamento da elite
(SKIDMORE, 1989).
Essa teoria da superioridade ariana e da inferioridade do negro e do índio era
aceita pela elite intelectual brasileira, como fator de determinismo histórico no final
do século XIX. Esses conceitos racistas, tão em voga na Europa, se tornaram
particularmente verdadeiros “por volta da passagem do século, quando o
condicionamento reflexo e a preferência dos brasileiros pela cultura francesa
levaram-nos, diretamente, a escritores racistas populares como Gustave Le Bon e
Vacher de Lapouge” (Id., p. 69).
160
Afrânio Peixoto, o primeiro ficcionista do cacau
na região Sul da Bahia,
discípulo de Nina Rodrigues, no romance A Esfinge reflete as preocupações raciais
da elite do Rio de Janeiro. Num dos diálogos sobre a formação étnica do brasileiro,
com referência ao negro e ao índio, afirma que “essas sub-raças de passagem
tendem a desaparecer, reintegrada a raça branca na posse exclusiva da terra....”
(PEIXOTO, 1978, p. 196).
Em Fruta do Mato, romance regional, o Dr Virgílio
lamenta: “Teremos que sofrer a ação corruptora deles, na família, na sociedade, nas
letras, na política, no trabalho, nas instituições, até que se disfarcem ou se depurem,
ou se misturem completamente na raça branca” (Id., 1933, p. 94, 95).
Mesmo antes da aprovação da primeira constituição republicana, o governo
provisório promulgou decreto, de 28 de junho de 1890, que revelava o ideal de
branqueamento na busca de imigrantes. Dispunha: “É inteiramente livre a entrada,
nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se
acharem sujeitos a ação criminal de seu país” (Ibid., p. 155). Exceção feita aos
habitantes da África e da Ásia.
Teorias como da inferioridade das espécies na América e da impotência do
selvagem, de Buffon; da inferioridade e da degenerescência do homem americano,
de De Pauw; ou a hipótese do dilúvio só na América e do homem americano bestial
e débil, de Francis Bacon (ANTONELLO, 1996), e outras idéias de teóricos racistas
da Europa, se eram recebidas como verdades pelos intelectuais brasileiros, muito
mais o eram pelo povo. Esses autores “inauguram uma reflexão preocupada em
observar os mecanismos que relacionam o homem ao seu meio natural”, onde as
diferenças são explicadas pelo “conjunto de
organismo” e
elementos
que vão produzir “diferenças raciais,
físicos que atuam no
nos costumes e nas leis”
(MONTERO, 1997).
Como a sociedade brasileira já era multirracial, e muitos indivíduos
miscigenados ocupavam postos de relevância no cenário político-social, era preciso
se
flexibilizar as atitudes raciais. Considerar
simplesmente o mestiço como
degenerado e incapaz seria ameaçar um dado aceito e estabelecido pela sociedade
brasileira, já que a miscigenação era um processo reconhecido, pelo qual alguns
mestiços mais claros tinham ascendido ao topo da hierarquia social e política. Assim,
161
os imigrantes europeus, dentro da teoria do branqueamento, contribuiriam para a
formação de um tipo racial brasileiro “mais eugênico” e, por outro lado, seriam
assimilados na cultura brasileira . De qualquer forma, essa acomodação contrariava
as premissas do racismo “científico”, porque nenhum dos pregadores europeus da
eugenia iria admitir a mistura com raças “inferiores”.
Embora a hierarquização dos europeus não obedecesse
a critérios de
natureza racial, já que todos eram brancos, os alemães eram os mais
recomendados, em razão do mito ariano prevalecente. Contudo, os alemães eram
considerados uma ameaça à nacionalidade, por serem resistentes à assimilação.
Em Belmonte, como era a tendência no Brasil, os italianos (Fig. 11) foram o maior
grupo nacional
entre os imigrantes, mais do que
portugueses,
espanhóis e
alemães, com uma diferença considerável, o que serviu para reforçar, (...) “assim,
o caráter ‘latino’ da população branca brasileira, a despeito da esperança de muitos
promotores da imigração de que europeus nórdicos fossem atraídos em grande
número” (SKIDMORE, 1989, p. 162).
No entanto, das famílias italianas que se radicaram em Belmonte – quase
todas originárias do Sul da Itália (Mapa 5) - a maioria obteve sucesso em seus
empreendimentos. Muitos imigrantes, ou seus descendentes, enriqueceram,
tornaram-se latifundiários; outros fizeram sucesso na política, ou ocuparam cargos
importantes, e todos, de alguma forma, contribuíram para que Belmonte se tornasse
uma das mais importantes cidades do Sul da Bahia, no final do século XIX e início
do século XX.
O imigrante europeu, particularmente o italiano, foi bem recebido pela
comunidade belmontense, porque, através do branqueamento pela união de
miscigenados com brancos, nesse processo de redução étnica, seria lógico esperar
que “no curso de mais um século os mestiços tivessem desaparecido” (Id. p. 83).
Muitos casamentos aconteceram entre filhos e filhas de fazendeiros locais e
imigrantes ou seus descendentes. Contudo, mais de cem anos depois, a população
belmontense – como de toda a região – continua miscigenada.
162
FIGURA n.º 11
Família Magnavita, início do século XX.
E/D em pé: Alfredo, Adélia(Dedé), Amélia, Antonio(Totonico), Ernestina, Eduardo(Dudu),
Alzira, Helena e Lourdes, Edith.
Sentados: José(Zezinho), Theresa e Hortencio, Waldemar
163
164
165
Laços de Sangue
A XV e última cena se constitui no caminho para a apoteose do caboclo, no
desfecho em que o menino do céu é o grande herói detentor da nossa brasilidade.
A cena é aberta com o cacau como “um deus na terra e só se falava em cacau,
ninguém queria mais plantar mandioca no oiteiro da Conceição nem coco em
Mugiquiçaba” (p. 86). E acrescenta que “o povo todo recebeu debaixo de festa o
cavalo-do-mar aqui na roça. A festa que se fez foi a festa da Burrinha”. Ao tomar
conhecimento de quem era a gringa franciú, o povo ficou triste
“como gente
capionga {...} porque a mãe-dágua era agora desprezada”.
E a gringa metida a princesa
Se repimpou no sobrado
E a iara foi expulsa da casa da roça
E foi morar lá dentro do cacau (p. 87).
Nesse momento, ocorre o encontro do caboco do mato com a iara que ficou
prenha “e
teve um filho muito bonito”, que puxou à iara, um mimo-do-céu, ao
contrário de Iararana, fruto de uma mestiçagem degenerada.
Saiu gordinho
Como um baé.
Filho de iara
Com aimoré (p. 89).
Como Iararana ficou “unha e carne” com a madrasta que veio da Europa, esta
se achou no direito de tramar contra a iara do Jequitinhonha, junto a Tupã-Cavalo:
- Como consentes, meu lindo Iararanaruba,
que tua amásia, a mãe desta menina,
viva debaixo do cacau tendo filho de caboco?
Vai com teus negros que trouxeste da África
e prenda aquela sabida com correntes
e atire ela amarrada dentro dágua (p.93).
A iara agora é aprisionada “em correntes bem grossas”, no fundo do rio, pelo
cavalo-marinho auxiliado por “negros da roça”, a quem os marimbondos picam
ferozmente em defesa de sua rainha. Em princípio, pode parecer estranho o enfoque
negativo
do negro que aparece como cúmplice da violência de Tupã-Cavalo,
principalmente se se levar em conta o fato de que Sosígenes procura sempre exaltar
166
o negro em seus poemas. Essa aparente contradição pode ser explicada pelo
caráter essencialmente indianista de Iararana. José Paulo Paes (1979) procura
esclarecer como segue.
A “limpeza” de sangue do arquinarrador, enfatizada no desfecho do
poema, implica total adesão à herança aborígene, assim como recusa
xenófoba do que de fora viera para desvirtua-la – sangue branco do
centauro mondrongo, sangue negro dos trabalhadores do cacau (p. 17).
No que toca aos
marimbondos vingadores, podem ser vistos como uma
repulsa da natureza aos profanadores mondrongos, como a revolta do
rio
Jequitinhonha contra o ato de violência que se fez à iara; mas outro significado
pode ser percebido, dentro do espírito localista do poeta. “Marimbondos” eram os
partidários de uma antiga facção política de Belmonte, que se contrapunham a outro
grupo conhecido como “morcegos”.
Esses dois grupos são notadamente diferenciados nos seus valores éticosimbólicos: enquanto o marimbondo só ataca se provocado e à luz do dia, o
morcego ataca traiçoeiramente à noite, e sopra o lugar da mordida para a vítima não
sentir dor, segundo a crença popular nos meios rurais.
Comentando sobre os partidos no século XIX, que deveriam ser
a
representação da opinião pública militante, Raimundo Faoro (1891) mostra como
era frágil o sistema eleitoral que ficava sempre à mercê dos líderes locais e que as
eleições pouco tinham a ver com a vontade do povo.
Antes da proclamação da República, apenas dois partidos dominavam a vida
política do Brasil, alternando-se no poder: o Partido Liberal e o Partido Conservador.
Do ponto de vista ideológico, não
havia diferenças entre eles, já que ambos
visavam à posse do poder e à manutenção de seus privilégios.
Entretanto,
os
tentáculos desses partidos chegavam a todos os rincões do Brasil, assumindo as
feições locais, com nomes identificadores de suas características: lisos e cabeludos,
guabirus e praieiros, saquaremas e luzias; pinguelos e mandiocas, em Canavieiras;
marimbondos e morcegos, em Belmonte.
167
Após descrever os diversos tipos de marimbondos que atacaram os
agressores da iara - marimbondo três-por-dois, marimbondo tapiocaba, marimbondotatu, marimbondo peito-de-moça - o poema realça:
E ficou assanhada a cabaça dos marimbondos (p.94)
Os cabocos também invocam o lobisome que, na sexta-feira, apareceu “e
pegou Tupã-Cavalo desencalmado” e o atacou “com boca de fogo (...) no barranco
da Ingauíra” e o matou. Com a morte de Tupã-Cavalo, seu corpo se converteu em
ossada no fundo do rio, e os seus descendentes, descendentes de todos os
mondrongos (colonizadores portugueses)
chamam a este rio de Belmonte
porque nele está a ossada do cavalo-marinho
que eles chamavam centaurinho-Belmonte
que é mesmo um nome de portuga
e uma burrice desgraçada.
E os matutos ouvindo a lengalenga dos marotos
chamavam o bicho de Seu-Tourinho-do-Monte .
E a filha de Seu Tourinho do Monte,
a desgraçada Iararana, mãe-dágua runhe,
dominou nesta terra (p. 95).
A narrativa faz um retrocesso para outro tempo, o tempo histórico da criação
da capitania hereditária de Porto Seguro, em cujo limite ao norte, no início do século
XVIII, foi criada a povoação de Belmonte, na foz do rio Jequitinhonha. A capitania
fora doada a Pedro de Campos Tourinho, daí o trocadilho que o poeta faz com o
“centaurinho-Belmonte” com o nome do donatário “Seu Tourinho do Monte”. A aldeia
foi chamada inicialmente de São Pedro do Rio Grande. Quando elevada à categoria
de vila, em 1765, teve o nome mudado para Belmonte por uma instrução do governo
português ao ouvidor de Porto Seguro, Tomé Couceiro de Abreu, no sentido de
abolir “os bárbaros e antigos nomes” das povoações da comarca, substituindo-os por
“alguns outros novos de cidades ou vilas deste Reino”. Belmonte é o nome de uma
antiga vila de Portugal, onde nasceu Pedro Álvares Cabral, nome relacionado à
mítica do descobrimento. O desabafo do poeta contra a arbitrariedade do nome
talvez se justifique (“nome de portuga/e uma burrice desgraçada”) em razão de
Belmonte estar situada em uma região de planície, sem qualquer monte por perto
(BARROS, 1916; MONTEIRO, 1918).
168
Embora o centauro tenha morrido, a iara continuava aprisionada no rio, e “só
quem descendesse da mãe-dágua podia quebrar as correntes”. Por ser sangue
limpo, o herói da flor mágica vai à busca de Iararana e Aracanjuba, filha e viúva do
rei dos morcegos, que foram encontradas no alto de um pé de gameleira. Ao
classificar o centauro como rei dos morcegos, o poeta atribui ascendência
estrangeira a esse grupo político.
Ao caminhar para o final da narrativa, o poeta, numa relação hipostática com
o menino do céu, revisita o espaço territorializado do Sul da Bahia, afastando-se do
modelo modernista da matriz inicial, para celebrar a apoteose da saga do cacau.
Quando o menino do céu recebe da alma-avô a flor mágica, consegue destruir
Iararana e Aracanjuba, a madastra, e libertar a iara que estava aprisionada por
Tupã-Cavalo.
A apoteose acontece no quintal da casa do menino do céu, o alter ego do
poeta, na criação de uma genealogia mítica na qual está inserido o próprio autor do
poema. É ali que ele destrói a Iararana e sua madrasta estrangeira, morcegas
dominadoras da cultura belmontense. Ali também ele liberta a verdadeira iara, há
séculos acorrentada pela cultura eurocêntrica - Tupã-Cavalo.
Percebe-se aí o fim da dominação política dos “morcegos”, a vitória do local
sobre o estrangeiro, o alienígena, construção que está vinculada ao programa
atropofágico-nacionalista do movimento modernista. A vitória das tradições locais
sobre a cultura alienígena é indicada pela presença de “uma caboca de beleza rara”
que subiu do Jequitinhonha através do arco-íris e se dirigiu “para dentro do cacau”.
E quando ela passava no arco-íris
por cima da casa,
me disse olhando para baixo
- Menino do céu, menino do céu,
eu te beijo.
Eu te beijo, menino do céu
Era a iara (p. 105).
Nesse procedimento
antropofágico, o poeta propõe, não simplesmente a
destruição da cultura européia, mas o seu aproveitamento no vínculo de sangue com
o herói nativo que vai libertar a iara – emblema das tradições culturais brasileiras –
das correntes seculares do colonizador.
169
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170
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171
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se procurou neste trabalho foi entender os aspectos sócio-culturais do
Sul da Bahia, tendo Belmonte como o locus, a partir da concepção de Sosígenes
Costa através do
poema
Iararana, e como isto pode ser utilizado para
as
atividades turísticas.
Através dos vôos da imaginação, o poeta constrói o seu mito de origem para
o cacau, misturando seres fabulosos da mitologia grega e indígena, contrariando as
regras da escola modernista, que ensinava a destruição de tudo que tivesse relação
com a antiguidade clássica.
As figuras mitológicas e lendárias utilizadas por Sosígenes são produções
simbólicas da realidade sulbaiana e estão relacionadas com um espaço
territorializado onde nasceu, cresceu e se desenvolveu a cultura do cacau. Essa
saga está repleta de lendas, canções, bichos falantes e entidades da floresta e das
águas, elementos contidos na memória do poeta que ali viveu os primeiros 25 anos
de sua existência. Aí também estão presentes: a dominação do colonizador, a
imposição cultural de um povo considerado superior, segundo as teorias vigentes, o
que resultou em conflitos pela posse da terra, pela expansão do cacau.
Exposto às tentações do mercado, o turista é uma pessoa sempre em
movimento e, conseqüentemente, um consumidor em potencial, na busca de novas
emoções e de novas experiências. Isto o pode levar ao consumo de bens culturais,
sem levar em conta os cuidados necessários para a sua preservação.
172
Portanto, é preciso se desenvolver uma política que privilegie um turismo de
impacto sociocultural positivo, onde estejam incluídas claras noções relacionadas
com a educação ambiental, envolvendo aí as áreas naturais e os bens culturais.
Assim, o patrimônio cultural poderia estimular o turismo que, por sua vez, estaria
contribuindo para a preservação dos bens culturais.
Embora não seja possível desenvolver turismo sem que ocorram impactos
ambientais, é possível, contudo,
gerenciar o desenvolvimento turístico de tal
maneira que os impactos negativos que já ocorreram sejam revertidos, na medida do
possível, minimizados outros, e sejam estimulados os impactos positivos.
Assim, as atividades turísticas decorrentes desses recursos (da natureza e
da cultura), se devidamente planejadas, podem minimizar impactos ambientais e
contribuir para o desenvolvimento sustentado, com benefícios para a população
atual e garantia para as gerações futuras.
Ficam aqui algumas idéias sobre a importância do turismo para Belmonte,
no contexto em que estamos vivendo, com vistas ao desenvolvimento sustentável
de um turismo focado nos bens da natureza e da cultura. Saliente-se ainda que, em
várias circunstâncias, o turismo pode significativamente contribuir para a
conservação do meio natural como também dos bens culturais entendidos no seu
sentido mais amplo. Contudo, é necessário o planejamento desse espaço, dos
equipamentos e das atividades turísticas, tudo isso aliado a uma tomada de
consciência da população local.
Faz-se necessário o entendimento de desenvolvimento sustentável como a
gestão e administração dos recursos e serviços ambientais, no sentido de assegurar
a satisfação das necessidades humanas para as gerações presentes, sem perder de
vista as gerações futuras, entendida aí a sustentabilidade de forma ampla e
abrangente, quanto aos aspectos geoecológico, econômico e social.
A sustentabilidade geoecológica está relacionada com a
capacidade de
manter constante o equilíbrio dos sistemas ambientais. A sustentabilidade
econômica está relacionada com a habilidade de um sistema ambiental manter uma
173
produção razoável diante das pressões sócio-econômicas. A sustentabilidade social
está relacionada com o manejo da organização social compatível com os valores
culturais e éticos do grupo envolvido.
Assim, para o incremento, em Belmonte, de um turismo fundamentado na
idéia de desenvolvimento sustentável, a pesquisa sugere:
•
revitalização da memória belmontense para conhecimento popular;
•
reconfiguração e ressignificação do patrimônio cultural urbano: prédios
históricos, logradouros, chafariz, farol, igrejas etc.;
•
reconfiguração e ressignificação do patrimônio cultural rural: fazendas de
cacau com seus instrumentos de trabalho etc.;
•
preservação, recuperação e conservação dos recursos da natureza e do
patrimônio cultural;
•
melhoramento dos serviços urbanos e do saneamento básico;
•
ênfase especial no sistema rodoviário, com a construção da estrada
Canavieiras-Belmonte-Santa Cruz Cabrália;
•
revitalização da cultura belmontense urbana: filarmônicas, festejos religiosos,
festejos populares, cultura de origem italiana etc.;
•
revitalização da cultura rural belmontense, no vale do Jequitinhonha, através
do incentivo aos fazendeiros com vistas ao desenvolvimento do agroturismo,
do ecoturismo, do turismo rural, do turismo de aventura etc.
Levando em consideração o conceito de desenvolvimento sustentável, é preciso
ter cuidado com a tendência economicista que prioriza o crescimento econômico às
custas da sustentabilidade ambiental e da sustentabilidade social. Além da relação
entre crescimento econômico, equidade social e sustentabilidade social, possa
também haver uma nova relação política, econômica e social, entre os agentes
econômicos e os agentes sociais.
Cultura e turismo são considerados uma união difícil e até mesmo conflitante,
porque, enquanto as instituições culturais são orientadas por funções educacionais,
o turismo é orientado pelas leis do mercado. Onde o turismo fala de destinos e
174
atrativos, as ciências humanas falam de lugares. Esses lugares são definidos pela
sua cultura, pela sua história e por suas experiências.
Apesar disso, as relações entre cultura e turismo são possíveis, desde que
haja conscientização e planejamento, porque o turista que visita determinado lugar atraído pela sua história, por seus festivais, pelas suas tradições - esse mesmo
turista precisa consumir os produtos e serviços que a destinação pode oferecer.
Um lugar ou destino que recebe um fluxo de visitantes culturais estará
também beneficiando os residentes, porque vão compartilhar das melhorias
necessárias na infra-estrutura e nos serviços que os turistas requerem. Assim, os
moradores de Belmonte devem se constituir no primeiro contingente da cultura e do
turismo locais para conhecer a sua própria história, para descobrir a respeito de si
mesmos, dos seus vizinhos e de bens culturais esquecidos ou pouco valorizados. É
preciso que a comunidade seja orientada, primeiro, no sentido de valorizar os
espaços rurais, as áreas costeiras, o patrimônio arquitetônico, as tradições, para
depois somar seus interesses à dinâmica das empresas de turismo, cujos interesses
são mais de caráter mercadológico.
Em sua produção poética, além dos aspectos ambientais presentes em todo
o poema, Sosígenes Costa mergulha nos arcanos da memória belmontense para
trazer de lá, de forma simbólica, as construções culturais que se desenvolveram ao
longo do tempo. Dessas construções, restam vestígios de um significativo patrimônio
cultural que identifica o resultado de ações humanas que aí se desenvolveram.
Esses
bens
culturais,
que
fazem
parte
da
memória
belmontense,
simbolizados na poética de Sosígenes Costa, considerados como atrativos turísticos,
podem ser revitalizados e ressignificados para ser mais bem utilizados, tanto pela
população residente como pelo turismo, como importante fonte
da economia,
contudo, sem perder de vista o cuidado com os impactos decorrentes.
No caso do patrimônio cultural belmontense, podem ser relacionados: canoas
para transporte de cacau, instrumentos de pesca, arreios para tropas de animais,
clavinotes antigos; fotografias documentais (paisagens, eventos, pessoas); cultura
175
originária
de imigração (culinária, música, religiosidade); jornais antigos; lendas,
folclore, sociedades filarmônicas e outras manifestações orais; documentos da
administração pública e de acervos particulares, etc. Ao lado desses bens, devem
ser considerados também os bens imóveis, que formam o patrimônio arquitetônico:
igrejas, conjuntos residenciais, logradouros públicos, sedes de fazendas, o Farol de
Belmonte etc. – todos, e cada um a seu modo, representativos da cultura em que
estiveram ou estão inseridos.
Além disto,
emergem acontecimentos dessa
memória
belmontense no
período colonial, no Império e na República, que estão tipificados nos versos de
Iararana, através do processo colonizador de Tupã-Cavalo, no coronelismo e no
transplante cultural de Iararana, a descendência mestiça do colonizador que se
fortalece com a migração européia de Aracanjuba, através
de uma teoria de
branqueamento que vai aprisionar a cultura nacional emblematizada na iara do rio
Jequitinhonha.
Essa viagem regressiva de Sosígenes Costa, pelos caminhos da memória, ao
locus amenus da infância, em busca do tempo perdido, é mais que uma ruptura das
correntes culturais que nos amarravam à velha Europa. Divergindo do modelo
modernista, sua proposta é uma celebração genealógica que reafirma os laços de
sangue, em que o menino do céu, hipóstase do poeta, é o herói libertador da iara figura das tradições culturais brasileiras.
176
GLOSSÁRIO
Este glossário visa esclarecer alguns brasileirismos pouco comuns e
idiomatismos do Sul da Bahia, particularmente da região de Belmonte, empregados
por Sosígenes Costa, em Iararana. Foram
cotejados alguns termos, e
acrescentados outros, através do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, Grande Enciclopédia Delta Larousse, Dicionário do
Folclore Brasileiro (2001), de Câmara Cascudo,
Dicionário Tupi-Português
Português-Tupi, de Octaviano Mello, Belmonte e a sua História, de Affonso M.
Monteiro, além das outras fontes utilizadas no Glossário de José Paulo Paes, no
final de Iararana (1979).
Acauã, s. m. e f., bras. Ave da família dos gaviões, conhecida no Nordeste por anunciar a
seca e matar cobras para alimentar os filhotes. Seu canto é tido como prenunciador de
chuva.
Anequim, s. m., bras. Peixe de cor cinzento-clara, que chega a atingir 6 a 7 metros de
comprimento, da família dos tubarões. De grande ferocidade, ataca o que encontra pela
frente; costuma acompanhar os navios, tornando-se um perigo nos naufrágios.
Araçá, s. m.
Nome comum a diversas árvores e arbustos da família das mirtáceas.
Araçazeiro.
Aramaçá, s. m., bras. Pequeno peixe fluvial, identificado com o linguado, de corpo oval e
achatado.
Baba-de-moça, s. f. (bras.) Doce de calda com leite de coco, açúcar e ovos.
Barba-de-barata,
s. f., bras.
Arbusto ornamental de flores vermelhas ou amarelas
dispostas em cachos.
Bacurau, s. m., bras. Nome com que se designam várias aves noturnas de plumagem mole
que se nutrem de insetos.
Baiacu, s. m., bras. Peixe do mar ou de água doce, que pode intumescer a barriga quando
à tona, seja para boiar, seja para fugir à perseguição de inimigos. Sua carne é tida por
venenosa.
Baronesa, s. f., bras. Erva aquática encontrável em todo o Brasil, que desce os rios nas
estações chuvosas.
177
Beijo-de-frade, s. m., bras. Erva ornamental, de flores vermelhas, rosas, brancas ou
variegadas.
Bispar, v. t. d., bras. Avistar ao longe; ver, perceber.
Boca do Córrego, s. f., top. Povoação situada na margem esquerda do Jequitinhonha, já
na divisa com Canavieiras, a cerca de 40 km de Belmonte, em terras da antiga sesmaria de
João Antônio Gomes da Costa. Seu nome no século XIX era Poaçu, depois Boca do
Córrego Poaçu e finalmente Boca do Córrego.
Boitatá, s.m., bras. Do tupi mboi, cobra ou agente, e tatá, fogo. É um dos primeiros mitos
registrados no Brasil. Identificado amiúde ao fogo-fátuo; é visto como uma alma penada a
purgar os pecados advindos de união incestuosa ou sacrílega. Var.: biatatá, baitatá.
Bolandeira, s. f. top., bras. Vilarejo do município de Belmonte onde Sosígenes Costa
lecionou primeira letras.
Boquete, s. m., top. Antiga zona ribeirinha do Jequitinhonha, em Belmonte, hoje alagada.
Bu ou Ubu, s. m. bras.. top. O maior afluente do Jequitinhonha em território baiano, que o
recebe no município de Belmonte.
Burrinha, s. f. , bras. BA.
Folguedo popular semelhante ao Terno de Reis, cuja figura
principal era um mascarado a simular um homem cavalgando uma alimária, que dançava ao
som de viola, ganzá e pandeiro e de versos cantados.
Bute, s. m., bras., NE. O mesmo que diabo.
Caburé, s. m., bras. Mestiço de índio e negro; mestiço de branco com índio; pessoa feia,
de aparência sorumbática; pequena coruja.
Caçari, s. m., bras. Peixe de água doce, de pequeno porte, semelhante ao bagre.
Cachupeleta, s. m., bras. Bajulador, puxa-sacos, que ou aquele que gosta de adular para
tirar alguma vantagem. Embora José Paulo Paes tenha registrado como prepúcio - s. f.,
bras., BA - o termo, como Sosígenes Costa empregou, tem o sentido de bajulador: “Jogue
fora o manjar velho de papai, cachupeleta” (p. 81). É uma referência a Ganimedes, o copeiro
do céu.
Caçuá, s. m., bras. Cesto grande e oblongo para transporte de gêneros, feito de cipó, com
alças para prender à cangalha. É muito usado para transporte do cacau mole, em
amêndoas, ou em cabaças.
Caipora, s.f. e m., bras. Do tupi caá, mato, e pora, morador. Seu aspecto varia conforme a
região: ora é visto como um pequeno caboclo, que deixa rastro redondo e tem um olho no
meio da testa, ora como um indiozinho de pele escura e grande agilidade, louco por cachaça
e fumo para o seu cachimbo. Protege a caça e faz pacto com os caçadores. A palavra
designa também o indivíduo azarado, cuja simples presença traz má sorte.
178
Calumbá, s. m., bras. Garapa de cana.
Calunga, s.f. (bras.) Divindade secundária do culto banto; o ratinho doméstico. Como
Sosígenes emprega a palavra com inicial maiúscula, é possível
referindo à divindade e não ao ratinho.
que ele estivesse se
Camboa, s. f. , bras. Cercado triangular feito com caniços colocado à beira-rio, para apanhar
peixes.Espécie de curral para pesca.
Canapu, s. m., BA.
Peixe do Atlântico tropical, de cor olivácea, com pontos e faixas
negros sobre o corpo. Chega a atingir 3 metros de comprimento, e mora em lugares
rochosos e nutre-se de outros peixes.
Capiongo, adj., bras. Tristonho, sorumbático, taciturno.
Cavalo-marinho, s. m. Nome vulgar do hipocampo. No poema Iararana, de Sosígenes
Costa, símbolo dos conquistadores portugueses. Os portugueses foram os senhores dos
mares, nos reinados de D. João II (1481-1495) e de seu primo D. Manuel o Venturoso
(1495-1521).
Caxinguelê, s. m., bras. O étimo quimbundo significa “rato de palmeira”. Nome com que
se designam vários mamíferos roedores da família dos esquilos que tem cauda muito
pilosa, mais comprida que o corpo, unhas pontudas e que vivem em árvores; o mesmo que
serelepe.
Cepa, s. f., top. Povoado à margem esquerda do rio Ubu, a cerca de 40 km de Belmonte.
Coroa Grande, s. f., top. Baixio produzido por aluviões, a pouco mais de um quilômetro
acima de Belmonte.
Curupira, s. m., bras. Ente fantástico que habita as florestas brasileiras. O étimo tupi
significa “corpo de menino”. Segundo a superstição popular, trata-se de um pequeno tapuio
com os calcanhares virados para a frente para enganar os caçadores. Detesta pimenta e
alho.
Dedeira, s. f., bras. Proteção de pano que as pessoas ocupadas em retirar as amêndoas
dos frutos de cacau usam nos dedos.
De venta acesa. Disparado, desembestado, célere.
Desgraçar (se) para, v.p., bras. Azular, danar, entrar no mundo, flechar; fugir
apressadamente.
Engenho de Areia, s. m., top. Povoado da margem direita do Jequitinhonha, no município
de Belmonte, próximo a Ibipura.
Formiga-de-estalo, s. f., bras. Taco-taco, formiga de picada dolorosa que, quando irritada,
produz ruído semelhante a estalo.
Fruta-pão, s. f., bras. Árvore da família das moráceas, que produz um falso fruto
arredondado, que pode ser comido assado ou cozido.
179
Gameleira, s. f., bras. Figueira-brava, árvore lactescente encontrada em matas úmidas
cujo látex possui propriedade vermicida. Da gameleira se faz um vaso em forma de alguidar
chamado gamela.
Gancho, s. m., bras. Ancinho ou ciscador; instrumento agrícola, dentado, próprio para
juntar palha.
Grauçá, s. m., bras. Espécie de caranguejo brancacento comum nas praias arenosas.
Graúdo, s. m., bras. Rico, poderoso: adj., desenvolvido, importante.
Iara, s. f., bras. Ser fantástico, espécie de sereia de rios e lagos. A iara ou mãe-dágua é
uma convenção do indianismo literário, segundo Câmara Cascudo.
Ibipura, s. f., bras., top. Zona ribeirinha à margem esquerda do Jequitinhonha, distante
cerca de 8 km de Belmonte.
Ilha Grande, s. f., top. Povoado situado à margem direita do Jequitinhonha, a cerca de 63
km de Belmonte. Não está situado em ilha alguma, como parece, mas fica defronte à ilha
chamada Grande. Antigo QG dos clavinoteiros de Belmonte.
Ilha das Vacas, s. f., top. Ilha fluvial do Jequitinhonha em Belmonte.
Ingá, s. m., bras. Fruto da ingazeira, árvore da família das leguminosas, que dá um fruto de
polpa doce e comestível.
Ingauíra, s. f., bras., top. Zona ribeirinha do Jequitinhonha, a cerca de 3 léguas de
Belmonte, onde estava situada a fazenda Veneza, de propriedade do pai de Sosígenes
Costa.
Jacuba, s. f., bras. Bebida refrescante feita com farinha de mandioca diluída em água,
adoçada com açúcar ou mel, às vezes com um pouco de aguardente.
Jequi, s. m., bras. Cesto de pescaria, trançado com canas flexíveis, de formato alongado
feito funil.
Jitiranabóia, s. f., bras. Jequitiranabóia, inseto cuja cabeça lembra a de um sáurio,
tornando-o temido do povo, que o crê capaz de, com sua picada, secar uma árvore ou matar
um homem, muito embora seja inofensivo.
Jote, s. m., bras. Brinquedo infantil semelhante à picula.
Jundiá, s. m., bras. Nome comum a diversos tipos de bagres.
Jupará, s. m., bras. Macaco-da-meia-noite, mamífero pertencente a uma ordem de animais
relacionados com os ursos que, embora terrestres, se deslocam igualmente nas águas e
nas árvores. Costumam atacar os frutos do cacaueiro.
Jupati, s. m, bras. Designação genérica dos mamíferos da família dos gambás e das
cuícas. Muitos são roedores à semelhança dos ratos e têm no abdome uma bolsa de pele.
180
Jurupari, s. m., bras. Mito difundido no rio Negro por aruacas vindos do norte e mais tarde
generalizado por quase todas as tribos amazônicas. Termo usado por missionários para
relacionar esse ente da floresta com o diabo.
Linha, s. f., bras. Zona ribeirinha do Jequitinhonha, próxima de Engenho de Areia. O nome
vem do fato de, naquele ponto, a linha do telégrafo atravessar o rio.
Lodaça, s. f., bras. Audácia, gabolice.
Mãe-da-lua, s. f., bras. BA. O mesmo que urutau: ave noturna de canto tristonho a lembrar
um gemido humano.
Mané-velho, s. m., bras., BA. Coco miúdo, de cor arroxeada, produzido por uma palmeira
de pequeno porte e tronco espinhoso.
Marobá, s. m., bras. Peixe de brejo, comestível.
Maribondo (marimbondo), s. m., bras. Inseto da família dos vespídeos. Recebe um nome
conforme o formato da casa que constrói, ou de acordo com o seu comportamento. SC
menciona maribondo peito-de-moça, maribondo tapiocaba, maribondo três-por-dois e
maribondo-tatu. Era também a alcunha que os portugueses davam aos brasileiros no tempo
da independência, e apelido dos sediciosos pernambucanos que, em 1852, se manifestaram
em protesto contra a execução do decreto imperial de 18 de junho de 1851, que instituiu o
registro de casamentos e óbitos. No texto de Iararana, acredita-se que seja uma referência a
um dos grupos políticos de Belmonte.
Mataná-ariti, s. m., bras. Jogo dos índios Parecis, de Mato Grosso.
Martim-pescador, s. m., bras. Ave da família dos alcedínidas, ariramba, que se alimenta
de peixes.
Maruim, s. m., bras. O étimo tupi quer dizer “mosca pequena”. Inseto de duas asas,
minúsculo, cujas larvas vivem na água e cujas fêmeas se alimentam de sangue: suas
picadas dolorosas transmitem ao homem e aos animais domésticos um tipo de elefantíase.
Maturi, s. m., bras. NE. Caju novo, ou melhor, a castanha verde e ainda mole.
Miriqui, s. m., bras. Macaco de pequeno porte.
Mulungu, s. m., bras. O mesmo que corticeira, arbusto ornamental que dá hastes e flores
rubras.
Meroaba, s. f., top. Zona ribeirinha do Jequitinhonha, em Belmonte, próxima da Ingauíra, a
26 km de Belmonte.
Micuim, s. m., bras. Espécie de carrapato, que ataca homens e animais provocando fortes
comichões; tem coloração avermelhada e é tão diminuto que se precisa de lente para vê-lo
bem.
Mondrongo, s. m., bras. Apelido depreciativo de português; monstrengo.
181
Mula-de-padre, s. f., bras. O mesmo que mula-sem-cabeça, assombração, ex-concubina
de padre que, na noite de quinta para sexta-feira, sai em galope ruidoso com relincho
estridente, botando fogo pelas ventas e pela boca. Pode ser desencantada se lhe arrancar
o freio da cabeça: então surgirá nua, a chorar arrependida.
Mundéu, s. m., bras. O étimo tupi significa “alçapão”; armadilha de caça.
Munzuá, s.m., bras. Armadilha de pesca afunilada, feita de ripas de taquara ou bambu.
Mutuca, s. f., bras. Espécie de mosca grande, de cabeça larga e olhos enormes. Somente
as fêmeas picam e sua picada é dolorosa e incômoda aos seres humanos e aos animais.
Oxum, s. m., bras. Orixá, divindade da religião iorubana, deusa dos rios e das fontes, filha
de Iemanjá casada com seu irmão Xangô.
Pai-do-mato, s. m., bras. Monstro folclórico, descrito como um bicho, maior que as árvores
da mata, de cabelo e unhas longuíssimos. Seu urro estronda na floresta;nem tiro nem
facada o matam, a menos que o acertem em torno do umbigo.
Papagaio, s. m., top. Fazenda do município de Belmonte que ficou arruinada por uma
enchente do Jequitinhonha, o qual, segundo a crença popular, castigou assim as
impiedades de seu antigo proprietário.
Pardo, s. m., top. Rio da Bahia que tem foz em Canavieiras, município vizinho de Belmonte.
Pata-choca, adj. e s. f., bras. Mulher obesa, de gestos vagarosos, símbolo da opulência
dos coronéis.
Patioba, s. f., bras. O étimo tupi quer dizer “folha de pati (ou palmeira)”
Pedra Branca, s. f., top. Atual município de Itapebi, outrora distrito do município de
Belmonte.
Peso, s. m., top. Vilarejo situado ente Belmonte e Canavieiras, onde antigamente se pesava
a madeira para ser exportada e por isso o lugar era conhecido como Peso-do-Pau.
Pico-de-jaca, s. f., bras. Surucucu, cobra extremamente venenosa, de pele escamada
como casca de jaca, donde o seu nome. É a maior cobra venenosa do Brasil, atingindo até 3
metros de comprimento.
Picula, s. f., bras. Jogo infantil de pega, semelhante à cabra-cega e ao pique.
Piticão, s. e adj. Quiçá o aumento de “pítico”, relativo à pítia, sacerdotisa de Apolo que
pronunciava oráculos em Delfos; “azar-piticão” significaria aquele cuja presença anuncia ou
augura má sorte.
Pixixica, s. f., bras. Pequena formiga encontradiça nos cacauais e cujo simples contato
com a pele produz dolorosa sensação de queimadura.
Poaçu, s. m., top. bras. Afluente da margem esquerda do Jequitinhonha, entre Belmonte e
Canavieiras.
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Podão, s.m., bras. Ferramenta recurvada para poda de árvores, usada na colheita do
cacau.
Porango, s. m., bras. O mesmo que porongo, cuia ou cabaça feita do fruto oco, de casca
dua, do porongueiro.
Quioiô, s. m., bras. Erva cujas folhas, fortemente aromáticas, são usadas como
condimento.
Romãozinho, s. m., bras. Demônio zombeteiro que se diverte em pregar peças aos
viajantes solitários; às vezes, manifesta-se como entidade amiga, que dá recados ao ouvido
e procura objetos extraviados; seus favores são granjeados pela oferenda de comida posta
nas encruzilhadas.
Sacudido, s. m., bras. Forró animado.
Salgo, adj., bras. Diz-se do cavalo que tem olhos gázeos. Possivelmente, ao usar a
expressão “queimado que nem salgo fugido”, Sosígenes tinha em mente outra popularizada
na região - “cor de burro quando foge” – para designar uma cor morena, indefinida.
Saruê, s. m., bras. Gambá, sariguê, espécie de marsupial, do qual existem 4 espécies no
Brasil.
Sucuriuba, s. f. bras. Possivelmente o mesmo que sucurijuba, que em tupi significa “sucuri
amarela”. A sucuri é uma cobra sem peçonha, que vive em rios e lagos, atinge até 10
metros de comprimento e nutre-se de peixes, aves e mamíferos, que devora após esmagarlhes os ossos por arrocho muscular.
Siripóia, s. f., bras. Tipo de peneira de fibras trançadas, de formato côncavo, usada na
pesca de camarão e siri.
Taboa, s. f. , bras. Planta de cujos colmos se fazem esteiras.
Taruíra, s. f., bras. Lagartixa branca.
Teiú, s. m., bras. Grande lagarto da fauna brasileira de cor preto-azulada, que vive em
buracos cavados na terra. O étimo tupi significa “comida de gentalha”.
Trabuco, s.m. Espécie de bacamarte; clavinote.
Tomar sumiço, v. p. bras. Desaparecer, esconder-se.
Tupã, s. m., bras. A primeira e mais sensível manifestação de algo incompreensível ou
superior que está no trovão e no relâmpago. Entidade desconhecida que troveja e destrói
com o fogo dos raios trovejantes as árvores e os habitantes da floresta. O termo foi
empregado pelos missionários jesuítas para designar Deus.
Tutu,
s. m., bras. Bicho-papão, monstro fictício com que se dá susto às crianças;
mandachuva, figurão.
Uaka-curumim. (Uaka = céu; curumim = menino) Menino do céu, o alter ego do poeta.
183
Velame, s. m., bras. Arbusto muito ramoso que dá flores pequenas, de muitos estames.
Xaréu, s. m., bras. Designação genérica de várias espécies de peixes.
Xexéu, s. m., bras. Ave muito encontradiça no Brasil e países vizinhos; tem cor negra, com
dorso e penas da cauda amarelo-vivos e o bico claro.
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