PRÓLOGO
O Paraíso Celestial
Desde o alvorecer dos tempos, as forças da escuridão e da luz permanecem presas em um conflito eterno. Nossas batalhas atravessaram os séculos
como chamas irrompendo da brasa ardente. Todas as vezes que os anjos
venceram a escuridão, ela retornou ainda mais forte; e mesmo assim, todas
as vezes os guardiões da luz e senhores do Paraíso Celestial clamaram ter
obtido a vitória final.
No Fim dos Dias, o orgulho ignóbil nos cegou. Disfarçado de criança,
Diablo ergueu-se das cinzas e, subindo por Santuário, tentou destruir os
Portões Diamantinos. No fim, ele chegou muito perto, pois o Arco Cristalino, fonte do poder angelical, ficou ao alcance do Mal Supremo.
Até a humanidade interferir.
Uma alma mortal emergiu para impedir a destruição de dois mundos.
A exaltada coragem nefalem encheu todos nós de força, virou a maré do
destino e levou à queda de Diablo e à salvação de Santuário e do próprio
Paraíso Celestial.
A escuridão, contudo, não se esvai tão facilmente. Uma vez mais, nossa
vitória foi cantada cedo demais.
O Mal Supremo foi derrotado.
Outras forças, entretanto, jogariam contra os homens.
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Um falcão adejante teria visto um círculo de picos prateados despontar na neblina, imensos, grandiosos demais para olhos humanos. No
centro, a estrutura mais alta, uma torre brilhante encimada por um
arco multifacetado que reluzia como diamantes lapidados. A luz do
Paraíso beijava-lhes o contorno, espraiando-se fulgurante pela cena
como asas estiradas, enquanto pináculos projetavam-se rumo aos céus
entre as fagulhas lançadas pelo cristal para esquentar a escuridão.
A Cidade Prateada.
No mundo dos anjos, o arcanjo da Sabedoria percebera havia pouco, não existem camas.
Abatido e com os olhos fatigados, Tyrael desviou o olhar da
pena deitada sobre o pergaminho, enquanto luz e calor inundavam
o arco e os pilares grandiosos sopravam vida no imenso espaço
aberto à sua volta. Ele jamais dormira desde que sua alma mortal
se fixara em seu peito. Agora, a luz constante que tomava o Paraíso confundia seus ritmos internos recém-adquiridos, e ele desejava
deitar a cabeça em uma superfície mais macia que o chão de pedra
desses cômodos. Para isso, entretanto, ele mesmo teria que providenciar algo mais confortável. A queda de suas asas já dera aos seus
irmãos razões suficientes para procurarem por um sinal de fraqueza. Ele não lhes daria mais uma.
Tyrael flexionou os dedos doloridos. Ele estivera fazendo suas
próprias anotações sobre as páginas densamente preenchidas pelos
escritos de Deckard, mas o trabalho daquele dia estava finalizado,
a despeito da promessa silenciosa que fizera a Deckard e Léa de
terminar o que eles iniciaram. Contudo, seus olhos se negavam a se
fechar. Ainda não. Havia muito a considerar além de suas próprias
fraquezas mortais. Por exemplo, sua crescente divergência com Impérius e o Conselho. O papel dos homens no controle de seus destinos. O futuro de Santuário.
Acima de tudo, o que fazer a respeito daquilo que residia aparentemente inerte entre eles enquanto arrastava tentáculos negros
sobre solo sagrado.
O arcanjo deixou os solitários aposentos e caminhou por salas
e corredores desertos que ladeavam o Paço de Justiça e o Círculo
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do Julgamento, ouvindo seus passos ecoarem em infindas superfícies de pedra polida. Seus sentidos mortais concebiam o cenário
com dificuldade. Ele residira neste lugar por incontáveis milênios e,
mesmo assim, agora o via com outros olhos. Cada espaço abria-se
para outro maior e ainda mais imponente; arcos pontiagudos e intrincados, abóbadas de cruzaria erguendo-se muito acima de sua
cabeça; colunas fasciculadas alinhadas até o infinito; raios de luz
cortando o ar a esmo, irradiados das inúmeras faces cristalinas que
cintilavam coloridas.
Quando havia anjos presentes, sua música ressoava pelo Arco,
harmonizando com perfeição luzes e sons. Mas o Paço agora estava
vazio; seus vastos salões, bancos e assentos estavam vagos e frios, e
a música paradisíaca soava débil e tênue.
Uma dor súbita lancinou o peito do arcanjo, um anseio por coisas que ficaram para trás. Apesar de os anjos ainda trazerem suas
queixas para cá, o antigo lar de Tyrael permanecera em grande parte desocupado desde sua transformação. Os Luminarei, Defensores
do Arco, passaram a viver com Impérius nos Salões da Bravura.
Devo me retirar deste lugar, pensou ele. É um eco de alguém que
já fui, que jamais voltarei a ser. Não obstante, ele era incapaz. Desde
o desaparecimento de Maltael, o domínio da Sabedoria também silenciara, para sofrimento do Conselho Ângiris. Tyrael se propusera
a assumir aquelas obrigações e agir como mão guiadora durante as
decisões mais difíceis para o Conselho, mas os poços daquele reino eram estranhos para ele, perturbadores, e Chalad’ar conclamava
com uma canção que ele não ousava responder. O lendário cálice
requeria habilidades que ele não estava mais certo de possuir.
Tyrael sentiu uma pontada nas costas, uma fisgada no joelho.
Sua forma física definhava, o lento declínio rumo à sepultura que
todos os mortais enfrentam. Ele sabia em seu coração que fizera a
escolha certa. E mesmo assim você duvida de si.
O que significava para um arcanjo ser tão frágil? Como ele poderia enfrentar a escuridão se seu novo corpo era tão vulnerável?
Ele estaria mais bem preparado para enfrentar os desafios que o
aguardavam se não tivesse tomado essa decisão?
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O Paço de Justiça deu lugar a um átrio cuja abóbada pairava
muito acima de sua cabeça. Mais um arco cruzado e uma plataforma feita de pedra e cristal, entalhada com ornamentos intrincados,
fluidos, estenderam-se diante dele. A câmara do Conselho Ângiris.
Tyrael estava diante dos tronos em que os arcanjos se sentavam
para debater. A câmara estava vazia, e a luz que antes penetrava
pelas janelas curiosamente desaparecera.
A Pedra Negra das Almas jazia no pedestal, como se esperasse
por ele.
As facetas e pontas afiadas da pedra se projetavam da base
como uma garra enegrecida, um nada maior que um crânio humano. Como era possível que uma coisa assim contivesse uma escuridão tão terrível?
Tyrael se aproximou lentamente, ao mesmo tempo fascinado e
repelido pelo poder da pedra. Um estremecimento pouco familiar
percorreu seu corpo, um alerta da casca mortal. A luz escarlate que a
Pedra Negra das Almas emitia se extinguiu quando Diablo caiu e a
pedra foi recuperada de um reino inferior do Paraíso. Todavia, ao se
aproximar, Tyrael pensou ter visto um brilho débil em seu interior.
— Alto!
Uma das mãos do arcanjo estava estendida na direção da pedra.
Ele rapidamente a recolheu e girou na direção da voz.
De pé sob o arco que dava para a câmara, a silhueta altiva de
Balzael ocultava-se parcialmente nas sombras. A mão direita de Impérius. O guerreiro Luminarei caminhou para a plataforma e abriu as
magníficas asas; tentáculos de luz estenderam-se rapidamente na
direção do teto da câmara. Sua armadura era dourada, e o peitoral
ostentava os símbolos de seu título.
— O que a Sabedoria faz aqui sozinho?
Era escárnio aquilo que Tyrael notara no modo como seu novo
título fora dito?
— Não me questione, Balzael. Vou aonde bem entender. Impérius mandou você para me vigiar?
— Eu guardo a pedra — retorquiu Balzael. — Essa foi a tarefa
incumbida a mim, acima de todas.
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— Essa não foi a única ordem que o arcanjo da Bravura lhe deu,
foi? Ele não confia no irmão?
— Almas mortais se corrompem facilmente.
A impudência do guerreiro fez o coração de Tyrael bater mais
rápido. A insinuação era clara: Balzael tinha asas; Tyrael não, por
isso estava em uma posição inferior.
— E o orgulho dos anjos os torna cegos para o próprio destino
— disse o arcanjo. — Não muito tempo atrás eu lhe dava ordens.
Você já se esqueceu disso?
Ao invés de se afastar, Balzael se aproximou:
— Você me ensinou bem a nutrir suspeitas.
Balzael fez um gesto sutil na direção da espada, quase imperceptível. Seu significado, no entanto, estava claro. A raiva deflagrada pelo desafio às claras tomou Tyrael, que, sem se deixar intimidar,
também avançou, sentindo os dedos coçarem para tomar El’druin
da cintura. Ao mesmo tempo, ele tinha consciência de seus limites.
Apesar de sua habilidade em batalha, Tyrael não tinha mais à disposição a mesma força que possuía como imortal.
Por um instante, Tyrael acreditou que Balzael pudesse sacar a
arma. Foi então que um clarão iluminou a entrada da câmara. O
arcanjo da Esperança surgiu diante deles e avançou, intervindo
celeremente.
—Saia daqui — disse ela para Balzael. — Logo nos falaremos.
— Não recebi nenhuma informação a respeito…
— O Conselho Ângiris não tem obrigação de lhe informar nada
— retrucou Auriel. A luz à sua volta cintilava sutilmente, pulsante como um coração. Não era sempre que ela falava de forma tão
contundente; o impacto que causou foi ainda maior por isso. — Eu
guardarei a pedra. Vá.
Balzael hesitou por um instante e se curvou ligeiramente:
— Como quiser — respondeu ele. Depois, virou-se e caminhou
para longe do arco, enquanto sua luz aos poucos dava lugar às
trevas.
Auriel e Tyrael ficaram sozinhos. Depois de alguns instantes, ela
se virou para ele:
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— A promoção fez com que ele se tornasse arrogante.
— Bravura e arrogância são primos próximos — respondeu
Tyrael. — Ele demonstrou um grande heroísmo contra o Mal Supremo, enviou mais demônios de volta para o Inferno que qualquer
outro. Impérius fez a escolha óbvia. Eu teria feito o mesmo.
— Talvez. — A luz de Auriel ficava mais suave e mais morna à
medida que ela o examinava. — Imagino que você esteja aqui para
uma reunião, apesar de não haver reunião do Conselho. Você parece… cansado, irmão. Não consegue dormir?
— Eu não tenho mais necessidade de tal coisa.
— Ah, mas é claro que tem — disse Auriel. — Eu senti seu conflito interior. Ele me atraiu dos jardins até aqui. Balzael, ele… — Ela
fez um gesto, como se tentasse se livrar do pensamento. — O Paraíso não é um lugar onde haja perdão fácil, nem sensibilidade. Os
anjos podem não concordar com o que você fez, Tyrael, mas isso
não torna sua escolha menos válida.
Auriel soltou Al’maiesh, o Cordão da Esperança, e o estendeu,
a própria luz encarnada, a armadura e as vestes esvoaçantes terminando ambas em pesadas manoplas. Com os ombros cobertos pelo
cordão, um calor invadiu a carne mortal de Tyrael, seguido de uma
sensação de calma e bem-estar.
Enquanto o cordão o recobria, o tempo parou. Quando Auriel se
afastou, o calor se dissipou.
— Algo o preocupa — disse ela depois de algum tempo. — É
sobre mim?
— Jamais — disse Tyrael. Ele lutava para permanecer impassível, como se esperaria de um arcanjo. Era impossível responder
com a verdade. Quando dormia todas as noites, ele sonhava como
os mortais — não as visões dos anjos, um estado muito mais fluido
e imerso, capaz de levá-lo a lugares em que jamais estivera. A princípio os sonhos eram prazerosos, dotados de reflexos do Paraíso Celestial e de sua existência imortal anterior. Com o passar das noites
eles começaram a mudar; a luz brilhante e a música de seus sonhos
tornando-se sombrias, cada vez mais sinistras. Algo o perseguia em
seus sonhos, e era impossível escapar; uma sombra cruel, gélida,
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que o agarrava até que seu coração silenciasse. Ele sonhou com cidades humanas inteiras devastadas, com os gritos de homens agonizantes cujos corpos mortais eram despedaçados, com construções
que colapsavam enquanto o chão se abria, reduzido a pó.
Auriel seria incapaz de compreender esses sonhos. Ele era mortal; a distância que os separava era muito grande. As fraquezas
mortais, entretanto, concediam-lhe também um discernimento que
o restante do Conselho Ângiris não tinha. O orgulho dos arcanjos os
deixara incapazes de perceber o perigo que enfrentavam.
Auriel enrolou Al’maiesh na cintura, e a fita luminosa tornou-se
novamente parte dela.
— Você é a Sabedoria — disse ela. — E mesmo assim se recusa
a repousar entre os poços. Você não aceitou seu destino. Sua orientação pode nos ajudar a governar o Paraíso, caso escolha ser nosso
guia.
— Caso o Conselho escolha dar ouvidos.
— Os outros sentem seu conflito. Eles não compreendem por que
você arrancou suas asas. Se você sabe onde reside sua lealdade…
— E a lealdade que jurei construir entre anjos e homens? Séculos
atrás nossos votos salvaram Santuário da aniquilação. Os humanos
agora têm muito a nos oferecer. Sem os nefalem, o Mal Supremo
teria destruído o Arco, e o Paraíso teria sucumbido!
— Sem os humanos, nada disso teria sido criado — respondeu
Auriel, movendo-se na direção da pedra que jazia no suporte. —
O Conselho debaterá isso, Tyrael. Lá é o lugar apropriado para tal
discussão.
— O debate não mudará nada — retrucou Tyrael. — Impérius
não será demovido de sua posição. Creio que Iterael votará contra
a sobrevivência de Santuário. Não foi isso que vislumbrei em nosso
futuro, irmã. Juntos, anjos e homens podem acabar com a escuridão
para sempre.
Ela se virou para sair, mas Tyrael bloqueou seu caminho.
— A decisão é nossa. Você ficará ao meu lado como antes?
Conversar abertamente sobre isso fora de uma sessão formal
ia de encontro ao Conselho, por isso Auriel não respondeu. Tyrael
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sentiu na atitude dela uma rigidez e uma frieza como jamais sentira.
Ela sempre se manifestara a favor da sobrevivência da humanidade;
ele não compreendia a razão do silêncio.
Mas temia o que ele poderia significar.
Ambos permaneceram postados por alguns instantes. Tyrael
fora longe demais. Entristecido, ele deu um passo de lado, e Auriel
passou sem dizer nada. Ele deixou que ela fosse, sentindo o peito
explodir em dor enquanto a via desaparecer pelo arco e deixá-lo sozinho. A amizade entre ambos sobrevivera por milênios, e a reação
dela era como mil pequenos talhos. Tyrael sentia tudo com mais intensidade agora, sentia a crescente desconfiança dos anjos no âmago de seu ser.
Ele girou novamente na direção da Pedra Negra das Almas. Lá
estava ela, inerte e silenciosa, como se zombasse dele. Ele se aproximou ainda mais para examiná-la. Tinha certeza de que ela estava
diferente. Seu tamanho era maior do que no instante em que ele
entrara na câmara?
Ela reage à minha presença, como suspeitei. Se assim fosse, o tempo
de fato se tornava demasiado escasso. Uma escuridão tomou o Paraíso
de maneira que jamais o fizera. Isso não é como o ataque direto aos portões
dos Males Supremos, mas algo muito mais sutil e insidioso… um mal traiçoeiro que só eu posso sentir.
Sabedoria temeu pelo futuro do Paraíso Celestial e de Santuário,
crendo agora, mais que nunca, que coisas terríveis os aguardavam.
Do lado de fora da câmara, oculto nas sombras, Balzael observou
Auriel partir, esperando até que o brilho das asas dela tivesse desaparecido por completo. Ele não ouvira tudo.
Ouvira o bastante, contudo.
Nenhum som ecoava pelos corredores; os anjos não dormiam,
não como os mortais, mas havia períodos silenciosos de contemplação e estudo, quando a música do Paraíso se tornava suave e seus
habitantes se aquietavam. Por direito, ele deveria estar entre eles.
Mas uma importante tarefa lhe fora incumbida; ele faria de tudo
para cumprir seu dever.
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Até agora, os eventos transcorreram exatamente como foram
preditos pelo Guardião. Cada passo teria que ser dado com perfeição para que os planos do Guardião funcionassem. Até lá, Tyrael
deveria ser cuidadosamente monitorado, a despeito da recente intervenção de Auriel.
Tyrael irrompeu da câmara. Balzael se encolheu novamente, cobrindo as asas para não ser visto. Os olhos mortais eram fracos de
diversas maneiras, mas captavam luz com extrema competência.
Ele observou Tyrael se afastar do local de encontro do Conselho e
ouviu seus passos ecoarem enquanto ele se afastava. O fedor de carne o impregnava. Balzael teve que conter sua reação à ojeriza. Como
um arcanjo lendário podia cair tanto, tão rápido, era uma pergunta
que ele não podia responder. Mas não tardaria até que a fetidez fosse extirpada de uma vez por todas.
Balzael esperou os passos de Tyrael sumirem na distância e então seguiu, mantendo-se cuidadosamente encapuzado. Mais tarde
ele informaria o Guardião e receberia conselhos sobre o que fazer
em seguida. Tyrael não sabia, mas desempenharia uma função vital
num assunto de vida ou morte para anjos e homens, o fim do Conflito Eterno, a guerra entre o Paraíso e o Inferno.
Acima de tudo, Tyrael deveria ser impedido de dar fim à escuridão que começara a invadir o reino dos anjos.
O futuro do Paraíso estava na balança.
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