PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8a10 de outubro 2014)
Narrativas heroicas e mundos possíveis: os discursos globabilizados
do empreendedorismo social1
Angelina Sinato2
ESPM
Resumo
Esse artigo aborda o discurso do empreendedorismo social. Analisamos as narrativas
comunicacionais que constituem a imagem do empreendedor social em discursos globalizados.
Para tanto, abordaremos instituições de abrangência mundial: Ashoka, Skoll Foundation e
Schwab. Tais instituições articulam novos mundos possíveis (Lazzarato, 2006), e representam
de maneira emblemática o novo espírito do capitalismo (Boltanski e Chiapello, 2009). Nesse
cenário, os empreendedores são representados pela forma mítica e heroica, como novos
olimpianos (Morin, 2011). Do ponto de vista metodológico, trabalharemos com a análise de
discurso (Fairclough, 2001).
Palavras-chave: empreendedorismo social; mundos possíveis; espírito do capitalismo;
olimpianos.
Introdução
As narrativas globais sobre o empreendedorismo social ganham legitimidade
crescente em nosso tempo. Diante da repercussão de tal fenômeno, buscamos entender
sua origem, sua fundamentação retórica3 e quais os reflexos sociais e culturais a ele
atrelados. Dado esse objetivo, optamos por observar o plano discursivo, o que
caracteriza o estudo do tema como um fenômeno comunicacional. Os discursos, além
de representarem entidades e relações sociais, também as constituem, e enfocam as
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 01: GT 01: COMUNICAÇÃO E CONSUMO: cultura
empreendedora e espaço biográfico, do 4º Encontro de GTs- Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10
de outubro de 2014.
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP. Email: [email protected].
3
Vale ressaltar que o termo “retórica” é aqui entendido como “o estudo dos discursos que circulam na
sociedade sob o ângulo da argumentação.” (Angenot, 2012, p. 144).
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pessoas como o centro dessas relações, para o papel de sujeitos sociais (Fairclough,
2001).
Para entendermos como se dá a preponderância do discurso empreendedor e,
especialmente a do empreendedorismo social, dois conceitos são muito relevantes:
novo espírito do capitalismo (Boltanski e Chiapello, 2009) e mundos possíveis
(Lazzarato, 2006) e a articulação entre ambos. O capitalismo mostra-se como um
sistema em que a busca pelo salário não é motivação suficiente, é preciso que o
trabalhador empenhe-se em sua função de maneira mais contundente. Esse é um dos
motivos da existência de um espírito que permeie o sistema. O “envolvimento pessoal”
(Boltanski e Chiapello, 2009, p. 39), torna-se essencial para o sistema capitalista e,
como abordaremos adiante, também é muito relevante para constituir o discurso
empreendedor. Já Lazzarato realiza uma leitura histórica para mostrar que crises
passadas enfrentadas pelo capitalismo levaram à necessidade da criação de um sistema
em que existam novos mundos possíveis, capazes de amenizar problemas apresentados
pelo modus operandi do capitalismo tradicional. É nesse sentido que se revela que “o
enunciado ‘um novo mundo é possível’ designa, assim, menos uma afirmação do que
uma interrogação, um questionamento” (Lazzarato, 2006, p. 14). Questionamento que
se leva adiante na construção de enunciados, destacando que “o mundo possível existe
perfeitamente, mas não existe fora daquilo que o expressa (enunciado, rosto, signo) nos
agendamentos coletivos de enunciação” (Lazzarato, 2006, p. 25). E é nesse campo do
enunciado que as instituições de empreendedorismo social constroem seus mundos
possíveis. No interior de cada mundo possível, existem elos simbólicos, que estimulam
a ação cooperativa entre seus participantes, como podemos observar por meio do site
da Ashoka:
Os empreendedores sociais da Ashoka fazem parte de uma rede mundial de
intercâmbio de informações, colaboração e disseminação de projetos composta
hoje por mais de 3500 empreendedores localizados nos diversos países em que
atuam (...). Além disso, o Centro de Competência para Empreendedores
Sociais – uma parceria da Ashoka com a McKinsey & Company – oferece para
a rede de empreendedores sociais a adaptação e transferência de
conhecimentos, práticas, ferramentas de gestão e planejamento do setor
privado para o setor social.
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Cria-se, assim, um sentimento de pertencimento. Os sujeitos podem e tentam
construir possibilidades, mas é importante ressaltar que todas elas acontecem somente
dentro da lógica do capital. A promessa de transformação é sempre presente, mas o que
se constrói para que ela aconteça privilegia o sistema vigente. E, como podemos
observar pelo exemplo a seguir, a lógica empreendedora replica o discurso empresarial:
os empreendedores sociais são designados como “indivíduos que combinam
pragmatismo, compromisso com resultados e visão de futuro para realizar profundas
transformações sociais.”, destaca o site da instituição Ashoka.
Dessa forma, a hipótese que norteia este estudo é a de que tais parâmetros
discursivos inseridos no novo espírito do tempo constituem a imagem dos
empreendedores sociais como olimpianos (Morin, 2011), semideuses que apresentam
características ao mesmo tempo humanas e sobre-humanas.
1. Contexto histórico do empreendedorismo social
O próprio termo “empreendedorismo social”, apesar de amplamente divulgado
e reconhecido, não possui uma definição clara. As instituições apresentam diversas
traduções e construções históricas para o nascimento desse fenômeno. Assim, optamos
por mostrar o contexto histórico do empreendedorismo social por meio das instituições
analisadas.
A Ashoka se propõe, nesse sentido, como pioneira na definição do
empreendedor social. Bill Drayton, fundador da instituição em 1980, conta que o
projeto originou-se por meio do apoio a “inovadores para o público” ou
“empreendedores do público”. Para Drayton, “os empreendedores sociais são aqueles
que reformam ou revolucionam o modelo de produzir valor social nas áreas da
educação, da saúde, do ambiente e do acesso ao crédito, encontrando novas e melhores
formas de fazer as coisas.” Segundo esse mesmo site que descreve a maneira como se
iniciou o empreendedorismo social, somente a partir dos anos 90 é que se passou a
reconhecer a maneira de agir do empreendedorismo social como símile do
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empreendedorismo, com a diferença de não ser totalmente orientado para negócios ou
economia. Discurso que já contém um paradoxo intrínseco.
A organização conta sua história, seu pioneirismo ao trabalhar com pessoas
capazes de realizar “transformações de alto impacto social”, e destaca sua atuação
mundial e a rigorosidade de seu processo seletivo: “além de uma rede ampla de
empreendedores sociais, a Ashoka promove protagonismo, transformação e empatia
em diversas esferas na sociedade.” E, ainda de acordo com o site da instituição:
Graças ao seu rigoroso e qualificado processo de seleção voltado para a busca
permanente por inovação, ao apoio dado aos empreendedores sociais nos
diferentes estágios de desenvolvimento de suas ideias e ao investimento
realizado em pessoas, e não em projetos, a Ashoka se faz uma organização
única, diferenciada no contexto do setor social no Brasil e no mundo.
O nome Ashoka refere-se a uma expressão em sânscrito que significa “ausência
de sofrimento”, e a logomarca que representa uma árvore de carvalho, capaz de acolher
seus participantes, em busca de oferecer um ambiente propício para a produção de um
mundo em que não haja sofrimento, mundo esse transformado pelas ideias inovadoras
dos “fellows” da Ashoka.
A Schwab Foundation é uma instituição fundada em 1998, de atuação tanto
local quanto global, com o objetivo de disseminar modelos sustentáveis de inovação.
Ela se encontra sob a supervisão legal do Governo Federal da Suíça, e fica em Genebra.
Ela é a segunda instituição formada pelo professor Klauss Schwab, também criador do
World Economic Forum, em 1971. Apesar de ser o Fórum Mundial também uma
organização sem fins lucrativos, a Schwab Foundation originou-se “com a finalidade
de promover soluções empresariais e com um compromisso de gerar impacto social
para bases” (tradução nossa). Ou seja, seu objetivo claramente se constitui a partir de
uma lógica empresarial, e para participar dessa fundação, é preciso também passar por
um processo seletivo.
A fundação também apresenta uma definição muito bem delimitada do que é
ser empreendedor social. Trata-se de um “líder ou visionário pragmático (...), que
alcança metas a partir de métodos empresariais, mas sem deixar de lado a coragem para
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inovar além de tais métodos”. No site institucional, é feita a comparação direta entre
empreendedor e empreendedor social, com a diferença de que os últimos agem em prol
de organizações sem fins lucrativos. É muito interessante ressaltar quais os atributos
que caminham juntos na definição do que é empreendedorismo social e também da
figura do empreendedor. No caso da Schwab, vemos, por exemplo, a necessidade de
atuação em larga escala, assim como inovação, tudo em busca do desenvolvimento
social. Uma descrição muito emblemática presente no site é a que descreve o perfil do
empreendedor como: “Combinação das características representadas por Richard
Branson4 e Madre Teresa”. Ou seja, não basta querer mudar o mundo, é preciso agir
como um bem sucedido empresário bilionário para conseguir alcançar tal “meta”, tal
lucro.
A Skoll Foundation também se declara como uma das precursoras do
desenvolvimento do empreendedorismo social no mundo. Foi criada em 1999, por Jeff
Skoll e tem por missão “impulsionar mudanças de larga escala, ao conectar e investir
em empreendedores sociais inovadores que ajudem a resolver os problemas mais
urgentes do mundo.” (tradução nossa). São “agentes sociais que criam inovações que
alteram o status quo e transformam o mundo para melhor”. Assim como os demais,
destaca sua atuação mundial, o elo criado entre os seus empreendedores e os altos
valores de investimentos alcançados ao longo de sua trajetória.
Com um breve olhar sobre a história de todas as organizações, percebemos que
o surgimento delas coincide com um período próximo (anos 80 e 90). Esse é o momento
histórico que Boltanski e Chiapello definem como “terceiro espírito do capitalismo”.
Por “espírito do capitalismo” entende-se “a ideologia que justifica o engajamento do
capitalismo.” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 39). Historicamente, o capitalismo
apoiou-se em diversos tipos de justificativas para que fosse aceito e até desejado. Dessa
maneira, o capitalismo se propõe retoricamente como a melhor alternativa ou mesmo,
4
A saber: Richard Branson é um empresário britânico bilionário, dono de mais de 400 empresas. (Fonte:
http://veja.abril.com.br/noticia/internacional/richard-branson-negocios-importa-conseguir-criaralgo-especial).
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a única alternativa. A ideia de espírito do capitalismo permite-nos entender suas
movimentações e como ocorreram as mudanças ao longo do tempo. As alterações
acontecem a partir das críticas realizadas e é nesse sentido que os autores atribuem “à
crítica um papel de impulsionador das mudanças do espírito do capitalismo.” (Boltanski
e Chiapello, 2009, p. 61). Ou seja, são as críticas as fontes mobilizadoras da
reformulação retórica do capitalismo, que impulsionam a mudança de um espírito a
outro. Nesse sentido, entendemos que o terceiro espírito do capitalismo reformula o
espírito anterior e propõe importantes alterações. Dentre elas, destaca-se o fato de que
a figura do empregado, subjugado à lógica de uma empresa magnânima passa a não
mais se sustentar. Surge assim a imagem paradigmática do empreendedor, como
modelo de cultura, substituindo o antigo parâmetro de empregado. Assim, as próprias
organizações reformulam suas lógicas e discursos e, nesse contexto, a figura do
empreendedor – chamado de intraempreendedor – sobressai-se em relação ao
empregado. Também diminuem o papel do Estado, visto que sua participação excessiva
no segundo espírito do capitalismo despertou muitas críticas.
Os autores reforçam que o terceiro espírito do capitalismo ainda está em
desenvolvimento, mas há algumas características bastante emblemáticas e que
dialogam com a eminência do empreendedorismo social, como a globalização. Além
disso, é nesse momento em que se desenvolve a lógica empreendedora, em seu sentido
mais amplo. As corporações constroem mundos, e incluem, por exemplo, consumidores
e trabalhadores dentro desse mundo. São mundos pensados, imaginados. E é a
cooperação entre cérebros que atualiza esses mundos.
A cultura empreendedora se expande para além do mundo corporativo. Valores
como autonomia e autoengajamento passam a ter voz, assim como a máxima “a
empresa sou eu”. Vale ressaltar que
o capitalismo é, provavelmente, a única, ou pelo menos a principal, forma
histórica ordenadora de práticas coletivas perfeitamente desvinculada da esfera
moral, no sentido de encontrar sua finalidade em si mesma (a acumulação do
capital como fim em si). (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 53)
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No entanto, a lógica do espírito empreendedor passa a se transformar em valor
moral, ao associar-se a qualidades como determinação, resiliência, coragem e ousadia
para realizar o bem ao próximo. O resultado, o sucesso, o bom desempenho, dependem
somente do sujeito, da maneira como ele encara os desafios oferecidos pela vida. Notase que esse perverso discurso em que felicidade e desempenho dependem
exclusivamente da atuação pessoal extrapola o âmbito do trabalho. Conforme destaca
João Freire Filho, “a felicidade desponta como ponto fulcral de novos projetos para o
incremento do progresso e da cidadania” (Filho, 2010, p. 5), e, se olharmos para a lógica
do empreendedorismo social, tal dinâmica fica ainda mais evidente, já que a promessa
de “realização” tanto profissional quanto pessoal tornam-se ainda mais convergentes.
Vidas particulares e profissionais passam a estar cada vez mais entrelaçadas, e
autorrealização e propósito de vida também. Essa união constitui uma falácia, pois se
“você ama o que faz”, não há problema algum em despender a maior parte do seu tempo
nessa extenuante tarefa.
Essa contextualização é relevante para entendermos de que maneira surge a
figura do empreendedor social. Ainda que dentro da lógica já naturalizada do
capitalismo como único sistema possível, o empreendedor social passa a ter sua
imagem atrelada a um revolucionário, transformador, ou mesmo herói olimpiano.
Como vimos pelas definições dadas pelas instituições analisadas, os empreendedores
sociais são aqueles que acreditam que é possível transformar o mundo. São inovadores
e ousados ao proporem novas saídas para as mazelas sociais. Entretanto, essa dinâmica
acontece somente no plano discursivo, já que o modus operandi utilizado replica os
moldes da perversa lógica corporativa. Ou seja, a mudança do mundo pressupõe a
manutenção da mesma lógica do mundo atual, dentro do mesmo sistema vigente,
replicando as mesmas desigualdades.
2. Os mundos possíveis do empreendedorismo social
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O empreendedorismo social constitui um campo simbólico (Bourdieu, 2006)
que abriga as mais diversas instituições, fundações, e, de maneira geral, organizações
voltadas ao bem comum por meio de um sistema empreendedor. Há, de certa forma,
um discurso único que engloba esse campo de maneira ampla, mas cada uma dessas
organizações constrói um mundo possível.
Ao observarmos as três instituições que aqui estão sendo analisadas (Ashoka,
Schwab e Skoll), percebemos similaridades relevantes em diferentes aspectos. Seu
surgimento se dá num mesmo momento histórico, como abordamos anteriormente, e a
partir da iniciativa de um já estabelecido homem de negócios. Diante de tal perspectiva,
podemos observar a maneira como tais organizações constroem o perfil de seus
empreendedores, mas esse será um tópico que abordaremos com um pouco mais de
detalhes em breve. E, além disso, como cada instituição, dentro desse campo simbólico
mais amplo, delimita seu mundo possível, e realiza também uma convocação
biopolítica (Prado, 2013) para atrair participantes para esses mundos possíveis,
estabelecidos em torno da ideia de bem comum, universal. A lógica organizacional,
presente nos discursos das organizações estudadas, expande-se para os indivíduos que
dela fazem parte. Esses são mundos pensados, imaginados. Lazzarato, ao discorrer
sobre os mundos possíveis, leva em consideração a lógica empresarial. Ressaltou:
a empresa que produz um serviço ou uma mercadoria cria um mundo. Nessa
lógica, o serviço ou o produto – da mesma maneira que o consumidor e o
produtor – devem corresponder a esse mundo. Esse último precisa estar
inserido nas almas e nos corpos dos trabalhadores e consumidores. (Lazzarato,
2006, p. 99).
No caso do empreendedorismo social, podemos entender que o discurso que
constrói a forma de atuação corporativa concebe um mundo. E que esse mundo criado
existe intrinsecamente em quem faz parte dele. Assim, os mundos idealizados pelas
instituições pela sua maneira de agir incorporam os seus participantes e também todos
os que com elas se envolvem. Essa relação se torna ainda mais próxima com o
entrelaçamento que se observa entre os participantes desses mundos e pela maneira
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como os limites entre vida pessoal e profissional encontram-se cada vez mais tênues no
momento histórico em que nos encontramos. Aliás, pode-se entender nesse sentido um
diálogo presente entre Boltanski e Chiapello e Lazzarato, já que o terceiro espírito do
capitalismo propicia todas as condições básicas para que seja possível a construção de
mundos possíveis.
No site da Ashoka, por exemplo, a ideia desse mundo possível construído fica
bastante evidente pela maneira como a instituição define sua atuação e a dos seus
participantes. Inicialmente, temos inclusive um gráfico que demonstra como o
“mundo” institucional da organização se configura:
Ilustração 1: diagrama que define a estrutura da Ashoka e a inserção de seus “fellows” nesse modelo.
O diagrama evidencia como indivíduo, grupo e setor se relacionam, e essa
imagem traduz claramente a ideia de uma esfera incorporar as menores. O
empreendedor social faz parte de um grupo maior, já que a Ashoka “identifica e investe
em empreendedores sociais líderes e os ajuda a alcançar impacto social máximo.”
(tradução nossa). Isso é possível por meio de grupos e redes de empreendedores unidos
pela Ashoka, para que possam trabalhar conjuntamente e maximizar sua atuação social:
“Ashoka envolve comunidades de empresários e desenvolve padrões de colaborações
eficazes que mudam campos inteiros”. Por meio de uma rede global com esses agentes
de mudança, a instituição diz criar as condições necessárias para que a atuação
sustentável de todos os participantes seja possível. De maneira global, a “Ashoka cria
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infraestrutura necessária, como o acesso ao financiamento social (...) e quadros de
parcerias”, tudo isso para que seja possível proporcionar “valor social e financeiro”
para os participantes.
Parcerias, financiamento, infraestrutura, são apenas alguns dos indicativos da
realização de uma possibilidade de mundo. “A expressão e a efetuação dos mundos e
das subjetividades nele inseridas, a criação e a realização do sensível (desejos, crenças,
inteligências) antecedem a produção econômica” (Lazzarato, 2006, p. 100). No caso da
atuação dos empreendimentos sociais, a produção econômica se realiza em função do
apoio a uma causa, mas ainda assim, a realização do sensível antecede qualquer
produção tangível.
Além disso, a construção da lógica do empreendedorismo social encontra-se
subjugada, tensionada pela necessidade de pertencimento ao modelo capitalista. É
preciso adequar-se ao mercado, ao sistema vigente. Como destaca Lazzarato,
nossa ‘liberdade’ é exercida exclusivamente para escolher dentre possíveis
(mundos) que outros instituíram e conceberam. Ficamos sem o direito de
participar da construção dos mundos, de formular problemas e de inventar
soluções, a não ser no interior de alternativas já estabelecidas (Lazzarato,
2006, p. 101).
3. Os habitantes dos mundos possíveis: empreendedores sociais e a figura heroica
As histórias dos empreendedores sociais possuem espaço de destaque nos sites
das organizações pesquisadas e lhes atribuem um caráter humano, uma força simbólica
pautada pela multiplicidade de vozes presentes. Suas atuações são narradas de maneira
a corroborar o mundo possível do qual fazem parte e também exemplificam a estrutura
do novo espírito do capitalismo que abordamos anteriormente. O entrelaçamento de
vida pessoal e profissional evidencia-se no discurso que revela suas vidas e suas
qualidades ao atuarem como empreendedores sociais.
No site da Skoll Foundation, por exemplo, há uma parte dedicada a contar a
história dos chamados “novos heróis”. Nesse espaço há um vídeo que
narra as histórias dramáticas de 14 ousadas pessoas de todos os cantos do
globo, que, contra todas as probabilidades, aliviaram eficazmente a pobreza e
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as doenças, combateram o desemprego e a violência, por meio de educação,
luz, oportunidade e liberdade para as pessoas pobres e marginalizadas em todo
o mundo .
Esses protagonistas heroicos são apresentados como sinônimos de
empreendedores sociais. São os protagonistas capazes de apresentar soluções viáveis
para mudar a vida de pessoas desesperadas. No site, segue-se uma pergunta, que é
também uma convocação: “O que é possível? Você ficaria surpreso. Faça uma viagem
em um mundo em as pessoas tomam atitudes para fazerem uma grande diferença”.
Acabar com o trabalho escravo na Índia, ajudar órfãos da AIDS de Zâmbia.
Como tudo isso seria possível? Por meio da atuação da Skoll Foundation. Esse é o início
do primeiro filme que conta a história dos novos heróis. No plano discursivo, fica
bastante evidente como era a situação anterior da atuação da instituição e como as
sociedades beneficiadas se encontram a posteriori.
Ilustração 2: imagem do vídeo “novos heróis” presente no site da Skoll Foundation
De maneira emblemática, a introdução do filme diz que irá mostrar esse “antese-depois” e quando é citada a instituição como a provedora dessa possibilidade de
mudança, desse novo mundo possível, surge a imagem de um horizonte azul, e,
posteriormente, diversas crianças segurando um globo terrestre. Mais adiante, na
página dedicada aos empreendedores sociais, vê-se o destaque para a atuação global da
Skoll Foundation, simbolizada por um mapa que aponta todos os países de atuação.
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Nessa mesma página é possível ver todos os empreendedores, um a um, ou mesmo
separados pelas categorias de atuação pelos quais são classificados (por exemplo:
“desflorestamento”, “educação e oportunidades econômicas”, “desenvolvimento
efetivo”, “paz e segurança humana”).
Para a Ashoka, seus membros, denominados “fellows” são aqueles que
conseguem apresentar soluções inovadoras capazes de mudar todos os padrões da
sociedade e realizar mudanças profundas. Destaca-se a atuação em mais de 70 países e
que, para se tornar um fellow da Ashoka, todos esses empreendedores passaram por um
rigoroso processo seletivo, em que confirmam cumprir com as “Condições de
Associação com a Ashoka” (tradução nossa). Após essa descrição, a convocação para
integrar esse mundo possível: “Junte-se a nós em investir no crescimento da principal
rede mundial de empreendedores sociais”.
Tanto a Skoll quanto a Ashoka apresentam seus atuais empreendedores, um a
um, com a definição de sua atuação e, especialmente, a quantificação dos resultados
alcançados. Novamente, destacamos aqui a maneira como os empreendedores são
narrados e quais os critérios mais relevantes pelos quais são definidos e também
classificados. São discursivamente apresentados como revolucionários, criativos,
engajados, corajosos, ousados. Mas estão inseridos nas dinâmicas institucionais que
exigem resultados quantitativos, replicando emblematicamente o modus operandi de
grandes e lucrativas corporações. Ou seja, sem de fato realizarem verdadeiras
revoluções capazes de alterar o sistema vigente e suas crueldades estruturais.
Assim como o perfil de cultura e conduta definido por Morin como
“olimpianos”, os empreendedores sociais unem características humanas e sobre
humanas, são perfis que geram identificação e também projeção. Permeiam o
imaginário, mas possuem ao mesmo tempo “substância humana que permita
identificação.” (Morin, 2011, p. 101). Consideramos esse diálogo pertinente, pois
Morin ressaltava que os olimpianos são figuras que “encarnam os mitos de
autorrealização da vida privada” (idem), e Boltanski e Chiapello apontam que o novo
espírito do capitalismo pressupõe que se atenuem as barreiras entre realização pessoal
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e profissional, para garantir que o engajamento profissional seja cada vez maior, ainda
que mais extenuante. Ao observarmos os discursos referentes aos empreendedores
sociais, o que se destaca é a realização que seus trabalhos lhe fornecem e como suas
qualidades estão presentes de maneira entrelaçadas em todos os aspectos de suas vidas.
Esses heróis contemporâneos são fonte de um realismo identificador, que disseminam
as características do mundo possível do qual fazem parte. Os olimpianos unem ao
mesmo tempo poderes mitológicos e competências técnicas, assim como os
empreendedores heroicos apontados quantitativamente por suas realizações práticas. A
partir do momento que todos são heróis, não há de fato heroísmo, como aponta
Buonanno (2011). Percebe-se ser essa uma maneira de dar voz a um discurso vazio,
incapaz de promover reais transformações. A real transformação ocorre, então, somente
no plano retórico, na maneira como o capitalismo incorpora as críticas que lhe são
feitas.
4. Conclusões
Heróis, agentes transformadores, responsáveis por revoluções que mudam
“profundamente” a realidade que enfrentamos. Essa é uma maneira de exemplificar o
discurso que permeia a imagem do empreendedor social. Apesar da força discursiva,
há uma incoerência clara entre o que se propõe como revolução e o que se é possível
atingir sem que haja uma real mudança estrutural. A lógica empreendedora apresenta
uma ideia domesticada de revolução que pressupõe que o capitalismo, já naturalizado,
continue a ser o único sistema viável e desejável. Por mais que muitas vezes a proposta
seja a de mudar o status quo (como a que está presente no site da Skoll Foundation), a
atuação de tais organizações não possibilitaria uma alteração dessa magnitude.
Entretanto, as narrativas que contam a história desses empreendedores sociais
disponibilizam a ideia de novos mundos possíveis. Cada organização, à sua maneira,
constitui um mundo possível e convoca a participação de todos para essa nova
possibilidade. Os mundos possíveis extrapolam barreiras físicas, fundamentam-se a
partir de ideais. Entretanto, como destaca Lazzarato, eles não existem para além dos
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fatores que o representam, como signos e enunciados. Assim, a construção dessas novas
possibilidades apresenta uma grande força simbólica, capaz de envolver e encantar,
dissimulando a impossibilidade da realização factual de tais revoluções.
É exatamente nesse contexto discursivo que se formam as imagens dos heróis
contemporâneos, dos olimpianos. Morin já ressaltava que, “como toda a cultura, a
cultura de massa produz seus heróis, seus semideuses, embora ela se fundamente
naquilo que é exatamente a decomposição do sagrado: o espetáculo, a estética.” (p.
101). Pragmáticos e dotados de características místicas, os olimpianos englobam
aspectos reais e imaginários, e reforçam, no plano discursivo, seus pretensos papeis de
heróis cotidianos, dotados de uma sensibilidade ímpar para enxergar os problemas da
humanidade, resilientes, corajosos, indubitavelmente íntegros. Dessa maneira, há a
possibilidade de se gerar grande realismo identificador com os que entram em contato
com suas histórias, mesmo que suas narrativas heroicas, revolucionárias e realmente
transformadoras sejam inviáveis de ocorrer para além do plano discursivo.
Assim, a construção dos mundos possíveis e a consequente consolidação da
imagem heroica dos empreendedores sociais podem ser apresentadas como sintomas
do novo espírito do capitalismo. São maneiras de resposta às críticas ao capitalismo, e
de ainda assim mantê-lo, com seu quadro histórico de desigualdades estruturais. A
lógica empreendedora, que se sobressai a partir do novo espírito do capitalismo, passa
a difundir características como engajamento e autorrealização como fundamentais para
os sujeitos presentes nas corporações. Como vimos, ao analisarmos os sites das três
instituições de atuação global (Ashoka, Schwab e Skoll Foundation), essas
características se apresentam fortemente em seu discurso, ao definirem o perfil de um
empreendedor social. Percebe-se, dessa maneira, que os discursos referentes ao
empreendedorismo social incorporam a lógica de mercado, são construídos pelo
capitalismo, que se fortifica como um sistema já naturalizado. E mais, apresentam
possibilidades de novos caminhos, quando na verdade apenas replicam o status quo
atual, dissimulando muitas das desigualdades estruturais do capitalismo sob o plano
discursivo de revoluções sociais.
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angelina sinato