Parecer n°.: 1007/99
Processo n°.: 01.021124.97.3
Interessado: Auditoria do Município
Assunto:
Dispensa de apresentação de balanço patrimonial ou demonstrações
financeiras por microempresas em procedimentos licitatórios, com
previsão em ordenamento do Município (OS n°. 023/93), em confronto
com o art. 179 da CF.
DISPENSA
DE
APRESENTAÇÃO
DE
BALANÇO
PATRIMONIAL
E
DE
DEMONSTRAÇÕES
CONTÁBEIS
E
FINANCEIRAS PARA MICROEMPRESAS EM
PROCEDIMENTOS
LICITATÓRIOS.
PREVISÃO EM REGRAMENTO MUNICIPAL.
POSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO ART.
179 DA CF.
Cuidou-se originariamente de consulta formulada pela
Auditoria do Município sobre as normas que tratam da dispensa da apresentação de
balanço patrimonial e demonstrações contábeis de microempresas. O questionamento
visava à interpretação das regras do art. 31 do estatuto de licitações e do art. 179 da CF,
conjugados com a O.S. n°.: 23/93, uma vez que esta permite a dispensa da apresentação
de balanço e demonstrações financeiras das microempresas em procedimentos
licitatórios realizados pelo Município. A partir da análise então realizada, cujo conteúdo
reproduzo a seguir, por solicitação da CAJ e da própria Auditoria, é transformada em
parecer.
1A nova lei 9.648/98 modificou vários ítens da lei de
licitações, sem, entretanto, alterar especificamente os requisitos de habilitação, com
exceção do §2° do art.32, permitindo, a partir de então, nas hipóteses indicadas, que o
cartão de cadastro (no caso do Município, o CESO) tenha maior eficácia substitutiva
que a prevista na norma ab-rogada. Afora isto, para efeitos da hipótese aventada, nada
mudou.
2Antes de enfrentar a questão posta pela Auditoria, releva
observar que parte do tema já foi objeto de análise pela ELC há algum tempo, em
manifestação do Dr. Jorge Augusto, onde a conclusão foi, em resumo, que as
microempresas não necessitavam apresentar, para efeitos de habilitação, o balanço
patrimonial, porquanto estariam elas, por força da lei 7256/84, art.15, dispensadas de
escrituração. Daí que o cadastro, assim, se limitaria a exigir os demais ítens, exceto o
chamado balanço, eis que, no entender do colega, seria dispensável.1 O mesmo tema em parte - foi recentemente discutido em manifestação deste procurador, por
provocação, desta vez, do órgão implantador do sistema de registro de preços do
Município. Em última análise, a matriz do entendimento então esposado decorria dos
termos do art. 179 e 170 da Constituição. Por pertinência à hipótese, reproduzo, a
seguir, e antes de analisar o tema proposto, as considerações já feitas naquele
expediente.
3A par daquelas observações, acrescentava-se que, na
verdade, nada havia acontecido. Isto é, continuavam as microempresas dispensadas da
apresentação de balanço patrimonial, já por força, inclusive, de normatização municipal:
a própria OS n°. 023/93, que especificava os indicadores contábeis para fins de
verificação da situação financeira de empresas participantes de procedimento licitatório,
expressamente dispensa tal apresentação.2 Tudo, ainda, em decorrência das regras
constitucionais mencionadas.
4A julgar pelas não raras incursões pelo tema, mormente
pelas Secretarias, essa ordem de serviço tem passado ao largo. No entanto, de longa data
a questão já havia sido enfrentada (e com acerto) pela Auditoria. A conclusão da
consulta era a de que as microempresas não necessitam apresentar demonstração
contábil para efeitos de cadastramento ou de habilitação, já que não seria o cadastro
quem exigiria mais do que a lei ou mesmo da própria fase qualificatória de um
procedimento licitatório.
Em última análise, o balanço patrimonial serviria para, em
tese, indicar a saúde financeira do licitante para fins de garantia satisfatória (mínima) à
execução do futuro ajuste. O inciso I do art. 31 do estatuto regente diz que tais provas
deverão ser apresentadas já exigíveis na forma da lei. Importa dizer, pois, que a forma
societária deverá nortear a exigência da apresentação de balanço. De fato, por exemplo,
a lei das sociedades anônimas3 impõe o modo de sua apresentação para tal tipo de
sociedade. Daí que, penso, se deverá buscar nas várias leis que determinam as formas e
constituições societárias o modo como será exigido o balanço e a sua forma de
apresentação. Não se encontrando leis especiais, a regra geral, parece-me, deve ser dada
pelo próprio Código Comercial.
Para a hipótese das microempresas, somados ao fato da
inexistência de escrituração contábil a já impedir a formação de balanço aos moldes que
se pretendia exigir, tem-se a norma constitucional do art. 179, que visa, na expressa
1
- em anexo
- Diz o inciso III do conjunto normativo municipal que “III- As microempresas serão isentas da apresentação do
Balanço Patrimonial e demais demonstrações contábeis, em virtude de estarem dispensadas de escrituração contábil.
Portanto, a utilização destes indicadores não se aplica as mesmas.”
3
- Lei 6.404/76, art.132
2
dicção da regra, a dar tratamento jurídico diferenciado, simplificado e favorecido às
micro e às empresas de pequeno porte. Enfim, reduzir ou eliminar obrigações
administrativas. Vários conjuntos normativos seguiram esta orientação.4 Seguindo o
desiderato do dispositivo constitucional e do art.118 da lei de licitações, veio o Dec.
Municipal 10.213/92 estabelecendo exigências para o microempresário habilitar-se em
tomada de preços. Com o advento da lei de licitações somou-se requisitos, mas ainda,
parece-me, permaneceu a microempresa dispensada da demonstração contábil.
Uma observação, porém, fazia-se quanto ao alcance que,
às vezes, se pretendia dar aos requisitos de qualificação dados pela lei 8.666/93. É que é
freqüente a aparente contradição que alguns observam entendendo que, ao dispensar as
microempresas, se estaria afrontando o princípio da competição ou da isonomia.
Definitivamente não. É justamente o contrário, na medida em que se trata desigualmente
os desiguais. E é, ao que tudo indica, o que busca a norma constitucional. Em outras
palavras, visa exatamente à isonomia. De outra parte, também sem propósito as
objeções de que as microempresas teriam desmedida vantagem em não apresentar os
balanços contábeis. A questão aí envolve o objeto da licitação.
Quer-se dizer: ninguém submeterá a competição pública
objeto complexo, de valor considerável, sem ter garantias mínimas, antes mencionadas,
de execução satisfatória do futuro contrato. Caso em que é evidente que microempresas,
assim exigindo o objeto, não poderão participar, visto, então, as exigências que, por
certo, serão feitas no edital e que naturalmente (e juridicamente lícitas) impedirá a
participação no certame. Não vai aí nenhuma violação à isonomia ou ao princípio da
competitividade. Não há, pois, nenhuma ilegalidade de, em determinados
procedimentos, ser vedada a participação de microempresas, pela óbvia razão da
impossibilidade de elas atenderem à realização do objeto posto em disputa. Tem-se de
não perder de vista o mínimo de razoabilidade.
5Voltando à questão então formulada, tinha-se que, por
força da norma constitucional e do regramento municipal, tal tipo societário está
dispensado de apresentação de balanços patrimoniais ou contábeis. Ressalta-se que, se
caso for, inclusive para o fim de enfatizar a vontade da Administração, este tratamento
jurídico diferenciado poderá vir não em forma de ordem de serviço (ato ordinatório por
excelência), mas como ato normativo (decreto), ou mesmo através de lei, por força do
próprio art. 179 da CF.
6Feitas essas observações, porquanto também refletem no
que buscava ver esclarecido a Auditoria-consulente, e retomando-se o teor da consulta
então apresentada, o primeiro aspecto a considerar é o fato de a lei 8.666/93 não poder
dispor de modo contrário à Constituição, pena de inconstitucionalidade. Daí que a regra
do art.179 da CF não é afastada pelo art. 31 da lei de licitações. Ambas coexistem
4
- Lei 7.256/84, Dec. 90.880/95, Lei 9.317/96, MP 1.638-3/09.04.98, Lei 8.864/94
pacificamente no sistema, com eficácias plenas e gerando obrigações jurídicas, apenas
que distintas.
7Embora a matéria não seja tão singela e tendo em conta
que o propósito aqui é outro, grosso modo é possível dizer-se que tanto a norma do art.
170 como a do art. 179 da Carta Política, são normas de eficácia limitada, quer porque
expressam princípios institutivos ou organizativos, quer porque são declaratórias de
princípios programáticos5 e porque legam aos “órgãos” do Estado o exercício de
determinadas condutas jurídicas.6 Regras que traçam “ ... os princípios para serem
cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos),
como programas das respectivas atividades, visando à realização fins sociais do
Estado.”7 Não podendo a Constituição ou o constituinte regular tudo diretamente, dá ele
aos demais órgãos do Estado a tarefa de desenvolver princípios já definidos na própria
norma.
8Neste particular, o tratamento privilegiado das
microempresas adveio porque cumprem especial tarefa no desenvolvimento econômico
do Estado, na medida em que, entre outras finalidades, são ‘absorvedoras de mão-deobra’.8 Cuida-se para evitar que caiam na economia informal.9 Este foi o entender do
legislador constituinte, cujo final veio em forma de regra principiológica. E, no caso,
são várias as formas pelas quais se poderá prescrever tratamento jurídico diferenciado às
microempresas. Uma delas é seguramente a dispensa de apresentação de balanço
contábil em sede de procedimento licitatório, conforme posto pela Ordem de Serviço
23/93.10
E, como assinalado, tal tratamento privilegiado não
encontra óbice na lei de licitações, exatamente porque não poderia haver vedação pela
lei infraconstitucional, visto que a permissão deriva de norma constitucional. Esta
espécie de norma tem, ademais, o efeito11 de prescrever à legislação ordinária uma via
a seguir; não conseguem constranger, juridicamente, o legislador a seguir aquela via,
mas o compelem, quando nada, a não seguir outra diversa. Seria inconstitucional a lei
que dispusesse de modo contrário a quanto a constituição comanda. E, além disso, uma
vez dada execução à norma constitucional, o legislador ordinário não pode voltar
atrás.12
5
- Cf. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, José Afonso da Silva, 2ª Ed., RT, 1982, pág. 106 e segs.
- “Normas que, em vez de regular, desde o primeiro momento de modo direto e imediato, determinadas situações e
relações (a que se referem), regulam comportamentos públicos destinados, por sua vez, a incidir sobre ditas matérias,
isto é, estabelecem aquilo que os governantes deverão ou poderão fazer (e, inversamente, pois, aquilo que não
poderão fazer) relativamente aos assuntos determinados”. Vezio Crisafulli, La Costituzione e le sue Disiposizioni di
Principio, pág.19, citado por José Afonso da Silva, pág. 129.
7
- idem Ob.Cit., pág. 129
8
- Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, vol. 7°., pág. 187.
9
- Idem Ob.Cit., pág. 188, observações do autor.
10
- “... O tratamento jurídico diferenciado é multifário, porque alcança, numa visão genérica, vários campos de
proteção e benefícios. Num momento, objetiva a simplificação de procedimentos, ou até a sua dispensa...” A Ordem
Econômica e Financeira e a Nova Constituição, Tupinambá M. C. do Nascimento, Aide, págs. 64/65.
11
- notabilíssimo, na expressão de José Afonso da Silva, Ob. Cit., pág. 141
12
- Balladore Pallieri, Diritto Costituzionale, pág. 322, citado por José Afonso da Silva, pág. 141, Ob. Cit.
6
A par de o art. 22, XXVII, dizer sobre a competência de a
União legislar sobre normas gerais em matéria de licitações, vem daí que também há
espaço para as demais esferas políticas legislarem sobre a matéria (abstraindo a
polêmica quanto à acepção jurídica de ‘normas gerais’ de que fala o artigo citado e qual
o alcance legiferante que caberia aos demais entes, visto que não é o propósito desta
manifestação).13 O certo, porém, é que, com maior razão, parece-me, quando a
“permissão” decorre de mandamento constitucional, como é o caso dispensado ao
tratamento jurídico que deveriam ter as microempresas.
9Por conclusão, entendo correto o procedimento até então
dispensado às microempresas pela ordem de serviço, não vendo contradições com a
norma constitucional ou às infraconstitucionais da lei de licitações. Reparo, entretanto,
como já salientado em tópico anterior, inclusive para o fim de enfatizar a vontade da
Administração, que tal tratamento jurídico diferenciado poderia vir não em forma de
ordem de serviço (ato ordinatório por excelência), mas como ato normativo - estrito
senso.
É o parecer.
À consideração superior.
Em 05/02/99
Rogerio Scotti do Canto
Procurador do Município
13
- Foge do propósito da análise, neste caso, discorrer acerca de até aonde poder-se-ia legislar; o certo, porém, é que
pode, embora com pouca margem, aos demais entes federativos reservas para tanto - Veja-se Marçal J. Filho,
Comentários, pág. 12 e segs. Também, conferir Adilson Abre Dallari, Aspectos Jurídicos da Licitação, Saraiva,
1992, págs. 10 e segs., bem como Carlos Ayres Britto, O Perfil Constitucional da Licitação, ZNT, 1997, págs. 14 e
segs.
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PARECER Nº 1007/1999