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Patrimônio
Patrim nio Cultural: tensões
tens es e disputas no contexto de uma nova ordem
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discursiva.
Regina Abreu2
Apresentação
Apresenta o
Inicialmente gostaria de qualificar o lugar de onde estou falando. Venho me
dedicando nos últimos anos a estudos e pesquisas no campo da Memória Social,
atuando num Programa de Pós-Graduação voltado para este tema na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro -UNIRIO. Desse modo, o meu enfoque é o de
uma antropóloga pesquisadora de uma linha de pesquisa em Memória e Patrimônio.
Assim, não estou me colocando como agente formuladora ou implementadora de
políticas no campo do Patrimônio Cultural. Vou me permitir, portanto, tecer
algumas reflexões de ordem conceitual e teórica sobre a própria noção de
Patrimônio Cultural e sobre o papel da Antropologia e o lugar dos antropólogos
neste debate.
Memória
Mem ria Social: concepção
concep o ccíclica
clica e linear do tempo
O campo de estudos e pesquisas sobre a Memória Social tal como formulado pela
Escola Sociológica Francesa, em especial por Maurice Halbwachs, introduziu a
questão de que em todas as sociedades verifica-se a dinâmica entre lembranças e
esquecimentos, ou seja, de que todas as sociedades precisam lembrar de umas
coisas e esquecer outras tendo em vista a necessidade de atualização permanente
dos laços sociais. Do ponto de vista das Ciências Sociais, a Memória Social está,
pois, indissoluvelmente ligada ao aspecto holista da sociedade, ao que o
antropólogo Louis Dumont qualificou de "communitas" - a feição de agregação entre
os indivíduos no espaço e no tempo.
Entretanto, nem todas as sociedades articulam-se do mesmo modo com a Memória
Social. Diferentes concepções de tempo produzem diferentes maneiras de trabalho
da memória. Nas sociedades ocidentais modernas, o tempo é concebido enquanto
um contínuo progressivo com um passado, um presente e um futuro. Nas
sociedades chamadas tradicionais, o tempo é representado como o resultado de
uma espessura e uma densidade espaciais, um tempo de eterno retorno, ou tempo
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Comunicação apresentada originalmente no Simpósio ANT.21 “Patrimônios culturais e identidades
em contextos transnacionais: uma visão comparativa”, coordenado por Gonçalves, Jose Reginaldo S.
(UFRJ) e Abreu, Regina (UNIRIO), no âmbito do 52º Congresso Internacional de Americanistas Povos e Culturas das Américas: diálogos entre globalidade e localidade.
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Regina Abreu é professora adjunta de Antropologia Cultural do Departamento de Filosofia e
Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. Autora, entre
outros livros, de "A fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil"
(Rocco, 1996).
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cíclico, relacionado à observação dos fenômenos da natureza, onde privilegia-se
fases sucessivas e regulares. Em muitas sociedades, a primeira medida do tempo
associa-se à observação das fases da lua – aparecimento, crescimento,
decrescimento, desaparição seguida de reaparição. Esta concepção de tempo
implica por vezes a lembrança de mundos paralelos que convivem entre si, como
ocorre entre os índios Waiãpi, do tronco tupi, que vivem no Amapá, e que acreditam
na existência de três mundos paralelos sendo atualizados permanentemente. Alguns
de seus mitos e rituais estão voltados à manutenção de uma ordem necessária entre
estes três mundos.
Pois bem, em termos muito simplificados, poderíamos explicitar pelo menos duas
grandes tendências de concepção do tempo: a linear e a cíclica. Enquanto a
concepção de tempo linear está diretamente associada à noção de história, que no
Ocidente moderno vai ser objeto de todo um aparato técnico e metodológico
específico diretamente relacionado à idéia moderna de ciência, por outro lado, a
concepção cíclica de tempo está mais diretamente associada ao contexto míticoreligioso.
No caso da concepção linear, os registros escritos e, especialmente, as noções de
documento e monumento desempenham papel central. No caso da concepção
cíclica, predominam as narrativas orais e a memória social é construída por meio de
festas, narrativas míticas, cerimônias e rituais.
A concepção linear de tempo pode ser representada por uma flecha ou uma linha: a
linha do tempo cronológico, histórico, datado. Na linha do tempo, é possível situar
um ponto do passado longínquo: o início da História da Humanidade, das
civilizações, da nossa sociedade, os fatos políticos e econômicos que marcaram
acontecimentos históricos, e ainda o ano de nascimento de cada um de nós. De
forma bem precisa, expressa por um número que aumenta a cada ano, a concepção
linear de tempo é representada de forma crescente na linha do tempo, passando
pelo presente (no qual vivemos) e partindo indefinidamente em direção ao futuro
que desconhecemos.
A concepção linear é também assimétrica: os acontecimentos históricos ocorrem de
forma e em tempo imprevisíveis. Enquanto na concepção cíclica do tempo os
acontecimentos são reversíveis e repetitivos, na concepção linear, os
acontecimentos são considerados históricos, ou seja, definitivos e irreversíveis. A
noção da inevitabilidade das mudanças e transformações é moeda-corrente no
Ocidente moderno. Como assinalou Walter Benjamin, o jornal da véspera serve
apenas para embrulhar o peixe no dia seguinte, ou seja, as notícias ficam velhas na
velocidade de um dia. O acontecimento é rápido e fugaz como o minuto de fama
proposto por Andy Warol.
Vale a pena lembrar que embora diferentes, estas duas concepções de tempo não
são excludentes. Cada vez mais, com o contato freqüente entre as culturas,
3
diferentes concepções de tempo passam a conviver sem que haja obrigatoriamente
a exclusividade de uma concepção determinada. Assim, o que ocorre é o privilégio
de uma concepção que emerge como a dominante. A sociedade ocidental moderna
privilegia a concepção de tempo linear, tendo absorvido muitas contribuições de
outras concepções de tempo, entre elas a cíclica. Os calendários, os relógios, as
estações, os meses, as semanas, os dias, por exemplo, representam durações
previsíveis e, portanto, próprias do tempo cíclico. Por outro lado, há diversas
manifestações culturais sagradas e profanas que continuam a ser organizadas
segundo orientações da concepção de tempo cíclico, como as festas populares, em
especial o carnaval.
É preciso, no entanto, sublinhar e chamar a atenção que a dominação e o privilégio
de uma concepção de tempo sobre outras pressupõe conflitos, disputas e um jogo
significativo de ganhos e perdas. É neste sentido que o sociólogo Michael Pollack
entende o campo da memória social como um campo de permanentes disputas que
incidem diretamente sobre a dinâmica entre a lembrança e o esquecimento.3 Só
para citar um exemplo dramático, no tempo em que Cabral desembarcou em nosso
continente, havia em território brasileiro mais de 1.000 línguas faladas por
diferentes sociedades indígenas. Hoje, apenas 180 sobreviveram. O antropólogo
José Ribamar Bessa Freire que estuda o processo de ensino da língua geral e do
português no Brasil colonial recolheu depoimentos onde se verifica a
institucionalização da tortura para aqueles que se obstinavam a manter sua língua
materna, recusando-se a aprender a língua do colonizador. Para que ocorresse no
Brasil esta grande unificação linguística do português, um dos pilares de construção
da identidade nacional, fêz-se uso da força e da violência. Ou seja, para fazer
lembrar é também preciso fazer esquecer.
Noção
No o de Patrimônio
Patrim nio
A noção de Patrimônio, com a qual nos habituamos, como se ela sempre tivesse
existido em todo o tempo e lugar, está diretamente relacionada a uma concepção
linear de tempo.
Inversamente, nas sociedades onde predomina a concepção cíclica do tempo, a
memória está disseminada no tecido social. Como assinalou Pierre Nora, as
sociedades tradicionais são sociedades-memória por excelência. Nelas não é
necessário guardar objetos ou fazer registros de qualquer ordem. As festas, os
rituais, os cânticos, as narrativas míticas que se repetem dia após dia
desempenham esta função de fazer lembrar para o grupo suas tradições mais
importantes. Nestas sociedades, com forte capital de memória, não há um sentido
de guarda, armazenamento ou preservação de objetos, assim como não há o sentido
que conhecemos de herança. Só para citar um exemplo, entre os índios Waiãpi,
quando uma pessoa morre, toda a família abandona a casa com os seus objetos pois
3
Ver Pollack, Michael. "Memória, esquecimento, silêncio", in: Revista Estudos Históricos, n. 3, RJ,
Ed. Vértice, 1989.
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acredita-se que o espírito do morto precisará voltar para aquela casa e fazer uso dos
objetos. Os vivos devem procurar outro lugar para morar, construir outras casas,
fabricar novos objetos. Assim, o sentido de herança que atribuímos à categoria
patrimônio não faria o menor sentido entre os Waiãpi. Por outro lado, os objetos
muitas vezes são vistos como seres análogos aos seres vivos. As casas reproduzem o
corpo humano, os objetos são extensões das pessoas e, como as pessoas, são vivos e
vão morrer um dia.
Desse modo, é importante salientar que a noção de Patrimônio foi formulada no
contexto da sociedade ocidental moderna e que está diretamente ligada a uma
noção de herança particular que pode não fazer sentido em outros contextos.
Entretanto, é também importante salientar que a noção de Patrimônio, como ocorre
com o campo da linguagem, é uma noção dinâmica, onde diferentes significados vão
se justapondo no embate entre políticas de lembranças e de esquecimentos.
A emergência da noção de Patrimônio, com o sentido que conhecemos hoje
enquanto um bem coletivo, um legado ou uma herança artística e cultural onde um
grupo social pode se reconhecer enquanto tal, foi lenta e gradual.4 Na França, o
significado da noção de Patrimônio se estende pela primeira vez para as obras de
arte e para os edifícios e monumentos públicos no período imediatamente posterior
à Revolução Francesa, quando a população tomada pelo sentimento revolucionário
destruía os vestígios do Antigo Regime. A população ensandecida chegava a propor
a destruição de bibliotecas públicas. Foi neste momento que alguns intelectuais
começaram a chamar a atenção para a perda significativa que se processava. A
noção de Patrimônio afirma-se em oposição à noção de Vandalismo. Desencadeia-se
uma mobilização salvacionista de obras consideradas imprescindíveis para a nação.
A idéia de Patrimônio Nacional delineia-se. Visando conter o fanatismo provocado
pelos ânimos revolucionários, são promulgados alguns decretos em defesa do
Patrimônio público. No ano de 1794, surge a figura do crime contra o patrimônio,
quando alguns intelectuais chamaram a atenção de que a destruição dos
monumentos artísticos era também um crime contra o povo. Este é o ponto de
partida para uma política do patrimônio na França, cujos objetivos consistiriam em
inventariar, ou seja; identificar, reconhecer e inscrever no contexto da propriedade
nacional, as obras consideradas imprescindíveis para a nação.
O exemplo da França toma a dimensão de um movimento que se processaria por
toda a moderna sociedade ocidental. O significado da noção de Patrimônio estaria a
partir de então indissoluvelmente relacionado à formação dos Estados nacionais. As
nações passam a construir e inventar seus patrimônios: bibliotecas, museus,
monumentos, obras de arte e todo um acervo capaz de expressá-las e objetificá-las.
Este movimento se dá paralelamente à aceleração da vida cotidiana, ao surgimento
das metrópoles, à intensificação das comunicações e do transporte urbano. Enfim,
4
Ver: Chastel, André. "La notion de Patrimoine", in: Nora, Pierre (dir.) Les Lieux de Mémoire, Paris,
Gallimard, 1986.
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uma série de movimentos que acirram o desmapeamento de indivíduos projetados
para um incerto futuro numa sociedade incapaz de processar no tecido social um
capital de memória. Como assinalou Pierre Nora, para sociedades sem memória era
preciso que fossem criados os lugares de memória. O Patrimônio Nacional é o lugar
de memória por excelência uma vez que não apenas é capaz de expressar e sediar a
Memória Nacional, mas sobretudo, de objetificá-la, materializá-la em prédios,
edifícios, monumentos que podem ser olhados, visitados, percorridos. O Patrimônio
Nacional consegue a proeza de estancar um tempo veloz e referenciar os indivíduos
sobre as lembranças heróicas das nações modernas e sobre suas próprias
lembranças. Um conjunto de narrativas irá se sobrepor a todo este grande acervo do
Patrimônio Nacional: narrativas nacionais, regionais, locais, familiares.
Enfim, a Memória Social podia fazer o seu trabalho. Deslocada da vida cotidiana de
seres projetados para o futuro, ela encontrava abrigo em um Patrimônio que
começava a ser tombado e protegido da ação destruidora do tempo e dos homens.
Segundo declaração do Presidente da Comissão das Artes na França de 1793,
Jean-Baptiste Mathieu, com o Inventário e a Proteção do Patrimônio Nacional
enunciava-se "de forma eloquente o poder destes objetos que a história consulta,
que as artes estudam, que o filósofo observa, que nossos olhos amam fixar em razão
de uma espécie de qualidade que deles emana: sua ligação com o passado".
A associação do Patrimônio Nacional a um passado glorioso difunde-se por todo o
Ocidente. A noção de um Patrimônio Histórico e Artístico Nacional completa este
movimento. No Brasil, a inserção desta temática na pauta das elites políticas e
intelectuais começa a tomar vulto já no início do século XX. Até então, nossas elites
estavam muito mais preocupadas com a modernização das cidades do que com a
recuperação de fragmentos do passado. Progresso e civilização foram as palavras de
ordem que mobilizaram as forças produtivas e o imaginário monárquico e
republicano até o início do século XX. A posição particular do Brasil enquanto país
periférico sedento de figurar entre as grandes nações do Ocidente impedia a
emergência de qualquer pensamento preservacionista ou restaurador de coisas do
passado. A Reforma Urbana do Rio de Janeiro no início do século é exemplar neste
sentido. Ao demolir sem piedade os vestígios de uma cidade colonial, o Prefeito
Pereira Passos ficou conhecido como "Bota Abaixo".
Entre as primeiras vozes dissonantes contra as freqüentes demolições de prédios
públicos e o pouco caso dos governos com relação a acervos de objetos vinculados à
História do Brasil estava o escritor Gustavo Barroso que em 1922 fundou o Museu
Histórico Nacional após uma longa campanha pelos jornais defendendo a
importância de preservar objetos históricos emblemáticos. Num desses artigos, dizia
ele: "Ainda era tempo"duma ação salvadora de se realizar a fundação dum
verdadeiro Museu Histórico no qual se pudesse reunir, para ensinar o povo a amar o
passado, os objetos de toda a sorte que ele representa". Outro artigo assinalava: "O
Brasil precisa de um Museu onde se guardem objetos gloriosos, mudos
companheiros dos nossos guerreiros e dos nossos heróis".
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A idéia de que uma nação moderna deveria respeitar e cultivar o seu passado era
também expressa por um colaborador de Barroso, Graça Junior, que, em 1919,
publicou um folheto intitulado "Da Comemoração da Grande Data Nacional. Uma
idéia útil e prática": "Pode-se bem aferir da cultura e da coesão nacional de um povo
pelo maior ou menor fervor com que esse mesmo povo cultiva as suas grandes datas
históricas e venera os vultos notáveis que mais têm contribuído para a prosperidade,
para o progresso e para a grandeza da pátria."
Pois bem, "cultivar as datas históricas", "venerar os vultos notáveis" da história
nacional passava a ser o lugar por excelência de construção de uma narrativa
nacional capaz de agregar o conjunto da nação em torno dos ideais de modernidade
e civilização.
A idéia de que o Brasil tinha um passado era reiterada. Começava a surgir entre
setores da intelectualidade uma consciência da importância em se preservar objetos
e edifícios públicos capazes de referenciar a história do país. Fatos como a
derrubada do Morro do Castelo, em 1922, berço da ocupação da cidade, já não
passavam desapercebidos provocando acirradas polêmicas.5
O Museu Histórico Nacional, ao lado de outras agências como o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, abrigou historiadores e profissionais de museu, chamados na
época de "conservadores" que se dedicaram a produzir documentos, em muitos
casos monumentalizados, da História do Brasil. As atividades do museu perduraram
até os nossos dias reunindo um dos maiores acervos históricos da América Latina
que vêm sendo sistematicamente pesquisado e divulgado, acompanhando o
movimento da produção de conhecimento na área.
Há que se registrar ainda no final do século XIX e início do século XX, alguns nomes
precursores do que hoje chamamos de "patrimônio intangível ou imaterial", figuras
muito atuantes no campo literário e que se dedicaram a registrar um conjunto de
manifestações locais e regionais em desaparecimento, tais como lendas, contos,
poemas, festas e celebrações. Entre eles, estava Sílvio Romero, José Veríssimo,
Araripe Júnior, Euclides da Cunha, Afonso Arinos. O próprio Gustavo Barroso
escreveu alguns importantes títulos do folclore nacional, como o livro Terra do Sol.
Entretanto, neste período, o folclore não era nem de longe associado ao tema do
patrimônio. A noção de patrimônio ficava restrita a objetos de cultura material. Mas,
tanto no caso de uma política de salvaguarda dos acervos e edifícios históricos,
quanto no caso da atribuição pelos escritores de um valor para um folclore em
desaparecimento estava implícita o que meu colega José Reginaldo Gonçalves
sintetizou na feliz expressão de "retórica da perda". Ou seja, a idéia de que algo
5
Para um descrição detalhada da fundação do Museu Histórico Nacional e de fato como a derrubada
do Morro do Castelo, ver: Abreu, Regina. A Fabricação do Imortal, RJ, Lapa, Rocco, 1996
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estava se perdendo e de que era preciso um esforço para salvar do esquecimento
referências importantes para a construção da memória social e, com especial ênfase
da memória nacional.
Bem, talvez o resto da história seja mais conhecido. Durante o Estado Novo, quando
era Ministro da Educação Gustavo Capanema, a questão do Patrimônio se
institucionaliza. Tendo à frente Rodrigo Melo Franco de Andrade, é criado o Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O decreto-lei n. 25 de 30 de novembro
de 1937 instituía o tombamento, uma medida de proteção legal de bens móveis e
imóveis, capaz de conter as demolições de edifícios públicos, considerados
referências para a memória nacional. Os tempos de Capanema e de Rodrigo Mello
Franco de Andrade foram tempos heróicos, onde um grupo de verdadeiros
missionários se dedicou a percorrer o Brasil realizando um grande inventário de
bens a serem preservados e tombados. Graças a este esforço heróico, todo um
passado colonial em vias de desaparecimento foi resgatado. Obras de artistas
singulares como Aleijadinho foram preservadas, bem como as igrejas barrocas de
Ouro Preto.
O trabalho iniciado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em
1937 foi importante não apenas para a implementação e consolidação de uma
política pública, de âmbito federal, de construção de referências materiais para a
memória nacional. Mais significativa ainda foi a disseminação do conceito de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não apenas para outras esferas do poder
público como também para outros domínios da sociedade civil. Uma mentalidade
patrimonialista começou a se desenvolver. Novas gerações de militantes do
patrimônio dentro e fora do Estado formaram-se na contramão da especulação
imobiliária e do comércio internacional ilícito de arte e de antiguidades. Ao longo de
todos estes anos, os governos estaduais e municipais formularam políticas próprias
de patrimônio, segmentos da sociedade civil encontraram respaldo para lutas
específicas contra a especulação imobiliária e a descaracterização de cidades, vilas
e povoados. Ainda que grande parte da população possa não ter incorporado
plenamente a mentalidade patrimonialista, há que se louvar o esforço heróico e as
importantes conquistas de profissionais e militantes do patrimônio nesta primeira
fase de funcionamento das agências.
A idenfificação, coleta, preservação, restauração de importantes edifícios públicos,
acervos de todo o tipo, telas, objetos de arte, monumentos, conjuntos arquitetônicos
constituíram esforços vitais para a fixação de paisagens e a proteção de objetos de
inegável valor histórico e artístico, disponibilizando para a sociedade brasileira a
própria capacidade de lembrar.
Em linhas gerais, a tradição implementada pelo SPHAN e levada a cabo nas gestões
que se seguiram - Fundação Nacional Pró-Memória, IBPC, IPHAN – ficou
fortemente associada, em primeiro lugar, a objetos de todo o tipo – ou seja, à
cultura material - ; em segundo lugar, à valorização do passado e, em terceiro lugar,
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ao tema do nacional. Ainda que a partir deste trabalho outras narrativas possam ter
se esboçado – narrativas locais, regionais, étnicas -, o grande saldo da política
iniciada por Rodrigo Mello Franco de Andrade foi, para usar a expressão de Richard
Handler, a objetificação da idéia de nação. Somos um país porque temos uma
história, e esta história está documentada em monumentos, prédios, objetos, coisas.
O conceito antropol
antropológico
tropol gico de cultura
Paralelamente, ao longo da segunda metade do século XX, um outro movimento se
esboçava. A difusão internacional do conceito antropológico de cultura começava a
ganhar expressão, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial.
O trauma do pós-guerra incitou os intelectuais a buscarem uma saída de construção
permanente da paz entre os povos. A noção de cultura, tal como formulada pelos
antropólogos culturais, na tradição de Franz Boas e Bronislau Malinowski, trazendo
em seu bojo as noções correlatas de diversidade, valorização da diferença,
contextualização, relativização, emerge como solução adequada na luta contra o
racismo, o etnocentrismo, o evolucionismo e a hierarquização dos povos numa
história única e linear baseada em critérios de progresso e civilização.
Estimular estudos e pesquisas sobre a diversidade cultural no planeta, fomentar
encontros entre indivíduos de culturas diferentes, ensinar às crianças o respeito à
idéia de diferença cultural tornaram-se idéias correntes que culminaram, em 1947,
com a criação da UNESCO, órgão internacional com sede em Paris voltado para a
formulação de propostas e recomendações com vistas à difusão de ideais
humanistas e anti-racistas.6
Uma das medidas da UNESCO em seus primeiros anos de funcionamento foi
estimular a criação de comissões nacionais de folclore. Por meio do estudo,
pesquisa, salvaguarda e difusão internacional das manifestações folclóricas de cada
país acreditava-se fazer frente ao fantasma do racismo e suas conseqüências.
Foi na conjuntura do pós-guerra e de fundação da UNESCO que foi criada no Brasil
a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, muito atuante durante os anos de
1947 e 1964 e que estimulou a produção de importantes trabalhos sobre lendas,
costumes, mitos, rituais, festas, celebrações, saberes e modos de fazer artesanais,
culinária, música, arte e cultura popular.
Outra medida da UNESCO consistiu em convocar especialistas de Antropologia
Cultural, da Biologia, da Antropologia Física para estudos sobre o problema,
naquela ocasião ainda controverso, das diferenças raciais. O objetivo era difundir
6
Em sua Ata de constituição lê-se no preâmbulo: "A grande e terrível guerra que acaba de terminar
foi possível pela negação do ideal democrático de dignidade e de respeito à pessoa humana e pela
vontade de substituí-lo, explorando a ignorância e o preconceito, pelo dogma da desigualdade das
raças e dos homens".(Comas, Juan e outros (org.) Raça e Ciência, SP, Ed. Perspectiva, 1970, pág. 8)
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conclusões recentes das novas teorias científicas que colocavam por terra os velhos
teóricos racistas. Um dos resultados destes estudos consistiu numa coletânea
publicada na França e traduzida para o português sob o título "Raça e Ciência".
Nesta, o antropólogo Claude Lévi-Strauss estampava o texto que se tornou clássico
para os estudos antropológicos, "Raça e História". As conclusões de Lévi-Strauss
acerca da impropriedade da noção de desigualdade racial ao mesmo tempo que a
afirmação da necessidade de colaboração das culturas tornaram-se clássicas e
definitivas. Ainda hoje, ouvimos o eco de suas palavras reverberando em discursos
políticos e acadêmicos. Lévi-Strauss chamava a atenção para a necessidade de
preservar a diversidade das culturas num mundo ameaçado pela monotonia e pela
uniformidade.
"A necessidade de preservar a diversidade das culturas num mundo
ameaçado pela monotonia e pela uniformidade não escapou decerto às
instituições internacionais. Elas compreendem também que não bastará, para
alcançar esses objetivo, afagar tradições locais e conceder uma moratória aos
tempos passados. É o fato da diversidade que deve ser salvo, não o conteúdo
histórico que cada época lhe outorgou e que nenhuma poderia perpetuar
além de si própria. Cumpre, pois, escutar o trigo que germina, encorajar
todas as potencialidades secretas, despertar todas as vocações de viver junto
que a história mantém em reserva; cumpre também estar pronto a encarar
sem surpresa, sem repugnância e sem revolta o que todas essas novas formas
sociais de expressão não poderiam deixar de oferecer de inusitado. A
tolerância não é uma posição contemplativa, dispensando as indulgências ao
que foi ou ao que é. É uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em
compreender e em promover o que quer ser. A diversidade das culturas
humanas está atrás de nós, em torno de nós e diante de nós. A única
exigência que poderíamos fazer valer a seu respeito é que ela se realize sob
formas das quais cada uma seja uma contribuição à maior generosidade das
outras."7
O novo paradigma do conceito antropológico de cultura atravessa diferentes
domínios do campo intelectual e da vida social. Além de ser incorporado em
instituições específicas8, o conceito antropológico de cultura é apropriado em cursos
universitários nos contextos mais diversos. Um destes contextos é o das artes
plásticas. Uma nova noção de estética se esboça. A idéia de que a arte é também
uma manifestação cultural e de que as culturas são plurais e diversas altera os
cânones de consagração. Toda uma estética da chamada "arte popular" é invocada,
desequilibrando os padrões vigentes.
7
Lévi-Strauss "Raça e História", in"Comas, Juan e outros (org.) op. cit. Pág.269
Especialmente na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, posteriormente Instituto Nacional de
Folclore e hoje, Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
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Desse modo, não é por acaso que no campo do patrimônio tenha sido justamente
um artista e designer, Aloísio Magalhães, que, ao assumir a direção do IPHAN, em
1979, tenha proposto a associação do conceito antropológico de cultura às ações de
uma política pública para o patrimônio. Em contraste com a noção de patrimônio
histórico e artístico elaborada durante a gestão de Rodrigo Mello Franco de
Andrade, Aloísio Magalhães marca sua passagem pela instituição pelo ideal de
abarcar a diversidade cultural, religiosa e étnica no Brasil.
Em contaste com uma política que se notabilizou em proteger vestígios e
fragmentos do passado, o discurso de Aloísio Magalhães, pelo contrário, não
enfatizava o passado como fonte privilegiada para a construção de uma identidade
nacional. Para ele, seguindo o conceito antropológico de cultura, existiriam diversos
passados, tantos passados quantos os diferentes grupos sociais, étnicos e religiosos
existentes na sociedade brasileira. Aloísio Magalhães propunha uma visão projetiva
da história: ele acreditava que a identidade cultural brasileira ainda estava em
processo de formação. O passado devia ser levado em conta apenas na medida em
9
que tornava possível a continuidade deste processo.
A absorção do conceito antropológico de cultura iria naturalmente oxigenar o campo
do patrimônio no Brasil. Evidentemente, não se tratava de substituir a política de
proteção urbanística, paisagística e arquitetônica iniciada pelo antigo SPHAN, mas
de trazer novos elementos acompanhando os debates intelectuais internacionais.
Para isto, ele propunha a criação da Fundação Nacional Pró-Memória, que deveria
reunir três áreas: a do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; a do Centro
Nacional de Referências Culturais e o Programa das Cidades Históricas.
Entretanto, a morte prematura de Aloísio Magalhães, em 1982, seguida de uma
série de acontecimentos nefastos na política brasileira, principalmente durante a
passagem do governo Collor de Mello quando a instituição foi totalmente
descaracterizada, levou a uma crise sem precedentes nesta instituição pioneira. Até
hoje, técnicos e profissionais se ressentem do descrédito que a instituição vem
sofrendo ao longo destes anos. Sem uma política consistente de reforma do
aparelho burocrático e administrativo e sem contratação e qualificação de pessoal
pode-se dizer que o IPHAN perdeu o brilho e o lugar que lhe era atribuído no
passado. A instituição sobrevive em grande parte devido ao empenho de
funcionários dedicados que à despeito da precariedade das condições ainda vêem
no IPHAN um importante bastião na luta pela proteção dos bens tombados contra a
especulação imobiliária.
De qualquer modo, o importante a assinalar é que dos anos setenta para cá, dentro
e fora do IPHAN, firmou-se uma mentalidade em prol da defesa da diversidade
9
Sobre este ponto ver: Gonçalves, José Reginaldo S. "O jogo da autenticidade: nação e patrimônio
cultural no Brasil", in: Caderno de Debates n. 1 – Ideólogos do Patrimônio Cultural - , RJ, IBPC,
1991.
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cultural. Esta mentalidade vem permeando instituições do Estado, agremiações da
sociedade civil, escolas e universidades. E, também fora do Brasil, em diversos
países do Ocidente, pode-se dizer que o conceito antropológico de cultura firmou-se
como condutor de iniciativas relativas ao patrimônio, consagrando a noção de
patrimônio cultural.
O panorama atual
E hoje? Qual o panorama que se configura no cenário das ações voltadas para o
patrimônio cultural? Quais as funções que cabem a um profissional voltado para
este setor? Qual o papel da Antropologia e qual o lugar do antropólogo neste
debate?
Sem pretender esgotar o assunto, gostaria de enumerar alguns fatores que a meu
ver vem desenhando neste início de milênio um novo quadro para as ações do
patrimônio.
Em primeiro lugar, como já mencionei anteriormente, a própria noção de patrimônio
foi absorvida por diversos segmentos sociais. É claro que ainda há muito a fazer
neste sentido, mas se pensarmos em termos de formação de mentalidades num
tempo de longa duração, o século XX pode ser lido como aquele em que se
construiu uma mentalidade de patrimônio no país. Mesmo que ela permaneça por
vezes restrita à compreensão de certas ações, mesmo que ela não se capilarize por
toda a sociedade, a mentalidade do patrimônio existe. A grande maioria da
população entende por exemplo que é preciso preservar as igrejas barrocas de Ouro
Preto ou as chamadas cidades históricas.
Do mesmo modo, e este dado me parece muito significativo, o conceito
antropológico de cultura vem atravessando diferentes segmentos sociais. E eu diria
mesmo com uma velocidade impressionante. A noção de que as culturas devem ser
valorizadas em suas singularidades tornou visível no final do século XX uma
pluralidade de grupos e interesses que até então permaneciam ou à margem da
sociedade ou sobrevivendo sob a tutela do Estado. Ceramistas, capoeristas,
jongueiros, festeiros dos santos reis, carnavalescos, sambistas, artesãos,
xilogravuristas, enfim, artistas dos mais variados matizes além de grupos religiosos,
associações de folclore, comunidades diversas, grupos indígenas vêm entrando no
debate do patrimônio cultural de maneira firme e decisiva.
Novas formas de organização da sociedade civil, como as organizações não
governamentais, ampliam as possibilidades de participação. Neste novo cenário, o
Estado, seja nos âmbitos federal, estadual ou municipal, já não atua sozinho na
identificação e seleção dos bens culturais a serem protegidos, tombados ou
valorizados. Cada vez mais, é preciso ouvir a sociedade civil, estabelecer parcerias,
acordos, compromissos.
12
Em segundo lugar, o trabalho empreendido em todos estes anos pela UNESCO
estimulou novas idéias e propostas de políticas de preservação. Experiências
retiradas de outros contextos internacionais foram veiculadas, oxigenando o debate
em cada país. Uma destas experiências singulares diz respeito ao modelo japonês
de política patrimonial voltado para a preservação do "saber-fazer". Desde os anos
cinquenta do século passado, este país possui uma legislação específica voltada ao
estímulo da transmissão do "saber-fazer" incentivando grupos e pessoas que são
guardiães de tradições culturais relevantes. Esta ação gerou um programa de
incentivo à transmissão do conhecimento intitulado Sistema de Tesouros Humanos
Vivos, divulgado pela UNESCO e apropriado por outros países, entre eles a França.
Neste programa prevê-se que o detentor de um conhecimento raro e singular forme
discípulos atualizando a cadeia de transmissão e evitando que conhecimentos raros
e singulares desapareçam.
No Brasil, o Conselho Curador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais aderiu a este programa concedendo a titulação de "Mestre das Artes
de Minas Gerais" àqueles que são percebidos pela própria comunidade dos artistas
como artesãos exímios e notáveis.10
Uma outra iniciativa desencadeada pela UNESCO foi a criação do Programa
Nacional de Patrimônio
Patrim nio Imaterial,
Imaterial criado pelo Decreto Federal n. 3551, de 4 de
agosto de 2000. O decreto instituiu dois mecanismos de valorização dos chamados
aspectos imateriais do patrimônio cultural: o inventário
invent rio dos bens culturais
imateriais e o registro daqueles considerados merecedores de uma distinção por
parte do Estado. São considerados bens culturais imateriais, as festas, celebrações,
narrativas orais, danças, músicas, modos de fazer artesanais, enfim, um conjunto de
expressões culturais que não estão representadas pelo chamado patrimônio tangível
ou de "pedra e cal".
Há um grande debate sinalizando a improcedência desta dicotomia entre o material
e o imaterial no seio da noção de cultura. Entretanto, esta dicotomia tem sido
mantida uma vez que nos artigos 215 e 216 da Constituição de 1988 está prevista
a proteção aos bens culturais de natureza imaterial. Logo, por razões operacionais
esta divisão conceitual entre bens culturais de natureza material e os de natureza
imaterial tem sido apropriada pelos profissionais do patrimônio no interior das
instituições do MINC que têm se ocupado desta matéria.
Foram instituídos quatro livros de registro que espera-se venham ter a força do
instituto legal do tombamento. São eles: o Livro dos Saberes, o Livro das
Celebrações, o Livro das Formas de Expressão e o Livro dos Lugares. O processo do
registro é coordenado pelo IPHAN, cabendo ao Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural a competência de inscrever bens culturais de natureza imaterial nos livros
Ver neste sentido, Santos, Ângelo Oswaldo de Araújo "A Desmaterialização do Patrimônio", in:
Londres, Cecília (org.) Patrimônio Imaterial, Revista Tempo Brasileiro n. 147, RJ, 2001.
10
13
de registro. O instituto do registro tem como objetivo a valorização dos bens
inscritos. O Estado fica obrigado a reunir e divulgar documentação ampla acerca de
cada bem legalmente reconhecido. Trata-se, portanto, de contribuir para a
identificação, a promoção e a preservação de bens culturais de natureza imaterial,
reconhecendo-os como patrimônio em permanente processo de transformação. O
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial apóia ações voltadas para a pesquisa,
divulgação e fomento e tem como objetivo viabilizar uma política federal específica
para o campo. Essa nova política está sendo implementada de forma
descentralizada, com a participação de outros órgãos do governo federal, dos
estados, dos municípios e de organizações da sociedade civil. Cabe, ao Ministério
da Cultura, por meio da Secretaria do Patrimônio, Museus e Artes Plásticas, do
IPHAN e do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular da Funarte, regulamentar
a aplicação do decreto e coordenar sua implantação. Neste sentido, são
disponibilizados orientação técnica, recursos financeiros e metodologia específica: o
Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC.11
No momento, a partir de metodologias propostas por grupos de antropólogos foi
dada a partida para o Inventário Nacional de Referências Culturais como forma de
instruir possíveis registros. As pesquisas para compor este Inventário podem ser
realizadas por diferentes agentes em múltiplas parcerias visando identificar,
documentar e reconhecer os bens que integram o patrimônio cultural brasileiro cuja
preservação escape ao âmbito do instrumento de tombamento e da legislação autoral
atual. Um exemplo tem sido o do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular que
vem pesquisando "as diferentes celebrações relacionadas ao complexo cultural do
boi, os diferentes modos de expressão e modos de fazer relacionados à musicalidade
das violas e percussões; os diferentes modos de fazer relacionados aos sistemas
culinários a partir dos elementos mandioca e feijão".12
Outro fator importante no desenho atual do campo do patrimônio cultural no Brasil
relaciona-se a novas atribuições de sentido aos bens tombados na primeira fase da
política patrimonial. O tombamento e a preservação das chamadas cidades
históricas, por exemplo, têm levado a um turismo desordenado, vivido como ameaça
pelos habitantes destas cidades. Muitas vezes, a própria integridade do patrimônio
cultural tem sido colocada em risco. Entretanto, o surgimento de projetos de
desenvolvimento sustentável a partir da adequação a potencialidades e saberes
tradicionais destes locais aponta novas perspectivas. A expectativa é que nestes
contextos sócio-espaciais, experiências com o turismo possam se converter em
alternativas saudáveis e ecologicamente corretas invertendo a tendência de
depredação dos ambientes e garantindo que as populações não sejam retiradas de
seus lugares de origem, cedendo espaço para os veranistas. 13
11
Dados retirados de folheto informativo "Patrimônio Imaterial" publicado pelo MINC.
Ver: Vianna, Letícia. "Dinâmica e Preservação das Culturas Populares: Experiências de Políticas no
Brasil", in: Londres, Cecília, op. cit. 2001.
13
Neste sentido ver: Mello e Souza, Marina, "Patrimônio Cultural, Turismo Cultural e Identidade
Nacional: uma tentativa de refletir acerca de Parati", in: Londres, Cecília, op. cit., 2001.
12
14
Por fim, um outro fator que tem se mostrado decisivo para a configuração de um
certo panorama hoje no campo do patrimônio cultural tem a ver com os debates em
torno do tema da biodiversidade e da biotecnologia e o conseqüente
desenvolvimento das áreas da medicina e da biologia com os processos de
clonagem e os projetos do genoma.
Ambientalistas, economistas e empresários vêm chamando a atenção para a riqueza
do chamado patrimônio natural brasileiro, equivalente a 2 trilhões de dólares, capaz
de transformar o país na maior potência mundial da bioeconomia. O otimismo neste
setor é de tal ordem que o Brasil já chegou a ser comparado com a Arábia Saudita
da Opep Biológica. A vantagem competitiva do Brasil é vista como inigualável, em
função da riqueza da sua biodiversidade. A variedade de espécies de plantas e
animais existentes nos ecossistemas brasileiros contém um tesouro biológico de
genes, moléculas e microorganismos. Os genes, são cada vez mais, a matéria-prima
das biotecnologias que se espalham pela indústria farmacêutica, agrobusiness,
química industrial, cosmética, medicina botânica e horticultura. O crescente
mercado mundial de produtos biotecnológicos movimenta entre 470 bilhões e 780
bilhões de dólares por ano. Segundo a ONG Conservation International, dos 17
países mais ricos em biodiversidade do mundo (entre os quais figuram Estados
Unidos, China, Índia, África do Sul, Indonésia, Malásia e Colômbia), o Brasil está
em primeiro lugar disparado: detém 23% do total das espécies do planeta.
Enquanto a Suíça tem apenas uma planta "endêmica" (que só existe lá), a Alemanha
tem 19 e o México, 3.000. E no Brasil, apenas na Amazônia existem 20.000
plantas. Além disso, há as espécies vegetais, de mamíferos, aves, répteis, insetos e
peixes da Mata Atlântica, do cerrado, do Pantanal, da caatinga, dos manguezais,
dos campos Sulinos e das zonas costeiras. Apenas 5% da flora mundial foi
estudada até hoje e só 1% é utilizada como matéria-prima. A biodiversidade
brasileira, portanto, é o cofre de um patrimônio químico inexplorado de remédios,
alimentos, fertilizantes, pesticidas, cosméticos, solventes, fermentos, têxteis,
14
plásticos, celulose, óleos e energia, em número quase infinito.
A expansão das biotecnologias e a crescente apropriação dos recursos naturais
abriram uma nova fronteira de negócios. Inúmeras empresas ingressam no novo
setor e investem pesado em novos empreendimentos em biotecnologia, como a
Votorantim Ventures, o Ventana Global, o BancBoston Capital, a Natura, o Fundo
FIR Capital Partners em Minas e a Embrapa. No Rio de Janeiro, destaca-se a
Extracta que conclui para a Glaxo testes sobre a reação de oito agentes de doenças
às 30.000 substâncias do seu banco de espécies da Mata Atlântica.
Até recentemente, a coleta de material biológico para exploração de recursos
genéticos – a chamada bioprospecção – era praticamente livre e a biopirataria se
realizava em larga escala. Os genes eram importantes apenas para os cientistas e
14
Estes dados foram retirados da Revista Exame, reportagem "Ouro Verde", 2001.
15
seu valor prático pouco conhecido. A novidade mais perturbadora foi a veloz
transformação do gene em commodity. Em 1992, a Eco-92, no Rio de Janeiro,
consagrou a Convenção sobre Diversidade Biológica, que estabeleceu o princípio da
soberania dos países sobre seus próprios recursos genéticos. Hoje, efetivamente, há
genes que valem mais do que ouro. Em todo o mundo, a questão da titularidade da
propriedade genética gera vastos problemas éticos, políticos e religiosos que se
refletem nas leis sobre patentes. Poucos países, dos 170 que já ratificaram a
Convenção promulgaram legislação regulamentando a matéria. Para os que têm
poucos recursos naturais, a questão pode ser menor, mas para o Brasil não é.
As leis de patentes permitem que um princípio ativo revelado pelo conhecimento
tradicional de Medicina Botânica em uma comunidade possa ser registrado como
propriedade em um outro país. Casos alarmantes têm sido denunciados por algumas
organizações não governamentais, como do registro de patentes de beberragens
produzidas em sociedades indígenas ou entre comunidades na Amazônia com alto
valor terapêutico e calmante. Desse modo, os royalties pelas vendas dos produtos
jamais retornam a estas comunidades.
A convenção da biodiversidade assinada em 1992 na Conferência Mundial do Meio
Ambiente no Rio de Janeiro desencadeou uma série de debates posteriores sobre a
Propriedade Intelectual dos Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e
Folclore. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual, com sede em Genebra,
chegou a criar no início de 2001 um Comitê Intergovernamental para discutir a
matéria. No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, responsável pelos
registros de marcas e patentes, vem acompanhando o debate da OMPI e promete
trabalhar no sentido de estimular a criação de uma legislação capaz de proteger os
chamados "conhecimentos tradicionais", definidos como inovações e criações de
base tradicional resultantes da atividade intelectual nos campos industrial,
científico, literário ou artístico.
Ou seja, trocando em miúdos: no contexto da bio-diversidade, o que importa é
identificar e proteger o conhecimento tradicional em torno do uso para fins
medicinais e biológicos das propriedades da fauna e da flora. Para se legislar sobre
a matéria e tomando-se como base o conceito de "conhecimento tradicional" a
intenção é identificar e proteger comunidades produtoras de conhecimentos
singulares, específicos e únicos, seja na área da etnobotânica, seja na área da
produção da arte e do artesanato. Mais uma vez, prevalece a idéia de proteção do
"saber-fazer". O grande desafio seria criar uma legislação que atendesse interesses
coletivos, uma vez que a legislação sobre propriedade intelectual protege apenas a
criação individual.
No Brasil, as comunidades mais diretamente afetadas pelas novas forças que se
desenham no horizonte a partir das questões ligadas à biodiversidade e à
biotecnologia são as comunidades indígenas. O ouro verde brasileiro encontra-se em
grande parte preservado nos territórios indígenas e estas populações, juntamente
16
com raizeiros, erveiros e comunidades de agricultores tradicionais, são detentores
do chamado "conhecimento tradicional" sobre a fauna e a flora, imprescindíveis
para os novos procedimentos da ciência. Lideranças indígenas têm participado
ativamente deste debate. Em dezembro de 2001, cerca de 20 pajés de diversas
nações indígenas reuniram-se em São Luiz do Maranhão no "Encontro de Pajés. A
sabedoria e a ciência do índio e a propriedade industrial: reflexões e debates". Deste
Encontro foi tirada uma Carta com as principais posições dos índios e levada à II
Reunião do Comitê Intergovernamental Relativo à Propriedade Intelectual, aos
Recursos Genéticos, aos Conhecimentos Tradicionais e ao Folclore, que teve lugar
ainda em dezembro de 2001.
Em linhas gerais, o conteúdo desta Carta dos Pajés afirma o direito à autodeterminação destas comunidades no que tange ao patrimônio que zelam e
preservam. Ações como esta assinalam o esforço da sociedade civil em se organizar
e lutar pelos seus interesses. Evidentemente, que há inúmeras questões
decorrentes.
Ao iniciar o novo milênio percebemos claramente que o campo do Patrimônio
Cultural apresenta-se como um campo de conflitos e interesses contraditórios. Hoje,
os conflitos e os interesses não são mais os mesmos que nortearam o século XX.
Podemos assinalar pelo menos duas mudanças significativas: a organização da
sociedade civil e a afirmação do conceito antropológico de cultura com a
conseqüente naturalização da noção de diversidade cultural. Paralelamente, novas
forças vêm se impondo, provocadas pelo tema da biodiversidade e da biotecnologia,
o que complexifica mais ainda o debate.
Se, outrora o campo do patrimônio se firmou com base num Estado forte
comprometido com a idéia de que a nação tinha um passado e era este passado que
era preciso salvar do esquecimento, hoje, o campo do patrimônio se estrutura de
maneira prospectiva em direção ao futuro. A palavra de ordem é diversidade:
diversidade cultural, mas também diversidade natural ou biológica. Mas, mais do
que salvá-la ou mais do que guardar os seus fragmentos, trata-se de criar condições
para que ela se promova no porvir.
Referências
Refer ncias bibliográficas:
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17
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Experiências de Políticas no Brasil", in: Londres, Cecília (org.) Patrimônio Imaterial,
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Patrimônio Cultural: tensões e disputas no contexto de uma nova