Sofia e o caracol
E
ra um caminho estreito de terra castanha e húmida.
Ao fundo do caminho havia uma casa: Sofia! Tinha paredes brancas, quatro janelas e
uma porta muito grande de madeira castanha, com uma aldraba de ferro amarelo.
Naquela manhã, depois de muito correr caminho abaixo, caminho acima, sentou-se numa
pedra e com as costas da mãozinha limpou a testa: uff! Que calor!... Foi então que viu o caracol.
Sofia alegrou-se: sempre tinha com quem falar.
— Bom dia, senhor Caracol!
— Adeus, menina. Ei! Cuidado com os pés! Vê lá não me pises...
— Não se assuste, que o vejo muito bem.
— Como te chamas?
— Eu chamo-me Sofia. O senhor Caracol onde vai passear? Assim tão devagarinho, nunca
mais consegue chegar...
— Isso é o que tu pensas. Devagar se vai ao longe, ó Sofia curiosa. Onde é que tu moras?
— Ali, naquela casa grande ao fundo do caminho. O senhor Caracol é que tem sorte: como
leva a sua casinha sempre às costas, não precisa de ter pressa, agora percebo!
— O que é que percebes?
— Percebo que pode ficar uma tarde inteira, um dia inteiro a brincar, que está sempre em
casa e ninguém lhe ralha.
— E a ti, ralham-te porquê?
— Porque me demoro.
— Gostas muito de falar, não gostas?
— Ah! pois gosto. Falo com toda a gente que encontro, com as flores e com as formigas. Falar
dá alegria e tira o medo.
— Tens medo de quê?
— Ora, toda a gente tem medo, do escuro, das contas erradas e de outras coisas. Sabe? Se eu
tivesse uma casinha igual à sua é que era uma festa!
— Não digas isso, Sofia. A minha casa faz-me jeito, claro: quando chove não me molho;
quando há muito sol não me queimo. Mas é uma casa triste, esta.
— Porquê, senhor Caracol? Diz isso com uma voz tão triste, tão infeliz... Eu acho a sua
casinha tão engraçada! Se eu tivesse uma casinha assim, abria a porta logo de manhã e chamava
todos os meus amigos.
— Sofia, não vês que a minha casa é redonda, não tem porta nem janela? Posso estar muito
triste mas não cabe cá ninguém. Nem um amigo, sequer.
— É verdade! Nunca tinha pensado nisso. Coitado do senhor Caracol. Uma pessoa sem
amigos é muito triste. E às vezes, pode não lhe apetecer estar em casa e tem de andar com essa
coisa às costas. Que pena!...
— É. Às vezes apetecia-me andar por aí, livre, como tu. Mas não posso.
— Se eu fosse o senhor Caracol, largava a casa de manhã, deixava-a muito escondidinha ali
num buraquinho da oliveira, ia passear e, à noite, então, vinha outra vez dormir.
— Pois é. Falas muito bem. Mas esta casa faz parte do meu corpo. Além disso, mesmo que pudesse
livrar-me dela, conheço muito pouca gente e sou muito envergonhado e medroso. Logo que oiço
vozes, fico cheio de medo que me pisem. Por isso, a minha vida é uma tristeza.
— Sabe, senhor Caracol: estou cá a pensar que posso ajudá-lo.
— Como?
— Se o senhor Caracol achar bem, levo-o comigo, muito escondidinho no bolso do meu
bibe.
— No bolso do teu bibe? Mas como posso eu andar, no bolso do teu bibe?
— Não vai viver no bolso do meu bibe, descanse. Vai aí, mas levo-o para o meu quarto. No
meu quarto, junto da janela, há uma planta verde, com folhas tão brilhantes que até apetece ser
caracol e escorregar nelas.
— Fico lá a morar?
— Fica lá a morar na sua casinha.
— E não te vais aborrecer de mim?
— Eu aborreço-me é de estar sozinha. Todos os dias tenho de ficar no quarto a estudar as
lições da escola e, às vezes, fico com gripe e sarampo e não me deixam vir cá para fora.
Conversaremos os dois e vai ser uma festa. Quer?
— Quero, pois! No teu quarto entra o sol?
— Porquê?
— É que eu sem sol sou muito infeliz...
— Há muito sol no meu quarto. E nos dias de chuva, também terás Sol, pois eu vou pintar
um, muito grande e amarelo, e ponho-o junto da planta que há na janela.
— Parece-me que vou ser o caracol mais alegre do mundo.
— Vais, pois!
Sofia riu-se. Ria-se e batia as palmas de contente. Então, pegou no seu novo amiguinho com
muita ternura e cuidado. Estendeu a mão e o caracol passeou nela como numa estrada boa.
Era um dia de Primavera. Cheio de luz.
Cheirava a flores.
E o caracol estendeu os pauzinhos para sorrir ao Sol
que o beijava devagarinho.
E Sofia pensava: ter um Amigo é a coisa mais bela que
pode haver no mundo!
O quarto de Sofia era uma sala quadrada.
No quarto havia uma cama de madeira branca com
flores pintadas de cor-de-rosa e verde; um grande armário
também cheio de flores.
Havia ainda uma mesa branca, baixinha e uma cadeira junto da mesa.
Em frente da cama havia uma janela: era uma janela pequenina. Tão pequenina que, quando
Sofia espreitava para ver as árvores, parecia um retrato de Sofia metido numa moldura. A janela
tinha cortinas brancas. Junto da janela, havia um vaso com uma planta muito grande. Muito
grande e muito verde: mais alta do que Sofia.
— É assim o meu quarto. Já estás apresentado! E é ali, naquela planta que parece uma árvore
pequenina que tu vais morar. Gostas?
O caracol estava estendido na mão de Sofia e olhava devagar, para um lado e para o outro:
— Gosto. Gosto. Gosto muito.
— Mas gostas mesmo?
— Gosto, sim. Tu falas é muito depressa e ainda não tive tempo de ver tudo bem.
— Esta planta que vai ser a tua casa, o que te parece?
— Parece-me muito sossegada e muito verde.
— É bom viver em paz, não é? Ainda bem que estás feliz pois era isso que eu queria. Agora
vais para a tua casinha que eu vou jantar. Adeus! Até logo!
Não tenhas medo que eu não me demoro.
Quando Sofia ia já a sair para a escada o Caracol chamou:
— Sofia!
— Chamaste-me?
— Chamei, sim. Era para te pedir uma coisa: Não digas a ninguém que estou aqui.
— Está bem. É um segredo. O nosso segredo. Sofia sorriu para o caracol.
— É tão bom, tão bom ter um Amigo!
Era no outro dia de manhã.
Sofia, sentada na sua mesa baixinha, fazia a cópia. De vez em quando, olhava para o amigo que,
feliz, passeava na planta verde e lhe sorria.
— Ainda ficas aí muito tempo a fazer essas ervinhas pretas?
— Isto não são ervinhas: são letras! É o meu trabalho de escola.
— Gostas de andar na escola?
— Gosto, pois.
— Que fazes lá?
— Aprendo muitas coisas novas, e aprendi a ler e a escrever.
— O que é ler?
— É olhar para estes risquinhos pretos e entender o que eles dizem como se fosses tu ou a
minha avó Margarida a falar.
— Falam, esses riscos?
— Falam, pois. Fartam-se de contar histórias giras. Quando pego num livro sou capaz de
saber coisas que já aconteceram há muitos anos e de saber o que disseram as pessoas que já não
existem.
— Ler é melhor do que passear na erva?
— Ler é a coisa melhor que há no mundo.
— Mas tu gostas de brincar lá fora, na erva.
— E tu a dares-lhe! Uma coisa não tem nada com a outra. Olha, mas fica a saber uma coisa: o
que eu gosto mais de tudo na vida é ler. Depois, claro, há outras coisas de que também gosto. A
gente pode gostar de muitas coisas. E também eu não podia estar sempre a ler, que estragava os
olhos, percebes?
— Não percebo lá muito bem, mas não faz mal. Sabes? Lá fora está um sol tão bonito que
podíamos ir brincar.
— Ah! Essa é que não. Sou muito tua amiga mas, enquanto não fizer todos os deveres que a
professora me marcou, não saio daqui. Mas não estás aí bem?
— Estou... É que já passeei na planta toda de trás para a frente, de frente para trás... Posso ir
ali para as flores desse jardim que fica ao pé de ti?
— Isto não é um jardim: é um armário de madeira pintada de verde. E as flores também são
pintadas.
— Não se comem?
— Tu não és pateta, pois não?
— Penso que não. Porquê?
— É que fazes perguntas tão esquisitas... Mas está bem. Podes vir aqui para o verde do
armário. Até é bom para escorregares.
Sofia pegou no caracol.
Devagarinho colocou-o sobre as flores pintadas e, quando viu que ele já não caía e começava
a deslizar com aquele pé grande que parecia ter cola, sentou-se novamente e recomeçou a
trabalhar.
Foi então que a porta se abriu e a mãe entrou.
— Ainda te falta muito para acabares os deveres?
— Falta já pouco, mãe.
— Então despacha-te que hoje está uma manhã linda e boa para ires apanhar sol e ar puro.
Abriu as janelas. Correu as cortinas e gritou:
— Que horror! Olha para isto! A planta está toda roída! Mas ainda ontem a reguei e não vi
aqui nada que se parecesse com lagartas ou caracóis! Que horror! Minha rica planta!
E procurava nas folhas e no caule.
— Viste aqui algum caracol, Sofia?
O coração de Sofia batia tanto que ela teve medo de o ver saltar pela boca, cair-lhe em cima
do caderno e sujar a cópia toda de encarnado do sangue.
E Sofia gaguejou:
— Um caracol? Um caracol, onde?
— Deve andar por aqui, mas não o vejo. Roeu a planta toda. Olha para isto!
— Mas o... o que... o que... o que é um ca... ca... caracol?
— Oh, menina! Mas que pergunta mais tola vem a ser essa? Então agora não sabes o que é
um caracol?
— Sim... sim... parece-me que já tenho visto. Mas aqui no meu quarto não, claro! Para que
havia de estar um caracol aqui no meu quarto?
— Para que havia de estar, não sei. Um quarto não é propriamente lugar de caracóis. Mas lá
que esteve aqui um, esteve. A planta está toda estragada. E não consigo encontrá-lo.
— Se calhar já foi para fora: comeu e abalou!
— Sim, é capaz de ser isso. Mas, se o vires por aqui, mata-o. Minha rica planta!
— Sim... sim... sim senhora.
A mãe saiu. A porta do quarto fechou-se, mas Sofia quase não conseguia respirar. Olhou para
o armário verde. Metido na sua casinha, o caracol era uma flor branca, no meio das outras flores.
Ainda bem que ela se lembrara daquele passeio nas flores pintadas. Havia de ser lindo se a mãe o
tivesse encontrado... Que susto!
Nada. Nem um ruído. Era como se ele tivesse mudado de casa ou não estivesse lá.
— Amigo caracol! Podes sair que já não há perigo.
Nem uma resposta. Então Sofia pensou, aflita:
— Se calhar deu-lhe algum ataque de coração quando ouviu a minha mãe dizer aquilo. E não
era para menos. Vou bater-lhe na casinha. Mas como é que se poderá bater nas casas onde não há
porta nem janela?
E insistiu:
— Amigo Caracol! Sou eu, a Sofia. Já acabei a cópia. Vamos passear lá para fora?
Devagar o caracol deitou a cabecita de fora. Primeiro só um bocadinho muito pequenino,
com os pauzinhos encolhidos. Depois estendendo-os, muito lentamente, em todas as direcções. E
só quando viu que o perigo se afastara é que disse: — Não há mesmo sossego neste mundo: são os
patos, são as galinhas, são as pessoas. Todos me querem comer. Acho que temos de nos separar.
Vou-me embora.
Admirada, Sofia perguntou:
— Vais-te embora para onde?
— Ah! Isso ainda não sei. Mas vou.
— Se é por causa da planta, não ligues. A culpa foi toda minha, que me esqueci de ir buscar
ervinhas frescas para comeres.
— Não é só porque te estraguei a planta que quero ir-me embora. Por acaso eu nem sabia
que estava a fazer um disparate: pensava que as plantas se comiam quando temos fome. Foste
muito boa para mim, mas tenho de ir. Devagarinho, claro.
— Mas para onde vais?
— Tanto faz. Hoje digo: quero ir até àquela árvore. Se chegar à árvore já é uma vitória.
Amanhã direi: quero ir até àquela flor. Se chegar à flor, é outra vitória. Já fico feliz.
— E se te pisam?...
— É um risco. Mas viver sempre da mesma maneira, sem trabalho, não sabe a viver. É
morrer devagarinho. Não quero isso.
— Mas ontem estavas muito contente por vires morar comigo!
— Ontem já é muito longe. E eu não posso viver contigo! A tua casa é a tua casa. A minha
casa é a minha casa. Tu tens as tuas cadeiras, as tuas flores pintadas, as tuas cópias e a tua flor que
eu roí.
— E tu não tens nada, já sei. Estás triste por isso?
— Não! Eu tenho muita coisa, Sofia. Tenho a minha casa que pesa e às vezes me aborrece
porque não a posso deixar, porque é uma casa colada a mim. Mas, fora dela, tenho o mundo todo e
eu posso passear por esse mundo verde e tenro, duro e áspero, à minha vontade. Em liberdade. E
isso é muito importante, volto a dizer-te.
Sofia não percebia lá muito bem aquela conversa da minha casa e da tua casa, do tens
cadeiras e eu tenho liberdade. Então perguntou, enquanto sentia um nó na garganta:
— Mas já não somos amigos?
— Somos, pois!
— Queres ir-te embora...
— Para ser teu amigo não preciso de estar ao pé de ti. Posso ser teu amigo e estar muito
longe.
— A tua conversa hoje é uma complicação para mim. Não entendo nada, nada. Só sei que, se
te vais embora, fico muito triste e cheia de saudades tuas.
— Pois. Mas não vais esquecer-me. Assim, quando olhares a planta roída lá estarei eu;
quando olhares as flores pintadas, lá estarei eu também, todo encolhido, cheio de medo, como há
bocado, quando a tua mãe aqui esteve. E, quando levantares a mão e estenderes o braço, hás-de
ver-me sempre a deslizar. E assim estou sempre contigo. Para sempre. Na tua memória. E agora
vamos embora.
Sofia pegou no caracol. Meteu-o no bolso do bibe e desceu a escada. Abriu a porta castanha
com a grande aldraba amarela. Atravessou o jardim e a horta.
— Queres ficar aqui?
— E um bom lugar.
— Quando nos encontramos para brincar e falar outra vez?
— Se calhar, nunca mais nos vemos.
— Porquê?
— Quando me meto ao caminho quase nunca volto para trás. Não tenho lugar certo. Nem
planta marcada. Vou por aí...
— Foi bom ter-te conhecido. Quando for grande e já souber ler e escrever muito bem, quero
ser como tu.
— Queres ser caracol?
— Não. Quero ser livre. E ir por aí, sem caminho certo e sem voltar para trás.
— Se aprendeste isso comigo, já foi muito bom termos estado juntos.
— Foi muito bom, Caracol. Adeus!
— Adeus, Sofia bonita!
Sobre o tronco da árvore ficou o caracol.
Sofia, devagar, sem nunca se voltar para trás, regressou a casa.
Apanhou uma erva azeda, daquelas amarelas que amargam mas sabe bem roer.
Regressou ao quarto
Pegou numa folha de papel e nas canetas de feltro. Sentou-se numa cadeira baixinha.
Devagar, muito devagar, desenhou um Sol muito grande. Um ramo de pessegueiro em flor. Depois,
pintou um chão de relva verde. Sobre a relva, um grande caracol com a casinha às costas, sem
portas nem janelas.
No canto esquerdo da folha, do lado do coração, escreveu com letra muito bem feita, uma
frase pequenina:
CARACOL, CARACOL
PÕE OS PAUZINHOS AO SOL!
E uma lágrima, também muito pequenina, caiu sobre o desenho, sujou-se de tinta encarnada
e ficou uma manchinha.
Do feitio de um coração.
Maria Rosa Colaço
Sofia e o caracol
Lisboa, Plátano Editora, 1982
Adaptação
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Sofia e o caracol - Contos e Historias